NINGUÉM no mundo é capaz de contar tantas e tão bonitas estórias como Olé Lukoie. Quantas estórias ele sabe! Quando anoitece e as crianças estão em volta da mesa, comportando-se da melhor maneira possível, sentadas em suas cadeiras, Olé Lukoie entra cautelosamente.
Sobe as escadas descalço, tão silenciosamente e abrindo a porta com tanto cuidado, que ninguém pode ouvi-lo.
Imediatamente, puff! joga um punhado de pó muito branco e muito fino nos olhos das crianças, que já não conseguem tê-los muito abertos, devido ao sono que está chegando e por isso não o vêem.
Vai até as suas costas e sopra em seus pescoços de tal forma, que as cabecinhas vão ficando pesadas, como se fossem de chumbo; mas nunca lhes causa o menor dano, já que age dessa maneira por gostar muito de crianças. Só deseja que fiquem quietinhas, para que possa deitá-las, e quando já estão em suas caminhas, conta-lhes as suas estórias.
Enquanto as crianças estão adormecendo, Olé Lukoie se senta na cama. Vai muito bem vestido; sua roupa é de seda, mas seria impossível saber de que cor é, porque de cada vez que se volta ela brilha com reflexos veres, vermelhos e azuis.
Debaixo de cada braço leva um guarda-chuva, um com desenhos no pano, que estende sobre os meninos bondosos, para que sonhem com as estórias mais lindas durante a noite.
O outro guarda-chuva não tem desenhos e ele o abre sobre os meninos que foram maus; assim eles dormem sem sonhar durante toda a noite.
Vou falar-lhes sobre um menino em casa de quem Olé Lukoie apareceu durante uma semana inteira. Chamava-se Marcelo.
E aqui lhes conto sete estórias, porque, como todos sabem, a semana tem sete dias.
SEGUNDA-FEIRA
– Agora espere – disse Olé Lukoie à noite, depois que Marcelo se deitara. – Primeiramente vou arrumar umas coisas.
De repente, todas as plantas que havia nos vasos se transformaram em árvores enormes, cujos ramos chegavam até o teto e ao longo das paredes, de modo que o quarto ficou parecendo uma deliciosa praça.
Os ramos estavam cobertos de flores e estas eram mais lindas do que as rosas; exalavam um perfume delicioso e se alguém tentasse comê-las, veria que sabiam muito melhor que o doce mais estranho. Os frutos brilhavam como ouro e havia bolos recheados de ameixas. Uma maravilha!
Subitamente, ouviram-se tristes queixumes vindos da gaveta da mesa, onde estavam guardados os livros escolares de Marcelo.
– Que é isso? – perguntou Olé Lukoie, indo abrir a gaveta.
Era a estória que se queixava e se retorcia, porque havia uma conta errada na soma escrita sobre ela e estava a ponto de quebrar-se em mil pedaços.
O lápis saltava e patinhava preso por um fio de barbante, esforçando-se por consertar a soma, mas não conseguia.
Também o caderno de escrita de Marcelo queixava-se tristemente; em cada uma de suas páginas havia uma fila de letras maiúsculas manuscritas, com a sua correspondente minúscula ao lado.
Em baixo delas, havia outras letras que davam a ilusão de se parecerem com as primeiras. Eram as que Marcelo escrevera. Pareciam ter caído e não poderem ficar em pé.
– Vejam bem como devem ficar – diziam as letras da primeira linha. – Assim... um pouco inclinadas e com um elegante traço para fora.
– Bem que gostaríamos – diziam as letras de Marcelo, – mas não podemos. Fizeram-nos tão torcidas!
– Nesse caso, tomarão uma dose de remédio – disse Olé Lukoie.
– Oh, não! – exclamaram elas, fazendo esforços para se endireitarem da melhor maneira possível.
– Bem, agora já não podemos contar mais nenhuma estória – disse Olé Lukoie. – É preciso que essas letras façam algum exercício. Um, dois! Um, dois!
E assim fez as letras trabalharem, e elas se mantinham tão retas, que os modelos da primeira linha não podiam resistir-lhes. Porém, quando Olé Lukoie foi embora e Marcelo despertou pela manhã, observou que elas estavam tão torcidas quanto antes.
TERÇA-FEIRA
Assim que Marcelo foi para a cama, Olé Lukoie tocou os móveis com a sua varinha de madeira e todos começaram a falar. Falavam de si mesmos, pois não tinham outro assunto.
Havia um quadro com moldura dourada, que estava colocado sobre a cómoda; representava uma paisagem, na qual se viam velhas e grandes árvores, flores na grama e uma grande extensão de água, assim como um rio que nascia nela e se ocultava atrás do bosque, passando na frente de muitos castelos antes de desembocar no mar.
Olé Lukoie, tocou o quadro com sua varinha e os pássaros do quadro começaram a cantar. Os ramos das árvores se agitaram e as nuvens atravessaram lentamente o céu. E viam-se também suas sombras projectadas no chão.
Então Olé Lukoie levantou Marcelo até a altura da moldura e o menino enfiou a perna direita no quadro, pousando o pé na grama e ali ficou.
O sol brilhava sobre ele, passando pelos ramos das árvores.
Marcelo se aproximou da água e embarcou num bote pequeno que estava ancorado. Fora pintado de branco e vermelho e suas velas brilhavam como se fossem de prata.
Seis cisnes, todos com coroas de ouro em volta do pescoço e uma estrela de brilhantes na cabeça, levaram o barco para mais longe, no fundo do bosque, onde as árvores contavam estórias de bruxas e ladrões; as flores contavam outros contos sobre os pequenos e lindos elfos, que por sua vez lhe tinham contado as mariposas.
Peixes formosos com escamas de ouro e prata nadavam seguindo o barco; de vez em quando saltavam para fora da água e ruidosamente voltavam a cair nela.
