17/04/2008

A Velha Mansão

AQUELA velha mansão! Tinha perto de trezentos anos, como se podia ver por uma inscrição gravada numa viga, no meio de uma guirlanda de tulipas. Sob a porta podiam-se ler versos escritos na ortografia antiga, e sob cada janela estavam esculpidas figuras que faziam caretas engraçadas.
A casa tinha dois andares e no teto havia uma goteira terminada por uma cabeça de dragão. A chuva devia escoar-se na rua por essa cabeça; mas ela se escoava pelo ventre, pois a goteira tinha um buraco no meio.
Todas as outras mansões daquela rua eram novas e próprias, ornadas de grandes azulejos e muros brancos. Pareciam desdenhar a sua velha vizinha.
“Quanto tempo ainda este barraco vai ficar aqui?”, pensavam elas; “tira-nos toda a vista de um lado. Sua escadaria é larga como a de um castelo e alta como a da torre de uma igreja. A grande porta de ferro maciço parece a de uma antiga sepultura, com seus botões de couro. Que coisa! Imaginem só!”
Numa dessas lindas mansões, na frente da velha, estava na janela um menino de rosto alegre, faces coradas e olhos brilhantes.
Gostava muito da velha mansão, tanto à luz do sol como ao clarão da lua. Ele se divertia em copiar as cabeças que faziam caretas, os ornamentos que representavam soldados armados e as goteiras que se pareciam com dragões e serpentes.
A velha mansão era habitada por um homem idoso que usava calções curtos, um casaco com botões de couro e uma imponente peruca.
Nunca se via ninguém, excepto um velho doméstico, o qual, todas as manhãs, vinha arrumar seu quarto e fazer compras. Algumas vezes olhava para a janela e então o menino o cumprimentava amistosamente; nosso homem respondia e assim eles se tornaram amigos sem nunca se terem falado.
Os pais do menino diziam sempre: “Esse velhote daí em frente parece estar à vontade; mas é uma pena que viva tão só”.
Eis por que o menino, num domingo, depois de ter embrulhado algo num pedaço de papel, foi para a rua e disse ao velho doméstico: “Ouça, se você quisesse levar isto ao velho senhor lá em frente, me daria um grande prazer. Tenho dois soldados de chumbo, e dou-lhe um, para que ele não se sinta tão só’.
O velho doméstico executou o encargo com alegria e levou o soldado de chumbo para a velha mansão. Mais tarde, o menino, convidado a visitar o ancião, correu para lá com a permissão de seus pais.
No interior a maior arrumação reinava por todos os lados; o corredor estava ornado de antigos retratos de cavaleiros em suas armaduras e de senhoras com vestido de seda. No fundo desse corredor havia uma grande varanda, pouco sólida, era verdade, mas toda guarnecida de folhagens e de velhos vasos de flores que tinham por alças orelhas de asno.
A seguir o menino chegou ao aposento onde estava sentado o ancião. – Obrigado pelo soldado de chumbo, meu amiguinho – disse este último. Obrigado pela sua visita!.
– Disseram-me, – replicou o menino –, que você estava sempre sozinho; eis por que enviei-lhe um de meus soldados de chumbo para fazer-lhe companhia.
– Oh! – replicou o velho sorrindo –, nunca estou totalmente sozinho; muitas vezes velhos pensamentos vêm me visitar e agora você vem também; não posso queixar-me..
A seguir ele apanhou numa estante um livro de figuras onde se viam procissões magníficas, carruagens estranhas, como não existem mais e soldados levando o uniforme de valete-de-paus.
Viam-se ainda as suas corporações com todas as suas bandeiras: a dos alfaiates levava dois pássaros sustidos por dois leões; a dos sapateiros estava ornada com uma águia, sem sapatos, é verdade, mas de duas cabeças. Os sapateiros gostam de ter tudo em dobro, a fim de formarem um par.
E, enquanto o menino olhava as figuras, o ancião ia até o aposento vizinho procurar doces, frutas, biscoitos e avelãs. Na verdade a velha mansão não era desprovida de conforto.
“Nunca poderia suportar essa existência, dizia o soldado de chumbo, colocado sobre um cofre. “Como tudo aqui é triste! Que solidão! Que infelicidade encontrar-se em semelhante situação, para quem está acostumado à vida de família! O dia não acaba nunca. Que diferença da sala onde seu pai e sua mãe conversavam alegremente e você e seus irmãos brincavam! Este ancião, na sua solidão, jamais recebe carícias; não rir e sem dúvida passa o Natal sem a sua árvore. Esta habitação se parece com uma tumba; eu nunca suportaria uma tal existência”
