Um dia, Rei Artur estava em Carleon, sentado em seus aposentos. Com ele, estavam Owain, filho de Uriens, Kynon, filho de Clydno e Kai, filho de Kyner. Guinevere e suas criadas teciam perto da janela. E se vocês esperam que eu diga que havia um porteiro no palácio de Artur, bem, não havia. Glewlwyd Gavaelvawr estava lá, feito um porteiro, para dar as boas vindas a convidados e estrangeiros; para recebê-los com toda a honra e dar-lhes todas as informações sobre os costumes da Corte e para ensinar o caminho a quem quisesse ir ao Salão ou à sala de reuniões e, também, para auxiliar quem chegava e queria montar seu acampamento.
Artur estava sentado no meio de seus aposentos sobre a grama verde, coberta por cetim cor-de-fogo e tinha uma almofada de cetim vermelho debaixo de seu cotovelo. Logo, falou:
“- Se eu tivesse certeza de que vocês não pensariam mal de mim, eu iria dormir enquanto espero por minha refeição. Vocês podem passar o tempo se divertindo com histórias. Peçam a Kai para trazer cerveja e carne”.
Então Artur foi dormir, e Kynon, o filho de Clydno, foi pedir carne e cerveja a Kai, como o que o rei lhes havia prometido.
“Eu também vou ouvir as boas histórias de que o rei falou”, disse Kai.
“Não”, respondeu Kynon, “Melhor que você vá primeiro cumprir a tarefa que Artur lhe ordenou, e depois, nós lhe contaremos a melhor de nossas histórias”.
Então Kai foi até a cozinha, até o barril de cerveja e voltou carregando a cerveja e um cálice dourado. Na mão, trazia muitos espetos, os quais seriam usados para assar os pedaços de carne. Então, eles comeram toda a carne e começaram a beber a cerveja.
“Agora”, disse Kai, “chegou a hora de vocês me darem a minha história”.
“Kynon”, disse Owain, “pague você a Kai a história que lhe é de direito”.
“Na verdade”, disse Kynon, “você é o mais velho e o melhor contador de histórias. Além disso, já viu coisas mais maravilhosas do que as que eu já vi. Então, pague você a Kai a história que lhe é de direito”.
“Comece você”, respondeu Owain, “com a melhor história que conhece”.
“Então, vou começar:”, disse Kynon.
“Eu era o filho único de minha mãe e meu pai. Era extremamente ambicioso e minha ousadia era muito grande. Pensava que não havia, neste mundo, aventura que fosse grande o suficiente pra mim. Depois de viver todas as aventuras que havia para viver em meu país, me equipei e saí em direcção a desertos e regiões distantes. E no caminho, aconteceu que eu cheguei ao vale mais bonito do mundo, onde as árvores cresciam à alturas iguais, e um rio passava pelo meio do vale, e uma trilha passava ao lado do rio. Eu segui por esta trilha até o meio-dia, e continuei minha jornada pelo resto do vale até o anoitecer. Depois de andar por toda a planície, cheguei a um castelo grande e luminoso. Aos pés do castelo havia um lago. Me aproximei dele e lá eu vi dois jovens de cabelos louros e encaracolados, cada um com uma coroa de ouro em sua cabeça; vestiam uma roupa de cetim amarelo e tinham fivelas de ouro em seus sapatos. Na mão de cada um havia um arco branco amarrado com tendões de gamo e suas flechas tinham as setas feitas de osso de baleia e o cabo, de penas de pavão. As setas também tinham as pontas douradas. Eles tinham canivetes com a lâmina de ouro e o punho, de osso de baleia. E eles estavam atirando esses canivetes.
Um pouco adiante do lugar onde eles estavam, vi um homem na melhor época de sua vida. Ele tinha acabado de fazer a barba, estava vestindo um roupão coberto por um manto de cetim amarelo. A parte de cima de seu manto era embainhada por uma fita de ouro. Em seus pés, o couro dos sapatos tinha várias cores e estes eram amarrados por duas fivelas de ouro. Logo que o vi, caminhei em sua direcção para saudá-lo, e tão grande foi sua atenção comigo que na mesma hora em que recebeu meu cumprimento, o devolveu a mim. Fomos juntos em direcção ao castelo. Todos os moradores do castelo estavam no salão. Lá eu vi vinte e quatro donzelas, bordando cetim perto de uma janela. E eu te digo, Kai, que a mais feia delas era mais bonita que a mais bela donzela que você já viu na Ilha da Bretanha, e a menos encantadora de todas era mais encantadora que Guinevere, a esposa de Artur, mesmo no Dia de Ação de Graças , no Natal ou na Festa da Páscoa, quando ela nos apareceu mais encantadora do que nunca. Todas se levantaram quando eu cheguei e seis delas pegaram meu cavalo, tiraram minha armadura; outras seis pegaram minhas armas para lavar e esfregaram até que estivessem brilhando; outras seis puseram a mesa e prepararam a carne; outras seis tiraram minhas roupas empoeiradas e me vestiram com roupas limpas - o que eu quero dizer é que me deram calças e um colete de linho fino, um roupão, um casaco e um manto de cetim amarelo bordado com fitas de ouro. Deram-me almofadas de linho vermelho para que eu me sentasse e ajeitaram as almofadas ao redor de mim. Tenho que dizer que as seis donzelas que levaram meu cavalo, tiraram a sela dele tão bem que até pareciam os melhores cavalariços de toda Ilha da Bretanha. Depois, preste atenção, trouxeram bacias de prata cheias de água para banho e toalhas de linho, algumas verdes, algumas brancas; e eu me lavei. Um pouco depois, o homem se sentou à mesa. E eu me sentei ao seu lado e abaixo de mim, sentaram-se todas as donzelas, excepto uma que estava nos servindo. E a mesa era de prata e a toalha da mesa era de linho, e não havia taça sobre aquela mesa que não fosse de ouro ou de prata ou de chifre de búfalo. E a carne nos foi servida. E sinceramente, Kai, lá havia todo tipo de carne e de licor que pode haver em todos os lugares, mas a carne e o licor foram melhor servidos lá que em todos os outros lugares que eu já vi.
Até à metade da refeição, nem o homem nem nenhuma das donzelas falou palavra comigo; mas quando o homem percebeu que para mim seria mais agradável conversar do que comer, ele começou a me perguntar quem eu era. Eu disse que estava feliz por ter com quem conversar, e por saber que naquela corte, a conversa não era considerada um grande crime.
‘Meu caro’, disse o homem, ‘teríamos conversado com você antes, mas temíamos perturbá-lo durante sua refeição; agora, entretanto, conversaremos’.
Então, contei a ele quem eu era, e o motivo da minha viagem. Disse que eu estava à procura de alguém que fosse melhor que eu, ou à procura da prova de que eu era melhor que todos. O homem olhou para mim, sorriu e falou:
‘- Se eu não sentisse tanto em te causar medo, te mostraria o que você procura’.
Diante disso, fiquei ansioso e triste, e o homem percebendo minha reacção falou:
‘- Se você quiser que eu te mostre primeiro a sua fraqueza, eu o farei. Durma aqui esta noite e, de manhã cedo, tome a estrada do vale até chegar à floresta pela qual você veio. Mais adiante na floresta, você vai encontrar uma estrada saindo para a direita, pela qual você deve prosseguir, até chegar a uma grande clareira coberta - aquela que tem um morrinho no meio. Então, você verá um homem negro e bem alto em cima deste morrinho. Ele não é menor que dois homens deste mundo, um sobre o outro. Ele tem apenas um pé e um olho no meio da testa. E leva nas mãos um porrete de ferro que, certamente, qualquer homem deste mundo acharia um peso enorme carregar. Ele não é nada bonito; muito pelo contrário, é excessivamente feio. É o guardião daquela floresta. E você verá milhares de animais selvagens pastando em volta dele. Pergunte a ele onde fica a saída da clareira e ele responderá com uma só palavra, depois apontará para a estrada na qual você encontrará o que procura’.
E aquela noite foi muito longa para mim. No dia seguinte, me levantei e me equipei; selei meu cavalo e prossegui directo pelo vale da floresta. Segui a encruzilhada que o homem me mostrou, até que cheguei na clareira. Lá, fiquei três vezes mais admirado com a quantidade de animais selvagens que vi do que o homem havia me dito que eu ficaria. E o homem negro estava lá, sentado no topo do morrinho. Sua estatura era enorme, como o homem havia me dito que seria. Eu achei que ele era muito mais em tudo que a descrição que eu tivera dele. Quanto ao porrete de ferro que o homem havia dito que seria pesado para qualquer outro homem, tenho certeza, Kai, que seria pesado até mesmo para quatro guerreiros juntos; e este porrete estava na mão do homem negro. Ele apenas falou comigo para responder a minha pergunta. Então, lhe perguntei que poder ele teria sobre aqueles animais.
‘Vou te mostrar, homem pequeno’, disse ele.
Ele pegou seu porrete e com ele acertou um gamo. O gamo urrou tão alto que seu grito fez com que todos os animais se juntassem, em tão grande número quanto as estrelas no céu. Eram tantos que quase não me sobrou espaço para ficar de pé entre eles na clareira. Havia serpentes e dragões e vários tipos de animais. Então ele olhou para eles e ordenou que eles se fossem e comessem. Eles baixaram as cabeças e cumpriram sua ordem como fazem os vassalos para com seu senhor. Então o homem negro olhou para mim e falou:
‘- Vê agora, homem pequeno, o poder que tenho sobre estes animais?’.
Então perguntei a ele sobre o caminho e ele foi muito mal-educado comigo. Entretanto, quis saber aonde eu estava indo. E quando disse a ele quem eu era e o que queria, ele me ensinou a direcção.
‘Vá’, disse ele, ‘pelo atalho que leva à ponta da clareira e suba pela floresta até chegar ao topo. Lá você encontrará um espaço aberto parecido com um grande vale, e no meio deste lugar, uma árvore bem alta cujos galhos são mais verdes que o mais verde dos pinheiros. Debaixo desta árvore existe uma fonte e ao lado da fonte, um pedaço de mármore. Sobre o pedaço de mármore, há uma bacia prateada presa por uma corrente de prata para que não seja roubada. Pegue a bacia e derrame a água sobre o mármore e você ouvirá o estrondo assustador de um trovão. Diante deste estrondo tão assustador, você pensará que o céu e a terra tremem de medo de sua fúria. Com o trovão virá uma chuva tão severa que será praticamente impossível que você sobreviva a ela. A chuva será de pedras de granizo. Após a chuva, o céu se abrirá novamente, mas cada uma das folhas que estavam na árvore, terá sido levada pela chuva. Então, uma revoada de pássaros virá para iluminar a árvore. Tenho certeza que em seu país, você nunca ouviu nada tão doce quanto a música que eles cantarão. E quando você estiver mais encantado com a música dos pássaros, você ouvirá um murmúrio e lamento vindo em sua direcção pelo vale. Você verá um cavaleiro vestido em veludo negro sobre um cavalo bem preto. Ele cavalgará em sua direcção na mais alta velocidade. Se você escapar dele, ele o vencerá; se você ficar lá, tão certo quanto você é cavaleiro, ele vai deixá-lo no chão. E se esta aventura for pouco para você, não precisa procurar por outra melhor em nenhum outro lugar pelo resto de sua vida’.
Então eu segui adiante até chegar ao topo da floresta e lá eu encontrei tudo o que o homem negro havia descrito para mim. Fui até a árvore e debaixo dela encontrei a fonte. Ao seu lado, o pedaço de mármore e a bacia prateada presa pela corrente. Então, peguei a bacia e derramei a água sobre o mármore. Preste atenção, veio o trovão, muito mais violento do que eu pensei que ele viria, por tudo que o homem negro me falou. Depois do trovão, veio a chuva. E, honestamente, Kai, não há homem ou animal que sobreviva àquela chuva. O granizo não parava ao atingir a pele ou a carne, apenas quando atingia os ossos. Virei a traseira do meu cavalo para a chuva e coloquei a ponta do meu escudo sobre sua cabeça e pescoço, e com a parte superior do escudo, eu cobri minha própria cabeça. Foi assim que eu sobrevivi à chuva. Quando eu olhei a árvore, não havia uma única folha sobre ela. Logo o céu se abriu e com isso, vieram os pássaros iluminar a árvore. E cantaram. De verdade, Kai, nunca ouvi melodia como aquela antes daquele momento. E quando eu estava mais encantado ouvindo os pássaros, veja só, um murmúrio veio pelo vale, se aproximando e dizendo:
‘- Ó cavaleiro, o que o trouxe aqui? Que mal eu lhe causei para virdes até mim, aos meus domínios como fizerdes hoje? Não sabeis que a chuva de hoje não deixou vivo nenhum homem ou animal nos meus domínios?’
