02/08/2008

As rãs pedindo rei


Viviam certas rãs num charco imundo
Em república plena. Era um pagode!
Tal qual uns democratas, que há no mundo,
Julgando que a república, no fundo,
Outra coisa não é senão a gente
Fazer o que bem quer e quanto pode,
A rã tripudiava impunemente.
Todos os dias era certo o choque
Entre o batráquio forte, intransigente,
E parte da nação, já descontente.

Largou-lhe lá do céu um rei pacato,
De suma gravidade,
Das alturas tombando, o rei na queda
Fez tal espalhafato,
Que as fêmeas em pavor, os machos fulos,
Aquelas saltitando, estes aos pulos,
Como é uso das rãs nas grandes crises,
Cada qual a gritar: arreda!, arreda!
Entre os juncais, no lodo, nas raízes
Dos salgueiros se enreda.

Por longo tempo em seus esconderijos
Das rãs esteve homiziado o povo,
Transformaram-se em medo os regozijos
Da antiga bacanal. Gigante novo
Cuidavam ser o rei que o céu lhes dera.
Não ousavam sequer sair da toca:
Pois, não raro, os instintos maus de fera
Por imprudente a presa é que os provoca.
Já nessas muito a pêlo vinha
Dizer: Cautela e caldo de galinha...

O rei era um pedaço de madeira.
Nem mais, nem menos. — Numa bela tarde
Uma das rãs, por ser menos covarde
Ou mais bisbilhoteira,
Tirou-se de cuidados, manso e manso
Na flor das águas surge, e, às guinadinhas,
Com muito tento e jeito,
Do cepo se aproxima.
Após ela vem outra... e outra... aos centos!
Vendo que o rei não sai do seu ripanço,
Rodeiam-no; coaxam: Salta acima...
E coaxado e feito!...

O rei, temido outrora, às picuinhas
Dessa chusma vilã se vê sujeito.
Em rápido momento
Sobre ele a malta audaz se encarapita,
E faz do bom monarca um bom assento.
Nem chus nem bus! Galado que nem porta,
Qual fora noutros tempos!...

Isto irrita.
Rompem as rãs então numa algazarra
Que o pântano atordoa,
Os fios d'alma a quem as ouve corta:
"Leva daqui, ó Jove, esta almanjarra
Que nem mexe, nem pune, nem perdoa,
E mais parece uma alimária morta.
Cabide duma croa.
Em vez de nosso rei — nossa vergonha!"

Vai Júpiter que faz? Uma cegonha
Das muitas que possui logo destaca,
E manda que das rãs ponha e disponha,
Numa das mãos o queijo e noutra a faca.
Ora a cegonha, apenas em seu trono
Dona das rãs se vê e sem ter dono,
Diz consigo:
"Nasci dentro de um fole!
Quem tira agora o papo da miséria
Sempre sou eu!..."
Passeia toda séria,
Perna aqui... perna além, num andar mole
E quanta rã apanha quanta engole.
Geral consternação o charco enluta,
Renovam-se as lamúrias:
Que o rei é doido e tem às vezes fúrias;
Que, doido ou não, o povo trata à bruta;
Doutro rei que as não coma mais depressa
Por fim, que faça o deus formal promessa!
Mas Júpiter tonante
Destarte lhes responde:

"Inútil prece!
Dei-vos um rei tranqüilo, inofensivo,
Que nem sempre se tem, nem se merece:
Um rei, que era um regalo!
Foi vê-lo e pô-lo pela barra fora!
Dei-vos segundo: um gênio um pouco vivo...
Meninas, agüentá-lo!
Era bom o primeiro e foi-se embora.
É mau este de agora.
Contentai-vos com ele, ó meus indezes,
Que venha quem vier... pior mil vezes!"

Francisco Palha (Trad.)