Na história intitulada Ala Eddim Abu- Chamat, deixamos Abu-Chamat superintendente do palácio de Harun Ar-Rachid, rico e coberto de honrarias, vivendo feliz com suas duas mulheres, Zubaida e Yasmina. Ora, quando, por convite do califa, Abu-Chamat tinha ido ao mercado de escravos com o vizir Jafar escolher sua segunda esposa, Yasmina, teve que vencer a concorrência contra o uáli da cidade, o emir Khaled, que queria comprar uma escrava para seu filho Bazaza. Esse filho, que acabara de chegar à puberdade, era tão feio que sua vista bastava para fazer uma mulher grávida abortar. Era estrábico, e tinha a boca tão grande quanto a vagina de uma vaca. Seu pai ó levara com ele ao mercado para que escolhesse ele mesmo sua companheira. O destino, que repousa entre as mãos de Alá, quis que os quatro interessados se encontrassem diante do mesmo leiloeiro. As moças oferecidas à venda eram de diversas cores, brancas, morenas, pretas, e de diversas raças, gregas, chinesas, abissínias, persas. Por uma coincidência curiosa, Abu-Chamat e Bazaza escolheram a mesma candidata e insistiram nela; e quando Abu-Chamat ganhou a concorrência, Bazaza entrou em desespero, recusou qualquer outra candidata e, de volta para casa, absteve-se de comer e beber. Recolheu-se a sua cama, dizendo que queria morrer. Sua mãe concebeu um ódio mortal contra Abu-Chamat e, para vingar-se dele, recorreu a uma mulher cujo filho era um ladrão famoso, chamado Ahmed Danaf. Esse Ahmed Danaf era tão hábil que conseguia roubar uma porta na presença do porteiro e fazê-la desaparecer tão sutilmente como se a tivesse engolido.Podia tirar o kohl dos olhos de uma mulher enquanto ela elogiava-lhe a honestidade. Meu filho está na cadeia com as mãos atadas, informou a mãe de Ahmed Danaf à mãe de Bazaza. Mas, se conseguires retirá-lo de lá, será com certeza a única pessoa capaz de servir-te neste assunto. A mãe de Bazaza recorreu ao marido, e este foi à cadeia onde
Ahmed Danaf estava preso e perguntou-lhe: "Ó Ahmed, tu te arrependes de teus crimes?" "Arrependo-me deles amargamente", respondeu o criminoso.
O uáli levou-o então à presença do califa, solicitando clemência ara ele. Surpreso de ver Ahmed Danaf ainda vivo, o califa gritou: "Ainda não morreste, ó ladrão Respondeu Ahmed: "Por Alá, ó Príncipe dos Crentes, nós os malandros custamos a morrer." O califa gostou da piada e mandou vir um ferreiro para remover as cadeias do prisioneiro. Depois, disse-lhe: "Conheço tuas façanhas e, como desejo manter-te no caminho da retidão, designo-te chefe da polícia, já que ninguém conhece melhor que tu os ladrões de Bagdá." Ahmed Danaf beijou a terra entre as mãos do califa e prometeu comportar-se com a máxima retidão. Depois, foi à taverna de Ibrahim celebrar seu novo título. Sua mãe encontrou-o lá, explicou-lhe a quem devia a sua libertação e acrescentou: "Deves, em retribuição, idealizar um meio de roubar a escrava
de Abu-Chamat." Ahmed assegurou-lhe que a coisa era simples e seria feita naquele mesmo dia. Ora, aquela era a primeira noite do mês, que o califa costumava passar com sua mulher predileta Zubaida. Antes de penetrar nos seus aposentos, sempre deixava sobre uma mesa no vestíbulo seu rosário de âmbar e turquesa, o sabre com punho de jade, incrustado de rubis, o lacre real e uma pequena lâmpada de ouro. Ahmed Danaf sabia desses detalhes. Esperou até que os escravos fossem dormir, escalou a parede do pavilhão da rainha e entrou no vestíbulo tão silenciosamente quanto uma sombra, levou os objetos e desceu com igual leveza. Correu até a casa de Abu-Chamat, entrou no pátio, levantou uma das placas de mármore que formavam o pavimento e escondeu lá três dos quatros objetos roubados, ficando com a lâmpada de ouro a título de recompensa. Removeu todo e qualquer vestígio de sua visita e voltou à taverna de Ibrahim para continuar a celebração. Ilimitada foi a cólera do califa quando não encontrou