E logo, veja só, surgiu o cavaleiro sobre seu cavalo preto, todo vestido em veludo negro, com uma capa de linho preto por sobre a roupa. Nós nos encaramos com ar de acusação e, como o começo já foi difícil, não demorou muito e eu estava no chão. Então o cavaleiro passou a seta de sua lança pela rédea do meu cavalo, e foi embora com os dois cavalos, me deixando ali, onde eu estava. Ele não me olhou com ar de quem iria me prender ou roubar minhas armas. Então, eu voltei pelo caminho que me levou até lá. E quando cheguei à clareira onde o homem negro estava, confesso a você Kai, é um milagre que eu não tenha me derretido de vergonha diante do menosprezo daquele homem por mim. À noite cheguei ao mesmo castelo onde havia passado a noite anterior e fui muito melhor recebido; fui muito mais festejado e conversei livremente com os moradores do castelo. Nenhum deles perguntou a respeito de minha expedição à fonte e eu não mencionei nada sobre isso. Passei a noite lá. Quando me levantei de manhã, encontrei, já com a sela posta, um cavalo negro de focinho bem vermelho, e após vestir minha armadura e deixar minhas bênçãos e minhas graças, com ele voltei à minha Corte. E este cavalo, eu ainda o tenho; ele está no estábulo distante. Eu juro que, este cavalo, eu não o trocaria pelo melhor cavalo de toda Ilha da Bretanha.
Sinceramente, Kai, nenhum outro homem já fez tantas confissões a respeito de uma aventura mal-sucedida, e me estranha que eu nunca tenha ouvido sobre outra pessoa além de mim que conhecesse esta aventura, que ninguém mais nos domínios do Rei Artur saiba de sua existência”.
“Então”, disse Owen, “não seria bom ir e tentar descobrir este lugar”.
“Pela mão de um amigo”, disse Kai, “você mesmo sempre diz, com a sua própria língua, que não se sai bem em seus feitos”.
“Honestamente, Kai”, disse Guinevere, “seria melhor que você tivesse se calado a dizer tais palavras a um homem como Owain”.
“Pela mão de um amigo, boa Senhora”, respondeu Kai, “a glória de Owain não é maior que a minha”.
Artur acordou e perguntou se havia dormido por muito tempo.
“Sim, Senhor”, respondeu Owain, “O Senhor dormiu por um bom tempo”.
“Já é hora de comermos?”
“Sim, Senhor”, respondeu Owain.
Então, tocaram os sinos para que as mãos fossem lavadas e o Rei e todos os seus companheiros se sentaram para comer. Quando a refeição terminou, Owain saiu para seu alojamento e aprontou seu cavalo e suas armas.
De manhã, ao nascer do dia, ele vestiu sua armadura, montou seu carregamento e viajou por terras distantes e montanhas desertas. Depois de algum tempo, ele chegou ao vale que Kynon havia descrito. Ele estava certo de que aquele vale era o mesmo sobre o qual o amigo falara. E viajando pelo vale ao lado do rio, ele seguiu seu curso até chegar a uma planície de onde se via um castelo. Ao se aproximar do castelo, ele viu os jovens atirando seus canivetes no mesmo lugar onde Kynon os vira antes. O homem amarelo, a quem o castelo pertencia, estava em pé por ali. E tão logo Owain o cumprimentou, ele devolveu o cumprimento. Foram juntos em direcção ao castelo, e lá ele viu o salão. Quando entrou no salão, viu as donzelas trabalhando no bordado do cetim, sentadas em cadeiras de ouro. E sua beleza e hospitalidade pareceram ainda maiores do que Kynon as havia descrito. Elas se levantaram para recebê-lo, bem como haviam feito com Kynon. A refeição que serviram a ele foi muito melhor do que a que serviram a Kynon.
No meio da refeição, o homem amarelo perguntou a Owain sobre o objectivo de sua viagem, e Owain o contou.
“Estou à procura do cavaleiro que guarda a fonte”.
Diante disso, o homem amarelo sorriu e se disse disposto a mostrar-lhe esta aventura do mesmo jeito que fez a Kynon. Então, ele descreveu todo o caminho a Owain e foram dormir.
Na manhã seguinte, Owain encontrou seu cavalo já preparado pelas donzelas. Partiu e chegou à clareira onde o homem negro estava. A estatura do homem negro pareceu mais maravilhosa a Owain que a Kynon, e Owain perguntou a ele sobre o caminho. A resposta tinha apenas uma palavra. Owain seguiu o caminho, assim como Kynon fez, até que chegou à árvore verde. Ele viu a fonte e o pedaço de mármore do lado dela, com a bacia sobre ele. Então, Owain pegou a bacia e derramou a água sobre o mármore. Ouviu o trovão e, depois do trovão, veio a chuva, muito mais violenta do que Kynon havia contado. Depois da chuva, o céu se abriu. E quando Owain olhou para a árvore, não havia uma única folha sobre ela. Imediatamente, vieram os pássaros que pousaram na árvore e começaram a cantar. Quando a música estava ainda mais agradável, Owain avistou o cavaleiro vindo em sua direção pelo vale e se preparou para recebê-lo. O encontro foi violento. Com as duas lanças quebradas, empunharam suas espadas e lutaram. Então, Owain acertou o cavaleiro em seu capacete com tanta força que o golpe atingiu a cabeça, passando pela carne e os ossos, até atingir o cérebro. Então o cavaleiro negro sentiu que havia sofrido um ferimento mortal, virou seu cavalo e fugiu. Owain foi atrás dele e o seguiu bem de perto, apesar de não tão perto para acertá-lo com sua espada. Então, Owain avistou um castelo grande e resplandecente. E eles chegaram ao portão do castelo. De dentro do castelo, baixaram a ponte levadiça para que o cavaleiro negro entrasse e a derrubaram em cima de Owain. O portão atingiu seu cavalo por trás da sela, o partiu em dois e arrancou até as esporas dos sapatos de Owain. E a ponte levadiça bateu no chão. Owain, com a parte que sobrou do cavalo, ficou entre os dois portões. O portão interno estava fechado e Owain não podia entrar. Sua situação era difícil. Enquanto estava ali, ele pôde ver uma rua através de uma abertura no portão. A rua tinha fileiras de casas dos dois lados. Ele viu uma donzela de cabelos louros encaracolados e uma coroa de ouro sobre a cabeça. Ela usava um vestido de cetim amarelo e seus sapatos eram de couro de todas as cores. Ela se aproximou do portão desejando que este estivesse aberto.
“Deus sabe, Senhora”, disse Owain, “não é possível que eu abra este portão para a Senhora, mas é possível que a Senhora me liberte”.
“É verdade”, disse a donzela, “é triste que você não possa ser solto. Todas as mulheres deveriam vir para socorrê-lo, pois nunca houve um homem mais leal às mulheres do que você. Como um amigo, você é o mais sincero. Como um amante, o mais devotado. Por isso, farei tudo o que puder para que você seja solto. Pegue este anel e coloque-o no dedo, com a pedra virada para dentro de sua mão. Mantenha a mão fechada. Durante o tempo em que você esconder a pedra, ela também te esconderá. Eles virão atrás de você para matá-lo e se ofenderão por não encontrá-lo. Eu estarei a tua espera no estábulo distante e você poderá me ver, mas eu não poderei vê-lo. Então, ponha sua mão em meu ombro para que eu saiba que você está perto. E você me acompanhará pelo caminho”.
Então ela se foi e Owain fez tudo o que a donzela lhe havia dito. As pessoas do castelo vieram à sua procura para matá-lo e quando não o encontraram, apenas a metade de seu cavalo, ficaram furiosas. Owain passou por eles e foi até a donzela e colocou a mão sobre seu ombro. Então ela saiu e ele a seguiu até chegarem à porta de um aposento grande e bonito. A donzela abriu a porta, eles entraram e ela fechou a porta. Owain olhou por todo o aposento e nada encontrou que não fosse graciosamente colorido. Todos os quadros eram diferentes e emoldurados em dourado. A donzela acendeu a lareira, colocou água em uma bacia prateada, pegou uma toalha de linho branco e colocou sobre o ombro de Owain. Deu a Owain a água para que ele se banhasse. Então, diante dele, ela colocou uma mesa prateada decorada com ouro sobre a qual havia uma toalha de linho amarelo e serviu uma refeição. E, em verdade, Owain nunca antes vira carne que não fosse servida em abundância, mas aquela era a mais bem preparada que já encontrara. Também, ele nunca vira antes uma mesa tão bonita, com carne e bebida, como a que havia ali. Não havia uma única taça que não fosse de ouro ou de prata. Owain comeu e bebeu até o final da tarde quando ouviram um grito assustador no castelo. Ele perguntou à donzela o que era aquilo e ela respondeu que estavam dando a Extrema Unção ao Nobre a quem o castelo pertencia. E Owain foi dormir.
O colchão que ela havia preparado para ele era digno de Artur; era vermelho, macio, de cetim e linho fino. No meio da noite eles ouviram um grito terrível.
“Que grito foi esse?”, perguntou Owain.
“O Nobre, a quem este castelo pertencia, está morto agora”, respondeu a donzela.
E um pouco depois do raiar do dia, eles ouviram mais um grito. Owain perguntou a donzela porquê aquilo estava acontecendo.
“Estão levando para a igreja o corpo do Nobre a quem este castelo pertencia”.
Owain se levantou, se vestiu, abriu a janela e olhou em direção ao castelo; ele não enxergava a fronteira, apenas o aglomerado de pessoas que estavam na rua. Eles estavam armados; havia muitas mulheres entre eles, montadas ou não; e todos os eclesiásticos da cidade cantavam. E para Owain, era como se o céu ecoasse veemente o lamento daquelas pessoas, junto ao som das trombetas e do canto dos eclesiásticos. No meio da multidão, ele avistou o caixão, coberto por um manto de linho branco. Havia velas queimando ao redor do caixão e, ninguém de hierarquia abaixo de um Barão segurava o caixão.
Nunca antes Owain vira uma montagem tão bonita em cetim e seda. E seguindo a procissão, ele viu uma senhora de cabelos louros que lhe caiam pelos ombros, manchados de sangue. Seu vestido de cetim amarelo estava rasgado. O couro de seus sapatos era de cores variadas, e era de se admirar que as pontas de seus dedos não se machucassem com toda aquela violência com que apertava das mãos uma contra a outra. Honestamente, esta seria a mulher mais linda que Owain já vira, caso estivesse em seu normal. Seu lamento era mais alto que o grito dos homens ou o clamor das trombetas. Tão logo viu tal senhora, seu coração se inflamou de um amor tão grande que não se conteve. Então, ele perguntou à donzela quem era aquela senhora.
“Deus sabe”, respondeu a donzela, “Ela é a mais linda, a mais casta, a mais generosa, a mais sábia e a mais nobre de todas as mulheres. Ela é a minha senhora. É conhecida como a Condessa da Fonte, a esposa daquele a quem você matou ontem”.
“Sim”, disse Owain, “Ela é a mulher a quem eu mais amo”.
“Sim”, respondeu a donzela, “E ela também o amará e muito”.
Com isso, a donzela levantou-se, aumentou o fogo, encheu uma vasilha de água e a levou até o fogo para esquentar. Trouxe uma toalha de linho branco e colocou em volta do pescoço de Owain. Pegou um cálice branco e uma bacia prateada. Encheu-os com água morna e lavou a cabeça de Owain. Abriu uma caixinha de madeira e dela retirou uma lâmina decorada com dois pregos de ouro. Aparou sua barba e secou sua cabeça e seu pescoço com a toalha. Depois, se levantou e foi buscar alguma coisa para que ele comesse. E, sinceramente, Owain nunca antes tivera tão boa comida ou fora tão bem servido.
Ao final da refeição, a donzela preparou a cama de Owain.
“Venha”, disse a donzela, “e durma. Eu sairei para cuidar de tudo para você”.
Owain deitou-se para dormir e a donzela trancou a porta de seus aposentos indo, em seguida, em direção ao castelo. Chegando lá, nada encontrou além de lamentos e dor. A Condessa, que estava em seus aposentos, nada enxergava além de seu sofrimento. Luna foi saudá-la, mas a Condessa nada respondeu. A donzela curvou-se diante dela e disse:
“- O que há, Senhora? Por que não fala com ninguém?”
“Luna”, disse a condessa, “O que há com você que não veio me acalmar o pranto? O que há de errado com você? Eu a tornei rica. O que há de errado com você que não esteve ao meu lado para apaziguar minha angústia? O que há de errado com você?”
“Honestamente, senhora”, respondeu Luna, “Pensei que seu bom-senso fosse maior do que eu o considerava. A senhora se lamenta por aquele bom homem ou por alguma outra coisa que não pode ter?”
“Juro por Deus”, respondeu a Condessa, “que em nenhum lugar deste mundo existe outro homem como aquele”.
“Não é assim”, respondeu Luna, “Mesmo um homem feio poderia ser tão bom quanto ou melhor do que ele”.
“Juro por Deus”, respondeu a Condessa, “Não parecesse tão horrível para mim matar uma pessoa que eu criei, eu a mandaria ser executada por esta comparação repugnante! Sendo assim, eu a banirei”.
