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30/04/2008

O Corcunda, o Alfaiate, o Corretor, Cristão, o Intendente e o Médico Judeu



Conta-se, ó rei afortunado, que vivia na antiguidade, no fundo das idades e dos séculos, numa cidade da China, um alfaiate próspero e de génio alegre que gostava de divertimentos e passeava de vez cm quando com a mulher nos jardins e nas ruas. Certo dia, quando estavam voltando para casa após um desses passeios, cruzaram com um corcunda de aparência tão engraçada que nem a tristeza nem a melancolia podiam viver um instante na sua presença, e o homem sisudo ria gostosamente à sua vista.
Para distrair-se com sujeito tão jocoso, o alfaiate e sua mulher convidaram-no para sua casa. O corcunda aceitou. Enquanto estavam jantando, a mulher do alfaiate, querendo brincar, pegou uma posta de peixe inteira e enfiou-a na boca do corcunda; e, pondo a mão nos lábios do infeliz, obrigou-o a engoli-la. Por
inclemência do destino, havia dentro da posta uma espinha enorme que atravessou a garganta do corcunda, e ele morreu na hora. Quando o alfaiate viu o corcunda morto, exclamou: "Não há poder e força senão em Alá! Que azar que este homem tenha morrido cm nossa casa!" - De que adianta lamentar-se! censurou a mulher. Levanta-te e ajuda-me a carregar o corpo para fora. Cubramo-lo com um pano de seda e levemo-lo agora mesmo na escuridão da noite. Andarei na frente. Tu, atrás, repetirás numa voz audível: "Este é meu filho. E esta é sua mãe. Estamos procurando um médico. Onde encontrar um médico de noite?" Executaram imediatamente seu plano e repetiram tantas vezes: "Onde encontrar um médico? Queremos um médico" que os transeuntes indicaram-lhes a porta de um médico judeu. Chamaram de fora e foram atendidos por uma enfermeira negra. Perguntaram: "Onde está o médico?" Respondeu a enfermeira: "Está no segundo andar preparando um relatório." - Queremos que ele examine logo nosso filho. Dá-lhe este dinar adiantado e pede-lhe que desça. Assim que a enfermeira se afastou, deixando a porta aberta, o homem e a mulher entraram, largaram o corpo numa poltrona e fugiram.
Ao ver o dinar, o médico judeu ficou tão satisfeito que esqueceu de apanhar uma lâmpada e desceu a escada precipitadamente no escuro. Seu pé tropeçou, e ele caiu sobre o corcunda. Examinou-o e,achando-o sem vida, pensou que ele próprio o tinha matado. Gritou: "Jeová! Jeová! Pelas dez palavras sagradas, como poderei livrar-me deste corpo?" Consultou a mulher. A mulher invocou o nome de Harun, de Josué, filho de Nun, e de outros santos judeus, e gritou: "Devemos nos livrar dele já. Se for encontrado aqui ao levantar do Sol, estaremos perdidos. Vamos levá-lo até o terraço e atirá-lo para a casa de nosso vizinho muçulmano. Ele é intendente da cozinha imperial e sua casa está infestada de ratos, gatos e cachorros. Devorarão o corpo, e ninguém saberá de nada." Levaram o corpo até o terraço e baixaram-no mansamente até o pátio do muçulmano, deixando-o encostado na parede da cozinha. Aconteceu que, naquele mesmo momento, o intendente voltava para a casa e viu uma figura de homem apoiada na parede da cozinha. "Ah! exclamou. Não eram então os cachorros e os gatos que roubavam minhas carnes, mas este ladrão." Pegou num porrete, aproximou-se do homem e bateu repetidamente nele. Mas a figura não se mexeu. Olhando bem, o intendente deu-se conta de que tinha batido num morto. Dirigiu-se a ele, dizendo: "Não te bastava, ó infeliz, ser corcunda? Tinhas que ser ladrão também?" Vendo que a noite estava ainda escura, carregou o corpo até os confins do mercado e deixou-o à porta de uma loja. Ora, um corretor cristão bêbado que repetia: "Cristo está chegando! Cristo está chegando!" passou por lá e, imaginando que o corcunda queria atacá-lo, saltou sobre ele e cobriu-o de
socos. Um guarda municipal acorreu e, vendo o corcunda morto, gritou: "Onde já se viu isto? Um cristão ousando matar um crente!" Amarrou o corretor e levou-o à casa do uáli. Diante da evidência, o uáli só podia condenar o cristão à forca. Os guardas levaram o condenado até a praça pública para ser enforcado. Mas enquanto preparavam a forca, o intendente da cozinha do sultão chegou, correndo e gritando: "Parai! Parai! Fui eu que matei o homem." Por que o mataste? perguntou-lhe o uáli. - Encontrei-o encostado à parede de minha cozinha e pensei que fosse ele que roubava todos os dias minhas provisões.
Bati nele com um porrete, e ele morreu. Carreguei-o nas costas e deixei-o à porta da loja. Sou eu que devo ser enforcado. Ouvindo esta confissão, o uáli ordenou aos guardas que libertassem o cristão e enforcassem o intendente. Mas enquanto preparavam a forca, apareceu de repente o médico judeu, forçou caminho no meio da multidão e gritou: : "Parai! Parai! Fui eu que matei o homem. Veio à minha clínica para ser medicado. Tropecei no escuro, caí sobre ele e provoquei a sua morte." O uáli deu ordens para enforcar o médico judeu. Mas antes que a ordem fosse cumprida, o alfaiate chegou, gritando: "Parai! Parai! Só eu matei aquele homem. Não enforqueis um inocente. Enforcai-me." E contou a história do jantar, da posta de peixe e da caminhada até a casa do médico. Nesta altura, o uáli estava assombrado como nunca em toda a sua vida. Disse: "A história deste corcunda deveria ser registrada nos anais e contadas nos livros." E mandou o carrasco libertar o judeu e enforcar o alfaiate. Ora, este corcunda era o bobo predilecto do sultão. Quando sumira, o sultão perguntou por ele, e os informantes lhe contaram que ele tinha sido morto e que quatro pessoas se haviam declarado sucessivamente responsáveis por sua morte. Divertido e curioso, o sultão mandou que ninguém fosse enforcado e que todos comparecessem diante dele. O mensageiro do sultão chegou minutos antes que o alfaiate fosse enforcado. Libertaram-no, e todos foram à presença do sultão. O uáli beijou a terra entre as mãos do sultão e contou-lhe a história do corcunda, do início ao fim. O sultão ficou maravilhado, riu gostosamente e mandou o historiador do palácio registrar essa história em letras de ouro líquido. Depois, perguntou a todos os presentes: "Já ouvistes histórias iguais a esta?" O corretor cristão, o intendente, o médico judeu e o alfaiate aproximaram-se um por um, beijaram a terra entre as mãos do sultão e contaram histórias supostamente iguais à do corcunda. O sultão gostou de todas elas, mas não conseguiu superar a melancolia que se tinha apoderado pouco a pouco dele por causa da morte de seu bobo predilecto. Havia entre os presentes um barbeiro. Após ouvir as diversas histórias e ter sido informado da causa da morte do corcunda, abanou a cabeça gravemente e disse: "Por Alá! Esta é a coisa mais extraordinária que já ouvi. Levantai o pano que cobre o corpo do defunto e deixai-me vê-lo." Assim que o corpo foi descoberto, o barbeiro aproximou-se dele, sentou-se a seu lado e colocou-lhe a cabeça sobre os joelhos. Após observar-lhe atentamente a face por muito tempo, soltou alegres gargalhadas e disse: "Ó afortunado rei, jura que há ainda vida neste corpo. Vou prová-lo." Tirou de um frasco um unguento que passou sobre o pescoço do corcunda. Depois, introduziu-lhe na garganta um par de pinças de ferro e retirou a posta de peixe com a espinha. Imediatamente, o corcunda tossiu fortemente, abriu os olhos e levantou-se, proclamando: "Não há Deus senão Alá, e Maomé é o profeta de Alá." Os presentes ficaram pasmos e cheios de admiração pelo barbeiro. O rei elogiou-o, dizendo: "Nunca vi um homem ressuscitar outro homem. L o prodígio dos prodígios!" Todos repetiram: "É o prodígio dos prodígios!" O rei da China mandou escrever a história do corcunda e do barbeiro em letras de ouro para ser guardada na biblioteca real. E distribuiu vestes de honra a todos os réus: ao alfaiate, ao médico, ao intendente, ao corretor, e deu-lhes lugares de honra em sua corte.Finalmente, cobriu o corcunda e o barbeiro de presentes valiosos, nomeou o corcunda seu companheiro oficial e o barbeiro, seu barbeiro pessoal. E todos saíram satisfeitos e pedindo as bênçãos de Alá sobre o sultão.

O Bom Samaritano





Certa vez, estando Jesus a ensinar, “eis que se levantou um doutor da lei e lhe disse, para o experimentar:
— Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?
Respondeu-Lhe Jesus:
— Que está escrito na lei? Como é que lês?
Tornou aquele:
— “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, com todas as tuas forças e de toda a tua mente; e a teu próximo como a ti mesmo.”
— Respondeste bem, disse-Lhe Jesus. Fase isto, e viverás.
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou ainda:
— E quem é o meu próximo?
Ao que Jesus tomou a palavra e disse:
Um homem descia de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos dos ladrões que logo o despojaram do que levava; e depois de o terem maltratado com muitas feridas, retiraram-se, deixando-o meio morto. Casualmente, descia um sacerdote pelo mesmo caminho; viu-o e passou para o outro lado. Igualmente, chegou ao lugar um levita; viu-o e também passou de largo. Mas, um samaritano, que ia seu caminho, chegou perto dele e, quando o viu, se moveu à com­paixão. Aproximou-se, deitou-lhe óleo e vinho nas chagas e ligou-as; em seguida, fê-lo mon­tar em sua cavalgadura, conduziu-o a uma hospedaria e teve cuidado dele. No dia se­guinte, tirou dois denários e deu-os ao hos­pedeiro, dizendo: Toma cuidado dele, e o que gastares a mais pagar-to-ei na volta. Qual desses três se houve como próximo daquele que caíra nas mãos dos ladrões?
Respondeu logo o doutor:
— Aquele que usou com o tal de miseri­córdia.
Então lhe disse Jesus:
— Pois vai, e fase tu o mesmo.”