Pássaros vermelhos e azuis, grandes e pequenos, voavam, formando duas filas atrás do pequeno barco; zumbiam os mosquitos e os besouros voavam com grande ruído. Todos queriam acompanhar Marcelo e cada um deles tinha uma estória para contar.
Foi um passeio muito agradável. Às vezes ele passava na frente de bosques espessos e escuros ou avistava jardins cheios de sol e flores; e dentro deles havia castelos de cristal e mármore.
Algumas princesas apareciam nas janelas e acontecia que todas eram meninas e conhecidas de Marcelo, meninas com quem ele costumava brincar.
Estendiam as mãos e todas tinham na mão direita um veadinho de açúcar, o mais lindo com que se podia sonhar.
Marcelo apanhava, ao passar, um pedaço do veadinho de açúcar e a princesa o segurava pelo outro lado, de modo que cada um ficava com a sua parte, sendo que a maior correspondia a Marcelo.
Na frente de cada castelo montavam guarda pequenos príncipes, que cumprimentavam com suas espadas de ouro e lhe atiravam ameixas confeitadas e soldadinhos de chumbo. Não se podia duvidar de que fossem verdadeiros príncipes.
Continuando com o passeio, atravessava às vezes um bosque, outras vezes um prado, outras vezes várias salas ou um povoado; passou por um onde vivia sua ama, a que cuidava dele quando era muito pequenino e gostava dele ao extremo.
A boa mulher o saudou agitando a mão que levava uma cançãozinha de que era a autora e que enviou a Marcelo:
Com você sonho quase sempre,
Marcelo, meu menino querido.
Quantas vezes o acariciei,
Meu querido, amado menino!
Seus primeiros balbucios
Soaram junto ao meu ouvido.
Queira Deus que ainda se lembre
De meus braços que eram seu ninho!
Os pássaros cantavam também, as flores dançavam nos caules e as velhas árvores se inclinavam, do mesmo modo como se o velho Olé Lukoie lhes contasse algumas estórias.
QUARTA-FEIRA
Como chovia lá fora! Mesmo em sonhos Marcelo ouvia o barulho da chuva e quando Olé Lukoie abriu a janela, pôde ver que a água chegava até o parapeito.
Estava tudo convertido em um lago e a pouca distância da casa havia um barco.
– Você quer navegar comigo, pequeno Marcelo? – perguntou Olé Lukoie. – Se for do seu agrado, você poder á ir esta noite a longínquos países e voltar pela manhã.
Imediatamente Marcelo se viu trajado com a sua melhor roupa de domingo e a bordo do formoso barco; e navegando, eles percorreram várias ruas, passaram na frente da igreja, e, finalmente, chegaram ao alto-mar. E se afastaram tanto, que perderam a terra de vista.
Admiraram um bando de cegonhas que empreendiam a sua viagem para os países mais quentes. Voavam em fila, uma atrás da outra.
Percorreram uma grande distância. Uma das cegonhas estava tão cansada, que suas asas apenas a podiam levar um pouco mais longe; era a que fechava o cortejo.
E logo foi ficando para trás, até que caiu com as asas abertas; foi descendo, descendo, tentou voar novamente, até que se chocou contra as enxárcias do barco e deslizou ao longo de uma vela, até chegar ao convés.
Um grumete recolheu-a e colocou-a no galinheiro, em companhia das galinhas, dos patos e perus; a pobre cegonha ficou entre eles e, segundo tudo indicava, estava muito deprimida.
– Vejam que bicho esquisito! – exclamaram as galinhas.
O peru arrepiou as penas para adquirir um aspecto mais majestoso e perguntou-lhe quem era. E os patos retrocediam, ao mesmo tempo em que grasnavam: Quác, Quác!
Imediatamente a cegonha começou a falar-lhes sobre o sol da África, sobre as Pirâmides e sobre os avestruzes que corriam pelos areais como um cavalo selvagem; mas os patos não entenderam e, dando empurrões uns nos outros, disseram:
– Não acham que ela é mesmo uma tola?
– É mesmo, – respondeu o peru.
Então a cegonha silenciou, concentrando seus pensamentos na sua amada África.
– Bonitas pernas você tem! – exclamou o peru. – A quanto vende o metro?
– Quác, quác, quác! – exclamaram os patos a rir.
Mas a cegonha parecia não escutar.
– Você tem a minha permissão para rir disse o peru. – Foi uma observação muito engraçada, embora um tanto elevada para você. Não possui grandes qualidades – acrescentou, dirigindo-se aos outros, – mas servirá para nos divertir.
Então as galinhas começaram a cacarejar e os patos a grasnar. E não há dúvida de que se divertiam bastante.
Marcelo foi até o galinheiro, abriu a porta e chamou a cegonha. Esta saiu com um pulo do galinheiro e se aproximou do menino. já descansara, e, ao chegar junto dele, inclinou a cabeça para Marcelo, a fim de agradecer-lhe.
A seguir abriu suas asas e alçou o seu voo para os países cálidos. E as galinhas cacarejaram, os patos grasnaram e a crista do peru ficou vermelha como brasa.
– Amanhã faremos uma sopa de você! – disse Marcelo – Então acordou e se viu estendido em sua própria cama.
Na verdade, Olé Lukoie o levara para uma viagem extraordinária.
QUINTA-FEIRA
– Vou dizer-lhe uma coisa – avisou Olé Lukoie. – Não se assuste e eu lhe mostrarei um ratinho. – Realmente, abriu a mão e na palma da mesma apareceu um rato pequeno. – Ele veio convidá-lo para um casamento. Esta noite dois ratos vão se casar. Vivem embaixo do solo da despensa de sua mamãe e dizem que é uma residência deliciosa.
– Mas como poderei entrar pelo buraco do chão que dá para a cova dos ratos? – perguntou Marcelo.