“Fico feliz”, respondeu Luna, “que minha Senhora não tenha outra razão para isso a não ser aquela de que eu estava em seu serviço tratando de seu bem-estar. E, daqui por diante, maldita seja quem de nós tentar uma reconciliação; seja eu quem primeiro procure pela Senhora, seja a Senhora quem primeiro procure por mim!”
Com isso, Luna foi em direção à porta dos aposentos da Condessa e ela a seguiu e começou a tossir bem forte. Luna voltou-se para trás e lá estava a Condessa, de braços abertos prontos para um abraço, e se abraçaram.
“Em verdade”, disse a Condessa, “maldito é o sentimento que pode nos separar. Se você sabe o que é melhor para o meu bem-estar, diga-me”.
“Eu direi”, respondeu a donzela. “A Senhora sabe que apenas pela guerra e pela arma será possível conservar o que a Senhora possui hoje. Não deve então demorar-se em encontrar quem possa defendê-la”.
“E como farei isso?”, perguntou a Condessa.
“Eu lhe direi”, respondeu Luna. “Seus domínios apenas estarão seguros se puder defender a fonte. E não há quem possa defender a fonte, a não ser um cavaleiro de Artur. Eu irei a Corte de Artur, me arriscarei e trarei de lá um cavaleiro para defendê-la”.
“Esta tarefa não será fácil. No entanto, vá e cumpra com sua promessa”.
Luna saiu fingindo ir à Corte e Artur, mas retornou ao quarto onde Owain estava. E lá permaneceu com ele por todo tempo que seria necessário para viajar até a Corte de Artur. Quando todo este tempo passou, ela se vestiu adequadamente e foi visitar a Condessa. A Condessa alegrou-se muito ao vê-la e perguntou sobre as notícias trazidas da Corte.
“Trago-lhe as melhores notícias”, disse Luna. “Cumpri com o objetivo de minha missão. Quando a Senhora deseja que eu lhe apresente o cavaleiro que trouxe comigo?”
“Traga-o aqui para visitar-me amanhã ao meio-dia”, respondeu a Condessa. “Eu prepararei toda a cidade para este momento”.
Luna voltou para casa. No outro dia, ao meio-dia, Owain vestiu-se com um casaco, um sobretudo e um manto de cetim amarelo bordado com fitas de ouro. Seus sapatos eram altos e de couro de cores diferentes, amarrados por fivelas de ouro na forma de leões. Foram, então, para os aposentos da Condessa.
A condessa ficou muito feliz com a chegada deles. No entanto, olhou para Owain convicta e falou:
“- Luna, este cavaleiro não parece ter viajado”.
“Que mal há nisso, Senhora?”, respondeu Luna.
“Estou certa de que nenhum outro homem possui a alma que havia no corpo do meu Senhor”, disse a condessa.
“Melhor assim, Senhora”, respondeu Luna. “Se ele não fosse mais forte que o vosso Senhor, jamais lhe teria tirado a vida. E não há remédio para o passado. Deixe que o passado seja como é”.
“Volte para seus aposentos”, disse a Condessa. “Vou procurar meus conselheiros”.
No dia seguinte, a Condessa levou suas preocupações à assembléia e mostrou a seus conselheiros que seu reino estava indefeso e que nunca estaria protegido a menos que por armas e exército montado.
“Assim”, disse ela, “esta é a escolha que peço que façam: ou um dos senhores casa-se comigo ou permitam que me case com alguém de outro lugar que possa defender meu reino”.
Eles decidiram que melhor seria que ela se casasse com alguém de outro lugar. Então, ela pediu aos bispos e arcebispos que celebrassem seu casamento com Owain. Assim, Owain tornou-se o homem daquele reino.
Owain defendeu a Fonte com lança e espada, deste jeito que vou lhes contar: sempre que um cavaleiro aparecia por lá, ele o derrotava. Depois, o vendia pelo preço que valia e dividia o ganho entre os barões e também seus cavaleiros. Logo, tornou-se o homem mais amado do mundo inteiro. E assim foi durante uns três anos.
Aconteceu que, um dia Gwalchmai foi visitar o Rei Artur e percebeu que o Rei estava muito triste. Gwalchmai ficou muito preocupado com o estado do Rei e lhe perguntou sobre o que havia acontecido, ao que o Rei respondeu:
“- Oh, Gwalchmai! Estou assim por causa do Owain, a quem eu perdi por estes três anos. E eu, certamente não suportarei um quarto ano sem vê-lo. Agora tenho certeza que é tudo por causa da história que Kynon, filho de Clydno, lhe contou. E então, Owain se foi”.
“Não há razão para isto”, disse Gwalchmai. “O Senhor e vossos homens podem vingar Owain se ele estiver morto ou libertá-lo, se estiver preso; e se estiver vivo, podem trazê-lo de volta”.
E a história seguiu de acordo com o que Gwalchmai disse.
Então Artur e seus homens se prepararam para sair à procura de Owain. Estavam em três mil homens, além dos ajudantes. E Kynon, filho de Clydno era o guia de todos. Chegaram ao castelo onde Kynon havia estado antes. Quando chegaram lá, os jovens estavam atirando seus canivetes no mesmo lugar e o homem amarelo também estava lá. Quando o homem amarelo viu Artur, ele o cumprimentou e o convidou para ir até o Castelo. Artur aceitou seu convite e foram juntos. E apesar de estarem em tão grande número, sua presença quase não foi notada, de tão grande que era o castelo. As donzelas se levantaram para esperar por eles e os serviram muito melhor do que já haviam sido servidos antes. Serviram muito bem, sem distinção entre cavaleiros e pagens, da mesma forma que Artur faria se estivessem em seu castelo.
Na manhã seguinte, Artur seguiu viagem, tendo Kynon por seu guia, e chegou ao lugar onde o homem negro estava. A estatura do homem negro deixou Artur muito surpreso – mais surpreso do que ficou quando lhe falaram a respeito do homem negro. Subiram a montanha, atravessaram o vale até chegar à árvore verde, onde viram a fonte, a bacia e o mármore. Nesta hora, Kai falou com Artur:
“- Meu Senhor, sei o que de tudo isso significa. E peço que o Senhor me permita jogar a água sobre o mármore e receber a primeira aventura que chegar”.
Artur consentiu. Kai jogou a água sobre o mármore e, imediatamente, veio o trovão. Após o trovão, veio a chuva. Uma tempestade que nenhum deles vira antes e que matou muitos homens do exército de Artur. Após cessar a chuva, o céu se abriu. Olharam para a árvore e perceberam que não havia uma única folha sobre ela. Logo, pássaros pousaram sobre a árvore e sua melodia era mais suave do que todas que eles já haviam ouvido. Então, viram um cavaleiro vestido em cetim preto sobre um cavalo negro, vindo muito rapidamente em sua direção. O cavaleiro e Kai se encontraram, lutaram e não demorou muito até Kai ser derrotado. O cavaleiro se foi e Artur e seus homens decidiram acampar por ali naquela noite.
Quando se levantaram pela manhã, perceberam o sinal de combate pela lança do cavaleiro. Kai foi até Artur e falou:
“- Acho que fui derrotado por aquele cavaleiro, mas se o Senhor permitir, gostaria de encontrá-lo novamente hoje”.
Artur consentiu e Kai partiu em direção ao cavaleiro. Novamente, ele derrotou Kai e o atingiu na testa com tanta força que quebrou seu capacete e o feriu, carne e osso. Kai retornou para onde seus companheiros estavam.
Depois disso, todos os homens de Artur foram, um a um, lutar contra o cavaleiro, até que já não houvesse apenas um que não havia sido derrotado por ele, exceto Artur e Gwalchmai. Artur se armou e foi de encontro ao cavaleiro.
“Oh, meu Senhor!”, disse Gwalchmai, “Permita que eu lute primeiro”.
Artur consentiu. Ele foi de encontro ao cavaleiro tendo, sobre ele e seu cavalo, um manto de cetim que representava suas vitórias. Eles se encontraram e lutaram o dia todo até o anoitecer e, nenhum dos dois foi capaz de derrubar o outro de cima de seu cavalo.
No outro dia lutaram usando lanças ainda mais fortes, porém nenhum dos dois obteve êxito. No terceiro dia, lutaram usando lanças muito, muito fortes mesmo. Estavam realmente furiosos, e lutaram tendo um enorme sentimento de ódio, até o meio-dia. Bateram-se com tanta força que até quebraram as cilhas de seus cavalos e caíram no chão. Levantaram-se rapidamente e sacaram suas espadas e retomaram o combate. A multidão que testemunhava aquela luta tinha certeza de que aquela era a primeira vez que viam dois homens tão valentes e poderosos. E se fosse meia-noite ainda haveria a luz que saia de suas armas para iluminar toda a planície. O cavaleiro golpeou Gwalchmai tão forte que conseguiu tirar-lhe o capacete. Então, o cavaleiro reconheceu Gwalchmai. Foi então que Owain disse:
“-Gwalchmai, meu Senhor. Não o reconheci, meu primo, envolvido por este manto de vitórias. Tome minha espada e minhas armas”.
“Você”, disse Gwalchmai, “é o grande vencedor. Tome, você, minha espada e minhas armas”.
Quando Artur os viu, eles estavam conversando e iam em sua direção.
“Meu Senhor, Artur”, disse Gwalchmai. “Aqui está Owain, que me venceu e nem por isso me levará minhas armas”.
“Meu Senhor”, disse Owain, “Foi ele quem me venceu e nem por isso me levará minha espada”.
“Dê-me os dois suas espadas”, disse Artur, “E, assim, não haverá vencedor”.
Então Owain colocou suas armas sobre os ombros de Artur e os dois se abraçaram. E todos os outros correram para ver e abraçar Owain; e quase o mataram de tanto que o apertavam.
À noite, foram descansar e Artur preparou sua partida para o dia seguinte.
“Meu Senhor”, disse Owain, “Sei que não parece correto que eu tenha passado três anos longe do Senhor, mas durante todo este tempo, até o dia de hoje, venho preparando um banquete em vossa homenagem, pois sabia que o Senhor viria em minha procura. Por isso, fique comigo até que o Senhor e vossos homens tenham vencido o cansaço da viagem e se recuperado”.
E todos eles foram ao castelo da Condessa da Fonte, e o banquete que levara três anos para ser preparado, foi devorado em três meses. Era a primeira vez que comiam um banquete tão saboroso e tão agradável. Então, o Rei preparou sua partida. Artur enviou um embaixador até a Condessa para pedir-lhe permissão para que Owain partisse com eles e permanecesse por três meses para conhecer os nobres e senhoras da Ilha da Bretanha. A Condessa deu consentimento para que Owain partisse, mas sentiu muito por isso. Então, Owain partiu com Artur para a Ilha da Bretanha. E, em meio a seus amigos, Owain permaneceu por três anos ao invés de três meses.
E, um dia, quando Owain estava na cidade de Carleon de Usk, ele avistou uma dama sobre um cavalo com a crina encaracolada, coberta de espuma. A rédea e o que podia ser visto da sela era de ouro. A donzela usava um vestido de cetim amarelo. Ela se aproximou de Owain e tirou da mão dele o anel.
“Assim deve ser tratado o enganador, o traidor, o indigno de confiança, o desgraçado e o covarde”.
Então, virou-se sobre seu cavalo e partiu. A lembrança trouxe sofrimento a Owain. Então, logo após o jantar, ele voltou a seus aposentos e se preparou para partir. No dia seguinte, Owain se levantou, mas não foi à Corte. Saiu em direção à terras distantes e montanhas não cultivadas. E lá permaneceu até que tivesse suas roupas rasgadas e o corpo desgastado e os cabelos compridos. Tinha a companhia de animais selvagens e, com eles, se alimentava. Com o tempo, foi ficando tão fraco que mal podia ter a companhia dos bichos. Foi quando desceu das montanhas em direção ao vale, chegando a um parque que era o mais bonito do mundo, o qual pertencia a uma Condessa viúva.
Um dia, a Condessa e suas criadas foram passear pelo lago que havia no meio do parque e avistaram o que parecia ser um homem. Ficaram apavoradas. Ainda assim, se aproximaram dele, o tocaram e olharam. Perceberam que ainda estava vivo, apesar de exausto e mal-tratado pelo sol. A Condessa retornou ao Castelo, pegou um frasco cheio com um creme muito caro e o entregou a uma de suas criadas.
“Vá”, disse a Condessa, “e leve isso. Leve também um cavalo e roupas e os coloque perto do homem que acabamos de ver. Passe este bálsamo perto do coração dele e, se ainda estiver vivo, este bálsamo fará com que se levante. Fique lá e veja o que ele vai fazer”.
A donzela foi até onde estava Owain e espalhou todo o bálsamo sobre ele. Deixou o cavalo e a vestimenta por perto e se escondeu para poder observá-lo. Um pouco depois, o viu mexendo os braços. Ele se levantou, olhou para si mesmo e sentiu vergonha de sua aparência. Então, percebeu o cavalo e as roupas deixadas perto dele. Ele se moveu lentamente até que conseguir pegar as roupas que estavam sobre a sela. Vestiu-se e, com muita dificuldade, montou o cavalo. Depois de observá-lo, a dama saiu do esconderijo e foi cumprimentá-lo. Ele ficou feliz ao vê-la e perguntou a ela que terra e que território era aquele.