Parábolas de Jesus
Lucas, 10º, 25-37

A história de Blimundo



Havia um boi chamado Blimundo. Era grande, forte e amante da vida e da liberdade. Além disso, era muito amado e respeitado por todos, pois sabia pensar por si próprio, além de ser muito gentil com todos. Ao saber da existência de criatura tão autêntica, Senhor Rei perguntou-se que boi seria esse, que ousava ser tão livre em seus posicionamentos e fazendo com que os outros bois lhe seguissem o exemplo. Se ele continuasse assim, quem faria, depois, o trabalho pesado do reino. Ordenou, então, que Blimundo fosse pego morto ou vivo, a trazido até a sua presença. Os homens do Senhor Rei saíram em busca do boi, mas este os encontrou primeiro e deu um fim neles. Ao saber da notícia, Senhor Rei reuniu os homens mais valentes do reino e os mandou capturar Blimundo, e os homens partiram. O boi, novamente, deu cabo dos homens. Quando recebeu tão triste notícia, Senhor Rei desesperou-se, mas logo ouviu falar de um rapaz que fora criado no borralho da cinza e que se prontifica a ir buscar Blimundo. O menino pediu um cavaquinho, um “bli” dágua e uma bolsa de “prentém”. Além disso, quando retornasse queria a metade da riqueza do reino e a mão da princesa. Senhor Rei concordou e o jovem partiu. Então o jovem sai em busca do boi cantando uma canção que deixa Bilmundo encantado, na qual o jovem diz que, se Blimundo for com ele, casará com a Vaquinha da Praia. O boi pergunta se é verdade, o rapaz responde que sim. O jovem pede a Blimundo que o deixe montar, pois o caminho é muito longo. Ele deixa com a condição de que o rapaz continue cantando. Senhor Rei colocou a tropa em pontos estratégicos para receber Blimundo. Ao ver o boi chegar, carregando o rapaz no lombo, cansado e feliz, Senhor Rei não acreditou. À porta do palácio, o rapaz pediu para descer do lombo de Blimundo a fim de fazer a barba antes de ser apresentado à Vaquinha da Praia. O jovem conta o seu plano ao Senhor Rei e leva até o boi um barbeiro com seus instrumentos. Atrás deles, Senhor Rei. O barbeiro, enquanto Blimundo sonha com o amor da Vaquinha da Praia, corta-lhe a garganta com a navalha. Antes de morrer, o boi atinge o rei com uma patada que o mata. O rapaz e o barbeiro fogem, mas jamais esquecem o último olhar de revolta de uma criatura cujo único erro foi acreditar na harmonia, na justiça e na liberdade.


Conto de Cabo Verde

28/04/2008

O conselho dos ratos


Havia um gato maltês,
Honra e flor dos outros gatos;
Rodilardo era o seu nome.
Sua alcunha — Esgana-ratos.

As ratazanas mais feras
Apenas o percebiam,
Mesmo lá dentro das tocas
Com susto dele tremiam;

Que amortalhava nas unhas
Inda o rato mais muchucho,
Tendo para o sepultar
Um cemitério no bucho.

Passava entre aqueles pobres,
De quem ia dando cabo,
Não por um gato maltês.
Sim por um vivo diabo.

Mas janeiro ao nosso herói
Já dor de dentes causava,
E ele de telhas acima
O remédio lhe buscava.

Dona Gata Tartaruga,
De amor versada nas lides,
Era só por quem na roca
Fiava este novo Alcides.

Em tanto o deão dos ratos,
Achando léu ajuntou
Num canto do estrago o resto,
E ansioso assim lhe falou:

"Enquanto o permite a noite.
Cumpre, irmãos meus, que vejamos
Se à nossa comum desgraça
Algum remédio encontramos.

Rodilardo é um verdugo
Em urdir nossa desgraça;
Se não se lhe obstar, veremos
Finda em breve a nossa raça.

Creio que evitar-se pode
Este fatal prejuízo:
Mas cumpre que do agressor
Se prenda ao pescoço um guizo.

Bem que ande com pés de lã.
Quando o cascavel tinir,
Lá onde quer que estivermos
Teremos léu de fugir'".

Foi geralmente aprovado
Voto de tanta prudência;
Mas era a dúvida achar
Quem Fizesse a diligência.

"Vamos saber qual de vós,
Disse outra vez o deão.
Se atreve a dar ao proposto
A devida execução.''

— Eu não vou lá, disse aquele;
— Menos eu, outro dizia;
— Nem que me cobrissem de ouro,
Respondeu outro, eu lá ia!

— Pois então quem há de ser?
Disse o severo deão;
Mas todos à boca cheia
Disseram: "Eu não, eu não!"

Tornou-se em nada o congresso;
Que o aperto às vezes é tal,
Que o remédio que se encontra
Inda é pior do que o mal.

Assim mil coisas que assentam
Numa assembléia, ou conselho;
Mas vê-se na execução
Que tem dente de coelho.

Curvo Semedo (Trad.)

27/04/2008

A Divindade dos Homens

Houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto de sua divindade que Brahma, o mestre dos deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino. Resolveu então escondê-lo em um lugar onde seria absolutamente impossível reencontrá-lo. O grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma convocou um conselho dos deuses menores, para juntos resolverem o problema.
- Enterremos a divindade do homem na terra, foi a primeira ideia dos deuses.
- Não, isso não basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la.
Então os deuses retrucaram:
- Joguemos a divindade no fundo dos oceanos.
Mas Brahma não aceitou a proposta, pois achou que o homem, um dia iria explorar as profundezas dos mares e a recuperaria. Então os deuses concluíram:
- Não sabemos onde escondê-la, pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa alcançar um dia.
Brahma então se pronunciou:
- Eis o que vamos fazer com a divindade do homem: vamos escondê-la nas profundezas dele mesmo, pois será o único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la.
Desde esse tempo, conclui a lenda, o homem deu a volta na terra, explorou escalou, mergulhou e cavou, em busca de algo que se encontra nele mesmo.

Conto oriental





26/04/2008

Conde da Alemanha


Já lá vem o sol na serra,
Já lá vem o claro dia,
E inda o conde da Alemanha
Com a rainha dormia.
Não o sabe homem nascido
De quantos na corte havia;
Só o sabia a infanta,
A infanta sua filha.
– «Não nas chegue eu a romper
Mangas da minha camisa,
Se em vindo meu pai da caça,
Eu logo lho não diria.»
– «Cal'-te, cal'-te, lá infanta,
Não digas tal, minha filha,
Que o conde da Alemanha
De oiro te vestiria.»
– «Não quero vestidos de oiro;
Mau fogo em quem nos vestira!
Padrasto com meu pai vivo;
Nunca eu o consentiria.»
Palavras não eram ditas,
El-rei que à porta batia.
– «Deus venha co senhor pai
E o traga na sua guia!
Tenho para lhe contar
Um conto de maravilha.
Estando eu no meu tear
Seda amarela tecia,
Veio o conde da Alemanha
Três fios dela me tira...»
– «Cal'-te daí, minha filha,
Ninguém te oiça dizer tal:
Que o conde da Alemanha
É menino, quer brincar».
– «Arrenego dos seus brincos
Mais do seu negro folgar!
Que me tomou nos seus braços,
À cama me quis levar.»
– «Cal'te já minha filha,
Ninguém te oiça mais falar;
Que em antes que o sol se ponha
Vai o conde a degolar.»
Veis-lo conde da Alemanha,
Veis-lo vai a degolar;
Ao rabo do seu cavalo
Lá o levam a arrastar.
– «Venha cá, senhora mãe,
Venha ao mirante folgar,
Veja um conde tão formoso
Que aí vai a degolar.»
– «Mal haja, filha, o meu leite,
Mais quem to deu de mamar,
Que a um conde tão bonito
A morte foste causar».
– «Cal'te daí, minha mãe,
Ninguém lhe oiça dizer tal,
Que a morte que o Conde leva
Não lha faça eu levar.»


Romanceiro, Almeida Garrett





23/04/2008

A protegida de Maria


Tradução de Karin Volobuef


Na orla de uma extensa floresta morava um lenhador e sua esposa. Eles tinham apenas uma filha, que era uma menina de três anos. Mas eles eram tão pobres que não tinham mais o pão de cada dia e já não sabiam o que haveriam de dar-lhe para comer. Certa manhã o lenhador foi com grande preocupação até a floresta para cuidar de seu trabalho e, quando estava cortando lenha, lá apareceu de repente uma mulher alta e bela que trazia na cabeça uma coroa de estrelas cintilantes e lhe disse “Sou a Virgem Maria, mãe do Menino Jesus, e tu és pobre e necessitado: traga-me tua filha, vou levá-la comigo, ser sua mãe e cuidar dela.” O lenhador obedeceu, foi buscar a filha e entregou-a à Virgem Maria, que a levou consigo para o Céu. Lá a menina passava muito bem, comia pão doce e bebia leite açucarado, e seus vestidos eram de ouro, e os anjinhos brincavam com ela. Quando completou quatorze anos, a Virgem Maria a chamou e disse “Querida menina, partirei em uma longa viagem; tome sob tua guarda as chaves das treze portas do reino celestial; tu poderás abrir doze delas e contemplar os esplendores que há lá dentro, mas a décima terceira, cuja chave é esta pequena aqui, está proibida para ti: cuidado para não abri-la, pois seria a tua infelicidade.” A menina prometeu ser obediente e, quando a Virgem Maria havia partido, começou a olhar os cômodos do reino celestial: a cada dia abria um deles, até que todos os doze tinham sido vistos. Em cada um dos cômodos estava sentado um apóstolo cercado de grande esplendor, e toda aquela suntuosidade e magnificência dava grande alegria a ela, e os anjinhos, que sempre a acompanhavam, alegravam-se também. Até que, então, faltava apenas a porta proibida, e ela sentiu um grande desejo de saber o que estava escondido atrás dela. Por isso disse aos anjinhos “Não abrirei a porta por inteiro e também não entrarei, mas vou entreabri-la para olharmos um pouquinho pela fresta”. “Oh, não,” disseram os anjinhos, “seria um pecado: a Virgem Maria proibiu fazer isso, além do mais, isso poderia facilmente trazer-te a desgraça.” Então ela se calou, mas o desejo não silenciou em seu coração, mas, ao contrário, continuou roendo e corroendo-a com força, não lhe permitindo ficar em paz. E certa vez, quando os anjinhos haviam todos saído, pensou “Agora estou totalmente sozinha e poderia olhar lá dentro, afinal, ninguém ficará sabendo o que fiz”. Procurou a chave e, tão logo a apanhou, enfiou-a na fechadura e, uma vez ela estando lá, sem pensar duas vezes, girou-a. A porta abriu de um salto e ela viu a Trindade sentada em meio ao fogo e à luz. Ficou parada um momento, observando tudo com assombro, depois tocou de leve com o dedo aquela luz, e o dedo ficou totalmente dourado. No mesmo instante foi tomada de intenso pavor, bateu a porta com força e correu dali. Mas o pavor não diminuía, ela podia fazer o que fosse mas o coração continuava batendo acelerado e não havia como acalmá-lo: assim também o ouro continuou no dedo e não saía de jeito algum, não importa o quanto lavasse e esfregasse.

Não passou muito tempo e a Virgem Maria retornou de sua viagem. Ela chamou a menina e solicitou as chaves de volta. Quando ela apresentou o molho, a Virgem olhou em seus olhos e perguntou: “E não abriste mesmo a décima terceira porta?” “Não”, respondeu. Então ela pousou a mão sobre o coração da menina e sentiu como ele estava batendo sobressaltado, de modo que percebeu que sua ordem tinha sido desobedecida e a porta fora aberta. Então perguntou mais uma vez: “Realmente não a abriste?” “Não”, respondeu a menina pela segunda vez. Aí a Virgem avistou o dedo que ficara dourado pelo toque do fogo celestial e teve certeza de que ela pecara, e perguntou pela terceira vez: “Não a abriste?” “Não”, respondeu a menina pela terceira vez. Então a Virgem Maria disse: “Tu não me obedeceste e além disso ainda mentiste, portanto não és mais digna de permanecer no Céu.”

