31/03/2008

As filhas de Faram

Faram e sua esposa tinham duas filhas, Mate e Secanhuma, sendo a primeira mais velha. Os pais sempre preveniram às meninas de que, após a morte deles, elas deveriam se manter unidas. O tempo passou e os pais das moças morreram. Mate, ao sair para trabalhar a terra, preparando-a para o plantio, disse a Secnhuma que não abrisse a porta a ninguém, quando ela chegasse cantaria “Secnhuma yóó-bara e tio alumbrem jilio-jeli-yeee” e então a menina saberia que era ela e poderia abrir. Porém, um irã escondido ouviu tudo o que Mate disse a irmão. Após alguns dias, Mate teve de voltar para o trabalho e deu novamente a mesma recomendação. Não havia passado muito tempo quando Secanhuma ouviu a canção: “Secnhuma yóó-bara e tio alumbrem jilio-jeli-yeee”. A moça abriu a porta, mas quem estava a sua frente não era Mate, mas o irã, que raptou a menina e a levou para a sua terra. Ao voltar, Mate ficou pensando sobre o que poderia fazer para encontrar e trazer de volta a sua irmã. Decidiu procurar um pássaro que a pudesse ajudar. Para isso era necessário um pássaro que conseguisse cantar aquela canção e o único que conseguiu foi o falcão. Mate sentou-se às costas do falcão e os dois partiram. Ao chegarem à terra do irão, o falcão começou a cantar: “Secnhuma yóó-bara e tio alumbrem jilio-jeli-yeee”. Uma velha perguntou a Mate o fazia ali, ao que ela respondeu que viera buscar a irmã. A velha, então disse-lhe que buscaria a moça e, de fato, voltou com ela. As duas moças voltaram para casa às costas do falcão. Durante o período em que Secanhuma estivera em casa do irão, não cortara os cabelos, que tinham até ninhos de passarinhos. No dia seguinte, Secanhuma pediu a irmã que retirasse aquele ovos de seus cabelos, e cada ovo que Mate retirava transformava-se em vaca, cabra, porco, galinha e diversos animais. Foi dessa forma que as duas filhas de Faram tornaram-se ricas.


Conto da Guiné-Bissau


O trigo e o joio



O reino dos céus — disse o Cristo — é semelhante a. um homem que semeou boa se­mente no seu campo. Mas, enquanto os servos dormiam, veio um inimigo dele, semeou joio no meio do trigo e retirou-se.
Quando a erva cresceu e deu fruto, então apareceu também o joio.
Chegando os servos ao dono do campo, disseram-lhe:
— Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? donde, pois, vem o joio?
E ele lhes disse:
- Homem inimigo é que fêz isso.
Os servos continuaram:
- Queres, então, que o arranquemos?
— Não — respondeu ele —, para que não suceda que, tirando o joio, arranqueis junta­mente com ele também o trigo. Deixai crescer ambos juntos até à ceifa; e no tempo da ceifa direi aos ceifeiros:
- Ajuntai primeiro o joio e atai-o em feixes para o queimar, mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro.


Parábolas de Jesus
Mat. 13:24-30


30/03/2008

O homem e o jabuti

O jabuti estava em um buraco tocando gaita. As pessoas que passavam paravam para escutar. Um homem aproximou-se e chamou o bichinho. Quando o jabuti saiu da toca, o homem o apanhou, levando-o para casa e colocando-o dentro de uma caixa. Quando saiu para trabalhar, o homem preveniu os filhos de que não deveriam deixar o animal escapar. Porém, ao ouvir o bchinho tocando sua gaita, as crianças ficaram encantadas. Então, o jabuti disse a elas que, se toca gaita tão bem, dança ainda melhor, e as crianças o soltaram para que dançasse. Durante algum tempo, o jabuti dançou, mas depois pediu para ir fazer xixi. Os meninos deixaram, lembrando-o de que deveria voltar. Todavia, em vez de voltar, o jabuti escondeu-se no mato. Ao retornar para casa o homem pediu que as crianças colocassem o jabuti na panela. Os meninos, então, puseram em seu lugar uma pedra pintada. Ao dar-se conta do havia acontecido, o homem saiu para chamar o jabuti de volta, mas este só lhe respondia tocando flauta. O homem desgostou-se da situação e desistiu do jabuti.


Conto do Brasil


27/03/2008

A história da caveira

Era uma vez um granjeiro que tinha apenas um filho. Este filho morreu e o pai não quis ir ao enterro porque antes houve uma briga entre eles. Passado um tempo, morreu um vizinho e ele foi ao seu enterro. Depois da cerimónia e ainda estando o granjeiro no cemitério, olhando distraído ao redor viu uma caveira.
Juntou-a e disse, pensativo:
- Gostaria de saber alguma coisa sobre ti...
E a caveira falou:
- Amanhã irei passar a noite contigo, se vieres passar outra noite comigo.
-Assim farei - disse o granjeiro.
No caminho de volta, encontrou um sacerdote e comentou o que tinha ocorrido. O sacerdote lhe disse que deveria ter sonhado, posto que as caveiras não falam.
O granjeiro lhe contou que na noite seguinte seria visitado pela caveira, e o sacerdote concordou em ir.
Assim, na noite seguinte, estavam o granjeiro e o sacerdote conversando quando, em seguida, chamaram à porta e apareceu a caveira. Ela subiu à mesa e comeu tudo que nela havia. Depois, saiu e desapareceu.
- Por que não falaste nada? inquiriu o granjeiro ao sacerdote.
-Por que TU não falaste?. respondeu o outro.
Na noite seguinte, como dia combinado com a caveira, o granjeiro foi até o cemitério e, não vendo nada, desceu os três degraus que estavam junto à Igreja.
De pronto se encontrou no meio de um campo, cheio de homens que lutavam entre si. Ao ver o granjeiro, perguntaram-lhe se procurava o crânio. Ao assentir, eles disseram:
- Acaba de ir para o campo ao lado.
No outro campo viu homens e mulheres que lutavam entre si. - Estás procurando um crânio? - perguntaram. Pois bem, acaba se ir ao campo do lado.
O granjeiro se foi ao campo do lado e viu uma grande casa. Ao entrar viu que era a habitação de uma dama e uma criada. A dama caminhava de um lado a outro da casa, e cada vez que chegava perto do fogo para se aquecer, a criada a empurrava. Também lhe perguntaram se buscava um crânio e que se era isso, que saira pela porta esquerda da casa e por ali saiu o granjeiro.
Ao entrar na casa contígua, encontrou a caveira e esta lhe perguntou se queria cear, com o que assentiu o granjeiro. A caveira o conduziu a cozinha onde estavam três mulheres. A caveira pediu a uma delas que servisse a ceia, e esta serviu pão preto e uma jarra d’água, o que ele não conseguiu comer. Em seguida pediu à segunda mulher que fizesse o mesmo, e ela serviu pior ao granjeiro do que a primeira. Por fim a caveira pediu à terceira mulher, e esta serviu uma deliciosa refeição, com uma profusão de pratos e excelentes vinhos.
Depois de comer, perguntou ao crânio o que tinha sido aquilo.
- Os homens que viste no primeiro campo se dedicavam a lutar entre si enquanto estavam vivos, porque tinham terras próximas e se acostumavam a mover as estacas e agora precisam lutar entre si para sempre. Os homens e mulheres que viste eram casais casados que viviam a brigar e agora devem seguir eternamente em brigas. A senhora que viste na casa e que a criada não deixava se aquecer fez o mesmo com a criada, que um dia chegou molhada e com frio, e agora a criada faz o mesmo com ela, até o dia do Juízo Final. As três mulheres na cozinha foram minhas três esposas. Quando pedia à primeira que me preparasse a ceia, me oferecia pão preto e água, a segunda ainda coisa pior mas a terceira me servia o banquete que ceaste.
A caveira então olhou lugubremente o lavrador e disse:
-E quanto a ti, foste trazido a este lugar por não querer ir ao funeral do teu filho, apesar de teres ido ao de um vizinho. Assim, sugiro que, se queres te salvar, vá onde enterraram teu filho e pede-lhe perdão e, caso o obtenhas, saiba que desde o dia que saíste de casa até chegar aqui se passaram 700 anos.
O lavrador ficou petrificado e, como despertando de um sonho, se viu caminhando pelos campos, por lugares que antes ele havia passado mas que haviam mudado de forma pelo tempo transcorrido. Ao fim chegou ao cemitério e conseguiu localizar a tumba do filho . Ali se ajoelhou e pediu perdão. O perdão a seu filho.
Por fim surgiu uma mão da tumba, que tomou a sua e ambos, pai e filho, subiram juntos ao céu.