– Deixe isso por minha conta – respondeu Olé Lukoie. – Vou fazê-lo ficar bem pequenino.
Tocou em Marcelo com a sua varinha mágica e o menino foi diminuindo de tamanho até ficar do tamanho do dedo mínimo.
– Agora é melhor que peça emprestado o uniforme do soldadinho de chumbo. Creio que lhe assentará muito bem e você sabe que quando se vai fazer uma visita, deve-se estar vestido de uniforme. Isso é muito elegante além de ser necessário.
– Tem razão – replicou Marcelo, que dali a pouco estava trajado como o mais elegante soldadinho de chumbo.
– Agora faça o favor de entrar no dedal de sua mamãe – disse o rato – e eu terei a honra de arrastá-lo.
– Por que vai ter esse trabalho? – perguntou Marcelo com muita galanteria.
Mas o rato insistiu e daí a pouco eles se dirigiam para a casa dos ratos, a fim de assistirem à cerimonia.
Primeiramente penetraram num local que estava debaixo do solo, seguiram por um comprido corredor, cuja altura era apenas suficiente para dar-lhes passagem.
O corredor estava muito bem iluminado com iscas.
– Reparou com o ambiente está perfumado? – perguntou o rato que o arrastava, – O assoalho todo foi untado com toucinho. Não se podia imaginar nada melhor.
Chegaram à sala nupcial, onde todas as senhoritas ratazanas se encontravam à direita, falando em voz baixa ou rindo, como se estivessem se divertindo uma à custa da outra.
A esquerda estavam todos os cavalheiros, que, com as patas dianteiras, alisavam os bigodes. Os noivos ocupavam o centro da sala, num pedaço de queijo, beijando-se com a maior energia na frente dos convidados, porém, como iam casar-se, ninguém dava grande importância ao assunto.
Entraram novas visitas, de maneira que os ratos estavam de tal modo comprimidos um contra o outro, que, afinal, o casal de noivos foi para junto da porta, a fim de que mais ninguém pudesse sair ou entrar.
A sala, assim como o corredor, estava toda untada de toucinho; não havia refrigerantes, porém, como sobremesa apanharam uma folha de ervilha, na qual a família gravou com dentadas o nome dos noivos, isto é, as iniciais de cada um, o que já era uma coisa bem extraordinária.
Todos os ratos disseram ter sido um casamento magnífico e a conversação sumamente agradável.
Então Marcelo regressou à sua casa; encontrara-se em meio a uma companhia distinta, mas, para chegar até lá, precisara ficar muito pequenino, o que lhe permitira vestir o uniforme do soldadinho de chumbo.
SEXTA-FEIRA
– É assombroso verificar quantas pessoas adultas quiseram apoderar-se de mim! – exclamou Olé Lukoie. – Especialmente aquelas que não possuem a consciência tranquila. “Bondoso e velho Olé”, me dizem. “Não podemos fechar os olhos e somos obrigados a passar a noite inteira com a lembrança de nossas más acções’. São semelhantes a Elfos malvados; chegam para perto de nossas camas, sentam-se nelas e jogam água quente em nossos olhos. Quer vir expulsá-los, para que possamos dormir?.
E suspiram profundamente. “Pagaremos muito bem, Olé, boa noite. Você encontrará o dinheiro no peitoril da janela”. – Mas eu não trabalho por dinheiro – exclamou Olé Lukoie.
– Que vamos fazer esta noite? – perguntou Marcelo.
– Não sei se gostaria de assistir a outro casamento, embora seja diferente do que você assistiu ontem. A boneca mais velha de sua irmã, aquela que está vestida de homem e que se chama Augusto, vai casar-se com Berta. Além disso, é seu aniversário, de forma que os presentes serão numerosos – Sim, já ouvi falar nisso. Quando as bonecas precisam de roupa nova, minha irmã diz que é seu aniversário ou que vão se casar. Isto já aconteceu centenas de vezes.
– Sim, mas esta noite é o casamento número cento e um e o centésimo e o primeiro são o fim de todas as coisas. Por esse motivo, a cerimonia será esplêndida. Veja!
Marcelo olhou para a mesa; ali estava a casinhola de papelão com luzes nas janelas e na parte externa, todos os soldadinhos de chumbo apresentavam armas.
Os noivos estavam sentados no chão, com as costas apoiadas no pé da mesa; pareciam muito pensativos e tinham razões de sobra para isso.
Olé Lukoie, vestido com a roupa preta da vovó, casou-os; uma vez terminada a cerimonia, todos os móveis do aposento entoaram a seguinte canção, que o lápis escrevera. A música era de uma outra canção muito popular. Dizia assim:
Como o vento oscilará nosso canto,
Até que os noivos morram de velhos.
Vão custar muito a morrer,
Pois seu corpo é de madeira.
Vivam os noivos! Vivam felizes por mil anos!
Logo chegaram os presentes, mas os noivos se recusaram a receber comestíveis. Para eles o amor era mais do que suficiente e não precisavam de nada mais.
– Iremos viajar pelo país ou pelo estrangeiro?
Consultaram a andorinha, que viajara muito e perguntaram também à velha galinha, que chegara a criar cinco ou seis ninhadas. A primeira contou-lhes tudo o que sabia sobre os países cálidos, onde cresciam as uvas e o ar era tão suave como o das montanhas, e igual não se podia ver em outra parte.
– Mas não possuem as nossas couves verdes – objectou a galinha. –Passei um verão no campo, junto com meus franguinhos. Havia um monte de terra que escarvávamos todos os dias e depois tivemos permissão para entrar numa horta, onde cresciam as couves. Que verdes eram! Não posso imaginar nada tão lindo!
– Mas uma couve se parece exactamente com outra qualquer – observou a andorinha – e, por outro lado, aqui faz muito mau tempo.
– Já estamos acostumados – replicou a galinha.
– Mas faz muito frio e neva.