“Em verdade”, disse a donzela, “este castelo pertence uma Condessa viúva. Na ocasião de sua morte, seu marido a deixou dois condados. Entretanto, hoje ela tem apenas este aqui. O outro foi tirado dela por um jovem Conde, que é seu vizinho, porque ela se recusou a tornar-se sua esposa”.
“Que pena”, disse Owain.
Então, ele e a donzela saíram em direção ao castelo. Lá chegando, as outras criadas o levaram até seus aposentos, que eram bem agradáveis, e acenderam a lareira para ele.
A donzela foi ao encontro da Condessa e lhe entregou o frasco.
“Ah, criada!”, disse a condessa. “Onde está o bálsamo?”
“Eu usei todo ele”, respondeu a criada.
“Eu não a perdoarei por isso”, disse a Condessa. “Como pôde usar um bálsamo tão caro, que vale sete libras, em um estranho a quem nem ao menos conheço? Vá. Cuide dele até que esteja recuperado”.
A donzela cuidou dele, então. Deu-lhe o que comer e beber, acendeu o fogo para lhe aquecer; deu-lhe alojamento e medicou-lhe até que estivesse, de fato, recuperado. Três meses se passaram até que Owain se recuperasse totalmente e sua aparência se tornasse ainda melhor do que era antes.
Um dia, Owain escutou o barulho de um grande tumulto e batalha no castelo e perguntou a donzela o que seria tudo aquilo.
“O Conde, de quem lhe falei, chegou ao castelo com seu exército enorme para fazer a Condessa se entregar”, respondeu a donzela.
Então, Owain perguntou a ela se a Condessa teria um cavalo e armas.
“Ela possui o melhor do mundo”, respondeu a donzela.
“Então vá e peça a ela que me empreste seu cavalo e suas armas”, disse Owain.
“Eu irei”, respondeu ela.
A donzela foi até a Condessa e lhe contou o que Owain havia dito. A Condessa riu e respondeu:
“- Certamente, eu lhe darei meu cavalo e minhas armas e ele não os devolverá; cavalo e armas como os que possuo, ele nunca os teve e ficarei feliz se ele os levar embora hoje. Assim, meus inimigos não os usarão contra mim amanhã. No entanto, ainda não sei o que lê fará com meu cavalo e minhas armas”.
A Condessa então ordenou que lhe trouxessem um belo cavalo negro, sobre o qual havia uma grande sela, e um traje de armadura para um homem e um cavalo. Owain se armou, montou o cavalo e partiu, seguido por dois pagens completamente equipados, armados e montados. Ao se aproximarem do exército do Conde, não conseguiam sequer saber onde ele começava ou terminava. Owain perguntou aos pagens em qual tropa o Conde estava.
“Na tropa mais ao longe”, disseram. “Na qual há quatro estandartes amarelos. Dois do estandartes estão na frente dele; os outros dois, em suas costas”.
“Agora voltem e esperem por mim na entrada do castelo”, disse Owain.
Os pagens partiram e Owain saiu em disparada ao encontro do Conde. Owain forçou o Conde a permanecer sobre seu cavalo. Agarrou-lhe pela sela e virou seu cavalo em direção ao castelo e para lá o levou. Apesar da dificuldade, conseguiu arrastar o Conde até a entrada do castelo, onde os pagens estavam à sua espera. Então entraram e Owain ofereceu o Conde à Condessa como se fosse um presente, e disse a ela:
“- Ofereço-o a vós em nome de vosso bálsamo abençoado”.
O exército acampou ao redor do castelo. E O Conde devolveu à Condessa, em troca de permanecer vivo, os dois condados que havia dela tirado; em troca de permanecer livre, deu a ela metade de seus domínios, todo seu ouro e prata e as jóias que possuía.
Assim, Owain partiu. A Condessa e todos os seu empregados pediram a Owain que ali permanecesse, mas ele preferiu partir em busca de terras distantes e desertos.
Enquanto viajava, Owain ouviu um grito vindo de uma floresta. O grito se repetiu por uma segunda e terceira vez. E Owain foi em direção ao lugar de onde vinha o grito e avistou uma enorme colina rochosa no meio da floresta. Ao lado desta colina havia uma rocha cinza. E havia um buraco na rocha, e uma serpente dentro deste buraco. E havia um leão negro perto desta rocha. E todas as vezes em que o leão se movimentava, a serpente saía rapidamente de seu buraco e o atacava. Owain empunhou sua espada e se aproximou da rocha. Quando a serpente saiu do seu buraco, ele a atingiu partindo-a em duas. Depois, limpou sua espada e partiu, bem como antes. E o leão o seguiu e brincou com ele, como se fosse, desde de filhote, seu animal de estimação.
Assim, prosseguiam durante o dia inteiro até o anoitecer. E quando Owain sentiu que era realmente hora de descansar, ele tirou suas roupas e soltou seu cavalo na campina. Fez uma fogueira e quando o fogo já estava bem aceso, o leão lhe trouxe óleo suficiente para três outras noites. E o leão desapareceu. Quando apareceu novamente, trazia consigo um peixe grande que entregou a Owain que o pôs no fogo.
Owain pegou o peixe, tirou suas escamas, o partiu em pedaços e, em um grande espeto, o levou até a fogueira para ser assado. O que sobrou do preparo do peixe, Owain deu ao leão. Enquanto fazia isso, ele escutou um suspiro profundo; depois, outro e mais outro. Então, Owai perguntou se o suspiro que ouvira vinha de um ser humano, e a resposta foi que sim.
“Quem é você?”, perguntou Owain.
“Luna, a criada da Condessa da Fonte”.
“O que faz aqui”, ele lhe perguntou.
“Fui aprisionada por causa de um cavaleiro que veio da Corte do Rei Artur e depois se casou com a Condessa. Ele ficou apenas por um curto tempo junto a ela e depois partiu de volta para a Corte do Rei e não mais retornou. Ele era o amigo a quem eu mais prezava em todo o mundo. E na Corte da Condessa, os pagens agora o chamam de traidor. Eu lhes disse que mesmo se estivessem todos juntos, nunca poderiam vencer este cavaleiro de quem falo. Então, me aprisionaram nesta caverna e disseram que eu deveria ser condenada à morte, a menos que este cavaleiro viesse, neste período, me resgatar. Eu serei condenada à morte depois de amanhã, e nem mais um dia. E não há quem possa procurá-lo para mim. Seu nome é Owain, o filho de Uriens”.
“Você tem certeza de que, se este cavaleiro soubesse de tudo o que se passa, ele viria salvá-la?”, perguntou Owain.
“Estou certa que sim”, respondeu ela.
Quando o peixe estava pronto, Owain o dividiu com a donzela e ficaram ali conversando e comendo até o dia amanhecer. No dia seguinte, Owain perguntou à donzela se por ali havia onde conseguir comida e diversão para aquela noite.
“Sim, Senhor”, disse ela. “Caminhe até mais adiante, siga o curso do rio, e logo verá um grande castelo, no qual há muitas torres. O Conde dono deste castelo é o homem mais hospitaleiro do mundo. O Senhor poderá passar a noite lá”.
Nunca um soldado cuidou tanto do seu senhor quanto o leão cuidou de Owain durante aquela noite. Owain preparou seu cavalo, foi caminhando pela beira do rio e avistou o castelo. Ao entrar, foi recebido com muitas honras. E seu cavalo foi bem tratado e bem alimentado. O leão se sentou bem ao lado da coxia do cavalo para que ninguém do castelo se atrevesse a se aproximar dele. O tratamento dado a Owain foi melhor que qualquer outro que ele havia conhecido, apesar de todos naquele castelo parecerem muito tristes, como se a morte estivesse perto deles. Então, serviram o jantar. Owain sentou-se entre o Conde e sua única filha, cuja beleza Owain nunca vira antes. O leão encontrou lugar entre os pés de Owain, debaixo da mesa, e foi alimentado com todo tipo de comida com que Owain se servia. Ele nunca antes vira algo parecido com a tristeza daquela gente.
Em meio ao jantar, o Conde começou a dar as boas vindas a Owain.
“Então”, disse Owain, “O Senhor deveria estar feliz”.
“Deus sabe”, disse o Conde, “Não é sua presença o que nos entristece. No entanto, temos motivo para nossa tristeza e preocupação”.
“O que foi?”, perguntou Owain.
“Tenho dois filhos que ontem sairam para caçar na montanha”, disse o Conde. “Mas na montanha, há um monstro que mata homens e depois os devora; ele capturou meus filhos. Amanhã é o final do prazo que ele nos deu. Ele diz que vai matar meus filhos debaixo dos meus olhos, a menos que eu lhe entregue a minha filha. Ele tem a aparência de um homem, mas a estatura é de um gigante”.
“É realmente lamentável”, disse Owain. “O que pensa em fazer?”.
“Deus sabe”, disse o Conde, “será melhor que meus filhos sejam mortos contra minha vontade que entregar minha filha a este monstro para que ele a destrua”.
Começaram a conversar sobre outras coisas e Owain passou a noite por lá.
No dia seguinte, ouviram um clamor enorme causado pela chegada do gigante e dos dois jovens. O Conde estava tenso tanto por proteger o castelo quanto por libertar seus filhos. Então, Owain vestiu sua armadura e saiu em direção ao gigante. O leão o seguiu. Quando o gigante viu que Owain estava armado, foi logo em sua direção e o atacou. O leão lutou mais bravamente que Owain contra o gigante.
“Em verdade”, disse o gigante, “Não seria difícil lutar contra você e vencê-lo, não fosse por seu animal”.
Ao ouvir isso, Owain levou o animal de volta ao castelo e fechou os portões atrás dele. Depois retomou sua luta contra o gigante. O leão rugia cada vez mais alto por sentir que as coisas pioravam para o seu dono. Então, foi escalando o castelo até chegar ao salão e depois ao topo. Lá de cima, deu um salto e novamente se juntou a Owain na luta contra o gigante. O leão atingiu o gigante com sua garra que o cortou desde o ombro até a cintura; seu coração ficou exposto e o gigante caiu morto no chão. Então, Owain devolveu os dois jovens a seu pai.
O Conde pediu a Owain que permanecesse ali com eles, mas Owain não aceitou e retornou à campina onde Luna estava. Quando lá chegou, ele viu uma grande fogueira e dois jovens de cabelos encaracolados e avermelhados carregando a donzela para jogá-la naquela fogueira. Owain perguntou a eles o que tinham contra a donzela, e eles contaram a ele resumidamente qual era o problema entre os três, bem como a donzela havia feito na noite anterior.
“Então”, disseram, “Owain não veio salvá-la; por isso, vamos queimá-la”.
“É verdade”, disse Owain, “Owain é um bom cavaleiro e se ele soubesse do perigo que esta donzela corre, eu ficaria admirado se ele não viesse salvá-la. No entanto, se os senhores aceitarem, lutarei no lugar de Owain”.
“Aceitaremos”, responderam os jovens.
Atacaram Owain de tal forma que ele se viu por várias vezes em perigo. Com isso, o leão veio ajudá-lo e os dois, Owain e o leão, venceram os jovens.
“Senhor”, disseram os jovens, “seria fácil vencê-lo se não houvesse a ajuda do leão”.
Então Owain colocou o leão no mesmo lugar onde a donzela estava aprisionada e bloqueou a passagem com a ajuda de algumas pedras e voltou para lutar contra os jovens. Mas Owain já não estava tão forte e, por isso, os dois jovens estavam vencendo. O leão rugia incessantemente por ver Owain em perigo e começou a derrubar a parede de bloqueio até conseguir sair dali. Então, foi correndo para cima dos jovens e facilmente os venceu. Desta forma, Luna foi salva de ser queimada na fogueira.
Então Owain retornou com a donzela para o reino da Condessa. E quando chegou lá, ele levou a Condessa com ele de volta para a Corte de Artur, como sua esposa por toda a sua vida.
Então, pegou a estrada que levava à corte do homem negro. Owain lutou contra ele tendo seu leão ao seu lado até que o tivessem vencido. E quando chegaram de fato à corte do homem negro e entraram, viram vinte e quatro donzelas, as mais belas que existiam. As roupas que as donzelas vestiam não valiam nem mesmo vinte e quatro centavos e elas estavam tristes e sofridas como se visitadas pela morte. Elas lhes disseram que eram todas filhas de Condes e que ali haviam chegado na companhia de seus maridos, a quem muito amavam. E que haviam sido recebidas com honras e alegrias. No entanto, haviam sido levadas a um estado de torpor e enquanto assim permaneciam, o monstro que era dono daquele castelo matava seus maridos, roubava seus cavalos, suas roupas, seu ouro, sua prata e mantinha os corpos dos maridos mortos ainda dentro daquela casa e, muitos outros corpos também. Esta era a causa de seu sofrimento e lamentavam que ele não houvera chegado antes para livrar-lhes de tanta dor.
