18/10/2009

As orelhas da lebre


Conta-se que em noite escura
Certo animal cornifronte
Pôde ferir à traição,
Junto da encosta de um monte,
O rei das feras leão;

Que em despique mandou logo
Banir por ordens legais,
Para horror de tal delito,
Os bicornes animais
De todo aquele distrito:

Bois, veados, cabras, todos
Que na fronte armas traziam,
Aqueles sítios deixavam;
E os que logo o não faziam,
Da morte suportavam!

Cumprirem-se leis tão cruas,
Na sombra um dia observando
As longas orelhas suas,
Disse a um grilo titubeando:

"Ai! Que estas minhas orelhas
Por chifres se tomarão!
E, se houver um delator
Que o vá dizer ao leão,
Da lei me exponho ao rigor!"

"— Tu fazer de mim pateta?
Fala, tola; pois é crível,
Lhe disse o grilo em bom ar,
Que um par de orelhas flexível
Possa por chifres passar?"

"— Sim, disse ela; e por que não?
Tenho-os visto mais pequenos".
Tornou-lhe o grilo: "Vaidosa!
Se os teus fumos fossem menos,
Serias mais venturosa.

Quem és conhece, e descansa;
Porque sempre que supomos,
Pela vaidade que temos,
Ser aquilo que não somos,
Mil incómodos sofremos".

Curvo Semedo (Trad.)