– Isso é benéfico para as couves – exclamou a galinha; – além do mais, as vezes faz muito calor. Há quatro anos, durante cinco semanas, tivemos um verão com um calor tremendo, de tal modo que apenas podíamos respirar. Por outro lado, aqui não temos animais venenosos, que são próprios dos países estrangeiros e tampouco existem ladrões. Quem pensar que o nosso não seja o melhor país do mundo, não está bom da cabeça. E não merece viver aqui. – A galinha começou a chorar e, tentando acalmar-se um pouco, acrescentou: – Eu também viajei, por doze milhas, metida num barril e asseguro-lhes que as viagens não dão prazer algum.
– A galinha é uma mulher ajuizada – observou Berta, a noiva. – Também não gosto muito de viajar pelas montanhas, porque primeiro é preciso subir, para depois descer. Não, será melhor fazermos uma pequena excursão pelos arredores do monte de terra e depois visitarmos a horta das couves.
E assim terminou a discussão.
SÁBADO
– Esta noite não iremos a lugar algum? – perguntou Marcelo, quando Olé Lukoie o obrigou a meter-se na cama.
– Não temos tempo – respondeu Olé, enquanto abria seu guarda-chuva mais lindo. – Olhe para estes chineses. – O guarda-chuva inteiro tinha o aspecto de um conto chinês, rodeado de árvores azuis, muito grandes, pontes arqueadas e nelas umas tantas pessoas que inclinavam a cabeça. – Para amanhã todo mundo deve estar bem limpo – disse Olé. –Lembre-se de que é domingo. Subirei até o alto do igreja, a fim de ver se os anõezinhos encarregados da limpeza cuidaram bem dos sinos, a fim de que soem bem. Terei de ir aos campos, para verificar se os ventos varreram bem o pó da grama e das folhas. Mas o trabalho mais pesado é baixar as estrelas, para limpá-las; coloco-os em meu avental, mas é preciso numerá-las, para poder recolocá-las em seus devidos lugares, pois, do contrário, não poderia prendê-las correctamente e aí haveria muitas estrelas errantes, pois uma cairia atrás da outra.
– Ouça, Sr. Lukoie – disse um dos antigos retratos, que estavam pendurados na parede. – Sou o bisavô de Marcelo e estou muito agradecido ao senhor pelas estórias que conta, mas convém que não diga disparates. As estrelas são planetas como a nossa própria Terra, e portanto, não há mais o que dizer e chega de disparates.
– Muito obrigado, senhor bisavô – respondeu Olé Lukoie. – Aceite, pois, a minha maior gratidão; o senhor é o chefe da família, uma antigüidade, mas eu sou muito mais velho que o senhor. Sou um velho deus pagão; os gregos e os romanos me chamavam Morfeu, ou o deus dos sonhos. Tenho entrada nas melhores casas do mundo inteiro e tanto os grandes como os pequenos chamam por mim. E já que não está de acordo comigo, conte o senhor as estórias que quiser para o seu bisneto.
Dizendo isto, Olé Lukoie foi embora, carregando o guarda-chuva.
– Melhor seria que não tivesse dado a minha opinião! – exclamou o retrato antigo.
E depois acordou Marcelo.
DOMINGO
– Boa noite – disse Olé Lukoie.
Marcelo respondeu, inclinando a cabeça. Logo ficou em pé de um salto e voltou o rosto do bisavô para a parede, a fim de que não pudesse falar como na noite anterior.
– Agora seria bom que me contasse algumas estórias a respeito das Cinco ervilhas verdes que viviam em sua vagem. e também a do Galo que foi cumprimentar a senhora Galinha ou então a Agulha de cerzir que era tão fina que parecia ser uma agulha corrente.
– Nunca se deve abusar do que é bom – disse o velho Olé Lukoie. – Prefiro mostrar-lhe uma coisa que você já conhece. Vou levá-lo até meu irmão; também se chama Olé Lukoie, mas nunca faz mais do que uma visita.
E então o leva a visitá-lo, monta-o em seu cavalo e lhe conta uma estória. Só sabe duas; uma é tão linda que ninguém na Terra poderia imaginar algo parecido e a outra, horrível até mais não poder.
Então Olé levantou Marcelo até a janela e acrescentou:
– Veja meu irmão, o outro Olé Lukoie. Também é chamado pelo nome de Morte. Você pode ver que não tem um aspecto tão feio como às vezes é apresentado nos desenhos, nem formado de ossos e ligaduras. Não, em torno de seu casaco leva uma tira bordada de prata. Veste um belo uniforme de oficial russo e usa uma capa de veludo, a qual se estende pela garupa de seu cavalo. Veja como galopa.
Marcelo viu, realmente, como cavalgava o outro Olé Lukoie, levando velhos e moços, depois de montá-los na garupa de seu cavalo. Tinha um à sua frente e outros mais atrás, mas antes sempre lhes perguntava:
– Que nota você tem em seu boletim?
Todos respondiam que era boa, mas ele obrigava-os a mostrá-la. Os que tinham nota “Muito boa” ou ‘Excelente” ele montava na parte dianteira do cavalo e lhes contava aquela estória maravilhosa e bela, sobre toda a ponderação. Mas os que só tinham a nota “Regular” ou ‘Má”, eram obrigados a montar na garupa e ouvir a estória horrível. Estremeciam de medo, choravam e faziam esforços para apear, mas não podiam, porque estavam firmemente presos ao cavalo.
– Vejo que a Morte é formosa, Olé Lukoie, – disse Marcelo. – Não me dá medo algum.
– Você não tem que temer meu irmão – replicou Olé Lukoie, – contanto que sempre tenha nota boa em seu boletim.
– Acho isso ótimo - resmungou o retrato do bisavô. – Afinal, é sempre bom dar a minha opinião.
E sorriu muito contente.