Nesse momento a menina caiu em profundo sono e quando despertou jazia lá embaixo sobre a terra em meio a um lugar agreste. Quis gritar, mas não conseguiu emitir qualquer som. Levantou-se de um salto e quis fugir, mas para onde quer que se dirigisse sempre era detida por sebes espinhosas que não conseguia atravessar. Nesse ermo em que estava encerrada havia uma velha árvore oca que agora teria de ser sua morada. Era lá para dentro que rastejava quando caía a noite, e era lá que dormia, e, quando vinham chuvas e tempestades, era lá que buscava abrigo. Levava uma vida lastimável, e quando recordava como tudo havia sido tão bom no Céu, e como os anjinhos costumavam brincar com ela, chorava amargamente. Raízes e frutas silvestres eram seus únicos alimentos, e ela os procurava ao redor até onde podia ir. No outono juntava as nozes e folhas que haviam caído no chão e levava-as para o oco da árvore; comia as nozes no inverno e, quando chegavam a neve e o gelo, arrastava-se como um animalzinho para debaixo das folhas para não sentir frio. Não demorou muito e suas vestimentas começaram a se rasgar e um pedaço após outro foi caindo do corpo. Tão logo o Sol voltava a brilhar trazendo o calor, ela saía e sentava-se diante da árvore e seus longos cabelos encobriam-na de todos os lados como um manto. Assim foi passando ano após ano e ela ia experimentando a miséria e sofrimento do mundo.

Uma vez, quando as árvores tinham acabado de cobrir-se outra vez de verde, o rei que lá reinava estava caçando na floresta e perseguia uma corça, e como esta havia se refugiado nos arbustos que rodeavam a clareira da floresta, ele desceu do cavalo e com sua espada foi arrancando o mato e abrindo caminho para poder passar. Quando finalmente chegou do outro lado, avistou sob a árvore uma donzela de maravilhosa beleza que lá estava sentada totalmente coberta até os dedos dos pés pelos seus cabelos dourados. Ficou parado admirando-a com assombro até que finalmente dirigiu-lhe a palavra e disse: “Quem és tu? Por que estás aqui no ermo?” Mas ela não respondeu, pois sua boca estava selada. O rei falou novamente: “Queres vir comigo até meu castelo?” Ela apenas assentiu levemente com a cabeça. Então o rei a tomou nos braços, carregou-a até seu corcel e cavalgou com ela para casa, e, quando chegou ao castelo real, ordenou que a vestissem com belos trajes e tudo lhe foi dado em abundância. Embora não pudesse falar, ela era afável e bela, e assim ele começou a amá-la do fundo de seu coração e, não demorou muito, casou-se com ela.

Quando se havia passado cerca de um ano, a rainha deu à luz um filho. Nessa mesma noite, quando estava deitada sozinha em seu leito, apareceu-lhe a Virgem Maria, que disse “Se quiseres dizer a verdade e confessar que abriste a porta proibida, destravarei tua boca e devolverei tua fala, mas se insistires no pecado e teimares em negar, levarei comigo teu filho recém-nascido.” Nesse momento foi dado à rainha responder, porém ela manteve-se obstinada e disse: “Não, não abri a porta proibida”, e a Virgem Maria tomou-lhe o filho recém-nascido dos braços e desapareceu com ele. Na manhã seguinte, quando não foi possível encontrar a criança, começou a correr um murmúrio no meio do povo de que a rainha comia carne humana e teria matado seu próprio filho. Ela ouvia tudo isso e não podia dizer nada em contrário, mas o rei recusou-se a acreditar naquilo porque a amava muito.

Depois de um ano nasceu mais um filho da rainha. Naquela noite voltou a parecer a Virgem Maria junto dela dizendo: “Se quiseres confessar que abriste a porta proibida, devolverei teu filho e soltarei tua língua; mas se insistires no pecado e negares, levarei também este recém-nascido comigo.” Então a rainha disse novamente: “Não, não abri a porta proibida”, e a Virgem tomou-lhe a criança dos braços e levou-a consigo para o Céu. De manhã, quando mais uma vez uma criança havia desaparecido, o povo afirmou em voz bem alta que a rainha a tinha devorado, e os conselheiros do rei exigiram que ela fosse levada a julgamento. Mas o rei a amava tanto que não quis acreditar em nada, e ordenou aos conselheiros que, se não estivessem dispostos a sofrer castigos corporais ou mesmo a pena de morte, que deixassem de insistir no assunto.

No ano seguinte a rainha deu à luz uma linda filhinha e, pela terceira vez, apareceu à noite a Virgem Maria e disse: “Acompanha-me”. Tomou-a pela mão e conduziu-a até o Céu, mostrando-lhe então os dois meninos mais velhos, que riam e brincavam com o globo terrestre. A rainha alegrou-se com aquilo e a Virgem Maria disse: “Teu coração ainda não se abrandou? Se confessares que abriste a porta proibida, devolverei teus dois filhinhos.” Mas a rainha respondeu pela terceira vez “Não, não abri a porta proibida”. Então a Virgem Maria a fez descer novamente à terra, tomando-lhe também a terceira criança.

Na manhã seguinte, quando a notícia correu, todo o povo gritava “a rainha come gente, ela tem que ser condenada”, e o rei não conseguiu mais conter seus conselheiros. Ela foi submetida a julgamento e, como não podia responder e se defender, foi condenada a morrer na fogueira. Quando haviam juntado a lenha e ela estava amarrada a um pilar e o fogo começava a arder a sua volta, então derreteu-se o duro gelo do orgulho e seu coração encheu-se de arrependimento e ela pensou: “Ah, se antes de morrer eu ao menos pudesse confessar que abri a porta”. Nesse momento voltou-lhe a voz e ela gritou com força “Sim, Maria, eu a abri!” No mesmo instante uma chuva começou a cair do céu apagando as chamas do fogo, e sobre sua cabeça irradiou uma luz, e a Virgem Maria desceu tendo os dois meninos, um de cada lado, e carregando a menina recém-nascida no colo. Ela falou-lhe com bondade: “Quem confessa e se arrepende de seu pecado, sempre é perdoado”, e entregou-lhe as três crianças, soltou-lhe a língua e deu-lhe de presente a felicidade para a vida inteira.



20/04/2008

A rã e o boi


Curvo Semedo (trad.)
(1766 - 1838)



Num prado uma rã
Um boi contemplou,
E ser maior que ele
Vaidosa intentou.

A pela enrugada
Inchando alargou,
E às leves irmãs
Assim perguntou:

- Maior que o Boi
Ó Manas, já sou?
- Não és, lhe disseram
E a rã lhes tornou,

- E agora, inda não?
E mais ainda inchou;
Eis logo de todas
Um não escutou.

Inchar-se invejosa
De novo buscou,
Mas dando um estouro
A vida acabou.

Também, se em grandeza
Vencer procurou
O pobre ao potente,
Por força estourou.