Owain sentiu muito ao ouvir tudo aquilo e partiu. Ao deixar o castelo, viu um cavaleiro se aproximando dele, o qual o saudou com muita alegria e gentileza tal qual fossem irmãos. O cavaleiro era o homem negro.
“Em verdade”, disse Owain, “Não vim buscar sua amizade. Na verdade, não há amizade para vós dentro de mim”.
Eles se encararam e lutaram furiosos. Owain o venceu e amarrou as mãos dele atrás de suas costas. Então, o homem negro implorou a Owain que lhe conservasse a vida dizendo o seguinte:
“-Meu Senhor, Owain, já estava previsto que o Senhor viria aqui e me venceria, e assim foi feito. Eu fui um ladrão, minha casa foi uma casa de maus tratos, mas conserve minha vida. Eu me tornarei o zelador de um Hospital, transformarei esta casa em um Hospital para os fortes e para os fracos por todo o resto de minha vida em homenagem a sua alma bondosa”.
Owain aceitou sua proposta e ali passou aquela noite.
No dia seguinte, ele pegou as vinte e quatro senhoras, seus cavalos, suas roupas, seus bens e jóias e prosseguiu com elas para a Corte de Artur. E se Artur ficou feliz ao vê-lo novamente após tê-lo perdido da primeira vez, sua alegria fora ainda maior desta vez. Das vinte e quatro senhoras, as que desejaram permanecer na Corte de Artur permaneceram; as que quiseram partir, partiram.
E, desde então, Owain foi muito amado na Corte de Artur, como chefe da guarda, até partir com seus seguidores, um exército de trezentos pássaros pretos, os quais eram um presente de Kenverchyn. E onde quer que fosse a luta, junto a esses pássaros, Owain era sempre o vitorioso.
E este é o conto da SENHORA DA FONTE.
Artur estava sentado no meio de seus aposentos sobre a grama verde, coberta por cetim cor-de-fogo e tinha uma almofada de cetim vermelho debaixo de seu cotovelo. Logo, falou:
“- Se eu tivesse certeza de que vocês não pensariam mal de mim, eu iria dormir enquanto espero por minha refeição. Vocês podem passar o tempo se divertindo com histórias. Peçam a Kai para trazer cerveja e carne”.
Então Artur foi dormir, e Kynon, o filho de Clydno, foi pedir carne e cerveja a Kai, como o que o rei lhes havia prometido.
“Eu também vou ouvir as boas histórias de que o rei falou”, disse Kai.
“Não”, respondeu Kynon, “Melhor que você vá primeiro cumprir a tarefa que Artur lhe ordenou, e depois, nós lhe contaremos a melhor de nossas histórias”.
Então Kai foi até a cozinha, até o barril de cerveja e voltou carregando a cerveja e um cálice dourado. Na mão, trazia muitos espetos, os quais seriam usados para assar os pedaços de carne. Então, eles comeram toda a carne e começaram a beber a cerveja.
“Agora”, disse Kai, “chegou a hora de vocês me darem a minha história”.
“Kynon”, disse Owain, “pague você a Kai a história que lhe é de direito”.
“Na verdade”, disse Kynon, “você é o mais velho e o melhor contador de histórias. Além disso, já viu coisas mais maravilhosas do que as que eu já vi. Então, pague você a Kai a história que lhe é de direito”.
“Comece você”, respondeu Owain, “com a melhor história que conhece”.
“Então, vou começar:”, disse Kynon.
“Eu era o filho único de minha mãe e meu pai. Era extremamente ambicioso e minha ousadia era muito grande. Pensava que não havia, neste mundo, aventura que fosse grande o suficiente pra mim. Depois de viver todas as aventuras que havia para viver em meu país, me equipei e saí em direcção a desertos e regiões distantes. E no caminho, aconteceu que eu cheguei ao vale mais bonito do mundo, onde as árvores cresciam à alturas iguais, e um rio passava pelo meio do vale, e uma trilha passava ao lado do rio. Eu segui por esta trilha até o meio-dia, e continuei minha jornada pelo resto do vale até o anoitecer. Depois de andar por toda a planície, cheguei a um castelo grande e luminoso. Aos pés do castelo havia um lago. Me aproximei dele e lá eu vi dois jovens de cabelos louros e encaracolados, cada um com uma coroa de ouro em sua cabeça; vestiam uma roupa de cetim amarelo e tinham fivelas de ouro em seus sapatos. Na mão de cada um havia um arco branco amarrado com tendões de gamo e suas flechas tinham as setas feitas de osso de baleia e o cabo, de penas de pavão. As setas também tinham as pontas douradas. Eles tinham canivetes com a lâmina de ouro e o punho, de osso de baleia. E eles estavam atirando esses canivetes.
Um pouco adiante do lugar onde eles estavam, vi um homem na melhor época de sua vida. Ele tinha acabado de fazer a barba, estava vestindo um roupão coberto por um manto de cetim amarelo. A parte de cima de seu manto era embainhada por uma fita de ouro. Em seus pés, o couro dos sapatos tinha várias cores e estes eram amarrados por duas fivelas de ouro. Logo que o vi, caminhei em sua direcção para saudá-lo, e tão grande foi sua atenção comigo que na mesma hora em que recebeu meu cumprimento, o devolveu a mim. Fomos juntos em direcção ao castelo. Todos os moradores do castelo estavam no salão. Lá eu vi vinte e quatro donzelas, bordando cetim perto de uma janela. E eu te digo, Kai, que a mais feia delas era mais bonita que a mais bela donzela que você já viu na Ilha da Bretanha, e a menos encantadora de todas era mais encantadora que Guinevere, a esposa de Artur, mesmo no Dia de Ação de Graças , no Natal ou na Festa da Páscoa, quando ela nos apareceu mais encantadora do que nunca. Todas se levantaram quando eu cheguei e seis delas pegaram meu cavalo, tiraram minha armadura; outras seis pegaram minhas armas para lavar e esfregaram até que estivessem brilhando; outras seis puseram a mesa e prepararam a carne; outras seis tiraram minhas roupas empoeiradas e me vestiram com roupas limpas - o que eu quero dizer é que me deram calças e um colete de linho fino, um roupão, um casaco e um manto de cetim amarelo bordado com fitas de ouro. Deram-me almofadas de linho vermelho para que eu me sentasse e ajeitaram as almofadas ao redor de mim. Tenho que dizer que as seis donzelas que levaram meu cavalo, tiraram a sela dele tão bem que até pareciam os melhores cavalariços de toda Ilha da Bretanha. Depois, preste atenção, trouxeram bacias de prata cheias de água para banho e toalhas de linho, algumas verdes, algumas brancas; e eu me lavei. Um pouco depois, o homem se sentou à mesa. E eu me sentei ao seu lado e abaixo de mim, sentaram-se todas as donzelas, excepto uma que estava nos servindo. E a mesa era de prata e a toalha da mesa era de linho, e não havia taça sobre aquela mesa que não fosse de ouro ou de prata ou de chifre de búfalo. E a carne nos foi servida. E sinceramente, Kai, lá havia todo tipo de carne e de licor que pode haver em todos os lugares, mas a carne e o licor foram melhor servidos lá que em todos os outros lugares que eu já vi.
Até à metade da refeição, nem o homem nem nenhuma das donzelas falou palavra comigo; mas quando o homem percebeu que para mim seria mais agradável conversar do que comer, ele começou a me perguntar quem eu era. Eu disse que estava feliz por ter com quem conversar, e por saber que naquela corte, a conversa não era considerada um grande crime.
‘Meu caro’, disse o homem, ‘teríamos conversado com você antes, mas temíamos perturbá-lo durante sua refeição; agora, entretanto, conversaremos’.
Então, contei a ele quem eu era, e o motivo da minha viagem. Disse que eu estava à procura de alguém que fosse melhor que eu, ou à procura da prova de que eu era melhor que todos. O homem olhou para mim, sorriu e falou:
‘- Se eu não sentisse tanto em te causar medo, te mostraria o que você procura’.
Diante disso, fiquei ansioso e triste, e o homem percebendo minha reacção falou:
‘- Se você quiser que eu te mostre primeiro a sua fraqueza, eu o farei. Durma aqui esta noite e, de manhã cedo, tome a estrada do vale até chegar à floresta pela qual você veio. Mais adiante na floresta, você vai encontrar uma estrada saindo para a direita, pela qual você deve prosseguir, até chegar a uma grande clareira coberta - aquela que tem um morrinho no meio. Então, você verá um homem negro e bem alto em cima deste morrinho. Ele não é menor que dois homens deste mundo, um sobre o outro. Ele tem apenas um pé e um olho no meio da testa. E leva nas mãos um porrete de ferro que, certamente, qualquer homem deste mundo acharia um peso enorme carregar. Ele não é nada bonito; muito pelo contrário, é excessivamente feio. É o guardião daquela floresta. E você verá milhares de animais selvagens pastando em volta dele. Pergunte a ele onde fica a saída da clareira e ele responderá com uma só palavra, depois apontará para a estrada na qual você encontrará o que procura’.
E aquela noite foi muito longa para mim. No dia seguinte, me levantei e me equipei; selei meu cavalo e prossegui directo pelo vale da floresta. Segui a encruzilhada que o homem me mostrou, até que cheguei na clareira. Lá, fiquei três vezes mais admirado com a quantidade de animais selvagens que vi do que o homem havia me dito que eu ficaria. E o homem negro estava lá, sentado no topo do morrinho. Sua estatura era enorme, como o homem havia me dito que seria. Eu achei que ele era muito mais em tudo que a descrição que eu tivera dele. Quanto ao porrete de ferro que o homem havia dito que seria pesado para qualquer outro homem, tenho certeza, Kai, que seria pesado até mesmo para quatro guerreiros juntos; e este porrete estava na mão do homem negro. Ele apenas falou comigo para responder a minha pergunta. Então, lhe perguntei que poder ele teria sobre aqueles animais.
‘Vou te mostrar, homem pequeno’, disse ele.
Ele pegou seu porrete e com ele acertou um gamo. O gamo urrou tão alto que seu grito fez com que todos os animais se juntassem, em tão grande número quanto as estrelas no céu. Eram tantos que quase não me sobrou espaço para ficar de pé entre eles na clareira. Havia serpentes e dragões e vários tipos de animais. Então ele olhou para eles e ordenou que eles se fossem e comessem. Eles baixaram as cabeças e cumpriram sua ordem como fazem os vassalos para com seu senhor. Então o homem negro olhou para mim e falou:
‘- Vê agora, homem pequeno, o poder que tenho sobre estes animais?’.
Então perguntei a ele sobre o caminho e ele foi muito mal-educado comigo. Entretanto, quis saber aonde eu estava indo. E quando disse a ele quem eu era e o que queria, ele me ensinou a direcção.
‘Vá’, disse ele, ‘pelo atalho que leva à ponta da clareira e suba pela floresta até chegar ao topo. Lá você encontrará um espaço aberto parecido com um grande vale, e no meio deste lugar, uma árvore bem alta cujos galhos são mais verdes que o mais verde dos pinheiros. Debaixo desta árvore existe uma fonte e ao lado da fonte, um pedaço de mármore. Sobre o pedaço de mármore, há uma bacia prateada presa por uma corrente de prata para que não seja roubada. Pegue a bacia e derrame a água sobre o mármore e você ouvirá o estrondo assustador de um trovão. Diante deste estrondo tão assustador, você pensará que o céu e a terra tremem de medo de sua fúria. Com o trovão virá uma chuva tão severa que será praticamente impossível que você sobreviva a ela. A chuva será de pedras de granizo. Após a chuva, o céu se abrirá novamente, mas cada uma das folhas que estavam na árvore, terá sido levada pela chuva. Então, uma revoada de pássaros virá para iluminar a árvore. Tenho certeza que em seu país, você nunca ouviu nada tão doce quanto a música que eles cantarão. E quando você estiver mais encantado com a música dos pássaros, você ouvirá um murmúrio e lamento vindo em sua direcção pelo vale. Você verá um cavaleiro vestido em veludo negro sobre um cavalo bem preto. Ele cavalgará em sua direcção na mais alta velocidade. Se você escapar dele, ele o vencerá; se você ficar lá, tão certo quanto você é cavaleiro, ele vai deixá-lo no chão. E se esta aventura for pouco para você, não precisa procurar por outra melhor em nenhum outro lugar pelo resto de sua vida’.