E assim termina a estória de Olé Lukoie. É muito provável que esta noite ele mesmo possa contar-lhes muito mais a seu respeito. Esperem por ele.
Sobe as escadas descalço, tão silenciosamente e abrindo a porta com tanto cuidado, que ninguém pode ouvi-lo.
Imediatamente, puff! joga um punhado de pó muito branco e muito fino nos olhos das crianças, que já não conseguem tê-los muito abertos, devido ao sono que está chegando e por isso não o vêem.
Vai até as suas costas e sopra em seus pescoços de tal forma, que as cabecinhas vão ficando pesadas, como se fossem de chumbo; mas nunca lhes causa o menor dano, já que age dessa maneira por gostar muito de crianças. Só deseja que fiquem quietinhas, para que possa deitá-las, e quando já estão em suas caminhas, conta-lhes as suas estórias.
Enquanto as crianças estão adormecendo, Olé Lukoie se senta na cama. Vai muito bem vestido; sua roupa é de seda, mas seria impossível saber de que cor é, porque de cada vez que se volta ela brilha com reflexos veres, vermelhos e azuis.
Debaixo de cada braço leva um guarda-chuva, um com desenhos no pano, que estende sobre os meninos bondosos, para que sonhem com as estórias mais lindas durante a noite.
O outro guarda-chuva não tem desenhos e ele o abre sobre os meninos que foram maus; assim eles dormem sem sonhar durante toda a noite.
Vou falar-lhes sobre um menino em casa de quem Olé Lukoie apareceu durante uma semana inteira. Chamava-se Marcelo.
E aqui lhes conto sete estórias, porque, como todos sabem, a semana tem sete dias.
SEGUNDA-FEIRA
– Agora espere – disse Olé Lukoie à noite, depois que Marcelo se deitara. – Primeiramente vou arrumar umas coisas.
De repente, todas as plantas que havia nos vasos se transformaram em árvores enormes, cujos ramos chegavam até o teto e ao longo das paredes, de modo que o quarto ficou parecendo uma deliciosa praça.
Os ramos estavam cobertos de flores e estas eram mais lindas do que as rosas; exalavam um perfume delicioso e se alguém tentasse comê-las, veria que sabiam muito melhor que o doce mais estranho. Os frutos brilhavam como ouro e havia bolos recheados de ameixas. Uma maravilha!
Subitamente, ouviram-se tristes queixumes vindos da gaveta da mesa, onde estavam guardados os livros escolares de Marcelo.
– Que é isso? – perguntou Olé Lukoie, indo abrir a gaveta.
Era a estória que se queixava e se retorcia, porque havia uma conta errada na soma escrita sobre ela e estava a ponto de quebrar-se em mil pedaços.
O lápis saltava e patinhava preso por um fio de barbante, esforçando-se por consertar a soma, mas não conseguia.
Também o caderno de escrita de Marcelo queixava-se tristemente; em cada uma de suas páginas havia uma fila de letras maiúsculas manuscritas, com a sua correspondente minúscula ao lado.
Em baixo delas, havia outras letras que davam a ilusão de se parecerem com as primeiras. Eram as que Marcelo escrevera. Pareciam ter caído e não poderem ficar em pé.
– Vejam bem como devem ficar – diziam as letras da primeira linha. – Assim... um pouco inclinadas e com um elegante traço para fora.
– Bem que gostaríamos – diziam as letras de Marcelo, – mas não podemos. Fizeram-nos tão torcidas!
– Nesse caso, tomarão uma dose de remédio – disse Olé Lukoie.
– Oh, não! – exclamaram elas, fazendo esforços para se endireitarem da melhor maneira possível.
– Bem, agora já não podemos contar mais nenhuma estória – disse Olé Lukoie. – É preciso que essas letras façam algum exercício. Um, dois! Um, dois!
E assim fez as letras trabalharem, e elas se mantinham tão retas, que os modelos da primeira linha não podiam resistir-lhes. Porém, quando Olé Lukoie foi embora e Marcelo despertou pela manhã, observou que elas estavam tão torcidas quanto antes.
TERÇA-FEIRA
Assim que Marcelo foi para a cama, Olé Lukoie tocou os móveis com a sua varinha de madeira e todos começaram a falar. Falavam de si mesmos, pois não tinham outro assunto.
Havia um quadro com moldura dourada, que estava colocado sobre a cómoda; representava uma paisagem, na qual se viam velhas e grandes árvores, flores na grama e uma grande extensão de água, assim como um rio que nascia nela e se ocultava atrás do bosque, passando na frente de muitos castelos antes de desembocar no mar.
Olé Lukoie, tocou o quadro com sua varinha e os pássaros do quadro começaram a cantar. Os ramos das árvores se agitaram e as nuvens atravessaram lentamente o céu. E viam-se também suas sombras projectadas no chão.
Então Olé Lukoie levantou Marcelo até a altura da moldura e o menino enfiou a perna direita no quadro, pousando o pé na grama e ali ficou.
O sol brilhava sobre ele, passando pelos ramos das árvores.
Marcelo se aproximou da água e embarcou num bote pequeno que estava ancorado. Fora pintado de branco e vermelho e suas velas brilhavam como se fossem de prata.
Seis cisnes, todos com coroas de ouro em volta do pescoço e uma estrela de brilhantes na cabeça, levaram o barco para mais longe, no fundo do bosque, onde as árvores contavam estórias de bruxas e ladrões; as flores contavam outros contos sobre os pequenos e lindos elfos, que por sua vez lhe tinham contado as mariposas.
Peixes formosos com escamas de ouro e prata nadavam seguindo o barco; de vez em quando saltavam para fora da água e ruidosamente voltavam a cair nela.
Pássaros vermelhos e azuis, grandes e pequenos, voavam, formando duas filas atrás do pequeno barco; zumbiam os mosquitos e os besouros voavam com grande ruído. Todos queriam acompanhar Marcelo e cada um deles tinha uma estória para contar.