19/04/2008

As-Sámet: o Barbeiro Calado

Como todas as histórias das Mil e uma noites, esta surge encadeada a outra. Numa cidade da China, numa residência de gente fina, prepara-se uma festa em homenagem aos principais membros das corporações: alfaiates, sapateiros, comerciantes, barbeiros, carpinteiros e outros. Quando tudo está pronto para o início da festa, entra o dono da casa acompanhado de um adolescente estrangeiro, trajado à
moda de Bagdá, bem constituído e belo, mas coxo. Mal esse jovem senta e olha em volta, algo perturba-o visivelmente. Levanta-se com a disposição de partir. O dono da casa pede-lhe que pelo menos explique este comportamento estranho. Responde: "Há entre vós alguém cuja presença me obriga a sair.
Se insistirdes em saber quem é, é aquele barbeiro ali."O dono da casa comenta: "Como pode alguém que acaba de chegar de Bagdá ser incomodado pela presença de um barbeiro desta cidade?" Todos pedem uma explicação, e o jovem acaba cedendo: "Este barbeiro, que tem um aspecto de alcatrão e alma de
betume, foi a causa de uma tragédia que nunca deveria ter ocorrido e que acabou por dani6car uma das minhas pernas, como vedes. Jurei nunca mais viver na mesma cidade que ele, nunca me sentar onde ele estiver. Deixei Bagdá, minha cidade natal, por causa dele, e viajei até este país remoto. E eis que o
encontro à minha frente na primeira reunião social de que participo. Sairei logo desta cidade, e espero estar bem longe deste parvo abominável antes do fim do dia." O barbeiro ouve essas imprecações de olhos baixos e sem adiantar uma palavra. Os outros convencem o coxo a contar sua história. Diz:
"Meus senhores, eu era filho único de um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Apesar das solicitações de meu pai, não constituí família porque Alá havia plantado em mim uma aversão invencível pelas mulheres. Um dia, porém, uma jovem, vista à janela de um palácio, inverteu essa aversão numa paixão irresistível. Fiquei doente por não saber quem era e por não encontrar alguém que me pusesse em contacto com ela. "Mas Alá teve pena de mim e, um dia, uma velha conhecida me disse: `Meu filho, aquela jovem é a filha do cádi de Bagdá. Conheço pessoas capazes de te arrumar um encontro com ela. Prepara-te.' "Curei-me na hora e readquiri as cores e o vigor da juventude. Antes de ir ao hammam, quis cortar o cabelo. Mandei um de meus escravos trazer um barbeiro, recomendando-lhe: `Escolhe
alguém que tenha a mão ágil, mas sobretudo que seja discreto, educado, de poucas palavras e sem curiosidade para que não me venha atormentar com a loquacidade e a impertinência próprias à gente daquela profissão.' "Meu escravo trouxe-me um barbeiro que não era outro senhores, que este sinistro velho que vedes sentado entre vós. Cumprimentou-me e disse: `Trago-te boas notícias, meu mestre,
muito boas notícias. Aliás, não são boas notícias, mas bons votos para que recuperes a saúde e a força. Todavia, negócio é negócio. Que queres exatamente quem faça? Que te corte o cabelo ou te submeta à sangria? Não podes ignorar que o grande Ibn Abbas disse: `Quem mandar cortar o cabelo às sextas-feiras
concilia-se com a graça de Alá, que afastará dele setenta tipos de pragas.' Por outro lado, não podes esquecer que o mesmo Ibn Abbas disse numa outra oportunidade: `Quem ousar sangrar-se ou fazer aplicações de ventosas as sextas-feiras, correrá o risco de tornar-se cego e sujeito a todas as doenças.'
"- Meu velho, respondi, peço-te que pares com esta conversa e me cortes o cabelo tão rapidamente quanto puderes, porque estou ainda fraco em consequência da doença e cansa-me tanto falar como ouvir.
"O barbeiro levantou-se, pegou um embrulho similar aos que os homens de sua profissão carregam, abriu-o e tirou dele, não os utensílios de seu trabalho como navalhas, tesouras, mas um astrolábio de sete facetas. Carregou-o até o centro do pátio, olhou o sol de frente e voltou para dizer-me: `Deves saber que
esta sexta-feira é o décimo dia do mês de Safar do ano 763 da Hégira de nosso santo profeta, que as bênçãos do céu estejam sobre ele! Coincide assim, segundo a ciência dos números, com o momento preciso em que o planeta Marrikh se encontra com o planeta Mercúrio, à altura de sete graus. Isso significa que hoje é um dia auspicioso para cortar o cabelo. "`Os mesmos cálculos revelam-me que tens a intenção de visitar hoje uma jovem senhora, e que essa visita pode trazer-te ou bem ou mal. Não digo que preciso de minha ciência para profetizar o que se passará exactamente quando tu e a jovem senhora estiverem juntos, mas isso pouco importa. Pois há coisas que é melhor calar. "- Por Alá, explodi, sufocas-me com tua verbosidade. Acabarás por me matar. "Trouxe-te para que me cortes o cabelo. Corta-o já sem mais uma palavra." "-Farei exatamente como desejas, replicou, embora não possa deixar de pensar que, se conhecesses a verdade, pedirias que te dê mais informações e conselhos. "`Pois, deves saber que, embora barbeiro - o mais célebre desta cidade - não sou apenas barbeiro. Possuo na ponta dos dedos as ciências da medicina, das plantas, da química, da geometria, da álgebra. Além delas, conheço a astronomia, a astrologia, a filosofia, a literatura, a história, o folclore de todos os povos e muito mais.'
"E o barbeiro prosseguiu assim, falando e falando e falando, até que o interrompi violentamente, gritando: `Irá me enlouquecer e me matar com este transbordamento interminável de palavras, velho assassino?' "-Aí está o ponto em que te enganas, mestre, replicou. Todo mundo me conhece como As-Sámet, o homem calado, pela parcimônia com que uso as palavras. "Essa afirmação pôs-me completamente fora de mim mesmo. Senti meu fel prestes a romper-se. Gritei a um de meus criados:
`Dá um quarto de dinar a este homem e manda-o embora. De qualquer forma, nunca me cortará o cabelo.'
"Ao ouvir a ordem dada, disse o barbeiro: `Eu poderia chamar essas palavras, palavras rudes, meu mestre. Sim, acho que qualquer um teria o direito de chamá-las palavras rudes. Permite-me dizer que não te dás conta de que desejo ter a honra de atender-te sem pensar em dinheiro. E já que me ofereço para cortar-te o cabelo sem retribuição, como podes imaginar que aceitaria dinheiro sem te ter prestado um serviço correspondente? Não , não, nunca poderia conceber uma coisa dessas. Considerar-me-ia desonrado por toda a vida se aceitasse a menor retribuição. Vejo claramente que não fazes justiça a meu valor. Isso não me impede de ter uma ideia exacta de teu próprio valor. `Asseguro-te que te considero digno em tudo de teu grande e lamentado pai, para quem peço a compaixão de Alá. Ele era mesmo um fidalgo. Sim, teu querido velho pai era um fidalgo. Tenho para com ele uma dívida. Por algum motivo, ele sempre me cumulou com favores. Nunca houve homem mais generoso, nunca houve homem igual na sua grandeza se me permites falar assim; e por algum motivo, ele me estimava muito. Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que teu bondoso pai me fez chamar. Achei-o cercado por visitantes ilustres; mas deixou-os assim que cheguei e veio até mim e cumprimentou-me, dizendo: `Meu bom amigo, peço-te que me sangres hoje." "`Aí abri meu astrolábio, medi a altura do sol e descobri que, naquela hora exacta, a sangria não era aconselhada, mas que o seria momentos depois. Comuniquei minhas conclusões a teu pai - que pena que tal patrão tenha ido para a eternidade! Acreditou em mim sem fazer uma pergunta, e ficou batendo papo comigo como se fosse meu amigo e não meu amo, até que soou a hora certa para a operação. Sangrei-o então. Ele sangrou bem, pois era sempre um bom paciente, e agradeceu-me calorosamente. E não apenas ele. Seus amigos se juntaram a ele e me agradeceram também. Agora, estou me lembrando de um fato que esquecia quando comecei esta história: teu honroso pai, satisfeito com a sangria, deu-me cem dinares de ouro."' O adolescente interrompeu sua narração e, olhando para
todos os presentes, disse: "Estaria assassinando-vos como este malvado barbeiro me assassinou se continuasse a repetir aquela enxurrada de palavras enfadonhas, ocas, irritantes com que este patife me torturou. Não havia meio de livrar-me dele, nem de levá-lo a me cortar o cabelo, nem de obrigá-lo a calar-se. A certa altura, fez um grande descobrimento: descobriu que era um chato! Disse-me: `Receio estar irritando-te, ó jovem.' Mas logo acrescentou uma frase que o retratava definitivamente. Disse: `Contudo, sou sábio demais para me importar com detalhes como este.' E recomeçou a falar, falar, falar.
"Por fim, começou a cortar-me o cabelo. Mas parava a cada movimento para falar, falar, falar. Eu estava desesperado para livrar-me dele e de sua horrível presença, pois a hora de meu encontro com a filha do cádi se aproximava. Em desespero de causa, disse-lhe: `Estou com pressa porque vou a uma festa na
casa de um amigo.' "Mal ouviu a palavra festa, quis acompanhar-me. Para fazê-lo desistir, dei-lhe todas as provisões de minha casa para que fosse festejar com seus amigos. Mas nem isso me libertou dele. Mandou um escravo levar as provisões para sua casa e seguiu-me secretamente na rua para me espionar. Quando entrei na casa do cádi para ver a filha antes da chegada do pai, este canalha postou-se em frente à casa e quando viu o cádi chegar, armou um escândalo desastroso. Tentando passar de um esconderijo a outro na casa do cádi, caí e quebrei a perna, e tornei-me coxo pela vida toda. Lavrei então meu testamento, legando meus bens a minha família e deixei Bagdá, minha cidade natal, decidido a ir viver em qualquer lugar onde não pudesse encontrar-me face a face com este parasita calamitoso. Percorri as sete partes do mundo e estabeleci-me nesta terra longínqua, pensando estar aqui a salvo deste mastim.
"Mas eis que, ao atender ao primeiro convite social que recebo, encontro o mesmo horrendo barbeiro sentado num lugar de honra entre os convidados. Todos os gastos que fiz, a vida errante que me impus, a desgraça de ser coxo são devidos a este demónio de cabelo branco, a esta relíquia perversa e assassina. Possa Alá amaldiçoá-lo, a ele e à sua posteridade até o fim do tempo. E agora, não terei paz até que abandone este país como abandonei o meu." Tendo falado assim, o jovem levantou-se e partiu. Ficamos olhando para o barbeiro que se conservava calado e cabisbaixo. "O jovem tem razão ou não?" perguntou-lhe um de nós.
- Por Alá, eu sabia o que fazia ao proceder como fiz. Pois assim evitei-lhe desgraças maiores. Que agradeça a Alá e a mim por ter ficado estropiado de uma perna só quando podia ter perdido as duas. Eu não sou nenhum indiscreto ou linguarudo. Ao contrário, sou um homem útil, cauteloso e, sobretudo, calado, como vereis ao ouvir minha história. Por isso, meus amigos me chamam As-Sámet, o homem calado. (Na sua história, esse homem calado fala ao longo de vinte e três páginas da edição original árabe para passar em revista o comportamento de seus seis irmãos, cada um dos quais mais horrendo que o outro.)





18/04/2008

O galo e a pérola




Um Galo comilão andava pela quinta à procura de comer. De repente, viu uma coisa a brilhar no chão.
- Olá! Isto é para mim – pensou ele enquanto desenterrava o que encontrara.
Mas o que era aquilo? Nada mais, nada menos, do que uma pérola que alguém perdera. Desdenhoso, o Galo murmurou:
- Podes ser um tesouro para as pessoas que te apreciam. Mas, no que me diz respeito, trocava de bom grado uma espiga de milho por um punhado de pérolas iguais a ti.


Moral da história:
Nem todos apreciam do mesmo modo as coisas valiosas.

