13/10/2008

João Sem Medo


Havia uma vez um pai que tinha dois filhos, o maior era calmo e prudente, e podia fazer qualquer coisa. Mas o jovem era estúpido e não conseguia aprender nem entender nada, e quando o povo o via passar diziam:
- Este rapaz dará problemas a seu pai.
Quando se tinha que fazer algo, era sempre o maior que tinha que fazer, mas se o pai o mandava trazer algo quando era tarde ou no meio da noite, e o caminho o conduzia através do cemitério ou algum outro lugar sombrio, reclamava:
- Ah, não, pai! não irei, me dá pavor – pois tinha medo.
Quando se contavam historias ao redor do fogo que colocava a carne de galinha pra assar, os ouvintes algumas vezes diziam:
- Me dá medo!
O rapaz se sentava numa canto e escutava os demais, mas não podia imaginar o que era ter medo:
- Sempre dizem: “Me dá medo”, “Me causa pavor”. - pensava - Essa deve ser uma habilidade que não compreendo.
Ocorreu que o pai lhe disse um dia:
- Escuta com atenção, estás ficando grande e forte, e deves aprender algo que te permita ganhar o pão.
- Bem, pai - respondeu o jovem - a verdade é que há algo que quero aprender, se se pode ensinar. Gostaria de aprender a ter medo, não entendo de todo o que é isso.
O irmão maior sorriu ao escutar aquilo e pensou: “Deus santo, que cabeça de minhoca é esse meu irmão. Nunca servirá para nada.
O pai suspirou e respondeu: - logo aprenderás a ter medo, mas não se vive disso.
Pouco depois o sacristão foi à casa de João, em visita, e o pai lhe contou que seu filho menor estava tão atrasado em qualquer coisa que não sabia nem aprendia nada. - Veja – disse o pai - quando perguntei como ia ganhar a vida, me disse que queria aprender a ter medo.
- Se isso é tudo. - respondeu o sacristão - pode aprender comigo. Mande-o a mim.
O pai estava contente de enviar seu filho com o sacristão porque pensava que aquilo serviria para endireitar João. Então o sacristão tomou ao rapaz sob sua guarda em sua casa e tinha que tocar o sino da igreja. Um dia o sacristão acordou à meia-noite, e o fez levantar para ir À torre da igreja tocar o sino.
“Logo aprenderás o que é ter medo” pensava o sacristão. E, sem que João se desse conta, levantou-se e subiu na torre. Quando o rapaz estava no alto da torre, e foi dar a volta para pegar a corda do sino e viu uma figura branca de pé, nas escadas do outro lado do poço da torre.
- Quem está aí?- gritou o rapaz, mas a figura não respondeu nem se moveu.
- Responde, - gritou o rapaz - o saia. Não perdeste nada aqui.
O sacristão, sem dúvida, continuou de pé, imóvel, para que João pensasse ser um fantasma. O rapaz gritou a segunda vez:
- Que fazes aqui?. Diz o que queres ou te tirarei pelas escadas.
O sacristão pensou que era onda de João e continuou paradão, quieto, como uma estátua. Então o rapaz avisou a terceira vez e como não serviu de nada, se jogou contra ele e empurrou o fantasma escada abaixo. O”fantasma” rodou dez degraus e caiu num canto. Então João fez soar o sino e se foi para casa e, sem dizer nada, voltou a dormir. A esposa do sacristão ficou esperando seu marido um bom tempo, mas ele não voltou. Ela ficou inquieta e acordou João.
Perguntou:
- Sabes onde está meu marido? Subiu na torre antes de ti.
- Não sei - respondeu o rapaz - Mas alguém estava de pé no outro lado do poço da torre, e como não me respondia nem se ia, achei que era um ladrão e o joguei das escadas.
A mulher saiu correndo e encontrou seu marido queixando-se no canto, um uma perna machucada. Depois de ajudá-lo, ela, chorando, foi ver o pai do rapaz.
- Teu filho- gritava ela – causou um desastre. Jogou meu marido pelas escadas e quebrou-lhe a perna. Leva esse inútil de nossa casa.
O pai estava aterrado e correu ao rapaz pra saber o que houve: - Que conversa foi essa?
- Pai, - respondeu – escuta. Sou inocente. Ele estava ali, de pé, no meio da noite, como se fosse fazer algo mau. Não sabia quem era e pedi que falasse por três vezes. -Ah!- disse o pai - só me trazes desgosto. Sai da minha frente, não quero te ver mais.
- Sim, pai, como queiras, mas espera que seja dia. Então partirei para aprender o que é ter medo, e então aprenderei um ofício que me permita me sustentar.