Conto Celta

24/03/2008

A História de Kafur, o Negro

Irmãos, minha história começa quando eu tinha oito anos, pois já então era um mentiroso consumado. Nunca contei mais de uma mentira por ano, mas era uma mentira de tamanho brilho que meu dono, que era mercador de escravos, costumava cair no chão quando a ouvia. Finalmente, não podendo mais aguentar comigo, mandou oferecer-me à venda nestes termos: "Quem quer comprar um negro com um defeito?" Um comerciante perguntou qual era o defeito. Disseram-lhe que eu mentia uma vez por ano. Comprou-me, defeito e tudo, por seiscentos dirhams. Meu novo amo vestiu-me com roupa que me caía muito bem, e vivi com ele pelo restante daquele ano. O ano novo chegou com promessas de colheitas abundantes nos campos e nas hortas, e os comerciantes festejaram-no e prestaram homenagens uns aos outros nos jardins fora da cidade. Quando chegou a vez de meu amo, este mandou preparar abundantes comidas e bebidas e ofereceu aos amigos na sua casa de campo uma festa sumptuosa que duraria da manhã à noite. Mas aconteceu que ele esquecera algo em sua residência. Mandou-me, pois, montar uma mula e voltar à cidade. Devia pedir o objecto esquecido a minha ama e levá-lo de volta o mais rapidamente possível. Ao aproximar-me da casa, comecei a lamentar-me em alta voz e derramar abundantes lágrimas. Os vizinhos acorreram. As mulheres apareceram às janelas, acompanhadas pelas filhas. Todos me perguntavam o que tinha acontecido. Respondi através dos gemidos: "Meu amo estava no jardim com seus convidados quando uma muralha caiu sobre ele e o esmagou. Pulei sobre minha mula e vim avisar a família." Ouvindo essa notícia, minha ama e suas filhas entraram em pranto, rasgaram os vestidos, bateram no rosto. E minha ama, querendo exibir a aflição conforme as tradições, pôs-se a destruir a casa, quebrando armários, portas e outros móveis e jogando na rua o que não conseguia quebrar. Manchou e sujou as paredes e pediu-me para ajudá-la nessa demolição generalizada.
Não me fiz de rogado. Comecei imediatamente a destruir os objectos mais pesados. Quebrei também a louça, queimei as camas, os tapetes, as cortinas, as almofadas. Depois, passei ao tecto e às paredes até que toda a casa virou uma só ruína. Durante esse tempo, não parava de chorar e gemer: "Meu amo! Oh, meu Amo!
Minha ama e suas filhas saíram à rua com os rostos descobertos e o cabelo desarrumado. Pediram-me para guiá-las ao lugar onde meu amo estava enterrado sob a muralha. Andei na frente delas, lamentando: "Meu amo! Oh, meu amo!" Breve, uma multidão juntou-se a nós. E alguém aconselhou à minha ama a comunicar o acidade ao uáli. Deixei-os dirigirem-se à residência do uáli e corri até o jardim onde estava meu amo; cobri meu cabelo com poeira, bati no rosto e aproximei-me do jardim gritando:"Minha ama! Oh, minha ama! Minhas pequenas amas! Meus pobres pequenos amos!" Pulei no meio dos convivas numa manifestação extravagante de aflição, gemendo: "Oh, quem me ajudará? Que mulher será jamais tão boa quanto minha pobre ama! Naturalmente, meu amo mudou de cor e perguntou-me o que acontecera. "Meu amo, respondi, quando cheguei em casa, vi que ela havia caído sobre tua mulher e teus filhos."
- Mas a minha mulher se salvou, não?
- Que pena, não, respondi. Ninguém escapou. Tua filha mais velha foi a primeira a morrer.
- E minha filha menor?
- Morta, morta!
- E meus dois filhos varões?
- Morreram. Morreram todos.
- E meu camelo?
- Morreu também. Oh, meu amo, ninguém escapou. As paredes da casa e as paredes do estábulo caíram juntas e esmagaram a todos, até os cabritos, os cachorros, as galinhas e os pássaros. Ninguém escapou. Oh, meu amo, o senhor não tem mais nem casa nem família.
A luz virou escuridão nos olhos de meu amo. Rasgou a roupa, arrancou a barba, bateu nas faces até que sangraram, gritando: “Meus filhos! Minha mulher!"
Os convivas cercaram-no, procurando fortalecê-lo. E todos se reuniram e se dirigiram para o local da tragédia quando viram ao longe uma multidão aproximar-se. Quando os dois grupos se encontraram, a primeira pessoa com quem meu amo cruzou foi a própria mulher. Ao constatar que estava cercada por todos os seus filhos, pôs-se a rir como um louco. Seus familiares jogaram-se por sua vez nos seus braços, gritando: "Meu marido, meu pai, graças a Deus estás salvo. Como conseguiste escapar da muralha que desabou sobre ti?" Gritava ele por sua vez: "Estais todos salvos, meus queridos. Como conseguistes vos salvar quando a casa desabou sobre vós?" Não demoraram uns e outros a dar-se conta de que tinham sido trágica e cinicamente enganados pelas minhas mentiras. Meu amo lançou-se sobre mim, berrando: "Escravo miserável, imundo, negro azarento, filho de uma prostituta e de um milhar de cachorros, amaldiçoado filho de uma raça maldita. Por que nos mergulhaste a todos nessa terrível aflição? Por Alá, vou separar tua pele de tua carne e tua carne de teus ossos." Respondi sem medo: "Desafio-te a fazer-me o menor mal. Compraste-me com meu defeito na presença de testemunhas. Foste especificamente avisado de que meu defeito era dizer uma mentira por ano." Quando chegamos a casa e ele a viu em ruínas, tendo a mulher lhe contado com algum exagero que tudo fora obra minha, ficou mais furioso ainda. "Bastardo, filho de uma cachorra," gritou e levou-me ao uáli. Lá deram-me inumeráveis chicotadas até que perdi os sentidos. Enquanto estava inconsciente, chamaram um barbeiro que me castrou completamente. Acordei um eunuco de verdade, e ouvi meu amo dizer: "Destruíste coisas que me eram muito caras, e eu destruí coisas que te eram muito caras." Depois, levou-me ao mercado e vendeu-me por um preço superior ao que tinha pago por mim porque eu já era um eunuco. Continuei a causar danos com minhas mentiras anuais. Mas sinto-me bastante enfraquecido desde que perdi meus testículos.






O carvalho e o caniço


Dizia ao caniço robusto carvalho:
"Sou grande, sou forte;
És débil e deves, com justos motivos,
Queixar-te da sorte!

Inclinas-te ao peso da frágil carriça;
E a leve bafagem.
Que enruga das águas a linha tranqüila
Te averga a folhagem.

Mas minha cimeira tufões assoberba.
Com serras entesta;
Do sol aos fulgores barreiras opondo,
Domina a floresta.

Qual rija lufada, do zéfiro o sopro,
Te soa aos ouvidos,
E a mim se afiguram suaves favônios
Do Norte os bramidos.

Se desta ramagem, que ensombra os contornos,
A abrigo nasceras,
Amparo eu te fora de suis e procelas,
E menos sofreras.

Mas tens como berço brejais e alagados,
Que o vento devasta.
Confesso que sobram razões de acusares
A sorte madrasta."

Responde o caniço: "Das almas sensíveis
É ter compaixão;
Mas crede que os ventos, não menos que os fracos,
Minazes vos são.

Eu vergo e não quebro. Da luta com o vento
Fazeis grande alarde:
Julgais que heis de sempre zombar das borrascas?
Até ver não é tarde."

Mal isto dissera, dispara do fundo
Dum céu carregado
O mais formidável dos filhos que o Norte
No seio há gerado.

Ereto o carvalho, faz frente à refrega;
E o frágil arbusto
Vergando, flexível — do vento aos arrancos
Resiste, sem custo.

Mas logo a nortada, dobrando de força,
Por terra lançava
O roble que às nuvens se erguia e as raízes
No chão profundava.
Barão de Paranapiacaba (Trad.)

20/03/2008

O corvo e a raposa

Luiz Gonzaga Fleury (Trad.)
(1891-1969)


O senhor mestre corvo, em um galho pousado,
No bico tinha preso um queijo apetitoso.
Sendo atraída ai pelo manjar cheiroso,
Diz-lhe mestra raposa em tom adocicado:
Bom dia, mestre corvo, meu senhor.
Que bonito que sois! Que penas, que esplendor!
Palavra que se a voz tendes maviosa
Quanto vossa plumagem é vistosa,

Sois a fênix, oh! Sim, das florestas daqui.
De orgulho, o corvo, então, nem coube mais em si.
E para a linda voz mostrar,
Descerra o bico e assim deixa o queijo escapar.
A raposa o agarrou e disse: Meu senhor,
Aprendei que o adulador
Vive à custa de quem lhe dá atenção
Vale um queijo por certo esta lição.
O pobre corvo, então, confuso e envergonhado,
Jurou, mas tarde já, não ser noutra apanhado.