Então eu segui adiante até chegar ao topo da floresta e lá eu encontrei tudo o que o homem negro havia descrito para mim. Fui até a árvore e debaixo dela encontrei a fonte. Ao seu lado, o pedaço de mármore e a bacia prateada presa pela corrente. Então, peguei a bacia e derramei a água sobre o mármore. Preste atenção, veio o trovão, muito mais violento do que eu pensei que ele viria, por tudo que o homem negro me falou. Depois do trovão, veio a chuva. E, honestamente, Kai, não há homem ou animal que sobreviva àquela chuva. O granizo não parava ao atingir a pele ou a carne, apenas quando atingia os ossos. Virei a traseira do meu cavalo para a chuva e coloquei a ponta do meu escudo sobre sua cabeça e pescoço, e com a parte superior do escudo, eu cobri minha própria cabeça. Foi assim que eu sobrevivi à chuva. Quando eu olhei a árvore, não havia uma única folha sobre ela. Logo o céu se abriu e com isso, vieram os pássaros iluminar a árvore. E cantaram. De verdade, Kai, nunca ouvi melodia como aquela antes daquele momento. E quando eu estava mais encantado ouvindo os pássaros, veja só, um murmúrio veio pelo vale, se aproximando e dizendo:
‘- Ó cavaleiro, o que o trouxe aqui? Que mal eu lhe causei para virdes até mim, aos meus domínios como fizerdes hoje? Não sabeis que a chuva de hoje não deixou vivo nenhum homem ou animal nos meus domínios?’
E logo, veja só, surgiu o cavaleiro sobre seu cavalo preto, todo vestido em veludo negro, com uma capa de linho preto por sobre a roupa. Nós nos encaramos com ar de acusação e, como o começo já foi difícil, não demorou muito e eu estava no chão. Então o cavaleiro passou a seta de sua lança pela rédea do meu cavalo, e foi embora com os dois cavalos, me deixando ali, onde eu estava. Ele não me olhou com ar de quem iria me prender ou roubar minhas armas. Então, eu voltei pelo caminho que me levou até lá. E quando cheguei à clareira onde o homem negro estava, confesso a você Kai, é um milagre que eu não tenha me derretido de vergonha diante do menosprezo daquele homem por mim. À noite cheguei ao mesmo castelo onde havia passado a noite anterior e fui muito melhor recebido; fui muito mais festejado e conversei livremente com os moradores do castelo. Nenhum deles perguntou a respeito de minha expedição à fonte e eu não mencionei nada sobre isso. Passei a noite lá. Quando me levantei de manhã, encontrei, já com a sela posta, um cavalo negro de focinho bem vermelho, e após vestir minha armadura e deixar minhas bênçãos e minhas graças, com ele voltei à minha Corte. E este cavalo, eu ainda o tenho; ele está no estábulo distante. Eu juro que, este cavalo, eu não o trocaria pelo melhor cavalo de toda Ilha da Bretanha.
Sinceramente, Kai, nenhum outro homem já fez tantas confissões a respeito de uma aventura mal-sucedida, e me estranha que eu nunca tenha ouvido sobre outra pessoa além de mim que conhecesse esta aventura, que ninguém mais nos domínios do Rei Artur saiba de sua existência”.
“Então”, disse Owen, “não seria bom ir e tentar descobrir este lugar”.
“Pela mão de um amigo”, disse Kai, “você mesmo sempre diz, com a sua própria língua, que não se sai bem em seus feitos”.
“Honestamente, Kai”, disse Guinevere, “seria melhor que você tivesse se calado a dizer tais palavras a um homem como Owain”.
“Pela mão de um amigo, boa Senhora”, respondeu Kai, “a glória de Owain não é maior que a minha”.
Artur acordou e perguntou se havia dormido por muito tempo.
“Sim, Senhor”, respondeu Owain, “O Senhor dormiu por um bom tempo”.
“Já é hora de comermos?”
“Sim, Senhor”, respondeu Owain.
Então, tocaram os sinos para que as mãos fossem lavadas e o Rei e todos os seus companheiros se sentaram para comer. Quando a refeição terminou, Owain saiu para seu alojamento e aprontou seu cavalo e suas armas.
De manhã, ao nascer do dia, ele vestiu sua armadura, montou seu carregamento e viajou por terras distantes e montanhas desertas. Depois de algum tempo, ele chegou ao vale que Kynon havia descrito. Ele estava certo de que aquele vale era o mesmo sobre o qual o amigo falara. E viajando pelo vale ao lado do rio, ele seguiu seu curso até chegar a uma planície de onde se via um castelo. Ao se aproximar do castelo, ele viu os jovens atirando seus canivetes no mesmo lugar onde Kynon os vira antes. O homem amarelo, a quem o castelo pertencia, estava em pé por ali. E tão logo Owain o cumprimentou, ele devolveu o cumprimento. Foram juntos em direcção ao castelo, e lá ele viu o salão. Quando entrou no salão, viu as donzelas trabalhando no bordado do cetim, sentadas em cadeiras de ouro. E sua beleza e hospitalidade pareceram ainda maiores do que Kynon as havia descrito. Elas se levantaram para recebê-lo, bem como haviam feito com Kynon. A refeição que serviram a ele foi muito melhor do que a que serviram a Kynon.
No meio da refeição, o homem amarelo perguntou a Owain sobre o objectivo de sua viagem, e Owain o contou.
“Estou à procura do cavaleiro que guarda a fonte”.
Diante disso, o homem amarelo sorriu e se disse disposto a mostrar-lhe esta aventura do mesmo jeito que fez a Kynon. Então, ele descreveu todo o caminho a Owain e foram dormir.
Na manhã seguinte, Owain encontrou seu cavalo já preparado pelas donzelas. Partiu e chegou à clareira onde o homem negro estava. A estatura do homem negro pareceu mais maravilhosa a Owain que a Kynon, e Owain perguntou a ele sobre o caminho. A resposta tinha apenas uma palavra. Owain seguiu o caminho, assim como Kynon fez, até que chegou à árvore verde. Ele viu a fonte e o pedaço de mármore do lado dela, com a bacia sobre ele. Então, Owain pegou a bacia e derramou a água sobre o mármore. Ouviu o trovão e, depois do trovão, veio a chuva, muito mais violenta do que Kynon havia contado. Depois da chuva, o céu se abriu. E quando Owain olhou para a árvore, não havia uma única folha sobre ela. Imediatamente, vieram os pássaros que pousaram na árvore e começaram a cantar. Quando a música estava ainda mais agradável, Owain avistou o cavaleiro vindo em sua direção pelo vale e se preparou para recebê-lo. O encontro foi violento. Com as duas lanças quebradas, empunharam suas espadas e lutaram. Então, Owain acertou o cavaleiro em seu capacete com tanta força que o golpe atingiu a cabeça, passando pela carne e os ossos, até atingir o cérebro. Então o cavaleiro negro sentiu que havia sofrido um ferimento mortal, virou seu cavalo e fugiu. Owain foi atrás dele e o seguiu bem de perto, apesar de não tão perto para acertá-lo com sua espada. Então, Owain avistou um castelo grande e resplandecente. E eles chegaram ao portão do castelo. De dentro do castelo, baixaram a ponte levadiça para que o cavaleiro negro entrasse e a derrubaram em cima de Owain. O portão atingiu seu cavalo por trás da sela, o partiu em dois e arrancou até as esporas dos sapatos de Owain. E a ponte levadiça bateu no chão. Owain, com a parte que sobrou do cavalo, ficou entre os dois portões. O portão interno estava fechado e Owain não podia entrar. Sua situação era difícil. Enquanto estava ali, ele pôde ver uma rua através de uma abertura no portão. A rua tinha fileiras de casas dos dois lados. Ele viu uma donzela de cabelos louros encaracolados e uma coroa de ouro sobre a cabeça. Ela usava um vestido de cetim amarelo e seus sapatos eram de couro de todas as cores. Ela se aproximou do portão desejando que este estivesse aberto.
“Deus sabe, Senhora”, disse Owain, “não é possível que eu abra este portão para a Senhora, mas é possível que a Senhora me liberte”.
“É verdade”, disse a donzela, “é triste que você não possa ser solto. Todas as mulheres deveriam vir para socorrê-lo, pois nunca houve um homem mais leal às mulheres do que você. Como um amigo, você é o mais sincero. Como um amante, o mais devotado. Por isso, farei tudo o que puder para que você seja solto. Pegue este anel e coloque-o no dedo, com a pedra virada para dentro de sua mão. Mantenha a mão fechada. Durante o tempo em que você esconder a pedra, ela também te esconderá. Eles virão atrás de você para matá-lo e se ofenderão por não encontrá-lo. Eu estarei a tua espera no estábulo distante e você poderá me ver, mas eu não poderei vê-lo. Então, ponha sua mão em meu ombro para que eu saiba que você está perto. E você me acompanhará pelo caminho”.
Então ela se foi e Owain fez tudo o que a donzela lhe havia dito. As pessoas do castelo vieram à sua procura para matá-lo e quando não o encontraram, apenas a metade de seu cavalo, ficaram furiosas. Owain passou por eles e foi até a donzela e colocou a mão sobre seu ombro. Então ela saiu e ele a seguiu até chegarem à porta de um aposento grande e bonito. A donzela abriu a porta, eles entraram e ela fechou a porta. Owain olhou por todo o aposento e nada encontrou que não fosse graciosamente colorido. Todos os quadros eram diferentes e emoldurados em dourado. A donzela acendeu a lareira, colocou água em uma bacia prateada, pegou uma toalha de linho branco e colocou sobre o ombro de Owain. Deu a Owain a água para que ele se banhasse. Então, diante dele, ela colocou uma mesa prateada decorada com ouro sobre a qual havia uma toalha de linho amarelo e serviu uma refeição. E, em verdade, Owain nunca antes vira carne que não fosse servida em abundância, mas aquela era a mais bem preparada que já encontrara. Também, ele nunca vira antes uma mesa tão bonita, com carne e bebida, como a que havia ali. Não havia uma única taça que não fosse de ouro ou de prata. Owain comeu e bebeu até o final da tarde quando ouviram um grito assustador no castelo. Ele perguntou à donzela o que era aquilo e ela respondeu que estavam dando a Extrema Unção ao Nobre a quem o castelo pertencia. E Owain foi dormir.
O colchão que ela havia preparado para ele era digno de Artur; era vermelho, macio, de cetim e linho fino. No meio da noite eles ouviram um grito terrível.
“Que grito foi esse?”, perguntou Owain.
“O Nobre, a quem este castelo pertencia, está morto agora”, respondeu a donzela.
E um pouco depois do raiar do dia, eles ouviram mais um grito. Owain perguntou a donzela porquê aquilo estava acontecendo.
“Estão levando para a igreja o corpo do Nobre a quem este castelo pertencia”.
Owain se levantou, se vestiu, abriu a janela e olhou em direção ao castelo; ele não enxergava a fronteira, apenas o aglomerado de pessoas que estavam na rua. Eles estavam armados; havia muitas mulheres entre eles, montadas ou não; e todos os eclesiásticos da cidade cantavam. E para Owain, era como se o céu ecoasse veemente o lamento daquelas pessoas, junto ao som das trombetas e do canto dos eclesiásticos. No meio da multidão, ele avistou o caixão, coberto por um manto de linho branco. Havia velas queimando ao redor do caixão e, ninguém de hierarquia abaixo de um Barão segurava o caixão.
Nunca antes Owain vira uma montagem tão bonita em cetim e seda. E seguindo a procissão, ele viu uma senhora de cabelos louros que lhe caiam pelos ombros, manchados de sangue. Seu vestido de cetim amarelo estava rasgado. O couro de seus sapatos era de cores variadas, e era de se admirar que as pontas de seus dedos não se machucassem com toda aquela violência com que apertava das mãos uma contra a outra. Honestamente, esta seria a mulher mais linda que Owain já vira, caso estivesse em seu normal. Seu lamento era mais alto que o grito dos homens ou o clamor das trombetas. Tão logo viu tal senhora, seu coração se inflamou de um amor tão grande que não se conteve. Então, ele perguntou à donzela quem era aquela senhora.
“Deus sabe”, respondeu a donzela, “Ela é a mais linda, a mais casta, a mais generosa, a mais sábia e a mais nobre de todas as mulheres. Ela é a minha senhora. É conhecida como a Condessa da Fonte, a esposa daquele a quem você matou ontem”.
“Sim”, disse Owain, “Ela é a mulher a quem eu mais amo”.
“Sim”, respondeu a donzela, “E ela também o amará e muito”.
Com isso, a donzela levantou-se, aumentou o fogo, encheu uma vasilha de água e a levou até o fogo para esquentar. Trouxe uma toalha de linho branco e colocou em volta do pescoço de Owain. Pegou um cálice branco e uma bacia prateada. Encheu-os com água morna e lavou a cabeça de Owain. Abriu uma caixinha de madeira e dela retirou uma lâmina decorada com dois pregos de ouro. Aparou sua barba e secou sua cabeça e seu pescoço com a toalha. Depois, se levantou e foi buscar alguma coisa para que ele comesse. E, sinceramente, Owain nunca antes tivera tão boa comida ou fora tão bem servido.
Ao final da refeição, a donzela preparou a cama de Owain.
“Venha”, disse a donzela, “e durma. Eu sairei para cuidar de tudo para você”.
Owain deitou-se para dormir e a donzela trancou a porta de seus aposentos indo, em seguida, em direção ao castelo. Chegando lá, nada encontrou além de lamentos e dor. A Condessa, que estava em seus aposentos, nada enxergava além de seu sofrimento. Luna foi saudá-la, mas a Condessa nada respondeu. A donzela curvou-se diante dela e disse:
“- O que há, Senhora? Por que não fala com ninguém?”