Foi um passeio muito agradável. Às vezes ele passava na frente de bosques espessos e escuros ou avistava jardins cheios de sol e flores; e dentro deles havia castelos de cristal e mármore.
Algumas princesas apareciam nas janelas e acontecia que todas eram meninas e conhecidas de Marcelo, meninas com quem ele costumava brincar.
Estendiam as mãos e todas tinham na mão direita um veadinho de açúcar, o mais lindo com que se podia sonhar.
Marcelo apanhava, ao passar, um pedaço do veadinho de açúcar e a princesa o segurava pelo outro lado, de modo que cada um ficava com a sua parte, sendo que a maior correspondia a Marcelo.
Na frente de cada castelo montavam guarda pequenos príncipes, que cumprimentavam com suas espadas de ouro e lhe atiravam ameixas confeitadas e soldadinhos de chumbo. Não se podia duvidar de que fossem verdadeiros príncipes.
Continuando com o passeio, atravessava às vezes um bosque, outras vezes um prado, outras vezes várias salas ou um povoado; passou por um onde vivia sua ama, a que cuidava dele quando era muito pequenino e gostava dele ao extremo.
A boa mulher o saudou agitando a mão que levava uma cançãozinha de que era a autora e que enviou a Marcelo:
Com você sonho quase sempre,
Marcelo, meu menino querido.
Quantas vezes o acariciei,
Meu querido, amado menino!
Seus primeiros balbucios
Soaram junto ao meu ouvido.
Queira Deus que ainda se lembre
De meus braços que eram seu ninho!
Os pássaros cantavam também, as flores dançavam nos caules e as velhas árvores se inclinavam, do mesmo modo como se o velho Olé Lukoie lhes contasse algumas estórias.
QUARTA-FEIRA
Como chovia lá fora! Mesmo em sonhos Marcelo ouvia o barulho da chuva e quando Olé Lukoie abriu a janela, pôde ver que a água chegava até o parapeito.
Estava tudo convertido em um lago e a pouca distância da casa havia um barco.
– Você quer navegar comigo, pequeno Marcelo? – perguntou Olé Lukoie. – Se for do seu agrado, você poder á ir esta noite a longínquos países e voltar pela manhã.
Imediatamente Marcelo se viu trajado com a sua melhor roupa de domingo e a bordo do formoso barco; e navegando, eles percorreram várias ruas, passaram na frente da igreja, e, finalmente, chegaram ao alto-mar. E se afastaram tanto, que perderam a terra de vista.
Admiraram um bando de cegonhas que empreendiam a sua viagem para os países mais quentes. Voavam em fila, uma atrás da outra.
Percorreram uma grande distância. Uma das cegonhas estava tão cansada, que suas asas apenas a podiam levar um pouco mais longe; era a que fechava o cortejo.
E logo foi ficando para trás, até que caiu com as asas abertas; foi descendo, descendo, tentou voar novamente, até que se chocou contra as enxárcias do barco e deslizou ao longo de uma vela, até chegar ao convés.
Um grumete recolheu-a e colocou-a no galinheiro, em companhia das galinhas, dos patos e perus; a pobre cegonha ficou entre eles e, segundo tudo indicava, estava muito deprimida.
– Vejam que bicho esquisito! – exclamaram as galinhas.
O peru arrepiou as penas para adquirir um aspecto mais majestoso e perguntou-lhe quem era. E os patos retrocediam, ao mesmo tempo em que grasnavam: Quác, Quác!
Imediatamente a cegonha começou a falar-lhes sobre o sol da África, sobre as Pirâmides e sobre os avestruzes que corriam pelos areais como um cavalo selvagem; mas os patos não entenderam e, dando empurrões uns nos outros, disseram:
– Não acham que ela é mesmo uma tola?
– É mesmo, – respondeu o peru.
Então a cegonha silenciou, concentrando seus pensamentos na sua amada África.
– Bonitas pernas você tem! – exclamou o peru. – A quanto vende o metro?
– Quác, quác, quác! – exclamaram os patos a rir.
Mas a cegonha parecia não escutar.
– Você tem a minha permissão para rir disse o peru. – Foi uma observação muito engraçada, embora um tanto elevada para você. Não possui grandes qualidades – acrescentou, dirigindo-se aos outros, – mas servirá para nos divertir.
Então as galinhas começaram a cacarejar e os patos a grasnar. E não há dúvida de que se divertiam bastante.
Marcelo foi até o galinheiro, abriu a porta e chamou a cegonha. Esta saiu com um pulo do galinheiro e se aproximou do menino. já descansara, e, ao chegar junto dele, inclinou a cabeça para Marcelo, a fim de agradecer-lhe.
A seguir abriu suas asas e alçou o seu voo para os países cálidos. E as galinhas cacarejaram, os patos grasnaram e a crista do peru ficou vermelha como brasa.
– Amanhã faremos uma sopa de você! – disse Marcelo – Então acordou e se viu estendido em sua própria cama.
Na verdade, Olé Lukoie o levara para uma viagem extraordinária.
QUINTA-FEIRA
– Vou dizer-lhe uma coisa – avisou Olé Lukoie. – Não se assuste e eu lhe mostrarei um ratinho. – Realmente, abriu a mão e na palma da mesma apareceu um rato pequeno. – Ele veio convidá-lo para um casamento. Esta noite dois ratos vão se casar. Vivem embaixo do solo da despensa de sua mamãe e dizem que é uma residência deliciosa.
– Mas como poderei entrar pelo buraco do chão que dá para a cova dos ratos? – perguntou Marcelo.
– Deixe isso por minha conta – respondeu Olé Lukoie. – Vou fazê-lo ficar bem pequenino.
Tocou em Marcelo com a sua varinha mágica e o menino foi diminuindo de tamanho até ficar do tamanho do dedo mínimo.