19/03/2008

A Sombra


NOS países quentes, o sol possui um outro ardor que o nosso não tem. As pessoas tornam-se acajus. Nas regiões mais quentes ainda, chegam a ser negras. Mas foi justamente para um desses países cálidos que um sábio de nossos países frios resolveu ir. Imaginava que poderia circular por ali como em nossa pátria; mas logo se desiludiu.
Assim como todas as pessoas razoáveis, ele era forçado a ficar em casa, com as venezianas e as portas fechadas durante o dia inteiro. Dir-se-ia que todos dormiam na casa, ou que esta não era habitada. Além do mais, a rua onde ele morava ficava situada de tal maneira, que desde manhã o sol batia na casa toda.
Era verdadeiramente insuportável.
Este sábio dos Países frios era um homem jovem e inteligente. Parecia-lhe estar sobre um fogo em brasa. Como sofria. Emagrecia ao extremo, mesmo sua sombra diminuía. Estava bem menor do que em sua pátria. Estava ficando assim por causa do sol. Só se animava à noite, quando o sol desaparecia.
Então era um prazer vê-lo e à sua sombra. Assim que ele levava a luz para o apartamento, a sombra se alongava na parede até o teto. Crescia e se estendia a fim de refazer ao forças.
O sábio ia para a varanda e assim que as estrelas luziam no céu claro, ele era inundado de uma vida nova. Em todas as varandas da rua – e nos países quentes quase todas janelas possuem a sua varanda – as pessoas se mostravam. Pois é preciso tomar ar, mesmo quando se está acostumado a ser acaju.
A vida se manifestava em todas as formas. Muitas pessoas andavam pelas ruas; levavam para fora as mesas e cadeiras; havia luzes por todos os lados.
Conversavam e cantavam; havia uma multidão de transeuntes e de carros. Cavalos e mulas passavam tilintando, pois possuíam campainhas.
Enterravam seus mortos em meio aos cânticos; as crianças faziam barulho; os sinos das igrejas tocavam.
Havia vida e movimento nas ruas. Somente a casa que ficava em frente à do sábio estrangeiro permanecia silenciosa.
No entanto, ali devia habitar alguém; pois na varanda havia flores que aproveitavam esplendidamente o calor do sol, o que não seria possível se não fossem regadas, o que queria dizer que alguém as regava.
Forçosamente morava alguém naquela casa. Além do mais, a porta se abria também à noite; mas o interior era sombrio, pelo menos no primeiro aposento, pois ouvia-se música vinda do fundo. Esta parecia ao sábio incomparavelmente bela.
Talvez fosse fruto da sua imaginação: ele acharia tudo maravilhoso nos países cálidos, se o sol não fosse tão forte. O senhorio do estrangeiro dizia não saber quem alugara a casa em frente: jamais se via alguém. Quanto à música, na sua opinião, era muito enfadonha; achava que uma criatura exercitava uma peça muito difícil para ela, e, já que não conseguia tocá-la satisfatoriamente, tornava a recomeçá-la.
– Acabará conseguindo, não há dúvida.
Mas por mais que tocasse, não o conseguia.
Certa noite o estrangeiro acordou. Ele dormia perto da porta aberta da varanda, da qual pendia uma cortina que balançava ao vento. Pareceu-lhe que da varanda em frente vinha uma luz extraordinária.
No meio das flores que brilhavam com as cores mais magníficas, encontrava-se uma jovem amável e bonita. Parecia até que ela também brilhava. Ele ficou completamente cego; lá não havia nada de extraordinário; ele abrira demais os olhos e acabava de sair do sono. De um salto ele abriu a cortina. Mas a moça desaparecera e, com ela, toda a luminosidade.
As flores não brilhavam mais e só tinham a sua beleza costumeira.
A porta estava encostada. E do fundo do apartamento vinha uma música agradável, suave, própria para despertar os mais doces pensamentos. Era um verdadeiro encantamento. Quem moraria ali? E onde ficava a entrada? No rés-do-chão as “boutiques” se seguiam e era impossível passar por ali constantemente.
Certa noite, o estrangeiro estava também na sua varanda. Atrás dele, em seu quarto, a luz estava acesa. E assim, era natural que sua sombra se desenhasse na parede em frente. Sim, ela estava lá, na varanda, no meio das flores, e de cada vez que o estrangeiro fazia um movimento, a sombra fazia outro correspondente.
– Creio que minha sombra é tudo o que possa existir de vivo lá dentro – disse o sábio. – Como é ela graciosa assim no meio das flores! A porta não está senão encostada. Ela poderia ser bem sabida para entrar, examinar o que há no interior, e, ao voltar, contar-me o que viu. Sim, sim – disse ele brincando. – Você bem podia prestar-me esse serviço. Faça o favor de entrar. Vamos, você não quer ir?
Debruçou-se sobre a sua sombra que lhe respondeu:
– Vá! mas não fique muito tempo.
O estrangeiro levantou-se. Na sua frente, na varanda, sua sombra levantou-se também. Ele virou-se e a sombra fez o mesmo. E se alguém prestasse atenção, veria a sombra passar pela porta entreaberta da varanda da frente, justamente no momento em que o estrangeiro penetrava em seu quarto, deixando cair a cortina atrás dele.
Na manhã seguinte, o sábio saiu a fim de tomar café e comprar os jornais.
– Que é isso? – gritou ele assim que ficou sob o sol. – Eis que eu não tenho mais sombra! Então ela partiu ontem à noite e não mais voltou. Isso é muito estranho!
Não era tanto a perda da sombra que lhe trazia tanto mau humor. Mas na terra dele, nos países frios, todos conheciam a estória do homem que perdera a sombra.
Actualmente, se ele voltasse ao seu país e contasse sua aventura, iriam chamá-lo de plagiário. E isso o contrariava. Eis por que resolveu não dizer nada, o que era muito sensato.
À noite ele voltou à sua varanda; colocara a luz bem atrás de si, sabendo que a sombra exige que seu dono esteja entre ela e a luz. Mas não conseguiu fazê-la voltar. Abaixou-se e levantou-se. Não possuía mais sombra, não apareceu nenhuma.
– Hum! hum! – fez ele. O que não adiantou de nada.
Era verdadeiramente enfadonho. Felizmente tudo passa depressa; no fim de oito dias, ele se deu conta, para grande alegria, que, assim que chegava ao sol, uma nova sombra começava a estender-se aos seus pés. Três semanas mais tarde, ele já possuía uma sombra bem razoável.
E quando voltou para o seu país, em direcção ao Norte, ela crescia à medida que ele viajava, crescendo tanto, que dentro em breve alcançou a metade do seu tamanho.
O sábio voltou para casa e escreveu sobre o belo, a verdade e o bem no mundo. Passaram-se anos. Um longo tempo se passou.
Uma noite em que estava sentado em seu apartamento, bateram ligeiramente na porta.
– Entre – disse ele.
Mas não entrou ninguém. Então ele mesmo foi abrir.
Na sua frente estava um ente magro ao extremo, que lhe causou uma estranha impressão, mas que, ao examiná-lo, o sábio viu que estava elegantemente vestido. Devia ser alguma pessoa de bem.
– A quem tenho a honra de falar? – perguntou o sábio.
– Ah! bem que eu duvidava que você não me reconheceria – disse o homem elegante. – Tornei-me muito material. Ganhei carne e ossos. E, sem dúvida não pensava em me ver em tão bom estado. Não reconhece a sua velha sombra? Certamente não esperava que eu voltasse. Tive uma sorte extraordinária, depois que o deixei. Consegui meios sob todos os pontos-de-vista. E tive a possibilidade de me livrar da minha servidão.
Ao mesmo tempo fez soar uma quantidade de berloques preciosos que pendiam de seu relógio e passou a mão por uma corrente de ouro maciço que trazia ao pescoço. Em todos os seus dedos diamantes lançavam chispas. E nenhuma dessas jóias era falsa.
– Não, não posso acreditar! – disse o sábio. – Como é possível?
– Não é muito comum, realmente – disse a sombra. – Mas você também não é uma pessoa comum, e eu, sabe-o muito bem, segui-o desde a infância. Assim que me julgou bastante amadurecido para deixar-me só no mundo, segui a minha própria vida. Encontro-me numa situação das mais brilhantes. Mas uma espécie de nostalgia tomou conta de mim e a vontade de vê-lo mais uma vez antes da sua morte, pois você – é claro – vai morrer um dia. Além do mais, queria rever este país; sempre se ama a própria pátria. Sei que arranjou uma outra sombra. Tenho algo a pagar-lhe, ou a ela? Peço-lhe o favor de dizer-me.
– Não! Então é você mesmo! – disse o sábio. – É maravilhoso. Nunca pensei que poderia ver novamente a minha velha sombra sob uma forma humana.
– Diga-me o quanto tenho de pagar disse a sombra. – Não gosto de ter dívidas.
– Como pode falar dessa maneira – disse o sábio. – Não se trata de dívida. Use a sua liberdade como todo mundo faz. Estou muito contente com a sua felicidade. Sente-se, meu velho amigo, e conte-me tudo o que lhe aconteceu e o que você viu nos países quentes na casa do meu vizinho da frente.
– Contarei tudo – disse a sombra sentando-se – mas prometa-me em troca que não dirá a ninguém aqui, nesta cidade onde terá várias ocasiões de encontrar-me, que eu fui sua sombra. Estou pretendendo ficar noivo. Possuo o suficiente para manter uma família.
– Pode ficar tranquilo – disse o sábio. – Não contarei a ninguém quem você é na realidade. Prometo. Um verdadeiro homem só tem uma palavra.
– Um verdadeiro homem só tem uma palavra – repetiu a sombra que era obrigada a se exprimir assim.
Era realmente espantoso constatar como ele se tornara um homem perfeito. Seu traje negro era do tecido mais fino; usava botinas de verniz e um chapéu .claque. elegante, sem falar nos berloques que já conhecemos, da corrente de ouro e dos anéis. Sim, a sombra estava impecavelmente trajada e é justamente isso que faz um homem.
– Vou contar-lhe – disse a sombra pousando o mais forte que pôde o pé calçado de verniz sobre a nova sombra do sábio, que jazia à sua frente como um travesseiro, fosse por orgulho ou por querer descansar.
A nova sombra, porém, quedou-se tranquila: sem dúvida queria saber também como poderia livrar-se de seu amo.
– Sabe quem morava na casa nossa vizinha? – perguntou a sombra. – O que há de mais belo: a poesia.
Fiquei lá três semanas, as quais aproveitei como se tivesse vivido três mil anos, lendo todos os poemas e todas as obras dos sábios. Estou dizendo a verdade. Li tudo e aprendi tudo.
– A poesia! – exclamou o sábio.
- Sim, sim, ela vive solitária nas grandes cidades. A poesia vi-a um breve instante, mas dormia ainda. Ela estava na varanda, entrou pela porta e depois...
– Depois eu fui até a antecâmara – prosseguiu a sombra. – Não havia luz; reinava uma espécie de penumbra. Os aposentos numerosos estavam dispostos em fila e pelas portas abertas podia-se vê-los com um só olhar. Estavam tão claros como em pleno dia e a violência desse mar de luz certamente me teria matado, se eu me aproximasse da jovem. Mas fui prudente e soube o que fazer.
– Que viu a seguir? – perguntou o sábio.
– Eu tudo vi. Vi tudo e sei de tudo!
– Como eram os aposentos lá dentro? – interrogou o sábio. – Eram como na fresca floresta? Como uma santa igreja? As salas eram como um céu de estrelas, como quando se está nas altas montanhas?
– Tudo estava lá – disse a sombra. Não entrei totalmente; permaneci na primeira peça, na penumbra, mas encontrava-me perfeitamente bem. Sei tudo e vi tudo. Eu estava na corte da poesia, na sua antecâmara.
– Mas que foi que viu? Os deuses da antiguidade estavam nas grandes salas? Os antigos heróis e os combatentes? Crianças amáveis brincavam e narravam seus sonhos?
– Vou contar-lhe e você vai compreender o que eu vi e o que havia para ver. Passando pelo outro lado, passaria pelos limites da humanidade. Eduquei-me, aprendi a conhecer a minha própria natureza e minhas relações com a poesia. Outrora, quando estava ao seu lado, eu não raciocinava. Desde que o sol nascia e se punha, eu me tornava bastante grande. Ao luar eu ficava do seu tamanho. Naquele tempo eu não conhecia a minha própria natureza; só percebi a sua essência na antecâmara da poesia: tornei-me um homem. Somente, como ser humano, envergonhava-me de sair como estava: faltavam-me roupas, sapatos, todo o verniz que dá significação à humanidade. Procurei um abrigo, e – posso confessar-lhe, pois que você não vai dizer a ninguém – encontrei-o nas vestes de uma cozinheira. A honesta mulher nunca soube da protecção que me deu. Parti naquela mesma noite. E corri para cá e para lá, na rua, sob o luar. Encostava-me nas paredes. Corri da direita para a esquerda, olhei pelas mais altas janelas dos apartamentos e sobre os tetos. Lancei um olhar até onde ninguém pode fazê-lo e onde ninguém me poderia ver. Afinal, o mundo é mau. Não gostaria de ser homem, se não fosse admitido comummente que ser homem significa algo. Eu vi, em casa de homens e mulheres, nas casas de pais de crianças doces e angélicas, as coisas mais incríveis.
– Eu vi, – disse a sombra –, o que ninguém deveria saber, mas que todo mundo precisava conhecer, a maldade de seus vizinhos. O que eu teria de leitores se possuísse um jornal! Mas eu escrevi da mesma forma às pessoas interessadas. O terror tomou conta de toda as cidades onde eu chegava. Como me temiam, comportavam-se correctamente para comigo. Os professores me elevaram à sua condição, os alfaiates deram-me roupas novas, de maneira que pude andar bem vestido. Deram-me também dinheiro e as mulheres diziam que eu era lindo. Foi assim que me transformei no que sou hoje. Agora vou dizer-lhe adeus. Aqui está o meu cartão. Moro do lado do sol, e, quando chove, fico sempre em casa.
Depois disso, a sombra se foi.
– Eis uma coisa notável – disse o sábio.
Passaram-se alguns anos e a sombra voltou inopinadamente.
– Como vão as coisas?
– Ora! – respondeu o sábio – escrevi sobre a bondade, a verdade e a beleza; mas para isso só existe gente surda. Estou desesperado, pois isso me entristece muito.
– Nunca me entristeço – respondeu a sombra. – É por isso que engordo, o que deve ser a finalidade de todo indivíduo razoável. Você continua a não entender o mundo. Acabará ficando doente. É preciso viajar. Vou fazer uma viagem neste verão. Quer me acompanhar? Eu gostaria muito de tê-lo comigo. Pagarei a viagem.
– Você vai muito longe? – inquiriu o sábio.
– Isso depende – disse a sombra. Uma viagem vai restabelecer-lhe as forças. Se vier como minha sombra, farei todos os gastos.
– É uma loucura – disse o sábio.
– Assim é o mundo – disse a sombra. E assim ficará. A sombra partiu sem dizer mais nada.
O sábio não ia bem. Estava cheio de ansiedade e aborrecimento. O que ele dizia sobre a verdade, a beleza e o bem, era, para a maioria, o que são as pérolas para os porcos. Finalmente caiu verdadeiramente doente.
– Você tem mesmo o ar de uma sombra – diziam-lhe os outros.
E, a esse pensamento, o sábio tremia.
– Você precisa mesmo viajar – disse a sombra quando foi visitá-lo. – Não há outro meio. Nós somos velhos conhecidos, eu o levo. Pagarei a viagem. Você poderá escrever mais tarde sobre a mesma e, ao mesmo tempo, ajudar-me-á a não me aborrecer. Quero ir para uma estação de águas: minha barba não cresce como deve. Também é uma doença, pois todos devem ter barba. Seja condescendente, aceite a minha proposta; viajaremos juntos.
Partiram. Agora a sombra era o mestre e o mestre transformara-se em sombra. Viajaram juntos, de carro ou a cavalo, lado a lado, ou um atrás do outro, de acordo com a posição do sol. A sombra ficava sempre ao lado do seu mestre, sem que o sábio dissesse nada. Tinha muito bom coração, era doce e amável.
Eis por que ele disse um dia à sombra:
– Já que agora nós somos companheiros de viagem, e que, além do mais, estamos; ligados desde a infância, não poderíamos beber à nossa fraternidade? Nossa amizade ficará ainda mais sólida.
– Você acaba de dar a sua opinião – disse a sombra, que agora era o mestre. – Falou com a liberdade do coração e eu farei o mesmo. Já que é sábio, deve saber o quanto a natureza é caprichosa. Muitas pessoas não podem ouvir barulho de papel, outras ficam nervosas quando se arranha um vidro com um alfinete. Eu ficava assim quando era obrigado a tratá-lo como senhor. Veja que não se trata de orgulho, mas de sensação. Mas já que você não se incomoda, faço questão que, de agora em diante, me trate como senhor.
E assim, o antigo mestre passou a ser tratado com servo. E o sábio, quisesse ou não, tudo suportava.
No entanto, os dois chegaram à estação de águas.
Muitos estrangeiros descansavam no local, e, entre eles, havia a graciosa filha de um rei, cuja doença consistia em ter uma vista muito aguda, o que não deixa de ser uma coisa séria.
E assim ela logo percebeu que o recém-chegado não era uma pessoa igual aos outros mortais.
“Ele está aqui para fazer crescer a barba, é o que dizem; mas eu vejo bem qual o verdadeiro motivo: ele não tem sombra”.
Teve um grande desejo de conhecê-lo; assim que pôde iniciou conversa com o estrangeiro, durante um passeio.
Sendo a filha de um rei, ela não precisava usar de muitas cerimonias.
– Sua doença – disse ela – consiste em que o senhor não pode projectar uma sombra.
– Vossa Alteza Real – replicou a sombra – está melhorando muito. O mal de que sofria, de ter a vista muito aguda, desapareceu. Está curada: eu possuo, pelo contrário, uma sombra extraordinária. Não vê a pessoa que não deixa de me acompanhar? Os outros possuem uma sombra comum, mas eu não gosto do que é comum. Da mesma forma que alguns fazem seus servos se vestirem melhor do que eles mesmos, eu transformei a minha sombra em homem. Como pode ver, eu cheguei a dar-lhe até uma sombra própria. Sem dúvida é uma fantasia dispendiosa, mas gosto de ter algo para mim só.
“Como?”, pensou a princesa. “Estarei verdadeiramente curada? Esta estação de águas é certamente a mais proveitosa para o meu estado. A água deve ter virtudes milagrosas. Mas, de qualquer forma, não vou partir daqui, pois isto começa a ficar interessante. Gosto muito deste estrangeiro. Contanto que a sua barba não cresça! Senão ele iria embora imediatamente”.
À noite, na grande sala de baile, a filha do rei dançou com a sombra. Por mais leve que ela fosse, ele o era ainda mais. Jamais ela vira um tal bailarino. Contou-lhe de onde vinha. E ele conhecia seu país; lá estivera, mas ela não se encontrava em casa. Ele olhara por todas as janelas, altas e baixas e observara tudo.
Pôde assim responder à filha do rei e dar-lhe indicações que a deixaram estupefacta. Devia ser o homem mais sábio do mundo. Levou a sua sabedoria em grande consideração. E quando dançaram uma segunda vez juntos, ela apaixonou-se perdidamente por ele, o que a sombra percebeu muito bem. Ao dançar novamente, ela esteve a ponto de confessar seu amor. Mas pensou um pouco em seu país, seu reino e em tudo aquilo que teria de governar um dia. “Trata-se de um homem sábio”, dizia ela para si mesma. “Dança maravilhosamente bem. Mas o importante é saber se possui também conhecimentos fundamentais. Vou fazer-lhe um exame” Então ela começou a fazer-lhe as perguntas mais difíceis. Ela mesma não seria capaz de respondê-las. A sombra fez um gesto singular.
– O senhor não poderá responder – dizia a filha do rei.
– Mas eu sei o que me pergunta desde os tempos da escola – respondeu a sombra. Chego até a pensar que minha sombra, que está encostada na porta, poderá responder.
– Sua sombra! – replicou a filha do rei. – Eis uma coisa que seria admirável!
– Não afirmo que ela o faça – continuou a sombra – mas acredito que sim. Há tantos anos que me acompanha e me ouve. Mas Vossa Alteza Real me permite dizer-lhe que ela tem o orgulho de passar por um homem e que, se estiver de bom humor – e ela deve estar para poder responder convenientemente – é preciso tratá-la como tal.
– Gosto de um tal orgulho – disse a filha do rei.
Foi reunir-se ao sábio, na porta, e falou-lhe sobre o sol e a lua, sobre o homem exterior e interior. E ele respondeu bem e inteligentemente.
“Como deve ser o homem que tem uma sombra tão sábia!”, pensava ela. “Será uma verdadeira bênção para meu povo e para o Estado se eu o tomar para marido. Vou fazê-lo”.
A filha do rei e a sombra acertaram tudo. Todavia, ninguém devia saber de seus planos antes que ela entrasse em seu reino.
– Ninguém, nem mesmo a minha sombra – disse a sombra. Estava pensando em algo.
Logo eles se encontraram no país da filha do rei.
– Ouça, meu bom amigo – disse a sombra ao sábio: – Atualmente eu me tornei mais feliz e poderoso do que qualquer outra pessoa no mundo; e vou fazer por você algo de excepcional. Morará constantemente comigo no castelo, viaja-rá em minha carruagem real e terá um grande ordenado anual. Somente é preciso que não diga a ninguém que é um homem; e, uma vez por ano, quando eu estiver sentado ao sol para que todos me vejam, você se deitará aos meus pés, como convém a uma verdadeira sombra. Confio-lhe que vou me casar com a filha do rei; o casamento será celebrado esta noite.
– Não, isso é uma loucura! – disse o sábio. – Não quero e não o farei. Seria enganar o país inteiro, e, sobretudo, a filha do rei. Vou contar tudo: que o homem sou eu e que você é somente uma sombra que veste roupas de homem.
– Ninguém vai acreditar – disse a sombra. – Tenha juízo, senão chamarei os guardas!
– Vou procurar a filha do rei – disse o sábio, partindo.
– Também vou – gritou a sombra. E você irá para a prisão.
Foi o que aconteceu, pois os guardas lhe obedeceram, sabendo que a filha do rei o escolhera para marido.
– Está tremendo? – perguntou a filha do rei à sombra que chegava. – Aconteceu alguma coisa? Não deve ficar doente justamente na noite de nossas núpcias.
– Aconteceu-me a coisa mais espantosa que se poderia conceber – disse a sombra. – Imagine só – é verdade que um pobre cérebro de uma sombra não pode ser muito sólido – imagine: minha sombra enlouqueceu. Ela acha que sou eu e que eu sou a sua sombra!
– É incrível! – disse a princesa. – Prenderam-na?
– Sim, mas tenho medo de que nunca mais recupere a razão.
– Pobre sombra! – replicou a princesa. – Deve ser muito infeliz. Seria uma boa ação, realmente, dispensá-la da sua vida de sombra. Quanto mais penso, mais me parece de bom alvitre desembaraçarmo-nos dela sem escândalo.
– É realmente penoso – disse a sombra. – Sempre foi um leal servidor.
E suspirou.
– Você tem um caráter nobre – disse a filha do rei.
À noite, toda a cidade foi iluminada. O canhão troou e os soldados apresentaram armas. Era a noite do casamento.
A filha do rei e a sombra apareceram no balcão para que fossem vistos e saudados mais uma vez pela multidão.
O sábio ficou ignorando toda essa solenidade: haviam-lhe tirado a vida.


