Bensafrim é povoação muito antiga. Tão antiga que se perde na ronda do tempo. As suas tradições andam de boca em boca entre os mais velhos do lugar. E como a lenda é o fio doirado que tece a teia do maravilhoso, Bensafrim não podia fugir à regra. Vamos contar uma das lendas oriundas de Bensafrim.
Há muitos anos existia um rei jovem e belo. Tinha vindo de um povo que descera do norte e conquistara aquelas terras. Como ainda não casara, pensou em escolher mulher entre as jovens mais belas do país que viera governar. Porém, era muito exigente, pois receava que uma mulher vinda de um povo conquistado pudesse um dia atraiçoá-lo. Assim, imaginou para aquela que ele escolhesse o maior testemunho de amor que uma mulher pudesse dar. Enviou emissários por todo o reino para lhe trazer a mais bela das jovens encontradas. E no dia fixado uma fila imensa de jovens desfilou perante o seu senhor, sem que este parecesse entusiasmado. De súbito, o rei estendeu um braço e disse para um dos seus validos:
— Repara! Aquela jovem, além, junto à pedra da fonte!
O interpelado olhou. Franziu as sobrancelhas.
— Senhor, indicas-me aquela de cabelo tão loiro como as espigas?
— Essa mesma. É muito bela e recorda-me as mulheres do meu país.
O outro mostrou-se embaraçado.
— Senhor, ela é belíssima, decerto. Mas essa não a escolhemos, porque o pai foi dos que mais nos combateram, morrendo durante a luta. Não merece confiança!
O rei teve um suspiro de contrariedade.
— Pois é pena! Por essa é que o meu coração vibrou.
— Esquece-a, Senhor! Nem para simples prazer te pode servir, pois, como te disse, é perigosa!
O rei encolheu os ombros.
— Ora! Saberei dominá-la. Escolhe quatro ou cinco destas mulheres. Manda as outras embora. As escolhidas, dá-lhes prendas e ordena-lhes que se conservem no acampamento até amanhã. Quanto à loira, cor de espiga... diz-lhe que venha falar-me.
Embora atónito com a decisão do rei, o valido não teve outro remédio senão cumprir as ordens recebidas.
Devagar, a jovem entrou na tenda ricamente adornada.
— Senhor, mandaste-me chamar?
O jovem rei olhou-a sorrindo.
— Mandei. Aproxima-te.
A jovem obedeceu. Ele tornou:
— Tens família?
— Não, meu senhor.
— Desde quando vives só?
— Desde que pensaste conquistar a nossa terra.
— Teus pais morreram?
— Sim.
— Odeias-me, decerto!
— Sinto-me envergonhada por não ser assim!
— Tens vergonha, porquê?
— Porque devia odiar-te. Meu pai combateu-te até ao seu último alento. E eu devia fazer o mesmo.
— Porque não fazes?
— Porque perdi a coragem.
— Quando?
— Quando te vi.
— Porquê?
Ela olhou-o sem responder. Ele animou-a:
— Vamos, sê sincera comigo!
— Nunca menti!
— Nunca?
— Nunca, Senhor!
— Então, diz-me porque não me odeias?
— Porque... quando entraste nesta terra à frente dos teus homens... vi-te tão jovem… tão belo… tão forte e decidido que...
Ela calou-se. Ele sorriu abertamente.
— Vamos, continua!
Ela baixou os olhos.
— Senhor... Eu nunca vira um homem como tu!
— E daí?
— Tive pena de que não fosses dos nossos!
— Sou o teu rei. Portanto, tu és agora uma das minhas súbditas!
— Bem o sei. E se me chamaste porque tenho andado fugida, acredita que é do meu povo que fujo!
— Do teu povo?
— Sim. Sinto-me, como te disse, envergonhada de mim mesma. Serei incapaz de odiar-te, mesmo que me tirasses a vida!
O rei exultou.
— Eis uma esplêndida confissão! Diz-me: como te chamas?
— Griselda.
— Um nome estranho, como estranha é a tua beleza.
Pegou-lhe numa das mãos, que estavam frias e húmidas. Perguntou, adoçando a voz:
— Serás capaz de amar-me?
Com a maior sinceridade, a jovem respondeu:
— Já te amo, Senhor!
Ele riu.
— Óptimo! E gostarias de ser minha mulher?
Ela abriu os seus lindos olhos.
— Casar contigo, eu? Mas... sou pobre e sem família!
— Isso não me incomoda. Responde apenas: gostarias ou não de ser minha mulher?
— Sim! Seria a realização de um maravilhoso sonho!
— Pois casarás comigo, se te sujeitares a uma condição.
— Qual?