– Agora é melhor que peça emprestado o uniforme do soldadinho de chumbo. Creio que lhe assentará muito bem e você sabe que quando se vai fazer uma visita, deve-se estar vestido de uniforme. Isso é muito elegante além de ser necessário.
– Tem razão – replicou Marcelo, que dali a pouco estava trajado como o mais elegante soldadinho de chumbo.
– Agora faça o favor de entrar no dedal de sua mamãe – disse o rato – e eu terei a honra de arrastá-lo.
– Por que vai ter esse trabalho? – perguntou Marcelo com muita galanteria.
Mas o rato insistiu e daí a pouco eles se dirigiam para a casa dos ratos, a fim de assistirem à cerimonia.
Primeiramente penetraram num local que estava debaixo do solo, seguiram por um comprido corredor, cuja altura era apenas suficiente para dar-lhes passagem.
O corredor estava muito bem iluminado com iscas.
– Reparou com o ambiente está perfumado? – perguntou o rato que o arrastava, – O assoalho todo foi untado com toucinho. Não se podia imaginar nada melhor.
Chegaram à sala nupcial, onde todas as senhoritas ratazanas se encontravam à direita, falando em voz baixa ou rindo, como se estivessem se divertindo uma à custa da outra.
A esquerda estavam todos os cavalheiros, que, com as patas dianteiras, alisavam os bigodes. Os noivos ocupavam o centro da sala, num pedaço de queijo, beijando-se com a maior energia na frente dos convidados, porém, como iam casar-se, ninguém dava grande importância ao assunto.
Entraram novas visitas, de maneira que os ratos estavam de tal modo comprimidos um contra o outro, que, afinal, o casal de noivos foi para junto da porta, a fim de que mais ninguém pudesse sair ou entrar.
A sala, assim como o corredor, estava toda untada de toucinho; não havia refrigerantes, porém, como sobremesa apanharam uma folha de ervilha, na qual a família gravou com dentadas o nome dos noivos, isto é, as iniciais de cada um, o que já era uma coisa bem extraordinária.
Todos os ratos disseram ter sido um casamento magnífico e a conversação sumamente agradável.
Então Marcelo regressou à sua casa; encontrara-se em meio a uma companhia distinta, mas, para chegar até lá, precisara ficar muito pequenino, o que lhe permitira vestir o uniforme do soldadinho de chumbo.
SEXTA-FEIRA
– É assombroso verificar quantas pessoas adultas quiseram apoderar-se de mim! – exclamou Olé Lukoie. – Especialmente aquelas que não possuem a consciência tranquila. “Bondoso e velho Olé”, me dizem. “Não podemos fechar os olhos e somos obrigados a passar a noite inteira com a lembrança de nossas más acções’. São semelhantes a Elfos malvados; chegam para perto de nossas camas, sentam-se nelas e jogam água quente em nossos olhos. Quer vir expulsá-los, para que possamos dormir?.
E suspiram profundamente. “Pagaremos muito bem, Olé, boa noite. Você encontrará o dinheiro no peitoril da janela”. – Mas eu não trabalho por dinheiro – exclamou Olé Lukoie.
– Que vamos fazer esta noite? – perguntou Marcelo.
– Não sei se gostaria de assistir a outro casamento, embora seja diferente do que você assistiu ontem. A boneca mais velha de sua irmã, aquela que está vestida de homem e que se chama Augusto, vai casar-se com Berta. Além disso, é seu aniversário, de forma que os presentes serão numerosos – Sim, já ouvi falar nisso. Quando as bonecas precisam de roupa nova, minha irmã diz que é seu aniversário ou que vão se casar. Isto já aconteceu centenas de vezes.
– Sim, mas esta noite é o casamento número cento e um e o centésimo e o primeiro são o fim de todas as coisas. Por esse motivo, a cerimonia será esplêndida. Veja!
Marcelo olhou para a mesa; ali estava a casinhola de papelão com luzes nas janelas e na parte externa, todos os soldadinhos de chumbo apresentavam armas.
Os noivos estavam sentados no chão, com as costas apoiadas no pé da mesa; pareciam muito pensativos e tinham razões de sobra para isso.
Olé Lukoie, vestido com a roupa preta da vovó, casou-os; uma vez terminada a cerimonia, todos os móveis do aposento entoaram a seguinte canção, que o lápis escrevera. A música era de uma outra canção muito popular. Dizia assim:
Como o vento oscilará nosso canto,
Até que os noivos morram de velhos.
Vão custar muito a morrer,
Pois seu corpo é de madeira.
Vivam os noivos! Vivam felizes por mil anos!
Logo chegaram os presentes, mas os noivos se recusaram a receber comestíveis. Para eles o amor era mais do que suficiente e não precisavam de nada mais.
– Iremos viajar pelo país ou pelo estrangeiro?
Consultaram a andorinha, que viajara muito e perguntaram também à velha galinha, que chegara a criar cinco ou seis ninhadas. A primeira contou-lhes tudo o que sabia sobre os países cálidos, onde cresciam as uvas e o ar era tão suave como o das montanhas, e igual não se podia ver em outra parte.
– Mas não possuem as nossas couves verdes – objectou a galinha. –Passei um verão no campo, junto com meus franguinhos. Havia um monte de terra que escarvávamos todos os dias e depois tivemos permissão para entrar numa horta, onde cresciam as couves. Que verdes eram! Não posso imaginar nada tão lindo!
– Mas uma couve se parece exactamente com outra qualquer – observou a andorinha – e, por outro lado, aqui faz muito mau tempo.
– Já estamos acostumados – replicou a galinha.
– Mas faz muito frio e neva.