Hans Christian Andersen




17/03/2008

A Enfeitiçada

Vai correndo o cavaleiro,
A Paris levava a guia,
Viu estar uma donzela
Sentada na penha fria:
– «Que fazeis aqui donzela?
Que fazeis ó donzelinha?»
– «Vou-me à corte de Paris
Donde padre e madre tinha;
Perdi-me no meu caminho,
Pus-me a esperar companhia
Cansada estou de esperar
Sentada na penha fria,
Se te praz, ó cavaleiro,
Leva-me em tua companhia.»
Respondeu-lhe o cavaleiro:
– «Pois que me praz, vida minha.»
Lá no meio do caminho
De amores a requeria;
A donzela muito enxuta
Lhe disse com ousadia:
– «Tem-te, tem-te, cavaleiro,
Não façais tal vilania?
Que, antes que me baptizassem
Me deram feitiçaria:
Sete bruxas me embruxaram
Antes que eu fosse à pia;
O homem que a mim se chegasse,
Malato se tornaria»
Não responde o cavaleiro,
Todo na sela tremia.
Lá para o fim do caminho
A donzela que sorria.
– «De que vos rides, donzela,
De que rides donzelinha?»
– «Não me rio do cavalo
Nem da sua fitaria,
Rio-me do cavaleiro,
Mais da sua covardia;
Com a donzela à garupa
E catou-lhe cortesia;
Soube guardar-se das moças
E bruxas velhas temia.»
– «Atrás, atrás, ó donzela,
Atrás, atrás, donzelinha,
Que na fonte onde bebemos
Deixo uma espora perdida.»
– «Cavaleiro, adiante, adiante,
Que eu atrás não tornaria.
Se a sua espora é de prata,
Meu pai de oiro lha daria:
Que ás portas de meu pai
Se mede oiro cada dia.»
– «Dizei-me vós ó donzela,
Dizei-me de quem sois filha.
– «Sou filha del-rei de França
E da rainha Constantina.»
– «Arrenego eu de mulheres
Mais de quem nelas se fia!
Cuidei de levar amante,
Levo uma irmã minha.»


Romanceiro, Almeida Garrett





O caldo de pedra





Um frade andava ao peditório; chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair com fome, e disse:
- Vou ver se faço um caldinho de pedra. E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terra e pôs-se a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs-se a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:
- Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam-lhe:
- Sempre queremos ver isso.
Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:
- Se me emprestassem aí um pucarinho.
Deram-lhe uma panela de barro. Ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro.
- Agora se me deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas.
Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:
- Com um bocadinho de unto é que o caldo ficava de primor.
Foram-lhe buscar um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade, provando o caldo:
- Está um bocadinho insosso; bem precisa de uma pedrinha de sal.
Também lhe deram o sal. Temperou, provou, e disse:
-Agora é que com uns olhinhos de couve ficava que os anjos o comeriam.
A dona da casa foi à horta e trouxe-lhe duas couves tenras. O frade limpou-as, e ripou-as com os dedos deitando as folhas na panela.
Quando os olhos já estavam aferventados disse o frade:
- Ai, um naquinho de chouriço é que lhe dava uma graça...
Trouxeram-lhe um pedaço de chouriço; ele botou-o à panela, e enquanto se cozia, tirou do alforge pão, e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos nele, perguntou-lhe:
- Ó senhor frade, então a pedra?
Respondeu o frade:
- A pedra lavo-a e levo-a comigo para outra vez.
E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.