- Aprende o que quiseres- disse o pai – tanto faz. Aqui tens 50 moedas para ti. Pega e vai pelo mundo, mas não digas de onde vens e nem quem é teu pai. Tenho razões para me envergonhar de ti.
– Sim, pai, farei isso. Se não for mais nada que isso, posso lembrar fácil.
Assim que amanheceu, o rapaz colocou as 50 moedas no bolso e se foi pela estrada principal, dizendo continuamente:
- Se pudesse ter medo, se soubesse o que é temer...
Um homem se aproximou e ouviu o monólogo de João e, quando haviam caminhado um pouco mais longe, onde se viam os patíbulos, o homem disse: - Olha, ali está a árvore onde sete homens se casaram com a filha do açougueiro, e agora estão aprendendo a voar. Sente-se perto da árvore e espera o anoitecer, então aprenderás a ter medo.
- Se isso é o que tenho a fazer, é fácil. - disse o jovem - Mas se aprendo a ter medo tão rápido , te darei minhas 50 moedas. Volta amanhã de manhã bem cedo.
Então o homem se foi e ele sentou ao lado da forca, e esperou até a noite. Como tinha frio, acendeu um fogo. À meia-noite, o vento soprava tão forte que, apesar do fogo, não conseguia se esquentar e como o vento fazia chocarem-se os enforcados entre si, e se balançavam, ele pensou: “Eu aqui, junto ao fogo, já sinto frio, imagino quanto devem estar sofrendo esses que estão aí em cima.”
Como davam pena, levantou a escada, subiu e um a um os foi desatando e baixando. Então avivou o fogo e os dispôs ao redor para que se esquentassem. Mas ficaram sentados sem se mover e o fogo prendeu em suas roupas. Então o rapaz disse:
- Tenham cuidado ou os subirei outra vez.
Os enforcados, é lógico, não escutaram e permaneceram em silêncio, deixando seus farrapos queimarem.
O jovem se zangou e disse: - se não querem ter cuidado, não posso ajudá-los e não me queimarei com vocês. E colocou-os de volta no lugar. Depois se sentou junto ao fogo e ficou dormindo. Na manhã seguinte o homem veio para pegar suas 50 moedas, lhe disse:
- Bem, agora sabes o que é ter medo.
- Não - disse o rapaz - como querias se os tipos lá de cima não abriram a boca?, e são tão idiotas que deixam que os poucos e velhos farrapos que vestiam se queimem.
O homem, vendo que esse dia não ia conseguir as 50 moedas, se ajoelhou dizendo:
- Nunca encontrei alguém assim.
O jovem continuou seu rumo e outra vez começou a falar sozinho - se pudesse ter medo...
Um carreteiro que andava por ali escutou e perguntou:
- Quem és?
- Não sei - respondeu o jovem.
Então o carreteiro perguntou:
- De onde és?
- Não sei- respondeu o rapaz.
- Quem é tu pai?- insistiu.
- Não posso dizer - respondeu o rapaz.
- Que é isso que estás sempre murmurando? - perguntou o carreteiro.
- Ah, - respondeu o jovem – gostaria de aprender ter medo, mas nada me ensina.
- Deixa de dizer bobagens - disse o carreteiro - Vamos, vem comigo, e encontrarei um lugar para ti.
O jovem foi com o carreteiro e, ao anoitecer, chegaram a uma pousada onde iriam passar a noite. Na entrada do salão o jovem disse, bem alto:
- Se pudesse ter medo...
O pousadeiro escutou e rindo disse:
- Se isso é o que queres, saiba que aqui encontras uma boa oportunidade.
- Cala-te, - disse a dona da pousada – muitos intrometidos já perderam sua vida, seria uma lástima se olhos tão bonitos não voltassem a ver a luz do dia.
Mas o rapaz disse:
- Não importa o tão difícil que seja, aprenderei, é por isso que tenho viajado tão longe. E não deixou em paz o dono da pensão até que ele contou que não longe dali havia um castelo encantando onde qualquer um poderia aprender com facilidade o que é ter medo se pudesse permanecer ali durante três noites. O rei havia prometido que qualquer um que conseguisse teria a mão de sua filha, que era a mulher mais bela sobre a qual havia brilhado o Sol. Por outro lado, no castelo há um grande tesouro, guardado por malvados espíritos. Esse tesouro seria libertado e fazia rico ao libertador. Ainda que alguns tivessem tentado, nenhum havia saído.
Na manhã seguinte o jovem foi a ver o rei e disse: - Se me permitir, desejaria passar 3 noites no castelo encantado.