“Luna”, disse a condessa, “O que há com você que não veio me acalmar o pranto? O que há de errado com você? Eu a tornei rica. O que há de errado com você que não esteve ao meu lado para apaziguar minha angústia? O que há de errado com você?”
“Honestamente, senhora”, respondeu Luna, “Pensei que seu bom-senso fosse maior do que eu o considerava. A senhora se lamenta por aquele bom homem ou por alguma outra coisa que não pode ter?”
“Juro por Deus”, respondeu a Condessa, “que em nenhum lugar deste mundo existe outro homem como aquele”.
“Não é assim”, respondeu Luna, “Mesmo um homem feio poderia ser tão bom quanto ou melhor do que ele”.
“Juro por Deus”, respondeu a Condessa, “Não parecesse tão horrível para mim matar uma pessoa que eu criei, eu a mandaria ser executada por esta comparação repugnante! Sendo assim, eu a banirei”.
“Fico feliz”, respondeu Luna, “que minha Senhora não tenha outra razão para isso a não ser aquela de que eu estava em seu serviço tratando de seu bem-estar. E, daqui por diante, maldita seja quem de nós tentar uma reconciliação; seja eu quem primeiro procure pela Senhora, seja a Senhora quem primeiro procure por mim!”
Com isso, Luna foi em direção à porta dos aposentos da Condessa e ela a seguiu e começou a tossir bem forte. Luna voltou-se para trás e lá estava a Condessa, de braços abertos prontos para um abraço, e se abraçaram.
“Em verdade”, disse a Condessa, “maldito é o sentimento que pode nos separar. Se você sabe o que é melhor para o meu bem-estar, diga-me”.
“Eu direi”, respondeu a donzela. “A Senhora sabe que apenas pela guerra e pela arma será possível conservar o que a Senhora possui hoje. Não deve então demorar-se em encontrar quem possa defendê-la”.
“E como farei isso?”, perguntou a Condessa.
“Eu lhe direi”, respondeu Luna. “Seus domínios apenas estarão seguros se puder defender a fonte. E não há quem possa defender a fonte, a não ser um cavaleiro de Artur. Eu irei a Corte de Artur, me arriscarei e trarei de lá um cavaleiro para defendê-la”.
“Esta tarefa não será fácil. No entanto, vá e cumpra com sua promessa”.
Luna saiu fingindo ir à Corte e Artur, mas retornou ao quarto onde Owain estava. E lá permaneceu com ele por todo tempo que seria necessário para viajar até a Corte de Artur. Quando todo este tempo passou, ela se vestiu adequadamente e foi visitar a Condessa. A Condessa alegrou-se muito ao vê-la e perguntou sobre as notícias trazidas da Corte.
“Trago-lhe as melhores notícias”, disse Luna. “Cumpri com o objetivo de minha missão. Quando a Senhora deseja que eu lhe apresente o cavaleiro que trouxe comigo?”
“Traga-o aqui para visitar-me amanhã ao meio-dia”, respondeu a Condessa. “Eu prepararei toda a cidade para este momento”.
Luna voltou para casa. No outro dia, ao meio-dia, Owain vestiu-se com um casaco, um sobretudo e um manto de cetim amarelo bordado com fitas de ouro. Seus sapatos eram altos e de couro de cores diferentes, amarrados por fivelas de ouro na forma de leões. Foram, então, para os aposentos da Condessa.
A condessa ficou muito feliz com a chegada deles. No entanto, olhou para Owain convicta e falou:
“- Luna, este cavaleiro não parece ter viajado”.
“Que mal há nisso, Senhora?”, respondeu Luna.
“Estou certa de que nenhum outro homem possui a alma que havia no corpo do meu Senhor”, disse a condessa.
“Melhor assim, Senhora”, respondeu Luna. “Se ele não fosse mais forte que o vosso Senhor, jamais lhe teria tirado a vida. E não há remédio para o passado. Deixe que o passado seja como é”.
“Volte para seus aposentos”, disse a Condessa. “Vou procurar meus conselheiros”.
No dia seguinte, a Condessa levou suas preocupações à assembléia e mostrou a seus conselheiros que seu reino estava indefeso e que nunca estaria protegido a menos que por armas e exército montado.
“Assim”, disse ela, “esta é a escolha que peço que façam: ou um dos senhores casa-se comigo ou permitam que me case com alguém de outro lugar que possa defender meu reino”.
Eles decidiram que melhor seria que ela se casasse com alguém de outro lugar. Então, ela pediu aos bispos e arcebispos que celebrassem seu casamento com Owain. Assim, Owain tornou-se o homem daquele reino.
Owain defendeu a Fonte com lança e espada, deste jeito que vou lhes contar: sempre que um cavaleiro aparecia por lá, ele o derrotava. Depois, o vendia pelo preço que valia e dividia o ganho entre os barões e também seus cavaleiros. Logo, tornou-se o homem mais amado do mundo inteiro. E assim foi durante uns três anos.
Aconteceu que, um dia Gwalchmai foi visitar o Rei Artur e percebeu que o Rei estava muito triste. Gwalchmai ficou muito preocupado com o estado do Rei e lhe perguntou sobre o que havia acontecido, ao que o Rei respondeu:
“- Oh, Gwalchmai! Estou assim por causa do Owain, a quem eu perdi por estes três anos. E eu, certamente não suportarei um quarto ano sem vê-lo. Agora tenho certeza que é tudo por causa da história que Kynon, filho de Clydno, lhe contou. E então, Owain se foi”.
“Não há razão para isto”, disse Gwalchmai. “O Senhor e vossos homens podem vingar Owain se ele estiver morto ou libertá-lo, se estiver preso; e se estiver vivo, podem trazê-lo de volta”.
E a história seguiu de acordo com o que Gwalchmai disse.
Então Artur e seus homens se prepararam para sair à procura de Owain. Estavam em três mil homens, além dos ajudantes. E Kynon, filho de Clydno era o guia de todos. Chegaram ao castelo onde Kynon havia estado antes. Quando chegaram lá, os jovens estavam atirando seus canivetes no mesmo lugar e o homem amarelo também estava lá. Quando o homem amarelo viu Artur, ele o cumprimentou e o convidou para ir até o Castelo. Artur aceitou seu convite e foram juntos. E apesar de estarem em tão grande número, sua presença quase não foi notada, de tão grande que era o castelo. As donzelas se levantaram para esperar por eles e os serviram muito melhor do que já haviam sido servidos antes. Serviram muito bem, sem distinção entre cavaleiros e pagens, da mesma forma que Artur faria se estivessem em seu castelo.
Na manhã seguinte, Artur seguiu viagem, tendo Kynon por seu guia, e chegou ao lugar onde o homem negro estava. A estatura do homem negro deixou Artur muito surpreso – mais surpreso do que ficou quando lhe falaram a respeito do homem negro. Subiram a montanha, atravessaram o vale até chegar à árvore verde, onde viram a fonte, a bacia e o mármore. Nesta hora, Kai falou com Artur:
“- Meu Senhor, sei o que de tudo isso significa. E peço que o Senhor me permita jogar a água sobre o mármore e receber a primeira aventura que chegar”.
Artur consentiu. Kai jogou a água sobre o mármore e, imediatamente, veio o trovão. Após o trovão, veio a chuva. Uma tempestade que nenhum deles vira antes e que matou muitos homens do exército de Artur. Após cessar a chuva, o céu se abriu. Olharam para a árvore e perceberam que não havia uma única folha sobre ela. Logo, pássaros pousaram sobre a árvore e sua melodia era mais suave do que todas que eles já haviam ouvido. Então, viram um cavaleiro vestido em cetim preto sobre um cavalo negro, vindo muito rapidamente em sua direção. O cavaleiro e Kai se encontraram, lutaram e não demorou muito até Kai ser derrotado. O cavaleiro se foi e Artur e seus homens decidiram acampar por ali naquela noite.
Quando se levantaram pela manhã, perceberam o sinal de combate pela lança do cavaleiro. Kai foi até Artur e falou:
“- Acho que fui derrotado por aquele cavaleiro, mas se o Senhor permitir, gostaria de encontrá-lo novamente hoje”.
Artur consentiu e Kai partiu em direção ao cavaleiro. Novamente, ele derrotou Kai e o atingiu na testa com tanta força que quebrou seu capacete e o feriu, carne e osso. Kai retornou para onde seus companheiros estavam.
Depois disso, todos os homens de Artur foram, um a um, lutar contra o cavaleiro, até que já não houvesse apenas um que não havia sido derrotado por ele, exceto Artur e Gwalchmai. Artur se armou e foi de encontro ao cavaleiro.
“Oh, meu Senhor!”, disse Gwalchmai, “Permita que eu lute primeiro”.
Artur consentiu. Ele foi de encontro ao cavaleiro tendo, sobre ele e seu cavalo, um manto de cetim que representava suas vitórias. Eles se encontraram e lutaram o dia todo até o anoitecer e, nenhum dos dois foi capaz de derrubar o outro de cima de seu cavalo.
No outro dia lutaram usando lanças ainda mais fortes, porém nenhum dos dois obteve êxito. No terceiro dia, lutaram usando lanças muito, muito fortes mesmo. Estavam realmente furiosos, e lutaram tendo um enorme sentimento de ódio, até o meio-dia. Bateram-se com tanta força que até quebraram as cilhas de seus cavalos e caíram no chão. Levantaram-se rapidamente e sacaram suas espadas e retomaram o combate. A multidão que testemunhava aquela luta tinha certeza de que aquela era a primeira vez que viam dois homens tão valentes e poderosos. E se fosse meia-noite ainda haveria a luz que saia de suas armas para iluminar toda a planície. O cavaleiro golpeou Gwalchmai tão forte que conseguiu tirar-lhe o capacete. Então, o cavaleiro reconheceu Gwalchmai. Foi então que Owain disse:
“-Gwalchmai, meu Senhor. Não o reconheci, meu primo, envolvido por este manto de vitórias. Tome minha espada e minhas armas”.
“Você”, disse Gwalchmai, “é o grande vencedor. Tome, você, minha espada e minhas armas”.
Quando Artur os viu, eles estavam conversando e iam em sua direção.
“Meu Senhor, Artur”, disse Gwalchmai. “Aqui está Owain, que me venceu e nem por isso me levará minhas armas”.
“Meu Senhor”, disse Owain, “Foi ele quem me venceu e nem por isso me levará minha espada”.
“Dê-me os dois suas espadas”, disse Artur, “E, assim, não haverá vencedor”.
Então Owain colocou suas armas sobre os ombros de Artur e os dois se abraçaram. E todos os outros correram para ver e abraçar Owain; e quase o mataram de tanto que o apertavam.
À noite, foram descansar e Artur preparou sua partida para o dia seguinte.
“Meu Senhor”, disse Owain, “Sei que não parece correto que eu tenha passado três anos longe do Senhor, mas durante todo este tempo, até o dia de hoje, venho preparando um banquete em vossa homenagem, pois sabia que o Senhor viria em minha procura. Por isso, fique comigo até que o Senhor e vossos homens tenham vencido o cansaço da viagem e se recuperado”.
E todos eles foram ao castelo da Condessa da Fonte, e o banquete que levara três anos para ser preparado, foi devorado em três meses. Era a primeira vez que comiam um banquete tão saboroso e tão agradável. Então, o Rei preparou sua partida. Artur enviou um embaixador até a Condessa para pedir-lhe permissão para que Owain partisse com eles e permanecesse por três meses para conhecer os nobres e senhoras da Ilha da Bretanha. A Condessa deu consentimento para que Owain partisse, mas sentiu muito por isso. Então, Owain partiu com Artur para a Ilha da Bretanha. E, em meio a seus amigos, Owain permaneceu por três anos ao invés de três meses.
E, um dia, quando Owain estava na cidade de Carleon de Usk, ele avistou uma dama sobre um cavalo com a crina encaracolada, coberta de espuma. A rédea e o que podia ser visto da sela era de ouro. A donzela usava um vestido de cetim amarelo. Ela se aproximou de Owain e tirou da mão dele o anel.
“Assim deve ser tratado o enganador, o traidor, o indigno de confiança, o desgraçado e o covarde”.
Então, virou-se sobre seu cavalo e partiu. A lembrança trouxe sofrimento a Owain. Então, logo após o jantar, ele voltou a seus aposentos e se preparou para partir. No dia seguinte, Owain se levantou, mas não foi à Corte. Saiu em direção à terras distantes e montanhas não cultivadas. E lá permaneceu até que tivesse suas roupas rasgadas e o corpo desgastado e os cabelos compridos. Tinha a companhia de animais selvagens e, com eles, se alimentava. Com o tempo, foi ficando tão fraco que mal podia ter a companhia dos bichos. Foi quando desceu das montanhas em direção ao vale, chegando a um parque que era o mais bonito do mundo, o qual pertencia a uma Condessa viúva.