17/04/2008

A Velha Mansão

AQUELA velha mansão! Tinha perto de trezentos anos, como se podia ver por uma inscrição gravada numa viga, no meio de uma guirlanda de tulipas. Sob a porta podiam-se ler versos escritos na ortografia antiga, e sob cada janela estavam esculpidas figuras que faziam caretas engraçadas.
A casa tinha dois andares e no teto havia uma goteira terminada por uma cabeça de dragão. A chuva devia escoar-se na rua por essa cabeça; mas ela se escoava pelo ventre, pois a goteira tinha um buraco no meio.
Todas as outras mansões daquela rua eram novas e próprias, ornadas de grandes azulejos e muros brancos. Pareciam desdenhar a sua velha vizinha.
“Quanto tempo ainda este barraco vai ficar aqui?”, pensavam elas; “tira-nos toda a vista de um lado. Sua escadaria é larga como a de um castelo e alta como a da torre de uma igreja. A grande porta de ferro maciço parece a de uma antiga sepultura, com seus botões de couro. Que coisa! Imaginem só!”
Numa dessas lindas mansões, na frente da velha, estava na janela um menino de rosto alegre, faces coradas e olhos brilhantes.
Gostava muito da velha mansão, tanto à luz do sol como ao clarão da lua. Ele se divertia em copiar as cabeças que faziam caretas, os ornamentos que representavam soldados armados e as goteiras que se pareciam com dragões e serpentes.
A velha mansão era habitada por um homem idoso que usava calções curtos, um casaco com botões de couro e uma imponente peruca.
Nunca se via ninguém, excepto um velho doméstico, o qual, todas as manhãs, vinha arrumar seu quarto e fazer compras. Algumas vezes olhava para a janela e então o menino o cumprimentava amistosamente; nosso homem respondia e assim eles se tornaram amigos sem nunca se terem falado.
Os pais do menino diziam sempre: “Esse velhote daí em frente parece estar à vontade; mas é uma pena que viva tão só”.
Eis por que o menino, num domingo, depois de ter embrulhado algo num pedaço de papel, foi para a rua e disse ao velho doméstico: “Ouça, se você quisesse levar isto ao velho senhor lá em frente, me daria um grande prazer. Tenho dois soldados de chumbo, e dou-lhe um, para que ele não se sinta tão só’.
O velho doméstico executou o encargo com alegria e levou o soldado de chumbo para a velha mansão. Mais tarde, o menino, convidado a visitar o ancião, correu para lá com a permissão de seus pais.
No interior a maior arrumação reinava por todos os lados; o corredor estava ornado de antigos retratos de cavaleiros em suas armaduras e de senhoras com vestido de seda. No fundo desse corredor havia uma grande varanda, pouco sólida, era verdade, mas toda guarnecida de folhagens e de velhos vasos de flores que tinham por alças orelhas de asno.
A seguir o menino chegou ao aposento onde estava sentado o ancião. – Obrigado pelo soldado de chumbo, meu amiguinho – disse este último. Obrigado pela sua visita!.
– Disseram-me, – replicou o menino –, que você estava sempre sozinho; eis por que enviei-lhe um de meus soldados de chumbo para fazer-lhe companhia.
– Oh! – replicou o velho sorrindo –, nunca estou totalmente sozinho; muitas vezes velhos pensamentos vêm me visitar e agora você vem também; não posso queixar-me..
A seguir ele apanhou numa estante um livro de figuras onde se viam procissões magníficas, carruagens estranhas, como não existem mais e soldados levando o uniforme de valete-de-paus.
Viam-se ainda as suas corporações com todas as suas bandeiras: a dos alfaiates levava dois pássaros sustidos por dois leões; a dos sapateiros estava ornada com uma águia, sem sapatos, é verdade, mas de duas cabeças. Os sapateiros gostam de ter tudo em dobro, a fim de formarem um par.
E, enquanto o menino olhava as figuras, o ancião ia até o aposento vizinho procurar doces, frutas, biscoitos e avelãs. Na verdade a velha mansão não era desprovida de conforto.
“Nunca poderia suportar essa existência, dizia o soldado de chumbo, colocado sobre um cofre. “Como tudo aqui é triste! Que solidão! Que infelicidade encontrar-se em semelhante situação, para quem está acostumado à vida de família! O dia não acaba nunca. Que diferença da sala onde seu pai e sua mãe conversavam alegremente e você e seus irmãos brincavam! Este ancião, na sua solidão, jamais recebe carícias; não rir e sem dúvida passa o Natal sem a sua árvore. Esta habitação se parece com uma tumba; eu nunca suportaria uma tal existência”
“Não se lamente tanto – respondia o menino – pois eu gosto daqui: e depois você sabe que ele recebe sempre a visita de seus velhos pensamentos”.
“É possível, mas eu nunca os veio; nem os conheço. jamais poderia ficar aqui!”
“No entanto, é preciso ficar.”
O velho voltou com um rosto sorridente, trazendo os doces, as frutas e as avelãs e o menino não pensou mais no soldadinho de chumbo.
Após ter-se regalado, voltou contente e feliz para a sua casa; e não deixava de fazer um sinal amistoso ao seu velho amigo, de cada vez que o percebia na janela.
Algum tempo depois, ele fez uma segunda visita à velha mansão.
“Não posso mais!” disse o soldadinho de chumbo; “aqui é muito triste. Tenho chorado chumbo derretido! Gostaria mais de ir para a guerra, arriscando-me a perder pernas e braços. Pelo menos seria uma mudança. Não agüento mais! Agora já sei o que é a visita dos velhos pensamentos; os meus vieram me visitar, mas sem dar-me o menor prazer. Eu os via na casa em frente, como se estivessem aqui. Assisti à prece matutina, às suas lições de música e me achava no meio de todos os outros brinquedos. Ai de mim! Não passavam de velhos pensamentos. Diga-me como se comporta a sua irmã, a pequena Maria. Dê-me notícias também do meu camarada, o outro soldado de chumbo; ele tem mais sorte do que eu. Não posso mais, não posso mais”.
“Você não mais me pertence – respondeu o menino – e eu não tomarei aquilo que dei de presente. Entregue-se à sua sorte”.
O ancião trouxe para o menino umas figuras e um jogo de antigas cartas, enormes e douradas, para diverti-lo.
A seguir abriu o seu clavicórdio, tocou um minueto e cantarolou uma velha canção.
“À guerra! à guerra!”, gritou o soldado de chumbo. E atirou-se ao chão.
O ancião e o menino quiseram levantá-lo, mas procuraram por todos os lados sem conseguir encontrá-lo.
O soldado de chumbo caíra numa fenda.
Um mês mais tarde era inverno e o menino soprava as vidraças a fim de fundir o gelo e limpar o vidro. Dessa maneira ele poderia fitar a velha mansão da frente. A neve cobria completamente a escadaria, todas as inscrições e todas as esculturas. Não se via ninguém, e, realmente, não havia ninguém; o ancião tinha morrido.
Na mesma noite um carro parava na frente da porta para receber o corpo que devia ser enterrado no campo.
Ninguém seguia esse carro; todos os amigos do ancião também estavam mortos. Somente o menino enviou um beijo com a ponta dos dedos para o caixão que partia.
Alguns dias mais tarde, a velha mansão foi posta à venda, e o menino, da sua janela, viu levarem os retratos dos velhos cavaleiros e das castelãs, os vasos de plantas de orelhas de asno, os móveis de carvalho e o velho clavicórdio.
Ao chegar a primavera a velha mansão foi demolida.
“Não passa de um barraco!”, repetia todo mundo, e em algumas horas, não se via mais do que um monte de escombros.
“Até que enfim!”, disseram as casas vizinhas se pavoneando.
Alguns anos mais tarde, no local da velha mansão se erguia uma casa nova e magnífica, com um pequeno jardim rodeado de uma grade de ferro; era habitada por um de nossos antigos conhecidos, o menino amigo do ancião. O menino crescera, casara-se; e, no jardim, ele olhava para sua esposa que plantava uma flor.
De repente ela retirou a mão dando um grito; algo pontudo ferira seu dedo.
Que acham que era? Nada mais do que o soldadinho de chumbo, o mesmo que o menino presenteara ao ancião. jogado para cá e para lá, ele terminara afundando na terra.
A jovem senhora limpou o soldado, primeiro com uma folha verde, depois com o seu lenço. E ele despertou de um longo sono.
“Deixe-me ver!”, disse seu marido sorrindo. “Oh! não, não é ele! Mas eu me lembro da estória de um outro soldado de chumbo que me pertenceu quando eu era criança”.
Então ele contou à esposa a estória da velha mansão, do ancião e do soldado de chumbo que ele dera a este último para fazer-lhe companhia.
Ao ouvi-lo, seus olhos se encheram de lágrimas.
“Quem sabe não se trata do mesmo soldado?”, disse ela. “De qualquer forma vou guardá-lo. Mas você poderia mostrar-me o túmulo do ancião?”
“Não’ – respondeu o marido – “não sei onde está e ninguém sabe também. Todos os seus amigos morreram antes dele, ninguém o acompanhou até a última morada e eu não passava de uma criança.
– Que coisa triste é a solidão!
“Coisa pavorosa, realmente” pensou o soldadinho de chumbo. “Em todo caso, é melhor ficar só do que ser esquecido”.