– Isso é benéfico para as couves – exclamou a galinha; – além do mais, as vezes faz muito calor. Há quatro anos, durante cinco semanas, tivemos um verão com um calor tremendo, de tal modo que apenas podíamos respirar. Por outro lado, aqui não temos animais venenosos, que são próprios dos países estrangeiros e tampouco existem ladrões. Quem pensar que o nosso não seja o melhor país do mundo, não está bom da cabeça. E não merece viver aqui. – A galinha começou a chorar e, tentando acalmar-se um pouco, acrescentou: – Eu também viajei, por doze milhas, metida num barril e asseguro-lhes que as viagens não dão prazer algum.
– A galinha é uma mulher ajuizada – observou Berta, a noiva. – Também não gosto muito de viajar pelas montanhas, porque primeiro é preciso subir, para depois descer. Não, será melhor fazermos uma pequena excursão pelos arredores do monte de terra e depois visitarmos a horta das couves.
E assim terminou a discussão.
SÁBADO
– Esta noite não iremos a lugar algum? – perguntou Marcelo, quando Olé Lukoie o obrigou a meter-se na cama.
– Não temos tempo – respondeu Olé, enquanto abria seu guarda-chuva mais lindo. – Olhe para estes chineses. – O guarda-chuva inteiro tinha o aspecto de um conto chinês, rodeado de árvores azuis, muito grandes, pontes arqueadas e nelas umas tantas pessoas que inclinavam a cabeça. – Para amanhã todo mundo deve estar bem limpo – disse Olé. –Lembre-se de que é domingo. Subirei até o alto do igreja, a fim de ver se os anõezinhos encarregados da limpeza cuidaram bem dos sinos, a fim de que soem bem. Terei de ir aos campos, para verificar se os ventos varreram bem o pó da grama e das folhas. Mas o trabalho mais pesado é baixar as estrelas, para limpá-las; coloco-os em meu avental, mas é preciso numerá-las, para poder recolocá-las em seus devidos lugares, pois, do contrário, não poderia prendê-las correctamente e aí haveria muitas estrelas errantes, pois uma cairia atrás da outra.
– Ouça, Sr. Lukoie – disse um dos antigos retratos, que estavam pendurados na parede. – Sou o bisavô de Marcelo e estou muito agradecido ao senhor pelas estórias que conta, mas convém que não diga disparates. As estrelas são planetas como a nossa própria Terra, e portanto, não há mais o que dizer e chega de disparates.
– Muito obrigado, senhor bisavô – respondeu Olé Lukoie. – Aceite, pois, a minha maior gratidão; o senhor é o chefe da família, uma antigüidade, mas eu sou muito mais velho que o senhor. Sou um velho deus pagão; os gregos e os romanos me chamavam Morfeu, ou o deus dos sonhos. Tenho entrada nas melhores casas do mundo inteiro e tanto os grandes como os pequenos chamam por mim. E já que não está de acordo comigo, conte o senhor as estórias que quiser para o seu bisneto.
Dizendo isto, Olé Lukoie foi embora, carregando o guarda-chuva.
– Melhor seria que não tivesse dado a minha opinião! – exclamou o retrato antigo.
E depois acordou Marcelo.
DOMINGO
– Boa noite – disse Olé Lukoie.
Marcelo respondeu, inclinando a cabeça. Logo ficou em pé de um salto e voltou o rosto do bisavô para a parede, a fim de que não pudesse falar como na noite anterior.
– Agora seria bom que me contasse algumas estórias a respeito das Cinco ervilhas verdes que viviam em sua vagem. e também a do Galo que foi cumprimentar a senhora Galinha ou então a Agulha de cerzir que era tão fina que parecia ser uma agulha corrente.
– Nunca se deve abusar do que é bom – disse o velho Olé Lukoie. – Prefiro mostrar-lhe uma coisa que você já conhece. Vou levá-lo até meu irmão; também se chama Olé Lukoie, mas nunca faz mais do que uma visita.
E então o leva a visitá-lo, monta-o em seu cavalo e lhe conta uma estória. Só sabe duas; uma é tão linda que ninguém na Terra poderia imaginar algo parecido e a outra, horrível até mais não poder.
Então Olé levantou Marcelo até a janela e acrescentou:
– Veja meu irmão, o outro Olé Lukoie. Também é chamado pelo nome de Morte. Você pode ver que não tem um aspecto tão feio como às vezes é apresentado nos desenhos, nem formado de ossos e ligaduras. Não, em torno de seu casaco leva uma tira bordada de prata. Veste um belo uniforme de oficial russo e usa uma capa de veludo, a qual se estende pela garupa de seu cavalo. Veja como galopa.
Marcelo viu, realmente, como cavalgava o outro Olé Lukoie, levando velhos e moços, depois de montá-los na garupa de seu cavalo. Tinha um à sua frente e outros mais atrás, mas antes sempre lhes perguntava:
– Que nota você tem em seu boletim?
Todos respondiam que era boa, mas ele obrigava-os a mostrá-la. Os que tinham nota “Muito boa” ou ‘Excelente” ele montava na parte dianteira do cavalo e lhes contava aquela estória maravilhosa e bela, sobre toda a ponderação. Mas os que só tinham a nota “Regular” ou ‘Má”, eram obrigados a montar na garupa e ouvir a estória horrível. Estremeciam de medo, choravam e faziam esforços para apear, mas não podiam, porque estavam firmemente presos ao cavalo.
– Vejo que a Morte é formosa, Olé Lukoie, – disse Marcelo. – Não me dá medo algum.
– Você não tem que temer meu irmão – replicou Olé Lukoie, – contanto que sempre tenha nota boa em seu boletim.
– Acho isso ótimo - resmungou o retrato do bisavô. – Afinal, é sempre bom dar a minha opinião.
E sorriu muito contente.
E assim termina a estória de Olé Lukoie. É muito provável que esta noite ele mesmo possa contar-lhes muito mais a seu respeito. Esperem por ele.
Hans Christian Andersen