pela manhã nenhum de seus objetos pessoais. Chamou o chefe da polícia e disse-Ihe: "Se estes objetos que me são mais caros que todo o meu reino não forem recuperados até o fim do dia, tua cabeça e a de teu protetor o uáli irão enfeitar as paredes de meu palácio." Ahmed respondeu: "Comandante dos Fiéis, o ladrão será descoberto. Só preciso de um firma que me permita penetrar nas casas de todas as pessoas que têm função no palácio, inclusive o cádi, o vizir, Abu-Chamat e todos os outros." O califa deu-lhe o firma, dizendo: "Juro pela sepultura de meus antepassados que mandarei o autor dessa ignomínia à forca, fosse meu próprio filho." Munido da autorização, Ahmed levou dois dos guardas do cádi e dois dos guardas do uáli e foi fazer investigações. Visitou as casas de Jafar, do uáli, do cádi e finalmente a de Abu-Chamat. Chegando lá, disse a Abu-Chamat: "Não procurarei aqui nem em sonho pelos objetos roubados, sabendo que és o confidente favorito e fiel do califa. Basta que assines este papel e já me retirarei.” -Ao contrário, protestou Abu-Chamat, exijo que faças tuas investigações aqui como nos outros lugares. Resmungando que era apenas formalidade, Ahmed Danaf saiu negligentemente para o pátio e começou a bater nas placas de mármore com sua vara de latão. Quando bateu na placa que
conhecemos, ouviu-se um som diferente, e Ahmed exclamou: "Por Alá, deve haver alguma velha galeria por aqui. Não me surpreenderia descobrir nela algum tesouro antigo." Abu-Chamat disse aos guardas: "Levantai a placa." Levantaram a placa e lá estavam o rosário, a espada e o selo do califa. "Por Alá!" gritou Abu-Chamat e desmaiou, enquanto Ahmed mandava vir o uáli, o cádi e testemunhas - os quais redigiram e assinaram um relatório sobre o acontecido. Quando o califa foi informado da traição de seu melhor amigo, estabelecida por provas irrefutáveis, permaneceu taciturno e sombrio durante uma hora;
depois, disse: "Que seja enforcado." O capitão dos guardas foi então à casa de Abu-Chamat e confiscou seus bens e suas duas mulheres. O pai de Bazaza apoderou-se de Yasmina para seu filho, como era seu direito; e o capitão deu asilo a Zubaida pra protegê-la. Pois esse capitão gostava de Abu-Chamat como de um filho, e não acreditou em sua culpa. "Um dia, pensou, esse mistério será desvendado. Até lá, tenho que salvar a vida de meu amigo." Foi à cadeia, escolheu um condenado parecido com AbuChamat, tirou secretamente Abu-Chamat de sua cela e, na hora do enforcamento, substituiu-o pelo outro condenado. Depois, conseguiu esconder Abu-Chamat num saco e levá-lo até seu país, o Egito, pensando que um dia
o verdadeiro criminoso seria desmascarado e Abu-Chamat voltaria para Bagdá. Já dissemos que a
segunda mulher de Abu-Chamat, Yasmina, fora tomada pelo emir Khaled para satisfazer a paixão que seu filho sentia por ela. Quando Bazaza viu-a, relinchou como um cavalo e quis trepar nela. Mas a linda moça, sentindo um nojo incontrolável pelo garoto meio idiota e meio disforme, tirou um punhal escondido na roupa e disse-lhe: "Não me toques, senão mato-te e me mato em seguida." A mãe de Bazaza acorreu cheia de raiva. "Como ousas resistir ao desejo de meu filho, insolente mercadoria?
-Ó gente sem lei, retrucou a moça. Como pode uma mulher pertencer a dois homens ao mesmo tempo? Como pode um cachorro pastar na reserva do leão? Para castigar tamanha insubordinação, a mulher do uáli vestiu a bela Yasmina de empregada doméstica e disse-lhe: "Teu trabalho será descascar cebolas, acender o fogo, espremer tomates e preparar massa. E morarás com os escravos." - Prefiro tudo isso a olhar para teu filho, redargüiu a moça. Bazaza estava ouvindo. Voltou para a cama e não se levantou
mais. Poucos meses depois, Yasmina deu à luz um lindo menino, que havia concebido na primeira noite que passara com AbuChamat. Chamou-o Aslan, e ele cresceu na casa do uáli como se fosse seu filho.