Hans Christian Andersen




14/04/2008

Riquete do Topete

Era uma vez uma rainha que deu à luz um filho tão feio e tão deformado que, durante muito tempo, se duvidou que tivesse forma humana. Uma fada que estava presente quando ele nasceu assegurou que, apesar do seu aspecto, seria amável e muito inteligente. Acrescentou ainda que, graças ao dom que ela lhe concedera, poderia dar à pessoa que mais amasse uma inteligência igual à sua. Estas palavras consolaram um pouco a pobre mãe que estava tristíssima por ter posto no mundo uma criança tão feia. Com efeito, mal começou a falar, o menino disse logo coisas engraçadas e inteligentes, causando grande admiração entre quem o escutava.
Já me esquecia de dizer que o menino nasceu com uma pequena poupa de cabelo na cabeça, o que fez com que lhe chamassem Riquete do Topete, uma vez que Riquete era o seu nome de família.
Alguns anos mais tarde, a rainha de um reino vizinho deu à luz duas meninas. A primeira era mais bela do que o dia e a rainha ficou tão feliz que se temeu que tanta alegria lhe fizesse mal. Estava presente a mesma fada que assistira ao nascimento do pequeno Riquete do Topete e, para moderar a alegria da mãe, disse-lhe que a princesa teria pouca inteligência e que seria tão estúpida quanto era bonita. A rainha ficou muito triste mas, momentos depois, teve um desgosto ainda maior porque a segunda filha que deu à luz era muitíssimo feia.
- Não se aflija, Majestade – disse a fada – a vossa filha será tão inteligente que a sua fealdade quase não será notada.
- Deus o queira, – respondeu a rainha – mas não haverá meio de conceder um pouco de inteligência à mais velha que é tão bela?
- Não posso valer-lhe no que toca à inteligência, – disse a fada – mas posso fazer tudo em relação à beleza. E como não há nada que eu não faça para vos satisfazer, concedo-lhe o dom de poder tornar bonita a pessoa que ela quiser.
À medida que as duas princesas foram crescendo, cresceram também os seus dotes, e não se falava senão da beleza da mais velha e da inteligência da mais nova. Também é verdade que os seus defeitos aumentaram muito com a idade.
A mais nova estava cada vez mais feia e a estupidez da mais velha crescia de dia para dia: ou não respondia ao que se lhe perguntava ou então dizia um disparate qualquer. Além disso, era tão desajeitada que não conseguia pousar quatro chávenas na borda da chaminé sem partir uma, nem conseguia beber um copo de água sem entornar metade por cima do vestido.
Ainda que a beleza seja uma grande vantagem numa jovem, o certo é que a mais nova suplantava quase sempre a mais velha quanto a companhias durante os serões. A princípio, as pessoas rodeavam a mais velha para a verem e admirarem mas, pouco depois, iam para junto da mais inteligente escutar as mil e uma coisas espirituosas que ela dizia. Em menos de um quarto de hora a mais velha ficava sozinha, enquanto que mais nova tinha toda a gente em seu redor.
A mais velha, apesar de ser muito estúpida, apercebia-se do que se passava e teria dado de bom grado toda a sua beleza em troca de metade da inteligência da irmã. A rainha, ainda que ponderada, não conseguia deixar de a repreender pela sua estupidez, o que entristecia ainda mais esta pobre princesa.
Um dia, foi para o bosque para poder chorar à vontade. Nisto, aproximou-se dela um homenzinho muito feio e desajeitado, mas ricamente vestido. Era o jovem príncipe Riquete do Topete que se tinha apaixonado perdidamente por ela, depois de ver os seus retratos que circulavam por todo o mundo. Abandonara o reino do seu pai para ter o prazer de a ver e de falar com ela. Encantado por a ter encontrado sozinha, dirigiu-lhe a palavra com muita delicadeza. Notando a sua melancolia, disse-lhe:
- Senhora, não compreendo como é que uma pessoa tão bela como vós pode estar tão triste. Asseguro-vos que nunca vi beleza semelhante à vossa.
- Isso di-lo o senhor – respondeu a princesa.
- A beleza constitui um tal privilégio que supera tudo o resto. Quando alguém a possui, não acredito que exista alguma coisa que a possa afligir muito – acrescentou Riquete do Topete.
- Preferia ser feia como vós e ser inteligente, em vez de ser tão bela como sou – confessou a princesa.
- Se é só isso que vos apoquenta, posso facilmente pôr fim à vossa dor.
- E como o farias? – Perguntou a princesa.
- Tenho o dom de dar inteligência à pessoa que mais amar. E, como vos amo, dar-vos-ei o que pretendes se aceitares casar comigo.
A princesa ficou sem palavras, tal foi o seu espanto.
- Vejo que este pedido vos desagrada, o que não me admira nada – continuou Riquete do Topete. – Contudo, dou-vos um ano para decidires.
A princesa era tão pouco inteligente e ao mesmo tempo desejava tanto sê-lo que pensou que um ano seria demasiado tempo para esperar. Por isso, aceitou logo a proposta que lhe fora feita.
Assim que ela prometeu que casaria com Riquete do Topete dentro de um ano naquele mesmo lugar, sentiu-se uma pessoa diferente, sem dificuldade em dizer tudo o que lhe apetecia, de uma maneira elegante, clara e natural. Iniciou logo um diálogo de tal forma espirituoso, que Riquete pensou ter-lhe dado mais inteligência do que a que ele próprio possuía.
Quando regressou ao palácio, a corte nem sabia o que pensar da sua extraordinária mudança. Em situações onde outrora ouviam um chorrilho de disparates, ouviam agora pensamentos claros e muito espirituosos. A única pessoa que não ficou totalmente satisfeita com esta mudança foi a irmã mais nova, porque havia perdido a única vantagem que tinha em relação a ela. O rei passou a ouvir as suas opiniões e, por vezes, pedia-lhe conselhos. Os rumores sobre esta transformação espalharam-se pelo reino e os jovens príncipes dos reinos vizinhos esforçavam-se por conquistar a sua afeição. Muitos pediram-na em casamento, mas a princesa não os achou suficientemente inteligentes e recusou todos os pedidos.
Por fim, houve um príncipe tão poderoso, tão rico, tão inteligente e tão belo que a pediu em casamento, que a ela não pode deixar de pensar no seu pedido. O pai notou o seu interesse pelo príncipe e disse-lhe que podia ser ela a escolher o noivo que entendesse. Só teria que dizer de quem gostava.
Para poder decidir com calma, foi passear, por acaso, para o bosque onde tinha conhecido Riquete do Topete. Foi então que ouviu vozes em surdina, mesmo por baixo dos seus pés, como se aí estivessem muitas pessoas atarefadas, andando de um lado para o outro.
Prestou mais atenção e ouviu alguém pedir:
- Traz-me essa panela.
E logo a seguir:
- Dá-me aquele pote.
E outra pessoa:
- Põe lenha no lume!
Nesse preciso momento o chão abriu-se e ela viu lá em baixo um enorme espaço semelhante a uma cozinha cheia de cozinheiros, de criados e de todo o género de ingredientes que são necessários para se fazer um festim magnífico. Um grupo de vinte ou trinta salsicheiros dirigiu-se para uma alameda do bosque. Puseram-se à volta de uma mesa muito comprida e começaram a trabalhar ao ritmo de uma bela canção.
A princesa, espantada com o que via, perguntou-lhes para quem trabalhavam.
- O nosso amo é o príncipe Riquete do Topete que se casa amanhã – respondeu-lhe o mais vistoso do grupo.
Foi então que a princesa se lembrou que tinha prometido casar-se com Riquete do Topete naquele mesmo dia. Quase desmaiou! Porém, havia uma razão para o seu esquecimento: naquela altura, era apenas uma tonta. Assim que recebeu do príncipe uma nova inteligência, esqueceu todas as tolices que dizia.
Ainda não dera trinta passos quando Riquete do Topete surgiu diante de si, em trajes magníficos, conforme convém a um príncipe que se vai casar.
- Aqui estou, Senhora, pronto a cumprir a minha palavra. Não duvido que também vieste cumprir a vossa e, assim, tornar-me o homem mais feliz do mundo.
- Confesso, com toda a franqueza, que ainda não me decidi e penso que nunca poderei tomar a decisão que deseja – respondeu a princesa.
- Muito me admiro, Senhora! – Respondeu Riquete do Topete.
- Acredito que, se estivesse a falar com um homem grosseiro e bruto, estaria agora bastante embaraçada. «Uma princesa deve cumprir a sua palavra - dir-me-ia ele.» Mas como estou a falar com o homem mais inteligente do mundo, estou certa que me compreenderá. Sabe que, quando era tonta, nem ao menos pude decidir se queria casar consigo ou não. Se pretendia casar comigo não me devia ter livrado da minha estupidez. Agora vejo as coisas com mais clareza!
- Alteza, quereis que me contenha no momento em que a minha felicidade está em jogo? Será razoável que as pessoas inteligentes se encontrem em desvantagem em relação às que o não são? Mas vejamos os factos, se o permitis. Além da minha fealdade há mais alguma coisa que não vos agrade? Desagrada-vos a minha origem, as minhas capacidades, o meu carácter ou as minhas maneiras?
- Não, pelo contrário, todas essas características me agradam - respondeu a Princesa, sem hesitar.
- Então, serei feliz – continuou Riquete do Topete – pois está na vossa mão tornar-me o mais atraente dos homens. Basta que me ames o suficiente. A mesma fada que me concedeu o dom de tornar inteligente a pessoa de quem mais gostasse, também vos concedeu, a vós, o dom de tornar bonito aquele a quem ames.
- Se o que dizes é verdade, desejo do fundo do coração que vos torneis o príncipe mais bonito do mundo – declarou a princesa.
Ainda a princesa não tinha acabado de falar e já Riquete do Topete parecia, aos seus olhos, o homem mais bonito e fascinante que alguma vez vira.
Há quem diga que esta mudança do príncipe não aconteceu graças ao feitiço da Fada, mas que só por amor se pode obter uma metamorfose assim. Dizem que a Princesa, depois de pensar nas qualidades do seu namorado, deixou de ver o seu corpo deformado.
A Princesa prometeu que casaria com ele de imediato, desde que o seu pai concordasse. O Rei, quando soube que a filha sentia grande admiração por Riquete do Topete, príncipe muito conhecido pela sua grande sabedoria, aceitou-o com prazer como genro.
No dia seguinte, celebrou-se a boda, tal como Riquete tinha previsto e de acordo com as ordens que dera há já muito tempo.






12/04/2008

As Fadas



Era uma vez uma viúva que tinha duas filhas. A mais velha era tal e qual a mãe, tanto na aparência como no mau feito. Eram ambas tão mal-humoradas e orgulhosas que ninguém podia viver com elas. A mais nova, pelo contrário, era gentil, boa e muito linda. Era tal e qual o pai. Como cada um prefere o seu igual, a mãe gostava muito da mais velha e detestava a mais nova, obrigando-a a tomar as refeições na cozinha e a trabalhar o dia todo.
Entre outras tarefas, a pobre menina tinha que ir duas vezes por dia buscar água a uma fonte que ficava a meia milha de distância. De regresso, vinha carregada com a bilha cheia de água. Certo dia, quando estava na fonte, acercou-se dela uma pobre mulher que lhe implorou um pouco de água.
- Sim, avozinha – respondeu a menina delicadamente.
Lavou cuidadosamente a bilha, encheu-a no sítio onde a água era mais límpida e ofereceu de beber à velhinha, segurando na bilha para que ela pudesse beber com calma.
Depois de saciar a sede, a boa senhora disse-lhe:
- És tão bela, tão boa e tão gentil que não resisto a conceder-te um dom.
A velhinha era, afinal, uma fada que tinha tomado a forma de uma pobre mulher para ver até que ponto a menina era gentil e bondosa.
- Concedo-te o dom – continuou a fada – de lançares pela boca uma flor ou uma pedra preciosa sempre que proferires uma palavra.
Quando a menina chegou a casa, a mãe ralhou-lhe muito porque se atrasara.
- Peço perdão por ter chegado tão tarde, mãe – disse a menina, ao mesmo tempo que lhe saíam da boca duas rosas, duas pérolas e dois diamantes enormes.
- O que se passa? – exclamou a mãe muito admirada. – Parece que te estão a sair da boca pérolas e diamantes. Como é possível, minha filha? (Foi a primeira vez que lhe chamou filha).
A pobre menina contou-lhe o que acontecera, enquanto lhe saíam da boca uma infinidade de diamantes.
- Tenho que lá mandar a minha filha. Olha, Joaquina, vê o que sai da boca da tua irmã quando fala. Gostarias de ter o mesmo dom? Só tens que ir buscar água à fonte e dar de beber a uma velhinha quando ela te pedir.
- Havia de ter graça, ir agora à fonte… – respondeu a malcriada.
- Faz imediatamente o que te mando – repreendeu-a a mãe.
Ela assim fez, mas de muito mau modo. Pegou na jarra de prata mais bonita que havia em casa e partiu. Assim que chegou à fonte viu aproximar-se uma senhora que saíra do bosque. Vinha magnificamente vestida e pediu-lhe de beber. Era a mesma fada que aparecera à sua irmã, mas que agora tinha o aspecto de uma princesa. Pretendia averiguar até que ponto chegava a rudeza daquela rapariga.
- Então julgas que vim aqui para te dar de beber? – perguntou a malcriada. – Trouxe um jarro de prata de propósito para dar de beber a sua excelência! Ora sirva-se sozinha, se tem sede!
- Não és nada gentil – repreendeu-a a fada, sem se zangar. – Muito bem! Já que és tão pouco afável dou-te o dom de te saírem sapos ou serpentes pela boca, sempre que falares.
Assim que a mãe a viu chegar a casa gritou-lhe:
- Então, minha filha?
- Então, minha mãe? – respondeu-lhe a malcriada, cuspindo duas víboras e dois lagartos.
- Céus! Que vejo eu? – gritou a mãe, horrorizada. – A culpa é da tua irmã, mas ela paga-mas.
Como a mãe lhe queria bater, a menina fugiu para a floresta. O filho do rei, que voltava da caça, encontrou-a e ficou deslumbrado com a sua beleza. Perguntou-lhe o que fazia ali sozinha e porque estava a chorar.
- Ai de mim, senhor! Foi a minha mãe que me expulsou de casa…
O filho do rei, que viu saírem-lhe da boca cinco ou seis pérolas e outros tantos diamantes, pediu-lhe que lhe dissesse de onde vinham aquelas riquezas. A menina contou-lhe a sua aventura. O príncipe, que entretanto se apaixonara por ela, achou que um dom assim valia muito mais do que qualquer dote. Então, levou-a consigo para o palácio do rei seu pai e casou com ela.
Quanto à irmã, tornou-se tão horrorosa que até a mãe a expulsou de casa. Como ninguém queria estar com ela, acabou por se esconder num canto do bosque onde morreu sozinha.



08/04/2008

Sons Inaudíveis

Um rei mandou seu filho estudar no templo de um grande Mestre, com o objectivo de prepará-lo para ser uma grande pessoa. Quando o príncipe chegou ao templo, o Mestre o mandou sozinho para uma floresta. Ele deveria voltar um ano depois, com a tarefa de descrever todos os sons da floresta. Quando o príncipe retornou ao templo, após um ano, o Mestre lhe pediu para descrever todos os sons que conseguira ouvir. Então disse o príncipe:
- Mestre, pude ouvir o canto dos pássaros, o barulho das folhas, o alvoroço dos beija-flores, a brisa batendo na grama, o zumbido das abelhas, o barulho do vento cortando os céus...
E ao terminar o seu relato, o Mestre pediu que o príncipe retornasse à floresta, para ouvir tudo o mais que fosse possível. Apesar de intrigado, o príncipe obedeceu a ordem do Mestre, pensando:
- Não entendo, eu já distingui todos os sons da floresta...
Por dias e noites ficou sozinho ouvindo, ouvindo, ouvindo... mas não conseguiu distinguir nada de novo além daquilo que havia dito ao Mestre. Porém, certa manhã, começou a distinguir sons vagos, diferentes de tudo o que ouvira antes. E quanto mais prestava atenção, mais claros os sons se tornavam. Uma sensação de encantamento tomou conta do rapaz. Pensou:
- Esses devem ser os sons que o Mestre queria que eu ouvisse...
E sem pressa, ficou ali ouvindo e ouvindo, pacientemente. Queria Ter certeza de que estava no caminho certo. Quando retornou ao templo, o Mestre lhe perguntou o que mais conseguira ouvir.
Paciente e respeitosamente o príncipe disse:
- Mestre, quando prestei atenção pude ouvir o inaudível som das flores se abrindo, o som do sol nascendo e aquecendo a terra e da grama bebendo o orvalho da noite...
O Mestre sorrindo, acenou com a cabeça em sinal de aprovação, e disse:
- Ouvir o inaudível é ter a calma necessária para se tornar uma grande pessoa. Apenas quando se aprende a ouvir o coração das pessoas, seus sentimentos mudos, seus medos não confessados e suas queixas silenciosas, uma pessoa pode inspirar confiança ao seu redor; entender o que está errado e atender às reais necessidades de cada um."