Recolha de Teófilo Braga

16/03/2008

Lenda da Galanteria de D.Rodrigo



Loulé era já conhecida dos romanos que aí exploravam minas. Em 1249 D. Paio Peres Correia, mestre de Santiago, tomou Loulé aos Mouros. A Loulé foi dado foral em Agosto de 1266. A igreja matriz data de D. Dinis.

Esta lenda nasceu em Loulé, no Cabeço do Mestre. Estava-se no reinado de D. Afonso III, o Conquistador. D. Paio Peres Correia queria conquistar o Algarve; dispunha de muitos cavaleiros a seu mando e, de entre eles, surgia D. Rodrigo de Mascarenhas, famoso por ser galante com as damas.

As tropas cristãs tinham chegado às portas de Loulé. Os cavaleiros cristãos tinham entrado na fortaleza e fizeram prisioneiros. Entre estes, estava um jovem ricamente vestido mas triste.
- Porque estais triste? Na guerra ou se vence ou se é vencido- disse D.Rodrigo.
O rapaz contou que se chamava Abindarráez e que era da linhagem dos bencerragens (pertenciam à poderosa tribo do Califa de Granada).
Quando eu era pequeno, fui criado juntamente com a filha do alcaide de Cártama (antiga vila do califado de Córdova que hoje faz parte da província de Málaga em Espanha); lá eu brincava com Jarrefa. Ela cresceu, tornou-se uma bela mulher quando quisemos unirmos, o pai dela não deixou. E enviaram-me para aqui. Há dois dias, um mensageiro de Jarrefa, disse para eu ir ter a Silves ou Xelb*. Vesti o meu melhor fato e quando soube que as vossas tropas estavam aqui, tive que lutar e ainda perdi! Jarrefa está em perigo em Silves e não a posso ajudar. Se eu pudesse!
- Vou dar-te uma oportunidade- disse D. Rodrigo. Vais buscá-la mas, voltam para cá como cativos.
O rapaz foi buscá-la e disse que se ela não quisesse ser esposa de um cativo, ele iria sozinho. A rapariga acedeu. Voltaram ambos; chegados a campo cristão, foram bem recebidos. A beleza da jovem e o porte do rapaz encantaram todos. Mais tarde, o rei cristão concedeu-lhes perdão e o pai da rapariga também. Jarrefa, emocionada, pegou na mão de D. Rodrigo e perguntou como podia agradecer.
Respondeu D. Rodrigo:- Sorrindo, bela dama. O vosso sorriso é o mais belo do mundo. E assim, D. Rodrigo deixou-os partir.
Semanas mais tarde, o rapaz enviou emissários com dois bonitos cavalos brancos e uma grande quantia em dinheiro. D. Rodrigo recusou dizendo que a sua função não era roubar damas mas, servi-las e honrá-las. Apenas enviava as suas homenagens à mais bela dama e ao jovem de sangue nobre.

* Silves- ou Xelb- foi conquistada no reinado de D. Sancho I em 1189, reconquistada por Ibne Iuçufe em 1191 e reconquistada pelos cristãos em 1198.Só paio pires toma a cidade,quando governava Muça Ibne mahomed ou Ibne Maholf, o Almançor.



14/03/2008

Adultério com os olhos


Quando as três irmãs estavam brincando com o carregador (história do Carregador e as jovens mulheres), bateram à porta. A irmã mais nova foi abrir e voltou, dizendo: "Completou-se nossa alegria esta noite, pois encontrei à porta três estrangeiros semi-anões do tipo Saaluks tendo cabeça pequena e pescoço fino. Os três têm a barba raspada e bigodes compridos e são zarolhos do olho esquerdo, e cada um apresenta um aspecto mais divertido que o outro. Pediram-me asilo. Se os deixarmos entrar, vamos nos divertir gostosamente às suas custas”.As duas outras irmãs concordaram e os três Saaluks foram admitidos. Após cumprimentar a todos, animaram-se de repente e tomaram parte na festa, tocando alaúde, tamborim e flauta, dançando e cantando. Depois, cada um deles contou sua história. A do segundo Saaluk é a mais divertida. Disse: Em verdade, eu não nasci zarolho, e a história que vou contar é tão assombrosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, serviria de lição a todo homem circunspecto. Embora esteja hoje mal vestido e de aparência comum, eu sou um rei, filho de rei, um homem educado acima do normal. Li o Alcorão e os livros dos mestres e aprendi as ciências e os segredos dos astros. Minha fama espalhou-se a tal ponto que, um dia, o rei da Índia solicitou a meu pai que me deixasse visitá-lo. Meu pai consentiu e mandou preparar seis navios para acompanhar-me, enchendo-os dos presentes mais preciosos. Após navegar trinta dias, chegamos a terra firme, carregamos os dez cavalos e dez camelos que estavam conosco com os presentes destinados ao rei da Índia e iniciamos a marcha. Mas logo fomos assaltados por um bando de sessenta árabes do deserto, os quais mataram meus escravos, apoderaram-se de meus cavalos e ameaçaram matar-me também. Fugi e me refugiei numa gruta encontrada por acaso. No dia seguinte, sai de meu esconderijo e pus-me a caminhar até que cheguei a uma grande e bela cidade que a primavera cobria de rosas. Estava errando pelas ruas quando passei pela porta de um alfaiate que cosia na sua loja. Cumprimentei-o, e ele me cumprimentou, e sentimos uma mútua simpatia ligar-nos. Convidou-me a entrar, e vendo-me pálido e exausto ofereceu-me o que comer e beber e perguntou-me de onde vinha. Contei-lhe minha história. - Meu simpático amigo, disse-me, não contes tua história a ninguém por aqui, pois o rei desta terra é inimigo de teu pai por causa de uma antiga desavença, e espera uma oportunidade para vingar-se dele. Quanto a teu saber, de nada te pode servir neste ambiente onde ninguém se interessa por cultura ou sequer sabe ler. Resigna-te, aceita minha hospitalidade, descansa três dias, depois apanha um machado e vai cortar lenha na floresta até que Alá te abra uma porta melhor. Segui as sugestões de meu novo amigo. Após descansar, comprei um machado e, todos os dias, acompanhava os outros lenhadores. Cortava lenha que carregava sobre a cabeça e vendia nas ruas por meio dinar. Um dia, enquanto cavava a terra em volta das raízes de uma árvore, meu machado ficou preso no anel de uma placa de cobre. Levantei a placa e descobri uma escada. Desci pela escada e, ao fundo, deparei com uma porta. Abri-a e achei-me na sala de um magní6co palácio. E lá encontrei uma jovem mais bela que todas as pérolas. Minha fadiga desapareceu por magia, ajoelhei-me diante dela e adorei-a. Olhou para mim e perguntou: "És um homem ou um gênio?" Respondi: "Sou um homem”.- Como então pudeste chegar a este lugar onde vivo há mais de vinte anos sem ter visto um filho de Adão? Respondi: "Princesa, foi Alá que me conduziu até aqui para me compensar de minhas privações e sofrimentos”.E contei-lhe minha história. Chorou e contou-me a sua: "Sou a filha do rei Ifitamous, da Índia. Meu pai casou-me com meu primo, mas na própria noite do casamento, e antes que minha virgindade fosse tomada, o Afrit Jurgis me raptou e trouxe-me para este palácio, que encheu com tudo que se possa desejar em iguarias, bebidas, vestidos e móveis. Desde então, vem passar uma noite comigo de dez em dez dias. Se precisar dele antes da noite marcada, basta-me esfregar essa inscrição que vês ali na parede. E ele logo aparece. A última vez que veio foi há quatro dias. Faltam seis dias para a sua próxima visita. Poderás ficar comigo até lá e ir embora antes de sua chegada. Pois ele é de um ciúme perigoso." E cantou para mim na mais melodiosa das vozes: Se soubéssemos de tua vinda, teríamos espalhado nosso coração como um tapete para teus pés. Depois, passamos uma noite mais cheia de prazeres que as noites prometidas aos fiéis no Paraíso. Perguntei-lhe: "Não me deixarás levar-te deste subterrâneo e livrar-te do gênio?" Respondeu: "O pobre Afrit tem apenas uma noite e tu tens nove. Satisfaze-te assim”.Eu, entretanto, na minha paixão e estupidez, quebrei a inscrição mágica deixada pelo Afrit, supondo que o impediria assim de voltar àquela morada. Mas ele logo apareceu, um gigante capaz de derrubar sozinho um exército inteiro. Fugi pela escada, mas, na minha agitação, esqueci minhas sandálias e meu machado.
- De quem são esse machado e essas sandálias, ó traidora infame? perguntou o Afrit. - Nunca reparei neles, respondeu a jovem. Talvez os tenhas trazido, agarrados a tuas vestes, sem o perceber. - Tu te tornas ainda mais culpada, acrescentando a mentira à traição, bradou o Afrit. E pondo-a toda nua, crucificou-a entre quatro estacas e começou a bater nela. Não podendo agüentar vê-la maltratada assim, saí pela abertura e recoloquei a tampa no lugar. Mal tinha chegado à casa do alfaiate, chamaram-me da rua, dizendo que um mouro achara meu machado e minhas sandálias e queria mos devolver. O Afrit tinha, com efeito, apanhado minhas coisas e interrogado todos os lenhadores até descobrir que eram minhas. Arrastou-me e levou-me de volta ao palácio da moça, e disse-lhe: "Eis teu amante, desavergonhada rameira." Ela negou conhecer-me. "Neste caso, corta-lhe a cabeça com esta espada," ordenou o gênio. Mas ela parou diante de mim e largou a espada sem força para me matar. - É tua vez, disse-me o gênio. Corta-lhe a cabeça. Olhei para ela e olhou para mim. - Cometeste adultério com os olhos, gritou o Afrit, e cortou-lhe os pés e os braços e, depois, a cabeça. Quanto a ti, disse-me, como não tenho provas de que cometeste adultério com ela, não te matarei; mas, para que não penses que me enganaste, vou te enfeitiçar. Que preferes ser: um asno, um cachorro, uma mula, um corvo ou um macaco? Escolhe rapidamente. Comecei a suplicar-lhe, mas ele me apanhou, subiu comigo ao espaço até que vi a Terra do tamanho de uma bola de gude; depois, depositou-me no cume de uma montanha, feito macaco, um macaco de horrível aspecto. E sumiu. Vivi lá meses. Desci mais tarde pouco a pouco até a costa. O capitão de um navio mandou apanhar-me para levar-me de presente à filha de seu rei. Assim que ela olhou para mim, cobriu a face e disse ao pai: "Este não é um macaco. É um príncipe, filho do rei Ifitamous. Foi enfeitiçado pelo Afrit Jurgis. E ele não é apenas um homem, é um homem culto, sábio, educado”.- Confirmas o que minha filha disse de ti? Perguntou o rei, olhando-me fixamente. Abanei a cabeça e comecei a chorar. Voltando-se para a filha, o rei perguntou-lhe como sabia dessas coisas. Respondeu: "Lembras-te da velha que me servia de babá quando era menina? Foi ela que me ensinou a magia. Depois, aperfeiçoei-me, estudando centenas de livros e códigos secretos. Hoje, sou capaz de remover este palácio com seus fundamentos e mesmo esta cidade inteira para o outro lado do monte Ka£" - Então, em nome de Alá, exclamou o rei, liberta este jovem para que faça dele meu vizir. A moça pegou uma faca que tinha palavras hebraicas gravadas num lado, fez com ela um círculo no ar e pronunciou palavras mágicas; e, de repente, o próprio Afrit Jurgis surgiu no meio da sala, com olhos feito tições, e disse à 6lha do rei: "Ó pérfida, não concordamos que nenhum de nós contrariaria o outro? Bem mereces a sorte que te espera”.E, de súbito, o Afrit transformou-se num leão e precipitou-se sobre a rapariga para devorá-la. Ela, porém, com uma velocidade de raio, arrancou um fio de seu cabelo, transformou-o numa espada e com ela cortou o leão em dois. Mas a cabeça do leão transformou-se num escorpião gigante, e a moça reagiu, transformando-se numa serpente. Ambos travaram uma luta feroz. Em seguida, o escorpião transformou-se num abutre e a serpente em águia. Depois, o abutre transformou-se num gato e a águia num lobo. Finalmente, a moça virou uma tocha enorme e queimou o terrível Afrit.
A princesa aspergiu-me então com água mágica, repetindo: "Em nome de Alá Todo-Poderoso, volta à tua primeira forma!" Foi assim que me tornei de novo um ser humano, mas tendo um olho só. Em seguida, a moça orou ao fogo, e chispas negras emanaram do corpo queimado e invadiram-lhe o peito e o rosto, enquanto repetia: "Juro que não há Deus senão Alá e que Maomé é o mensageiro de Alá." De repente, vimo-la pegar fogo e ser reduzida em pouco tempo a um monte de cinzas ao lado das cinzas do Afrit. Chorando e lamentando a perda da filha, disse-me o rei: "Jovem, antes de tua chegada, todos aqui vivíamos na felicidade. Agora, por tua causa, perdi minha 6lha que valia mais que cem homens. Pudéssemos nunca ter visto teu rosto de mau augúrio. Sai deste país. O que já nos aconteceu por tua causa basta!" Saí satisfeito, apesar de ter perdido um de meus olhos, pois dizia a mim mesmo: `Antes a perda de um olho do que a de minha cabeça." Disfarcei-me em Saaluk para poder viajar em segurança. Percorri vários países e, finalmente cheguei a Bagdad.