O rei observou-o e como o jovem o agradava, disse:
- Podes pedir três coisas para levar contigo ao castelo, mas devem ser três objectos inanimados.
Então o rapaz disse:
- Pois quero um fogo, uma faca e uma tábua para cortar. - o rei fez que levassem essas coisas ao castelo durante o dia. Quando se aproximava a noite, o jovem foi ao castelo e acendeu um fogo brilhante numa das salas, pôs a tábua e o cutelo ao seu lado e se sentou junto ao torno – se pudesse ter medo – dizia – mas vejo que não aprenderei aqui.
Era meia-noite e estava atiçando o fogo, e enquanto soprava, algo gritou de repente de um canto:
- Miau, miau. Temos frio.
- Tontos, - respondeu - por que se queixam, se têm frio venham sentar-se junto ao fogo.
Quando disse isto 2 enormes gatos negros saíram dando um tremendo salto e se sentaram um de cada lado de João. Os gatos o olhavam com selvageria. Aos poucos, quando se aqueceram, disseram - Camarada, joguemos cartas.
- Por que não? – disse o rapaz - Mas primeiro ensinem-me.
Os gatos mostraram suas garras.
- Oh!, - disse ele – tens unhas muitos compridas. Esperem que as corto num segundo.
Então os pegou pelo pescoço, os colocou na tábua de cortas e lhes atou as patas rapidamente.
- Depois de ver os dedos, - disse – me passou a vontade de jogar cartas.
Logo os matou e os atirou na água. Mas quando se havia desfeito deles e ia sentar-se junto ao fogo, de cada canto saíram cães e gatos negros, com correntes, e continuaram saindo até que não havia mais para onde se mover. Gritavam horrivelmente, esparramaram o fogo e apagaram-no. João observou tranquilamente durante uns instantes, mas quando estavam passando da conta, pegou a faca e gritou:
- Fora daqui, sacanas - e começou a esfaqueá-los. Alguns fugiram, enquanto que os que matou, jogou ao fogo. Quando terminou não podia manter os olhos abertos por causa do sono. Olhou em volta e viu uma cama enorme.
- Justo o que precisava- disse e se meteu nela. Quando estava para fechar os olhos a cama começou a se mover por si mesma e o levou por todo castelo.
- Isto está bom - disse - mas vá mais rápido.
Então a cama rodou como se seis cavalos a puxassem, acima e abaixo, pelos umbrais e escadarias. Mas de repente girou sobre si mesma e caiu sobre ele como uma montanha. João saiu debaixo da cama dizendo: - Hoje em dia deixam qualquer um dirigir... E se foi para junto do fogo, onde dormiu até a manhã seguinte.
Na manhã seguinte o rei foi vê-lo, e ao encontrá-lo atirado ao chão, pensou que os espíritos o haviam matado. Disse:
- Depois de tudo é uma pena, um homem tão corajoso...
O jovem o escutou, se levantou, e disse:
- Não é para tanto.
O rei estava perplexo, mas muito feliz, e perguntou como tinha sido.
- A verdade é que bastante bem - disse – Já tinha passado uma noite, as outras serão do mesmo jeito.
Foi ver o dono da pousada que, olhando com olhos do tamanho de pratos, disse:
- Nunca pensei que voltaria a te ver com vida! Afinal, aprendeste a ter medo?
- Não - respondeu - é inútil. se alguém me pudesse explicar...
A segunda noite voltou ao velho castelo, se sentou junto ao fogo e uma vez mais começou a cantilena: - se pudesse ter medo... se pudesse ter medo...
À meia-noite se escutou ao redor um grande barulho que parecia que o castelo vinha abaixo. No início se escutava baixinho, mas foi crescendo mais e mais.
De repente, tudo ficou em silêncio e, de repente, com um grito, a metade de um homem caiu diante de João.
- Ei, - gritou o jovem – falta-te a metade!
Então o barulho começou de novo, se escutaram rugidos e gemidos e a outra metade caiu também.
- Tranquilo, - disse o jovem - vou avivar o fogo.
Quando havia terminado e olhou ao redor, as duas metades haviam se unido e um homem espantoso estava sentado no lugar de João.
- Isso não entrava não trato, - disse ele - esse banco é meu.
O homem tentou empurrá-lo, mas o jovem não o permitiu, então o empurrou com todas as forças e se sentou em seu lugar.
Mais homens caíram do mezanino, um atrás do outro. Recolheram nove pernas humanas e duas caveiras e começaram a jogar com elas. João também quis jogar:
- Escuta, posso jogar?
- Se tens dinheiro, sim. - responderam eles.