“Não se lamente tanto – respondia o menino – pois eu gosto daqui: e depois você sabe que ele recebe sempre a visita de seus velhos pensamentos”.
“É possível, mas eu nunca os veio; nem os conheço. jamais poderia ficar aqui!”
“No entanto, é preciso ficar.”
O velho voltou com um rosto sorridente, trazendo os doces, as frutas e as avelãs e o menino não pensou mais no soldadinho de chumbo.
Após ter-se regalado, voltou contente e feliz para a sua casa; e não deixava de fazer um sinal amistoso ao seu velho amigo, de cada vez que o percebia na janela.
Algum tempo depois, ele fez uma segunda visita à velha mansão.
“Não posso mais!” disse o soldadinho de chumbo; “aqui é muito triste. Tenho chorado chumbo derretido! Gostaria mais de ir para a guerra, arriscando-me a perder pernas e braços. Pelo menos seria uma mudança. Não agüento mais! Agora já sei o que é a visita dos velhos pensamentos; os meus vieram me visitar, mas sem dar-me o menor prazer. Eu os via na casa em frente, como se estivessem aqui. Assisti à prece matutina, às suas lições de música e me achava no meio de todos os outros brinquedos. Ai de mim! Não passavam de velhos pensamentos. Diga-me como se comporta a sua irmã, a pequena Maria. Dê-me notícias também do meu camarada, o outro soldado de chumbo; ele tem mais sorte do que eu. Não posso mais, não posso mais”.
“Você não mais me pertence – respondeu o menino – e eu não tomarei aquilo que dei de presente. Entregue-se à sua sorte”.
O ancião trouxe para o menino umas figuras e um jogo de antigas cartas, enormes e douradas, para diverti-lo.
A seguir abriu o seu clavicórdio, tocou um minueto e cantarolou uma velha canção.
“À guerra! à guerra!”, gritou o soldado de chumbo. E atirou-se ao chão.
O ancião e o menino quiseram levantá-lo, mas procuraram por todos os lados sem conseguir encontrá-lo.
O soldado de chumbo caíra numa fenda.
Um mês mais tarde era inverno e o menino soprava as vidraças a fim de fundir o gelo e limpar o vidro. Dessa maneira ele poderia fitar a velha mansão da frente. A neve cobria completamente a escadaria, todas as inscrições e todas as esculturas. Não se via ninguém, e, realmente, não havia ninguém; o ancião tinha morrido.
Na mesma noite um carro parava na frente da porta para receber o corpo que devia ser enterrado no campo.
Ninguém seguia esse carro; todos os amigos do ancião também estavam mortos. Somente o menino enviou um beijo com a ponta dos dedos para o caixão que partia.
Alguns dias mais tarde, a velha mansão foi posta à venda, e o menino, da sua janela, viu levarem os retratos dos velhos cavaleiros e das castelãs, os vasos de plantas de orelhas de asno, os móveis de carvalho e o velho clavicórdio.
Ao chegar a primavera a velha mansão foi demolida.
“Não passa de um barraco!”, repetia todo mundo, e em algumas horas, não se via mais do que um monte de escombros.
“Até que enfim!”, disseram as casas vizinhas se pavoneando.
Alguns anos mais tarde, no local da velha mansão se erguia uma casa nova e magnífica, com um pequeno jardim rodeado de uma grade de ferro; era habitada por um de nossos antigos conhecidos, o menino amigo do ancião. O menino crescera, casara-se; e, no jardim, ele olhava para sua esposa que plantava uma flor.
De repente ela retirou a mão dando um grito; algo pontudo ferira seu dedo.
Que acham que era? Nada mais do que o soldadinho de chumbo, o mesmo que o menino presenteara ao ancião. jogado para cá e para lá, ele terminara afundando na terra.
A jovem senhora limpou o soldado, primeiro com uma folha verde, depois com o seu lenço. E ele despertou de um longo sono.
“Deixe-me ver!”, disse seu marido sorrindo. “Oh! não, não é ele! Mas eu me lembro da estória de um outro soldado de chumbo que me pertenceu quando eu era criança”.
Então ele contou à esposa a estória da velha mansão, do ancião e do soldado de chumbo que ele dera a este último para fazer-lhe companhia.
Ao ouvi-lo, seus olhos se encheram de lágrimas.
“Quem sabe não se trata do mesmo soldado?”, disse ela. “De qualquer forma vou guardá-lo. Mas você poderia mostrar-me o túmulo do ancião?”
“Não’ – respondeu o marido – “não sei onde está e ninguém sabe também. Todos os seus amigos morreram antes dele, ninguém o acompanhou até a última morada e eu não passava de uma criança.
– Que coisa triste é a solidão!
“Coisa pavorosa, realmente” pensou o soldadinho de chumbo. “Em todo caso, é melhor ficar só do que ser esquecido”.


Hans Christian Andersen