E os anos foram passando. Um dia, quando Aslan já era um belo e atlético adolescente o destino quis que ele e Ahmed Danaf se encontrassem perto da taverna de Ibrahim. Ahmed convidou o jovem para beber
com ele. Sentaram-se a conversar e beber. O chefe da polícia ficou bêbado. Tirou uma pequena lâmpada de ouro do bolso e acendeu-a para melhor distinguir uma moeda. Ao ver a lâmpada, Aslan gritou: "Que lâmpada linda! Nunca vi coisa igual. Por favor, faça-me presente dela." - Como posso dar-te uma coisa que custou tantas vidas? Meu caro garoto, esta lâmpada matou um certo egípcio chamado Abu-Chamat, que era uma personalidade importante no palácio real. Aslan perguntou-Ihe como isso acontecera. E Ahmed contou-lhe toda a história, gloriando-se, na sua embriaguez, de ter agido com tamanha engenhosi-
dade.De volta para casa, o garoto repetiu à mãe a história de Ahmed e ficou atônito quando, ao ouvir a história, a mãe desmaiou. Quando voltou a si, Yasmina apertou o filho contra o peito e disse-lhe: "Filho querido, Alá revelou finalmente a verdade. O emir Khaled é teu pai adotivo. Teu verdadeiro pai era meu marido Abu-Chamat, que foi condenado no lugar do ladrão. Procura já o capitão dos guardas, que era o melhor amigo de teu pai, e relata-lhe o que descobriste. E jura-lhe que queres vingar teu pai."
Quando o capitão dos guardas ouviu a história, regozijou-se excessivamente e disse a Aslan: "Confia em Alá: ele te vingará." Eram palavras proféticas. O dia seguinte era o dia em que o califa jogava pólo com um grupo de jovens de que Aslan fazia parte. Um dos jogadores lançou a bola na direção do califa com
tanta força que lhe teria estourado um dos olhos, não fosse a velocidade e destreza com que Aslan desviou-a a um metro da cabeça do califa. O califa sorriu para o jovem, dizendo: "Ó belo atirador, ó filho
de Khaled." Com isso, pôs fim ao jogo e mandou reunir os notáveis da corte e, chamando Aslan, disse-lhe: "Ó descendente valoroso do uáli de Bagdá, desejo que escolhas tua própria recompensa.O garoto beijou a terra entre as mãos do califa e respondeu: "Peço vingança, ó Comandante dos Fiéis. O sangue de meu pai clama debaixo da terra, e seu assassino continua vivo e impune." O califa estranhou essas palavras: "O que é isto que estás dizendo de teu pai? Teu pai está aqui ao meu lado com excelente
saúde, graças a Alá." - Ó Comandante dos Fiéis, o emir Khaled é o melhor pai adotivo que qualquer menino possa ter. Meu pai verdadeiro é Abu-Chamat, que era superintendente do palácio real. Os olhos do califa se escureceram: "Meu filho, não sabes que teu pai traiu seu sultão?" - Alá preserve a memória de meu pai de tal vergonha, exclamou Aslan. O traidor de Vossa Majestade encontra-se ao vosso lado esquerdo, ó Príncipe dos Crentes: é Ahmed Danaf. Mandai que Ihe façam uma busca, pois ele leva no bolso a prova de sua infâmia. O califa tornou-se tão amarelo quanto o açafrão e gritou, numa voz terrível, ao chefe da guarda: "Faze a busca na minha presença." A lâmpada de ouro do califa foi encontrada nos
bolsos de Ahmed. - Donde te veio esta lâmpada? gritou Harun Ar-Rachid. - Comprei-a, ó Comandante dos Fiéis. - De quem? Ahmed não soube responder. O califa mandou torturá-lo. E ele logo confessou toda a verdade. Foi enforcado na hora. Quando tinha sido feita justiça, o califa pediu novamente a
Aslan para escolher a própria recompensa. Aslan disse: "Ó Príncipe dos Crentes, peço-vos que me devolvais meu pai." Harun Ar-Rachid chorou: "Meu filho, como posso devolver alguém que já está na eternidade?" A essas palavras, o capitão da guarda adiantou-se e disse: "Ó Comandante dos Fiéis, concedei-me segurança para que fale." - Fala. - Trago-vos boas notícias, ó Comandante dos Fiéis. Abu-
Chamat, vosso fiel amigo e servidor, está vivo. E ele contou como lhe havia salvo a vida, certo como estava de que sua inocência seria comprovada um dia. Harun ArRachid ficou radiante porque nunca deixara de pensar em Abu-Chamat e de amá-lo. Gritou: "Vai logo buscá-lo onde estiver e traze-o à minha presença." O califa recebeu Abu-Chamat com grande emoção e festejou esplendidamente o seu regresso.
Abu-Chamat agradeceu a Alá seus favores e regozijou-se por ter um filho tão bonito. Viveu em Bagdá muitos anos com três esposas: Zubaida, Yasmina e a princesa Miriam que conhecera no exílio.