Conto oriental





07/04/2008

Cortar Lenha

Um jovem com grande habilidade e rapidez no corte de lenha, procurou um mestre, o melhor cortador de lenha da região e pediu para ser aceito como seu discípulo a fim de aperfeiçoar seus conhecimentos. O mestre concordou e passou a ensiná-lo. Não se passou muito tempo e o discípulo julgou ser muito melhor que o mestre, desafiando-o para uma competição em público. Tendo o mestre aceito o desafio, tudo foi marcado, preparado e teve início a competição. O jovem trabalhava no corte da lenha sem parar, e, de vez em quando, olhava para conferir como estava o trabalho do mestre.
Para grande surpresa do jovem, o mestre encontrava-se muitas vezes sentado, tendo isto ocorrido durante toda a competição. E isto fortaleceu ainda mais a determinação do jovem, que continuou a cortar a lenha e a pensar
- Coitado, o mestre realmente está muito velho...
Ao término da competição foram medir os resultados, e o mestre havia cortado mais lenha que o discípulo. O jovem indignado disse:
- Não consigo entender, não parei de cortar lenha o dia todo, com toda minha energia, e cada vez que eu olhava o senhor estava descansando!
O mestre respondeu:
- Não meu jovem, eu não apenas descansava. Eu amolava o meu machado. Você, por estar tão empolgado em cortar mais lenha, se esqueceu desse pequeno detalhe. Afiar seu próprio machado! E por isso, sua produtividade caiu e você perdeu!








05/04/2008

Contra os de gosto exigente


Se ao nascer, eu tivesse em partilha,
Esses dons geniais e seletos,
Que, a mãos cheias, a mãe da Epopéia
Conferiu a seus vates diletos;

Às mentiras de Esopo os sagrara;
Porque foram mentira e poesia
Sempre amigas, vivendo no seio
Da mais plena e perfeita harmonia.

Mas não sou tão mimoso do Pindo,
Que alindar ouse tantas ficções;
Posso e tento somente algum brilho
Dar do Frígio às gentis invenções.

Talvez outros anais hábeis consigam
Este fito alcançar, que mirei;
Entretanto, de certa maneira,
O sistema do mestre alterei.

Até aqui, em linguagem que é nova,
Pus o lobo e o cordeiro a falar;
Inda mais — arvoredos e plantas
Fiz em seres parlantes mudar.

Quem não vê nisto tudo magia?
"Grande coisa (dirão os censores)
Numas seis narrações de crianças,
Esgotastes da forma os primores!"

— "Quereis contos de autêntica origem,
E de estilo grandíloquo e sério?
Vou, de pronto, exigentes censores,
Sujeitá-los ao vosso critério...

Lassos os Gregos de lutar dez anos
Contra as velhas, ilíacas muralhas,
Ferem assaltos mil e cem batalhas,
Sem alcançar vitória dos Troianos.
Um cavalo de pau, que se dizia
De Palas artifício e invento novo,
Os chefes principais do argivo povo
Em seus enormes flancos recebia.
Diomedes prudente, Ajax fogoso,
O sábio Ulisses, esquadrões a rodo,
Leva em si o colosso monstruoso,
Que deve Tróia destruir de todo.
Nem poupam numes do furor tremendo.
O engenhoso, inaudito estratagema
Paga do construtor fadiga extrema..."
"— Basta! (Vai um dali me interrompendo)
Que período longo! Estou cansado!
Esse grande cavalo de madeira,
Tanto herói, tanta gente assim guerreira,
É tema tedioso e repisado.
Antes o canto do raposo arteiro,
Que do estólido corvo a voz exalta.
Demais — é vosso tom muito altaneiro!
Mudai de solfa; assunto não vos falta".

Desço de tom. Eis um tema
Que, há pouco, me não lembrava:
"Amarílide ciumenta
Em seu Alcino pensava;

Julga ter por testemunhas
Somente o cão e os carneiros.
Tireis, que a vira de longe,
Metendo-se entre os salgueiros.

Ouve a pastora, que às brisas
Atira o terno descante,
Pedindo-lhes vão levá-lo
À seu dedicado amante..."

— "Vede essa quadra (diria
Um crítico impertinente):
Metei-a outra vez na forja,
Pois não tem rima cadente".

— "Duro censor! Não te calas?
Não queres que finde o conto?
Agradar meticulosos
É bem delicado ponto".

Os que têm gosto difícil
Em tudo encontram defeitos;
Nada lhes toa. Infelizes!
Nunca vivem satisfeitos!

Barão de Paranapiacaba (Trad.)

O ursinho e as abelhas


Um filhote de urso estava passeando pela floresta quando viu um buraco no tronco de uma árvore.
Olhando mais de perto, reparou que uma porção de abelhas entravam e saíam constantemente do buraco. algumas permaneciam em frente à entrada como se estivessem montando guarda. Outras chegavam voando e entravam. Outras ainda saíam e sumiam pela floresta a dentro.
Cada vez mais curioso, o ursinho pôs-se em pé nas patas traseiras, meteu o focinho no buraco, farejou e depois enfiou uma pata.
Quando retirou a pata ela estava lambusada de mel.
Porém mal começara a lambê-la quando um enxame de abelhas enfurecidas saiu do buraco e atacou-o, mordendo-lhe o focinho, as orelhas, a boca, todo ele.
O ursinho tentou defender-se, mas se enxotava as abelhas para um lado elas voltavam e atacavam pelo outro. Enfurecido, tentou vingar-se através de golpes pelos dois lados. Porém, querendo atingir a todas, não conseguiu derrubar nenhuma. Finalmente rolou pelo chão até que, vencido pelo medo e pela dor das picadas, voltou correndo e chorando para junto de sua mãe.






03/04/2008

O saco prodigioso


Contam que o califa Harun Ar-Rachid, atormentado certa noite pela insónia, apelou a Jafar, seu vizir, para que lhe proporcionasse algum divertimento. Jafar respondeu: "Ó Emir dos Crentes, tenho um amigo chamado Ali que sabe uma porção de histórias deliciosas, óptimas para apagar as mágoas e acalmar os ânimos irritados!" Ali foi imediatamente chamado à presença do califa, e o califa disse-lhe: "Escuta, Ali! Disseram-me que conheces histórias capazes de dissipar a mágoa e de trazer o sono. Desejo de ti uma dessas histórias." Ali respondeu: "Ouço e obedeço, ó Emir dos Crentes! Porém, não sei se devo contar-vos algo que tenha ouvido com meus ouvidos ou que haja visto com meus olhos!" Ar-Rachid disse: "Prefiro uma história de que tu mesmo participes!" Então, disse Ali: "Um dia, estava eu sentado em minha tenda, vendendo e comprando, quando chegou um curdo para negociar comigo alguns objectos; mas, de repente, apoderou-se de um saco que eu tinha diante de mim, e sem se dar sequer ao trabalho de
ocultá-lo, quis levá-lo, como se fosse de sua absoluta propriedade. De um salto, agarrei o curdo pela aba da roupa e exigi que me devolvesse o saco; mas ele encolheu os ombros e disse: `Ora este saco é meu com tudo o que contém!' "Então, gritei o mais alto que pude: `Ó muçulmanos, salvai das mãos deste infiel o que é meu!' Ao ouvir meus gritos, todo o mercado agrupou-se em redor de nós, e os mercadores me aconselharam a queixar-me ao Cádi. “Quando chegamos à presença do cádi, mantivemo-nos de pé respeitosamente, e começou ele por perguntar-nos: `Quem de vós é o querelante e de quem se queixa?' O curdo, então, sem dar-me tempo para abrir a boca, adiantou-se alguns passos e respondeu:
"`Dê Alá seu apoio a nosso amo, o cádi! Este saco é meu. Pertence-me com todo o seu conteúdo. Havia-o perdido, e acabo de reencontrá-lo diante deste homem!' "O cádi perguntou-lhe: `Quando o perdeste?'
"O curdo respondeu: Ontem, e sua perda impediu-me de dormir à noite!' "O cádi disse-lhe: `Enumera-me os objectos que contém!' "Sem titubear um instante, respondeu o curdo: `Em meu saco, ó nosso amo cádi, há um lenço, dois copos de limonada com a borda dourada, duas colheres, um almofadão, dois tapetes para mesa de jogo, duas panelas com água, duas cestas de vime, uma bandeja, uma marmita, um depósito de água de barro cozido, uma caçarola de cozinha, uma agulha grossa de fazer malha, dois sacos com provisões, uma gata, duas cadelas, uma vasilha com arroz, dois burros, duas liteiras para mulher, um
traje de pano, duas peliças, uma vaca, dois bezerros, uma ovelha com dois cordeiros, uma fêmea de camelo com dois camelinhos, dois dromedários de carga com suas fêmeas, um búfalo, dois bois, uma leoa com dois leões, uma ursa, dois zorros, duas camas, um palácio com dois salões de recepção, duas tendas de fazenda verde, dois dosséis, uma cozinha com duas portas e uma assembléia de curdos de minha espécie, dispostos a dar fé de que este saco é meu saco.' "Então o cádi olhou para mim e perguntou-me: `E que tens tu para contestar?' "Eu, ó Emir dos Crentes, estava estupefacto com tudo aquilo. Entretanto, avancei um pouco e respondi: `Que Alá leve e honre o nosso amo cádi! Eu sei que em meu saco há somente um pavilhão em ruínas, uma casa sem cozinha, um canil, uma escola de adultos, uns jovens jogando dados, uma guarida de salteadores, um exército com seus chefes, a cidade de Basra e a cidade de Bagdá, o palácio antigo do emir Chedad-Ben-Aad, um forno de ferreiro, um caniço de pescar, um cajado de pastor, cinco rapazes e doze donzelas intactas e mil condutores de caravanas dispostos a jurar que este saco é meu!' Quando o curdo ouviu minha resposta, irrompeu em choro e soluços, e depois exclamou com a voz entrecortada por lágrimas: `Ó nosso amo cádi, este saco que me pertence é conhecido e reconhecido, e todo mundo sabe que é de minha propriedade. Aliás, contém, além do que enumerei e que ia esquecendo, duas cidades fortificadas e dez torres, dois alambiques de alquimista, quatro jogadores de xadrez, uma égua e dois potros, uma sementeira, duas jaqueiras, duas lanças, duas lebres, um rapaz inteligente, dois mediadores, um cego, um coxo e dois paralíticos, um capitão de marinha, um navio com seus marinheiros, um sacerdote cristão, um patriarca e dois frades e, por fim, um cádi e duas testemunhas dispostas a jurar que este saco é meu!.' `f1o ouvir estas palavras, o cádi olhou para mim e perguntou-me: `Que tens para contestar a tudo isso?' "Eu, ó Emir dos Crentes, sentia-me enraivecido até a ponta dos cabelos. Adiantei-me, contudo, mais alguns passos e respondi com toda a calma de que era capaz: `Alá esclareça e consolide o juízo de nosso amo, ó cádi! Devo acrescentar que neste saco há, além do que já enumerei e que também ia esquecendo, medicamentos contra dor de cabeça, filtros e amuletos, cotas de malhas e armários cheios de armas, mil carneiros destinados a lutar a chifradas, um parque com gado, homens dados às mulheres, outros afeiçoados aos rapazes, jardins cheios de árvores e de flores, vinhas carregadas de uvas, maçãs e figos, sombras e fantasmas, frascos e copos, cinco casais recém-casados com o seu séquito, vinte cantoras, cinco formosas escravas abissínias, três hindus, quatro gregas, cinquenta turcas, setenta persas, quarenta cachemirenses, oitenta curdas, outras tantas chinesas, noventa georgianas, todo o país do Iraque, o paraíso terrestre, dois estábulos, uma esquita, vários banheiros públicos, cem mercadores, uma mesa de madeira, um escravo negro que toca clarinete, mil dinares, vinte caixões cheios de tecidos, cinqüenta armazéns, as cidade de Kufa, Gaza, Damieta, Assua, os palácios de Kisra Anuchiruan e de Salomão, todas as comarcas situadas entre Balkh e Ispahan, a Índia, o Sudão e o Khorassan. Meu saco contém ainda (Alá preserve os dias de nosso amo cádi) uma mortalha, um ataúde e uma navalha de barbear para a barba do cádi se o cádi não quiser reconhecer meus direitos e não sentenciar que este saco é de minha propriedade!' "Quando o cádi ouviu tudo aquilo, olhou-nos e disse: `Por Alá, ou sois dois gaiatos que quereis zombar da lei e de seu representante, ou este saco é um abismo sem fundo ou o próprio Vale do Dia do Juízo!' "E para verificar quem estava mentindo, o cádi mandou abrir o saco ante as testemunhas. Continha umas cascas de laranja e uns caroços de azeitonas!
"Então, admirando-me o quanto pode alguém admirar-se, declarei ao cádi que aquele saco pertencia ao curdo e que o meu havia desaparecido. E fui-me." Quando o califa Harun Ar-Rachid ouviu esta história, riu gostosamente, deu um magnífico presente a Ali, e dormiu até a manhã seguinte!