- Tenho - respondeu - Mas essas bolas não são redondas o bastante.
Pegou as caveiras, colocou-as no torno e as arredondou.
- Agora está muito melhor.
- Hurra, - disseram os homens - agora nos divertiremos.
Jogou com eles e perdeu algum dinheiro, mas quando deram as doze, todos desapareceram. Ele então se encostou e dormiu. Na manhã seguinte o rei foi ver como estava:
- E aí, como foi desta vez? – perguntou.
- Fiquei jogando bola, - respondeu - e perdi um par de moedas.
- Então não tiveste medo? - perguntou o rei.
- Quê? - disse – passei muitíssimo bem. O que realmente não aconteceu foi ter medo.
Na terceira noite sentou-se em seu banco e entristecido, disse: - se pudesse ter medo...
Quando ficou tarde, seis homens muito altos entraram trazendo consigo um caixão. E disseram ao jovem:
- Hahahaha. É meu primo, que morreu há dois dias.
Puseram o caixão no chão, abriram a tampa e se viu um cadáver caído em seu interior. O jovem tocou-o no rosto que estava frio como o gelo.
- Espera, - disse - te aquecerei um pouco.
Se foi ao fogo, esquentou as mãos e as colocou na cara do defunto, mas esta continuou fria. Tirou-o do ataúde, sentou-o junto ao fogo e o apoiou em seu peito mexendo seus braços para que o sangue circulasse de novo. Como isso também não funcionava, pensou: “Quando duas pessoas se metem na cama, se dão calor mutuamente.” Assim, levou-o para a cama e deitou junto dele. Logo o cadáver começou a se aquecer e a mover-se.
O jovem disse:
- Vês primo como te esquentei?
O cadáver se levantou e disse: - Te estrangularei.
- Como?, - disse o jovem – Assim que me agradeces? Pois voltas pro caixão agora mesmo.
E o pegou pelo pescoço, jogou-o no caixão e fechou a tampa. Então os 6 homens vieram e levaram o caixão.
- Não consigo aprender a ter medo – disse – Nunca em minha vida aprenderei.
Um homem mais alto que os demais entrou e tinha um aspecto terrível. Era velho e tinha uma larga barba branca.
- Pobre diabo, - gritou o velho – logo saberás o que é ter medo, porque vais morrer.
- Não tão depressa - respondeu rapaz - que eu terei algo a dizer sobre isso.
- Pronto acabarei contigo. - disse o demónio.
- Pára com essas bobagens que sou tão forte como tu o até mais.
- Vamos testar - disse o velho - se és mais forte, te deixo ir. Vem e comprovaremos.
Levou-o através de paisagens escuras, até uma forja; ali o velho pegou uma enorme acha e de um talho partiu em dois.
- Posso melhorar - disse o rapaz e pegou também uma acha e partiu-a de um talho e, aproveitou o quando partia a acha, talhou também a barba do velho.
- Te venci - disse o jovem - agora vais morrer - e com uma barra de ferro golpeou o velho até que este começou a chorar e a pedir que parasse, que se parasse lhe daria grandes riquezas.
O jovem soltou a barra de ferro e o deixou livre. O velho o levou de novo ao castelo e num sótão mostrou-lhe três cofres cheios de ouro.
- De tudo isto, - disse o velho – um é para os pobres, outro para o rei e o terceiro para ti.-
Então deram as doze e o espírito desapareceu e o jovem ficou no escuro.
Acho que posso encontrar a saída - disse o jovem. e tacteando conseguiu encontrar o caminho até a saída onde estava o fogo e dormiu junto dele.
Na manhã seguinte o rei foi vê-lo e disse:
- Já deves ter aprendido o que é ter medo.
- Não - disse – vi um morto e um homem com barba me deu um montão de dinheiro, mas nada me fez saber o que é ter medo.
- Então, - disse o rei – salvaste o castelo e te casarás com minha filha.
- Tudo isso é óptimo, - disse o jovem - mas sigo sem saber o que é ter medo.
Repartiu-se o ouro e celebrou a boda. Mas por muito que quisesse a sua esposa e por muito feliz que fosse o jovem rei sempre dizia:
- Se pudesse ter medo... se pudesse...
Isso acabou por aborrecer sua esposa: - Encontrarei a cura, aprenderá a ter medo.
Foi ao rio que atravessava o jardim e trouxe um cubo cheio de lambaris. À noite, quando João estava dormindo, sua esposa levantou as cobertas e jogou sobre ele a água fria com os lambaris, de maneira que os peixinhos começassem a saltar sobre ele, que despertou e gritou: “Que susto! Agora sei o que é me assustar.”