13/03/2008

Lenda da Gruta da Fada


Diz a lenda que nesta gruta, que se situa no Jardim da Pena muito perto do portão de entrada, uma fada todas as noites, cerca da meia-noite, ali vai carpir o seu destino.


A Bela Adormecida




Era uma vez um Rei e uma Rainha que viviam muito tristes por não terem filhos. Fizeram tratamentos em termas de todo o mundo, promessas, peregrinações e devoções especiais. Experimentaram tudo, mas sem resultado. Até que um dia a Rainha ficou grávida e deu à luz uma menina.
Fizeram-lhe um baptismo magnífico. Foram escolhidas como madrinhas da Princesinha todas as fadas que foi possível encontrar no país (e encontraram-se sete), para que, com os dons que lhe concedessem, conforme era costume das fadas naquele tempo, a Princesa tivesse todas as perfeições possíveis e imagináveis.
Depois da cerimónia do baptismo, regressaram todos em cortejo ao palácio real, onde tinha sido preparado um grande banquete em honra das fadas. O lugar de cada uma tinha sido marcado com um estojo de ouro maciço que continha uma colher, um garfo e uma faca de ouro, enfeitado com diamantes e rubis.
Enquanto cada qual se sentava no seu lugar, chegou uma fada velha, que ninguém se tinha lembrado de convidar, pois havia mais de cinquenta anos que não saía da sua torre e todos pensavam que já estivesse morta. O Rei arranjou-lhe um lugar na mesa, mas não lhe foi possível dar-lhe um estojo de ouro maciço como o das outras, porque só haviam sido feitos sete, um para cada uma das sete fadas. A velha julgou que estavam a desprezá-la e resmungou entredentes palavras ameaçadoras.
Uma das jovens fadas, a que estava sentada ao seu lado, ouviu-a e, temendo que pudesse dar à Princesinha algum presente maléfico, mal todos se levantaram da mesa, foi-se esconder por detrás de um cortinado, para ser a última a falar e, deste modo, poder reparar o mal que a velha lhe viesse a fazer. Entretanto, as fadas começaram a desfiar os dons que traziam à princesa.
A mais jovem deu-lhe o condão de ser a mulher mais bonita do mundo; a segunda, o de ser boa como um anjo; a terceira, ter um encanto admirável em tudo o que fizesse; a quarta, dançar maravilhosamente; a quinta, cantar como um rouxinol; e a sexta, saber tocar qualquer instrumento musical com a máxima perfeição.
Chegada a sua vez, a velha fada disse, abanando a cabeça mais por despeito do que por velhice, que a Princesa espetaria o bico de um fuso na mão e, desse modo, morreria. Um tão terrível dom fez estremecer os presentes, e não houve quem não chorasse. Nesse preciso momento a jovem fada saiu de trás do cortinado e pronunciou em voz clara estas palavras:
- Rei e Rainha, tranquilizai-vos! A vossa filha não morrerá assim. Infelizmente, não tenho poder que chegue para desfazer tudo o que fez uma fada mais velha do que eu. Sim, a Princesinha picar-se-á na mão com um fuso, mas, em vez de morrer, apenas cairá num sono profundo que durará cem anos, findos os quais um príncipe virá acordá-la.
O Rei, desejoso de evitar a desgraça anunciada pela velha, mandou logo distribuir um edital em que se proibia, a quem quer que fosse, fiar com um fuso ou ter fusos em casa, sob pena de morte.
Passados quinze ou dezasseis anos, numa altura em que o Rei e a Rainha tinham ido para uma das suas casas de campo, aconteceu que a jovem Princesa, passeando pelo castelo de quarto em quarto, chegou ao cimo de uma torre. Aí, num pequeno sótão, encontrou uma simpática velha que estava sozinha a fiar.
- Que está a fazer, avozinha? - perguntou a Princesa.
- Estou a fiar, minha querida - respondeu-lhe a velha, que não a conhecia.
- Ah... Que bonito! - exclamou a Princesa. - Como se faz? Deixe-me experimentar, a ver se também sou capaz.
No seu entusiasmo, nem sequer teve tempo de pegar no fuso. O que a fada tinha anunciado, cumpriu-se e a jovem Princesa espetou a mão e caiu sem sentidos. A boa velha pôs-se a gritar por socorro. Acorreu gente de todo o lado. Salpicaram de água o rosto da Princesa, desapertaram-lhe os laços, deram-lhe pancadinhas nas mãos, esfregaram-lhe as têmporas com água-de-colónia, mas nada a fez voltar a si.
Então o Rei, que tinha subido depois de ouvir todo aquele rebuliço, lembrou-se do presságio das fadas. Mandou transportar a Princesa para o mais belo quarto do palácio e deitá-la numa cama bordada a ouro e prata. Parecia um anjo, tão bonita era. O desmaio não lhe alterara as cores: as faces permaneceram rosadas e os lábios cor de coral. Tinha os olhos fechados, mas podia sentir-se a respiração suave, o que significava que não morrera.
O Rei ordenou que a deixassem dormir tranquila, até que chegasse a sua hora de acordar. A fada boa que lhe salvara a vida, encontrava-se no reino de Mataquim, a doze mil léguas de distância, quando se verificou aquele incidente. Contudo, foi logo avisada por um anãozinho que calçava as botas das sete léguas. A fada partiu de imediato e, uma hora depois, viram-na chegar num carro de fogo, puxado por dragões.
O Rei deu-lhe o braço para a ajudar a descer do carro e a fada aprovou tudo o que ele tinha feito, mas, porque era muito previdente, pensou que, quando a Princesa acordasse, se sentiria perdida, se ficasse completamente sozinha naquele velho castelo.
Assim, tocou com a sua varinha em tudo o que se encontrava no castelo (excepto no Rei e na Rainha): governantas, damas de honor, criadas de quarto, cortesãos, oficiais, mordomos, cozinheiros, ajudantes, moços, guardas, pajens, escudeiros. Tocou também em todos os cavalos que havia nas cavalariças, nos grandes mastins de guarda e, por fim, na pequena Pufi, a cadelinha da Princesa, que estava junto dela na cama. Mal lhes tocou, todos adormeceram, para só acordarem quando a sua Princesa acordasse. Deste modo, todos estariam prontos a servi-la quando fosse necessário. Até os espetos que estavam ao lume cheios de perdizes e de faisões adormeceram; e o mesmo aconteceu com o lume.
Tudo isto se passou num instante: as Fadas são desembaraçadas nas suas tarefas.
Então o Rei e a Rainha, depois de terem beijado a sua querida filha sem a despertarem, saíram do castelo e decidiram proibir que alguém se aproximasse dali. Esta proibição não era necessária, pois dentro de um quarto de hora cresceu a toda a volta do parque uma tal quantidade de árvores, grandes e pequenas, de silvas e de tojos, tão emaranhados uns nos outros que nem animal, nem homem algum poderia passar. Assim, só se conseguiam ver as ameias das torres do castelo e mesmo só de muito longe.
Passados cem anos, o filho do rei que então reinava, e que pertencia a uma família diferente da da Princesa, passou por aqueles lugares à caça. Quis saber o que eram as torres que se avistavam sobre tão grande e tão densa floresta. Cada qual lhe repetia o que tinha ouvido dizer. Segundo uns, tratava-se de um velho castelo habitado por espíritos, segundo outros, todos os bruxos do país vinham celebrar ali as suas cerimónias mágicas. De acordo com a maioria das pessoas, o edifício era habitado por um ogre que para ali levava todas as crianças que conseguia apanhar, a fim de as comer confortavelmente e sem ser incomodado, pois só ele possuía o condão de abrir uma passagem através do bosque. O Príncipe não sabia em que havia de acreditar, até que um velho camponês lhe disse:
- Meu bom Príncipe, há mais de cinquenta anos ouvi o meu pai dizer que naquele castelo há uma Princesa, a mais bela do mundo. Deverá dormir durante cem anos e será acordada pelo filho de um Rei, ao qual está destinada.
Ao ouvir estas palavras, o jovem Príncipe sentiu uma grande emoção e decidiu sem hesitar que teria de ser ele a pôr fim a tão bela aventura. Levado pelo amor e pela glória, resolveu ir imediatamente saber o que realmente se passava.
Quando avançou em direcção ao bosque, as grandes árvores, as silvas e os tojos afastaram-se para o deixarem passar. Caminhou, sem dificuldade, em direcção ao castelo e, surpreendido, verificou que nenhum dos membros da sua comitiva tinha podido segui-lo, porque as árvores se voltavam a cerrar mal ele passava.
Entrou num grande pátio e tudo o que aí viu o enregelou de medo: um silêncio terrível, por todo o lado a imagem da morte. Corpos de homens e de animais, estendidos no chão, pareciam sem vida.
Atravessou um grande pátio, subiu a escadaria, entrou na sala dos guardas que permaneciam alinhados, ressonando ruidosamente. Passou por vários quartos cheios de fidalgos e de damas, todos adormecidos, uns de pé, outros sentados. Entrou depois num quarto todo dourado, onde viu, sobre uma cama, uma Princesa muito bela que parecia ter quinze ou dezasseis anos. Aproximou-se a tremer e ajoelhou-se a admirá-la. Então, chegado o fim do encantamento, a Princesa acordou e, olhando-o ternamente, disse-lhe:
- Sois vós, meu Príncipe? Demorastes muito tempo!
O Príncipe, fascinado com estas palavras, não sabia como demonstrar a sua alegria. Declarou-lhe simplesmente que a amava mais do que a si próprio. Sentia-se mais tímido do que ela, o que não é para admirar: a linda Princesa tivera muito tempo para sonhar com o que havia de lhe dizer, pois, segundo parece a boa Fada, durante tão longo sono, dera-lhe o prazer de ter bons sonhos. Havia quatro horas que conversavam e ainda não tinham dito metade das coisas que queriam dizer um ao outro.
Entretanto, todo o palácio tinha acordado com a Princesa. Cada um tratava do que lhe dizia respeito e, como não estavam apaixonados, estavam cheios de fome. A dama de honor disse à Princesa que a refeição estava servida. O Príncipe ajudou a Princesa a levantar-se. Estava magnificamente vestida e muito linda.
Passaram ao salão dos espelhos e aí jantaram, servidos pelos criados da Princesa. Os violinos e os oboés tocaram músicas antigas mas muito bonitas, embora tivessem estado quase cem anos sem se fazerem ouvir.
Terminada a refeição, celebrou-se o casamento. Os príncipes abriram o baile e a festa durou uma semana.