O Azeiteiro e o Burro

Dois estudantes encontraram, numa estrada, um azeiteiro com um burro carregado de bilhas de azeite. Os estudantes estavam sem dinheiro; por isso, decidiram roubar o animal. Enquanto o pobre homem seguia o seu caminho, um deles tirou a cabeçada do burro e colocou-a no pescoço. O outro estudante fugiu com o animal e a carga. De repente, o azeiteiro olhou para trás e viu um rapaz em vez do burro.
Nesse momento, o estudante exclamou: «Ah! senhor, quanto lhe agradeço ter-me dado uma pancada na cabeça! Quebrou-me o encanto que durante tantos anos me fez ser burro!...»
O azeiteiro tirou o chapéu e disse-lhe: «Afinal, o meu burro estava enfeitiçado! Perdi o meu ganha-pão! Peço-lhe muitos perdões por tê-lo maltratado tanta vez - mas que quer? - o senhor era muito teimoso!»
- Está perdoado, bom homem! - disse o estudante. O que lhe peço é que me deixe em paz.
O pobre azeiteiro lamentou-se porque já não podia vender o azeite. Então, foi pedir dinheiro a um compadre para ir à feira comprar outro burro. Quando lá chegou, viu um estudante a vender o seu burro. O azeiteiro pensou que o rapaz se tinha transformado, outra vez, num animal! Aproximou-se do burro e gritou com toda a força: «Olhe, senhor burro, quem o não conhecer que o compre».


Recolha de Adolfo Coelho



01/04/2008

Conde Yanno





Chorava a infanta, chorava,
Chorava e razão havia,
Vivendo tão descontente;
Seu pai por casar a tinha.
Acordou el-rei da cama
Com o pranto que fazia:
– «Que tens tu, querida infanta.
Que tens tu, ó filha minha?»
– «Senhor pai, o que hei-de eu ter
Senão que me pesa a vida?
De três irmãos que nós éramos,
Solteira eu só ficaria.»
– «Que queres tu que te eu faça?
Mas a culpa não é minha.
Cá vieram embaixadas
De Guitaina e Normandia;
Nem ouvi-las não quiseste,
Nem fazer-lhes cortesia...
Na minha corte não vejo
Marido que te daria...
Só se fosse o conde Yanno,
E esse já mulher havia».
«Ai! rico pai da minha alma,
Pois esse é que eu queria.
Se ele tem mulher e filhos,
A mim muito mais devia,
Que me não soube guardar
A fé que me prometia».
Manda el-rei chamar o conde,
Sem saber o que faria:
Que lhe viesse falar...
Sem saber que lhe diria.
– «Inda agora vim do paço,
Já el-rei lá me queria!
Ai! será para meu bem?
Ai! para meu mal seria?»

Conde Yanno que chegava,
El-rei a que buscar o vinha:
– «Beijo a mão a vossa alteza;
Que quer vossa senhoria?»
Responde-lhe agora o rei
Com grande merencoria:
– «Beijai, que mercê vos faço;
Casareis com minha filha.»
Cuidou de cair por morto
O conde que tal ouvia:
– «Senhor rei, que sou casado
Já passa mais de ano e dia!»
– «Matareis vossa mulher,
Casareis com minha filha.»
– «Senhor, como hei-de matá-la,
Se a morte me não mer’cia?»
– «Calai-vos conde, calai-vos,
Não vos quero demasia;
Filhas de reis não se enganam
Como uma mulher cativa.»
– «Senhor, que é muita razão,
Mais razão que ser devia,
Para me matar a mim
Que tanto vos ofendia;
Mas matar uma inocente
Com tamanha aleivosia!
Nesta vida nem na outra
Deus me não perdoaria.»
– «A condessa há-de morrer
Pelo mal que cá fazia;
Quero ver sua cabeça
Nessa doirada bacia».
Foi-se embora o conde Yanno,
Muito triste que ele ia,
Adiante um pajem del-rei
Levava a negra bacia,
O pajem ia de luto,
De luto o conde vestia:
Mais dó levava no peito
Cos apertos da agonia.
A condessa que o esperava,
De muito longe que o via,
Com o filhinho nos braços
Para abraçá-lo corria:
– «Bem-vindo sejais, meu conde,
Bem-vinda minha alegria!»
Ele sem dizer palavra
Pelas escadas subia.
Mandou fechar seu palácio,

Coisa que nunca fazia;
Mandou logo pôr a ceia
Como quem lhe apetecia.
Sentaram-se ambos à mesa,
Nem um nem outro comia;
As lágrimas era um rio
Que pela mesa corria.
Foi a beijar o filhinho
Que a mãe aos peitos trazia,
Largou o seio o inocente,
Como um anjo lhe sorria.
Quando tal viu a condessa,
O coração lhe partia;
Desata em tamanho chora
Que em toda a casa se ouvia;
– «Que tens tu, ó querido conde,
Que tens tu, ó vida minha?
Tira-me já destas ânsias
El-rei o que te queria?»
Ele afogava em soluços,
Responder-lhe não podia;
Ela, apertando-o nos braços,
Com muito amor lhe dizia:
– «Abre-me o teu coração,
Desafoga essa agonia,
Dá-me da tua tristeza
Dar-te-ei da minha alegria».
Levantou-se o conde Yanno,
A condessa que o seguia.
Deitaram-se ambos no leito;
Nem um nem outro dormia.
Ouvireis a desgraçada;
Ouvide ora o que dizia:
– «Peço-te por Deus do céu
E pela Virgem Maria,
Antes me mates, meu conde,
Que eu ver-te nessa agonia.»
– «Morto seja quem tal manda,
Mais a sua tirania!
– «Ai! não te entendo; meu conde,
Dize-me, por tua vida,
Que negra ventura é esta.
Que entre nós está metida?»
– «Ventura da sem ventura.
Grande foi tua mofina!
Manda-me el-rei que te mate,
Que case com sua filha.»
Palavras não eram ditas,
Inda mal lhas ouviria,
A desgraçada condessa
Por morta no chão caía.
Não quis Deus que ali morresse...
Triste que ali não morria!
Maior dor que a da morte
A torna a chamar à vida.
– «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio haveria;
Ai! não me mates, meu conde,
E um alvitre te daria:
A meu pai me mandarás,
Pai que tanto me queria!
Ter-me-ão por filha donzela
E eu a fé te guardaria.
Criarei este inocente
Que a outra não criaria;
Manter-te-ei castidade
Como sempre ta mantia.»
– «Ai como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
– «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio teria.
Meter-me-ás num convento
Da ordem da freiraria;
Dar-me-ão o pão por onça
E a água por medida:
Eu lá morrerei de pena,
E a infanta o não saberia.»
– «Ai! como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se quer ver tua cabeça
Nesta maldita bacia?»
– «Fecháras-me numa torre,
Nem sol, nem lua veria,
As horas da minha vida
Por meus ais as contaria.»
– «Ai como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
Palavras não eram ditas,
El-rei que à porta batia:
Se a condessa não é morta,
Que então ele a mataria.
– «A condessa não é morta
Mas está na agonia.»
– «Deixa-me dizer, meu conde,
Uma oração que eu saiba.»
– «Dizei depressa, condessa,
Antes que amanheça o dia.»
– «Ai! quem podera rezar,
Ó virgem Santa Maria!
Que eu não me pesa da morte,
Pesa-me da aleivosia:
Mais me pesa de ti, Conde,
E da tua covardia.
Matas-me por tuas mãos,
Só porque el-rei o queria!
Ai! Deus te perdoe, Conde,
Lá na hora da contia.
Deixar-me dizer adeus
A tudo o que eu mais queria;
Às flores deste jardim,
Às águas da fonte fria.
Adeus cravos, adeus rosas,
Adeus flor da Alexandria!
Guardai-me vós meus amores
Que outrém me não guardaria.
Dêem-me cá esse menino,
Entranhas da minha vida;
Deste sangue de meu peito
Mamará por despedida.
Mama, meu filhinho, mama
Desse leite da agonia;
Que até agora tinhas mãe,
Mãe que tanto te queria,
Amanhã terás madrasta
De mais alta senhoria...»
Tocam nos sinos na sé...
Ai Jesus! Quem morreria?
Responde o filhinho ao peito,
Respondeu – que maravilha!
– «Morreu, foi a nossa Infanta.
Pelos males que fazia;
Descasar os bem casados:
Coisa que Deus não queria.»


Romanceiro, Almeida Garrett