— Terás de obedecer-me cegamente em tudo quanto te pedir. Será esse o teu testemunho de amor.
Griselda sorriu, comentando:
— Senhor, é fácil obedecer a quem amamos.
— Conforme!
Ela meneou a cabeça.
— Não creio que isso me custe. A tua vontade será sempre a minha, pois já te amo desde que te vi entrar como triunfador.
— Que fazias junto à fonte?
— Queria ver-te. Sempre que posso, observo-te.
Ele riu. Depois chamou o seu valido e declarou-lhe, solene:
— Já encontrei a esposa que procurava. Podes tu escolher entre as cinco que foram eleitas. Mas chama toda a corte. Quero que oiçam a jura que Griselda vai prestar antes das nossas bodas.
O outro perguntou, curioso:
— Que jura, senhor?
— A de obedecer-me cegamente de hoje em diante. Será o maior testemunho de amor!
— E como saberás que será esse o maior testemunho de amor?
— O tempo falará por mim!
E resoluto:
— Vai... Espalha aos quatro ventos que o teu rei já arranjou esposa!
As bodas celebraram-se com a maior pompa. Ricamente vestida, Griselda era, sem dúvida, a mais bela jovem de léguas em redor. O régio par sentia-se feliz e a sua alegria transbordava para os que de perto com eles conviviam.
Um ano passou. Griselda adorava de tal modo o esposo que lhe perdoava qualquer modo mais brusco ou acedia sem protesto a assistir ao julgamento de algum conterrâneo mais rebelde.
Griselda andava radiante e o rei também. Esperavam um herdeiro. Os homens da corte diziam em voz baixa:
— Oxalá traga o sangue do nosso rei!
Nasceu um rapaz. Loiro como as espigas de trigo, olhos verdes, cor do mar. Griselda apertava-o ao peito, louca de alegria. Também lhe pareceu ver emocionado o rosto do seu amado esposo ao contemplar o seu menino. E sentiu mais quente o beijo que ele lhe deu. Passados oito dias, porém, Griselda viu entrar nos seus aposentos o rei seu esposo acompanhado de três dos seus conselheiros. Sem saber porquê, o seu coração bateu forte. Afrouxou o sorriso nos seus lábios. Estreitou o filho nos braços e ficou muda, olhando o seu senhor. E eis que ele a chamou com a voz solene dos grandes momentos:
— Griselda! Estás recordada do teu juramento?
Tremendo, ela declarou:
— Sim, meu senhor!
— Pois bem: sinto dizer-te que terei de matar o menino nascido de ti, porque um rei só pode ter descendência de sangue puro!
Griselda arregalou os olhos de pavor.
— Que dizeis? Vais matar o teu filho?
— Que é teu, também!
— Mas... porque casaste comigo?
— Porque juraste obedecer-me cegamente.
— Assim foi!
— Então, dá-me o menino!
Griselda abraçou o filho. Depois olhou o esposo. Baixou o olhar. Lágrimas silenciosas inundaram o seu rosto. O rei ordenou aos seus:
— Levem-no!
Griselda deixou que o filho lhe fosse arrebatado. Não teve um queixume. Fechou os olhos. Dir-se-ia à parte do mundo!
Sem dizer mais palavra, o rei deixou os aposentos da mulher. E durante meses não mais lhe apareceu.
Outro ano decorreu. Griselda parecia um fantasma vagueando pelo palácio. Um dia, inesperadamente, o rei veio visitá-la. E perguntou-lhe:
— Griselda, ainda me amas?
Com voz dolorida, ela confessou:
— Sim, meu senhor… embora devesse odiar-te!
— Pois bem. Se me amas, vais compreender a minha situação.
— Que situação, Senhor?
— O povo quer um herdeiro, mas de sangue puro.
— Já o calculava!
E eu peço-te que te retires do palácio e vás habitar novamente a tua casa de solteira, pois breve chegará do meu país a noiva que me destinaram. Ficarás com o suficiente para viveres.
Com o coração despedaçado, ela apenas disse:
— Jurei obedecer-te cegamente... e obedeço-te! Mas… porque não preferes tirar-me a vida?
— Porque deves viver para continuares a amar-me!
Griselda levou uma das mãos ao peito.
— Senhor, creio que não será por muito tempo. Mas enquanto o meu coração bater, só por ti baterá!
E sem querer ouvir mais foi arranjar as roupas que havia trazido de solteira, e saiu do palácio sem que alguém se opusesse à sua partida.
Mais outro ano passou. Griselda era visitada com frequência por um conselheiro do rei, a saber da sua saúde. Triste, mas sem um lamento, a esposa do rei sorria, afável, e tinha sempre a mesma resposta:
— Dizei ao meu senhor que estarei bem enquanto puder fazer a sua vontade.