O olmo e a figueira






Uma figueira, carregada de figos que ainda não haviam amadurecido, olhou para uma árvore que lhe fazia sombra e viu que ela não tinha frutos.
- Quem é você para ousar impedir que meus figos recebam Sol?
- Sou o olmo - respondeu a árvore.
- E não tem um só fruto! - prosseguiu a figueira - você não tem vergonha de ficar em pé na minha frente? Mas espere só esses meus filhos crescerem, e aí você vai ver. Cada um vai tornar-se uma árvore e todos juntos vamos formar uma floresta e cercar você.
E realmente os figos amadureceram. Porém, quando estavam maduros, passou um batalhão de soldados. subiram na árvore para apanhar os figos, quebrando os galhos e as folhas. Não sobrou nem um só fruto, e a pobre figueira ficou estragada e mutilada.
O olmo teve pena e disse:
- Oh, figueira, teria sido melhor para você não ter tido filhos! Você não teria tido tantas falsas esperanças. É por isso que você agora se encontra nesse estado.





11/03/2008

O galo e a pérola


Um galo achou num terreiro
Uma pérola, e ligeiro
Corre a um lapidário e diz:
"Isto é bom, é de valia.
De milho um grão todavia
Era um achado mais feliz".

Um néscio ficou herdeiro
De um manuscrito, e a um livreiro
Vai à pressa, e fala assim:
"É bom, é livro acabado.
Concordo, mas um ducado
Valia mais para mim!"


Gonçalves Crespo (Trad.)

09/03/2008

Lenda das Águas de Almofala



Há muito tempo, vivia em Almofala uma jovem muito bela chamada Salúquia. Fascinados pela sua beleza, todos os que a conheciam satisfaziam os seus caprichos.
Um dia, um jovem governador árabe veio chefiar aquela região. Pediu a todos obediência na organização da luta contra os cristãos. Todos baixaram as cabeças, excepto Salúquia, habituada a não obedecer e a ser obedecida. O governador, inteirando-se do estranho poder de Salúquia, disse-lhe que se não obedecesse seria castigada. Desafiadora, Salúquia respondeu que se ele ousasse castigá-la seria amaldiçoado. Perante o desafio, o governador mandou que lhe dessem seis vergastadas.
Passado algum tempo, o governador começou a padecer de dores estranhas que nem os melhores físicos conseguiam curar. Era a maldição de Salúquia que começava a fazer efeito.
Salúquia, amargurada pelo castigo, andava pelos campos, vagueando sozinha. Num dos seus passeios, encontrou um cristão velho e ferido que lhe pediu ajuda. Temendo agir contra as ordens do governador, Salúquia recusou o pedido. Quando o cristão lhe perguntou se o governador era cruel, Salúquia surpreendeu-se a si própria ao dizer que era apenas justo. Foi então que o cristão lhe deu o recado do seu Deus: apesar de ter amaldiçoado, o governador Salúquia amava-o. Pelo seu lado, o governador também a amava e nunca a tinha esquecido. Se Salúquia o ajudasse, o Deus dos cristãos também a ajudaria a reparar o mal que tinha feito com a sua maldição. Assim, Salúquia levou-o a uma fonte próxima e verificou com espanto que as suas águas lhe saravam as feridas. Nesse momento, ia a passar o governador que os viu. As dores fortes que sentia interromperam as suas primeiras recriminações. Salúquia deu-lhe a beber a água da fonte e começou a chorar, dizendo-lhe que era capaz de dar a vida por ele. Curado das suas dores, o governador abraçou-a. O cristão desapareceu e Salúquia e o governador viveram felizes para sempre. Mais tarde, quando aquelas terras foram conquistadas pelos cristãos, foram ambos baptizados.
As águas de Almofala continuam ainda hoje, diz o povo, a manter os seus incríveis poderes curativos.

Lenda da Guarda

03/03/2008

A Bela Adormecida


Há muitos anos atrás, havia um rei e uma rainha que desejavam muito ter um filho. Um dia, quando a rainha estava tomando banho, um sapo pulou pela janela e disse-lhe:
- Seu desejo será satisfeito. Antes de um ano você terá uma filhinha.
As palavras do sapo tornaram-se realidade. A rainha teve uma linda menina. O rei exultou de alegria. Preparou uma grande festa para a qual convidou todos os parentes, amigos e vizinhos. Convidou também as fadas, para que elas fossem boas e amáveis para com a menina. Havia treze fadas no reino, mas o rei tinha apenas doze pratos de ouro para servi-las, de modo que uma das fadas teria que ser posta de lado.
A festa realizou-se com todo o esplendor e, quando chegou ao fim, cada uma das fadas ofereceu um presente mágico à criança. Uma deu-lhe virtude; outra, beleza; a terceira, riqueza, e assim por diante, foram-lhe dando tudo o que ela poderia vir a desejar no mundo. Quando onze das fadas já haviam feito suas ofertas, de repente, apareceu a décima terceira fada. Ela desejava mostrar o despeito de que estava possuída por não ter sido convidada. Sem cumprimentar nem olhar para ninguém, entrou no salão e gritou para que todos ouvissem:
- Quando a princesa completar quinze anos, picar-se-á com um fuso de tear envenenado e cairá morta.
Sem dizer mais nada, retirou-se.
Todos os presentes ficaram horrorizados. A décima segunda fada, porém, que ainda não tinha formulado o seu desejo, deu um passo à frente. Ela não tinha capacidade para cortar o efeito da praga, mas podia abrandá-la, de modo que disse:
- Sua filha não morrerá, mas dormirá um sono profundo, que durará cem anos.
O rei ficou tão preocupado em livrar a filha daquele infortúnio, que deu ordens para que todos os fusos de tear que se encontrassem no reino fossem destruídos. À medida que o tempo ia passando, as promessas das fadas iam se realizando. A princesa cresceu tão bonita, modesta, amável e inteligente, que todos que a viam se encantavam por ela. Aconteceu que, justamente no dia em que ela completava quinze anos, o rei e a rainha tiveram necessidade de sair. A menina, encontrando-se sozinha, começou a vagar pelo castelo, revistando todos os compartimentos. Finalmente chegou a uma velha torre onde havia uma escada estreita, em caracol. Por ela foi subindo, até que chegou a uma pequena porta, em cuja fechadura havia uma chave enferrujada. Dando-lhe a volta, a porta abriu-se. Num pequeno quarto, estava sentada uma velhinha, muito ocupada com um tear, fiando. Vivia tão isolada na torre, que não tomara conhecimento da ordem do rei, com relação aos fusos e teares.
- Bom dia, vovozinha, disse a princesa. Que está fazendo?
- Estou fiando, respondeu a velhinha e inclinou a cabeça sobre o trabalho.
- Que coisa é esta que gira tão depressa? perguntou a princesa, tomando o fuso na mão.
Mal o tocou, porém, levou uma picada no dedo e, imediatamente caiu numa cama que havia ao lado, entrando num sono profundo. A velhinha desapareceu. Quem sabe se ela não era a fada má? O rei e a rainha, que acabavam de chegar, deram alguns passos no vestíbulo e adormeceram também. O mesmo sucedeu com os cortesãos. Os cavalos dormiram nas cocheiras; os cães, no pátio; os pombos, no telhado; as moscas, nas paredes.
Até o fogo, na lareira, parou de crepitar. A carne, que estava assando, no fogão, parou de estalar. A ajudante de cozinha, que estava sentada, tendo à frente uma galinha para depenar, caiu no sono. O cozinheiro, que estava puxando o cabelo do copeiro, por qualquer tolice que ele havia feito, largou-o e ambos adormeceram. O vento parou e, nas árvores em frente ao castelo, nem uma folha se mexia. À volta do muro, começou a crescer uma sebe de roseira brava. Cada ano ia ficando mais alta, até que já não se podia mais ver o castelo.
Décadas se passaram e surgiu na região uma lenda, sobre a "Bela Adormecida", como era chamada a princesa. De tempos em tempos, apareciam príncipes que tentavam fazer caminho através da sebe, para entrar no castelo. Não conseguiam, entretanto, porque os espinhos os impediam e eles ficavam presos no meio deles.
Após muitos anos, um príncipe muito audacioso veio à cidade e ouviu um velho falar sobre a lenda do castelo que ficava atrás da sebe, no qual uma linda moça, chamada a "Bela Adormecida", dormia havia cem anos e, com ela, todos os habitantes do castelo. Contou-lhe também que muitos príncipes tinham tentado atravessar a sebe e nela haviam ficado presos, morrendo.
O príncipe então declarou:
- Não tenho medo. Irei e verei a "Bela Adormecida".
O bondoso velho fez o que pode para impedir que ele fosse, mas o rapaz não quis ouvi-lo.
Agora, os cem anos já se haviam completado. Quando o príncipe chegou à sebe, como por encanto, os arbustos que estavam cheios de brotos, afastaram-se e deram-lhe caminho. Após sua passagem, fecharam-se novamente. No pátio, ele viu os cães dormindo. No telhado, estavam os pombos, com as cabecinhas escondidas debaixo das asas. Quando entrou no castelo, viu moscas dormindo nas paredes. Perto do trono, estavam o rei e a rainha, também adormecidos. Na cozinha, o cozinheiro ainda tinha a mão levantada, como se fosse sacudir o copeiro. A ajudante de cozinha tinha à sua frente uma galinha preta para depenar.
O rapaz continuou a percorrer o castelo. Estava tudo quieto. Finalmente chegou à torre, abriu a porta do quarto onde a princesa dormia e entrou. Lá estava ela, tão bonita que ele não se conteve: abaixou-se e beijou-a. Assim que a tocou, a "Bela Adormecida" abriu os olhos e sorriu para ele. Levantou-se, deu-lhe a mão e desceram juntos. O rei, a rainha e os cortesãos acordaram também e entreolharam-se, espantados. Os cavalos, nas cocheiras, abriram os olhos e sacudiram as crinas. Os cães olharam à volta e abanaram as caudas. As pombas do telhado tiraram as cabeças de sob as asas, olharam ao redor e voaram em seguida para o campo. As moscas, na parede, começaram a mover-se, lentamente. O fogo, na cozinha, acendeu-se novamente e assou a carne. O cozinheiro puxou as orelhas do copeiro, enquanto a ajudante começou a depenar a galinha.
O príncipe, apaixonado, casou-se com a princesa, num claro dia de sol, numa grande festa no castelo, e viveram felizes por muitos e muitos anos.