O conselheiro abanou a cabeça, condoído.
— Senhora! Não sei se vos é possível ir mais além...
Ela pareceu assustada.
— Mais? Que pode o rei desejar de mim?
— Que consentis em ir assistir às suas novas bodas, pois acaba de chegar a esposa que ele esperava.
Griselda fez-se horrivelmente pálida. Para não cair, encostou-se à mesa da sua pobre casa. E respondeu, baixando o olhar:
— Enquanto tiver vida hei-de obedecer sempre, sem queixumes, aos desejos do meu rei!
— Viremos buscar-te.
— Quando?
— Dentro de alguns dias.
— Espero que ainda me encontrareis com a vida!
Saiu o conselheiro do rei. Só então Griselda se deixou cair sobre um banco, cabeça entre as mãos, sem lágrimas já para chorar!
Amparada pelas damas, Griselda deixou-se vestir com as maiores galas. Uma das damas perguntou:
— Senhora! Não sentis curiosidade em saber porque vos vestimos assim?
Ela sorriu. A sua voz era fraca.
— O vosso rei e senhor não deseja que a sua nova esposa me encontre mal trajada!
Sorriram as damas, entreolhando-se. Uma delas arriscou:
— Admiro-vos! Como podeis suportar tanto?
Cada vez mais fraca, Griselda respondeu:
— Se suporto... é porque posso aguentar. De outra forma já teria feito companhia ao meu adorado filho!
— Mas vós consentistes...
— Perdoa... se não falo mais em tal assunto... Mas não devo… nem posso...
Tremia Griselda, ainda admiravelmente bela, embora magra e pálida como defunta.
Soaram trombetas. As damas sorriram.
— Vamos! Preparai-vos para tudo!
A outra dama recomendou:
— Cuidado! Não faleis demais!
Griselda aceitou os braços que lhe ofereciam, mas caminhou com firmeza. Algo de estranho fazia-lhe bater mais forte o coração. Uma das damas censurou:
— Senhora, caminhais com tanta energia que vais cansar-te!
Ela ainda encontrou forças para sorrir e dizer:
— Vou ao encontro do nosso rei!
O salão esplendidamente decorado estava cheio. No trono, o rei. Vaga, a cadeira da rainha. Quando Griselda entrou, toda a corte se manifestou com respeito e alegria. O rei veio buscá-la. Olhou-a nos olhos profundamente. Beijou-lhe uma das mãos e disse alto:
— Senhoras e senhores! Eis a vossa rainha, a quem fiz passar pelas mais duras provas! Em público quero pedir-lhe perdão pelo que a fiz sofrer e regozijar-me pelo grande testemunho de amor que me deu a mulher que eu amo e que escolhi para minha esposa!
Não disse mais o rei. Griselda desmaiara de comoção!
Foi um burburinho. Vieram físicos para a reanimarem. Lentamente, a rainha voltou a si. Abriu os olhos. Viu o seu senhor, as damas da corte, os conselheiros do rei, mas os seus olhos procuravam mais. Algo mais que ali não via. E aos seus lábios subiam perguntas ansiosas, mas que não queria formular, não fossem elas desgostar o rei. Por fim, foi o próprio monarca quem falou.
— Griselda, sei o que procuras! Sei o que busca o teu olhar ansioso. Já mandei buscar o nosso filho! Ele vive! Vive, e é lindo e bom como tu!
Griselda fechou os olhos. Lágrimas límpidas correram pelo seu rosto emagrecido. Apertou a mão do esposo e murmurou:
— Senhor, mostra-me o meu filho!... Depois... poderei morrer!
O rei ciciou:
— Não morrerás! Os físicos vão curar-te! Quero-te a meu lado por muitos anos! E quero dar-te em alegrias o que te dei em sofrimento!
Uma aia entrou no aposento onde estava a rainha. Trazia ao colo um lindo menino. Griselda abriu os olhos, estendeu os braços e murmurou:
— Meu adorado filho!
Os braços descaíram de novo. A cabeça descaiu também. Desmaiara uma vez mais. Aflitos, os físicos acorreram. O rei perguntou:
— É grave o que tem a rainha?
Um dos físicos olhou o rei.
— Senhor, não sei se poderá resistir. Foste grande, tanto no tirar como no dar!
O rei abriu os olhos num espanto.
— Não quero que ela morra! Eu amo-a, podem crer!
Fez-se silêncio a seu lado. Mas, lá fora, o vento veio bater ao de leve na janela da câmara de Griselda, como um convite a segui-lo na liberdade do espaço...
Gentil Marques
Faro