02/03/2008

O Carregador e as Jovens Mulheres


Havia certa vez na cidade de Bagdá um adolescente que era celibatário por convicção e hammal por profissão. Certo dia, como estava encostado preguiçosamente em seu cesto na praça do mercado, uma mulher, usando um véu de seda enfeitado com ouro e brocado, parou diante dele e ergueu ligeiramente o véu. A.pareceram dois olhos negros com longas pestanas, feitos para fazer um homem sonhar. Disse com voz melodiosa: "Moço, pega o cesto e segue-me”.O carregador a seguiu. Percorreram todo o mercado. A dama comprou vinho, maçãs, marmelos, pêssegos de Omã, jasmins de Alepo, nenúfares de Damasco, pepinos, limões, cidras, flores. Cada vez, colocava as compras no cesto e dizia ao hammal: "Carrega e segue-me”.Depois, comprou carne, mel, pastéis recheados, uva, bananas. - Se me tivesse avisado, eu teria trazido uma mula para tomar conta de tantas coisas, queixou-se o carregador. Por única resposta, a dama sorriu-lhe e comprou ainda dez variedades de águas: água de flor de laranja, água de rosas e outras. Comprou bebidas alcoólicas. E cada vez, repetia com o sorriso: "Carrega e segue-me”.E ele seguia, pensando que acertou o sábio quando disse: Se a beleza comete um delito, seus encantos inventam-lhe mil desculpas. Finalmente, acabou de fazer compras e levou o hammal até uma casa suntuosa. Bateu delicadamente a moça à porta, e outra moça igualmente linda abriu os dois batentes. Entraram e chegaram a uma sala espaçosa que dava para um pátio central. Embelezavam a sala cortinas, vasos, móveis finos incrustadas de ouro. No meio da sala havia um leito de mármore e nele se deitava uma moça que possuía todas as graças próprias às mulheres. Foi dela sem dúvida que disse o poeta: Quem te comparou a um ramo na primavera cometeu um erro e uma falsificação. O ramo, gostamos de vê-lo revestido. E tu, gostamos de ver te desnuda. A moça levantou-se, e as três irmãs retiraram as compras do cesto e arrumaram-nas numa mesa. Depois, pagaram dois dinares ao carregador, dizendo-lhe: "Vira as costas e some”.Mas ele parecia pregado no chão a contemplar as três belezas, pensando: "Nunca vi nada igual em toda a minha vida”.E notou que não havia homens naquela casa. A mais velha das irmãs disse lhe: "Por que não te vás? Achas a paga insuficiente?" E voltando-se para uma irmã, disse-lhe: "Dá-lhe mais um dinar." Mas ele opôs-se: "Por Alá, minhas senhoras, minha paga normal é apenas um dinar. Já recebi demais de vós. Mas não consigo compreender por que viveis sozinhas. As mulheres não podem ser realmente felizes sem homens. Um minarete isolado não tem valor, a menos que seja um dos quatro minaretes que ornam a mesquita. Vós sois três. Falta-vos o quarto. E como diz o poeta, um acorde nunca será harmonioso sem os quatro instrumentos reunidos: a harpa, o alaúde, a cítara e pífaro. Vós sois três: falta-vos o pífaro." - Mas, ó moço, nós somos virgens e tememos a indiscrição dos homens. O carregador gritou: “Juro pelas vossas vidas que sou um homem fiel e discreto. E sou culto. Estudei a história e li muitos livros. E só falo de coisas agradáveis. Sigo os dizeres do poeta: O nobre de coração nunca divulga um segredo. Coloco os segredos que me confiam num cofre. Depois, jogo a chave nos rios ou nos mares. - Neste caso, fica connosco, disse a que havia feito as compras. E ele, vendo-se já montado nas três irmãs, sentiu-se num outro mundo, e mal acreditava que não estava sonhando. Depois veio o vinho e depois, as carícias. Embriagado, cantou:
Como é curta a noite do encontro
E como é longo o dia da separação!
Depois, tomou uma segunda taça e cantou baixinho estes versos:
A felicidade te acompanha todos os dias apesar dos olhos dos invejosos.
E possam teus dias continuarem brancos, enquanto os dos invejosos se tomem cada vez mais negros.
Breve estavam todos cantando e dançando. O hammal abraçava cada uma das moças por sua, vez e beijava-a. E dizia-lhe gracejos. Quando reinou a alegria, a mais jovem ergueu-se de repente e despojou se de todas as suas vestes e saltou na bacia cheia de água que estava no pátio. Pegava água nas mãos e deixava-a cair entre as coxas para refrescá-las. Depois, saiu da bacia e correu a lançar-se no colo do jovem carregador. Indicando as coisas que estava entre as suas pernas, perguntou: "Meu querido, sabes como se chama isto?" Ah! Ah! Respondeu o hammal. Geralmente, chamam-na a casa da compaixão.
A moça gritou: "Iú! Iú! Não tens vergonha?" E, segurando-o pela nuca, começou a dar-lhe palmadas. - Não, não, retratou-se ele. É chamada: a Coisa. A moça abanou a cabeça negativamente. "Então, é a tua peça anterior”, disse o carregador. A moça negou de novo. - É teu vespão, disse o carregador. Mas a moça recomeçou a bater nele com tamanha força que lhe raspou a pele. "Então, dize tu o seu nome”, suplicou-lhe o hammal. E ela respondeu: "Manjericão das serras”.- Bendito sejas, ó manjericão das serras, gracejou o moço. Depois, as taças passaram e repassaram. A segunda moça, despindo-se inteiramente por sua vez, saltou na bacia e, ao sair, jogou-se no colo do carregador. Apontando para suas pernas e a coisa que estava entre elas, perguntou: "Luz de minha vida, qual é o nome disto?" – Tua fenda, respondeu o carregador. - Oh! Ouvi esta palavra feia e malcriada, gritou a moça, e bateu no moço tão violentamente que a casa repetiu o eco. - Então é o manjericão das serras. Ela, porém, gritou de novo que não, e recomeçou a bater-lhe na nuca.
"Então, dize tu qual é o seu nome”,gemeu. E ela respondeu: "É sésamo descascado”.A terceira moça levantou-se por sua vez, despiu-se e jogou-se na água como suas irmãs. Após sair, estendeu-se no colo do hammal e, apontando para suas partes delicadas, disse-lhe: ‘Adivinha o nome disto.’ "O hammal deu um nome e outro e outro sem acertar, e acabou pedindo à moça para lhe dizer o nome e parar de bater nele”. “Este é Khan Al-Mansur " , proclamou ela. Então, para completar o jogo, o hammal levantou-se, despiu-se e jogou-se na água. Tomou banho como fizeram as moças. Ao sair da água, jogou-se no colo da segunda irmã, a que mais lhe agradava. Apontando para seu órgão, perguntou: "Qual é o nome dele, ó rainha de meu coração?" Ouvindo a pergunta, as três moças caíram na gargalhada ao mesmo tempo e disseram de uma só voz: "É teu zib!" "Não " , retrucou o moço, e mordeu cada uma delas a título de castigo Então, gritaram, é teu instrumento." "Não," repetiu o hammal, e beliscou os seios de cada uma delas. -Mas, é mesmo teu instrumento, insistiram, pois está quente. É teu zib porque se move. Cada vez, o moço abanava negativamente a cabeça e beijava-as, beliscava-as e apertava-as. E elas riam, felizes. No fim, tiveram que perguntar-lhe como se chamava. Ele tomou um ar sério, refletiu. Olhou entre as pernas e, piscando os olhos, disse: "Minhas senhoras, este menino, meu zib, declara: `Meu nome é o Mulo intrépido que pasta o manjericão das serras, festeja com sésamo descascado e passa a noite em Khan Al Mansur' Continuaram a rir e beber até a noite. Então, disseram ao hammal: "Vai-te embora agora. Vira a face e deixa-nos ver a largura de tuas espáduas”.Mas ele suplicou: "Por Alá, é mais fácil para a minha alma sair de meu corpo do que para eu sair de vossa casa, ó minhas senhoras incomparáveis! Deixemos a noite prolongar esta festa alegre, e amanhã poderemos separar-nos e cada um seguir seu destino nos caminhos de Alá." A mais jovem das irmãs disse: "Por minha vida, minhas irmãs, permitamos a este moço sem vergonha, mas tão amável, passar a noite connosco. E continuemos a nos divertir às custas dele." - Concordamos, responderam as duas outras, e disseram ao moço: "Deves jurar não perguntar nada a respeito do que venha a passar-se aqui esta noite." Ele jurou. - Levanta-te, mandaram, e lê o que está escrito atrás da porta. Levantou-se e leu: "Não fales do que não te diz respeito, se não quiseres ouvir o que não te agrada”.- Senhoras minhas, disse o moço, sois testemunhas de que não direi uma palavra sobre o que não me diz respeito nem falarei a ninguém do que se passará aqui esta noite. E pôs-se a cantar: Disseram-me: enlouqueceste! Respondi: Só os loucos são felizes. Devolvei-me aquela que me enlouqueceu. E vede se não me curo na hora.






Ambição

Na China antiga, um eremita meio mágico vivia numa montanha profunda. Um belo dia, um velho amigo foi visitá-lo. Senrin, muito feliz por recebê-lo, ofereceu-lhe um jantar e um abrigo para a noite. Na manha seguinte, antes da partida do amigo, quis ofertar-lhe um presente. Tomou de uma pedra e, com o dedo, converteu-a num bloco de ouro puro. O amigo não ficou satisfeito. Senrin apontou o dedo para uma rocha enorme, que também se transformou em ouro. O amigo, porém, continuava sem sorrir.
- Que queres, então? - indagou Senrin.
Respondeu-lhe o amigo:
- Corta esse dedo, quero-o.