Um dia, a Condessa e suas criadas foram passear pelo lago que havia no meio do parque e avistaram o que parecia ser um homem. Ficaram apavoradas. Ainda assim, se aproximaram dele, o tocaram e olharam. Perceberam que ainda estava vivo, apesar de exausto e mal-tratado pelo sol. A Condessa retornou ao Castelo, pegou um frasco cheio com um creme muito caro e o entregou a uma de suas criadas.
“Vá”, disse a Condessa, “e leve isso. Leve também um cavalo e roupas e os coloque perto do homem que acabamos de ver. Passe este bálsamo perto do coração dele e, se ainda estiver vivo, este bálsamo fará com que se levante. Fique lá e veja o que ele vai fazer”.
A donzela foi até onde estava Owain e espalhou todo o bálsamo sobre ele. Deixou o cavalo e a vestimenta por perto e se escondeu para poder observá-lo. Um pouco depois, o viu mexendo os braços. Ele se levantou, olhou para si mesmo e sentiu vergonha de sua aparência. Então, percebeu o cavalo e as roupas deixadas perto dele. Ele se moveu lentamente até que conseguir pegar as roupas que estavam sobre a sela. Vestiu-se e, com muita dificuldade, montou o cavalo. Depois de observá-lo, a dama saiu do esconderijo e foi cumprimentá-lo. Ele ficou feliz ao vê-la e perguntou a ela que terra e que território era aquele.
“Em verdade”, disse a donzela, “este castelo pertence uma Condessa viúva. Na ocasião de sua morte, seu marido a deixou dois condados. Entretanto, hoje ela tem apenas este aqui. O outro foi tirado dela por um jovem Conde, que é seu vizinho, porque ela se recusou a tornar-se sua esposa”.
“Que pena”, disse Owain.
Então, ele e a donzela saíram em direção ao castelo. Lá chegando, as outras criadas o levaram até seus aposentos, que eram bem agradáveis, e acenderam a lareira para ele.
A donzela foi ao encontro da Condessa e lhe entregou o frasco.
“Ah, criada!”, disse a condessa. “Onde está o bálsamo?”
“Eu usei todo ele”, respondeu a criada.
“Eu não a perdoarei por isso”, disse a Condessa. “Como pôde usar um bálsamo tão caro, que vale sete libras, em um estranho a quem nem ao menos conheço? Vá. Cuide dele até que esteja recuperado”.
A donzela cuidou dele, então. Deu-lhe o que comer e beber, acendeu o fogo para lhe aquecer; deu-lhe alojamento e medicou-lhe até que estivesse, de fato, recuperado. Três meses se passaram até que Owain se recuperasse totalmente e sua aparência se tornasse ainda melhor do que era antes.
Um dia, Owain escutou o barulho de um grande tumulto e batalha no castelo e perguntou a donzela o que seria tudo aquilo.
“O Conde, de quem lhe falei, chegou ao castelo com seu exército enorme para fazer a Condessa se entregar”, respondeu a donzela.
Então, Owain perguntou a ela se a Condessa teria um cavalo e armas.
“Ela possui o melhor do mundo”, respondeu a donzela.
“Então vá e peça a ela que me empreste seu cavalo e suas armas”, disse Owain.
“Eu irei”, respondeu ela.
A donzela foi até a Condessa e lhe contou o que Owain havia dito. A Condessa riu e respondeu:
“- Certamente, eu lhe darei meu cavalo e minhas armas e ele não os devolverá; cavalo e armas como os que possuo, ele nunca os teve e ficarei feliz se ele os levar embora hoje. Assim, meus inimigos não os usarão contra mim amanhã. No entanto, ainda não sei o que lê fará com meu cavalo e minhas armas”.
A Condessa então ordenou que lhe trouxessem um belo cavalo negro, sobre o qual havia uma grande sela, e um traje de armadura para um homem e um cavalo. Owain se armou, montou o cavalo e partiu, seguido por dois pagens completamente equipados, armados e montados. Ao se aproximarem do exército do Conde, não conseguiam sequer saber onde ele começava ou terminava. Owain perguntou aos pagens em qual tropa o Conde estava.
“Na tropa mais ao longe”, disseram. “Na qual há quatro estandartes amarelos. Dois do estandartes estão na frente dele; os outros dois, em suas costas”.
“Agora voltem e esperem por mim na entrada do castelo”, disse Owain.
Os pagens partiram e Owain saiu em disparada ao encontro do Conde. Owain forçou o Conde a permanecer sobre seu cavalo. Agarrou-lhe pela sela e virou seu cavalo em direção ao castelo e para lá o levou. Apesar da dificuldade, conseguiu arrastar o Conde até a entrada do castelo, onde os pagens estavam à sua espera. Então entraram e Owain ofereceu o Conde à Condessa como se fosse um presente, e disse a ela:
“- Ofereço-o a vós em nome de vosso bálsamo abençoado”.
O exército acampou ao redor do castelo. E O Conde devolveu à Condessa, em troca de permanecer vivo, os dois condados que havia dela tirado; em troca de permanecer livre, deu a ela metade de seus domínios, todo seu ouro e prata e as jóias que possuía.
Assim, Owain partiu. A Condessa e todos os seu empregados pediram a Owain que ali permanecesse, mas ele preferiu partir em busca de terras distantes e desertos.
Enquanto viajava, Owain ouviu um grito vindo de uma floresta. O grito se repetiu por uma segunda e terceira vez. E Owain foi em direção ao lugar de onde vinha o grito e avistou uma enorme colina rochosa no meio da floresta. Ao lado desta colina havia uma rocha cinza. E havia um buraco na rocha, e uma serpente dentro deste buraco. E havia um leão negro perto desta rocha. E todas as vezes em que o leão se movimentava, a serpente saía rapidamente de seu buraco e o atacava. Owain empunhou sua espada e se aproximou da rocha. Quando a serpente saiu do seu buraco, ele a atingiu partindo-a em duas. Depois, limpou sua espada e partiu, bem como antes. E o leão o seguiu e brincou com ele, como se fosse, desde de filhote, seu animal de estimação.
Assim, prosseguiam durante o dia inteiro até o anoitecer. E quando Owain sentiu que era realmente hora de descansar, ele tirou suas roupas e soltou seu cavalo na campina. Fez uma fogueira e quando o fogo já estava bem aceso, o leão lhe trouxe óleo suficiente para três outras noites. E o leão desapareceu. Quando apareceu novamente, trazia consigo um peixe grande que entregou a Owain que o pôs no fogo.
Owain pegou o peixe, tirou suas escamas, o partiu em pedaços e, em um grande espeto, o levou até a fogueira para ser assado. O que sobrou do preparo do peixe, Owain deu ao leão. Enquanto fazia isso, ele escutou um suspiro profundo; depois, outro e mais outro. Então, Owai perguntou se o suspiro que ouvira vinha de um ser humano, e a resposta foi que sim.
“Quem é você?”, perguntou Owain.
“Luna, a criada da Condessa da Fonte”.
“O que faz aqui”, ele lhe perguntou.
“Fui aprisionada por causa de um cavaleiro que veio da Corte do Rei Artur e depois se casou com a Condessa. Ele ficou apenas por um curto tempo junto a ela e depois partiu de volta para a Corte do Rei e não mais retornou. Ele era o amigo a quem eu mais prezava em todo o mundo. E na Corte da Condessa, os pagens agora o chamam de traidor. Eu lhes disse que mesmo se estivessem todos juntos, nunca poderiam vencer este cavaleiro de quem falo. Então, me aprisionaram nesta caverna e disseram que eu deveria ser condenada à morte, a menos que este cavaleiro viesse, neste período, me resgatar. Eu serei condenada à morte depois de amanhã, e nem mais um dia. E não há quem possa procurá-lo para mim. Seu nome é Owain, o filho de Uriens”.
“Você tem certeza de que, se este cavaleiro soubesse de tudo o que se passa, ele viria salvá-la?”, perguntou Owain.
“Estou certa que sim”, respondeu ela.
Quando o peixe estava pronto, Owain o dividiu com a donzela e ficaram ali conversando e comendo até o dia amanhecer. No dia seguinte, Owain perguntou à donzela se por ali havia onde conseguir comida e diversão para aquela noite.
“Sim, Senhor”, disse ela. “Caminhe até mais adiante, siga o curso do rio, e logo verá um grande castelo, no qual há muitas torres. O Conde dono deste castelo é o homem mais hospitaleiro do mundo. O Senhor poderá passar a noite lá”.
Nunca um soldado cuidou tanto do seu senhor quanto o leão cuidou de Owain durante aquela noite. Owain preparou seu cavalo, foi caminhando pela beira do rio e avistou o castelo. Ao entrar, foi recebido com muitas honras. E seu cavalo foi bem tratado e bem alimentado. O leão se sentou bem ao lado da coxia do cavalo para que ninguém do castelo se atrevesse a se aproximar dele. O tratamento dado a Owain foi melhor que qualquer outro que ele havia conhecido, apesar de todos naquele castelo parecerem muito tristes, como se a morte estivesse perto deles. Então, serviram o jantar. Owain sentou-se entre o Conde e sua única filha, cuja beleza Owain nunca vira antes. O leão encontrou lugar entre os pés de Owain, debaixo da mesa, e foi alimentado com todo tipo de comida com que Owain se servia. Ele nunca antes vira algo parecido com a tristeza daquela gente.
Em meio ao jantar, o Conde começou a dar as boas vindas a Owain.
“Então”, disse Owain, “O Senhor deveria estar feliz”.
“Deus sabe”, disse o Conde, “Não é sua presença o que nos entristece. No entanto, temos motivo para nossa tristeza e preocupação”.
“O que foi?”, perguntou Owain.
“Tenho dois filhos que ontem sairam para caçar na montanha”, disse o Conde. “Mas na montanha, há um monstro que mata homens e depois os devora; ele capturou meus filhos. Amanhã é o final do prazo que ele nos deu. Ele diz que vai matar meus filhos debaixo dos meus olhos, a menos que eu lhe entregue a minha filha. Ele tem a aparência de um homem, mas a estatura é de um gigante”.
“É realmente lamentável”, disse Owain. “O que pensa em fazer?”.
“Deus sabe”, disse o Conde, “será melhor que meus filhos sejam mortos contra minha vontade que entregar minha filha a este monstro para que ele a destrua”.
Começaram a conversar sobre outras coisas e Owain passou a noite por lá.
No dia seguinte, ouviram um clamor enorme causado pela chegada do gigante e dos dois jovens. O Conde estava tenso tanto por proteger o castelo quanto por libertar seus filhos. Então, Owain vestiu sua armadura e saiu em direção ao gigante. O leão o seguiu. Quando o gigante viu que Owain estava armado, foi logo em sua direção e o atacou. O leão lutou mais bravamente que Owain contra o gigante.
“Em verdade”, disse o gigante, “Não seria difícil lutar contra você e vencê-lo, não fosse por seu animal”.
Ao ouvir isso, Owain levou o animal de volta ao castelo e fechou os portões atrás dele. Depois retomou sua luta contra o gigante. O leão rugia cada vez mais alto por sentir que as coisas pioravam para o seu dono. Então, foi escalando o castelo até chegar ao salão e depois ao topo. Lá de cima, deu um salto e novamente se juntou a Owain na luta contra o gigante. O leão atingiu o gigante com sua garra que o cortou desde o ombro até a cintura; seu coração ficou exposto e o gigante caiu morto no chão. Então, Owain devolveu os dois jovens a seu pai.
O Conde pediu a Owain que permanecesse ali com eles, mas Owain não aceitou e retornou à campina onde Luna estava. Quando lá chegou, ele viu uma grande fogueira e dois jovens de cabelos encaracolados e avermelhados carregando a donzela para jogá-la naquela fogueira. Owain perguntou a eles o que tinham contra a donzela, e eles contaram a ele resumidamente qual era o problema entre os três, bem como a donzela havia feito na noite anterior.
“Então”, disseram, “Owain não veio salvá-la; por isso, vamos queimá-la”.
“É verdade”, disse Owain, “Owain é um bom cavaleiro e se ele soubesse do perigo que esta donzela corre, eu ficaria admirado se ele não viesse salvá-la. No entanto, se os senhores aceitarem, lutarei no lugar de Owain”.
“Aceitaremos”, responderam os jovens.
Atacaram Owain de tal forma que ele se viu por várias vezes em perigo. Com isso, o leão veio ajudá-lo e os dois, Owain e o leão, venceram os jovens.
“Senhor”, disseram os jovens, “seria fácil vencê-lo se não houvesse a ajuda do leão”.
Então Owain colocou o leão no mesmo lugar onde a donzela estava aprisionada e bloqueou a passagem com a ajuda de algumas pedras e voltou para lutar contra os jovens. Mas Owain já não estava tão forte e, por isso, os dois jovens estavam vencendo. O leão rugia incessantemente por ver Owain em perigo e começou a derrubar a parede de bloqueio até conseguir sair dali. Então, foi correndo para cima dos jovens e facilmente os venceu. Desta forma, Luna foi salva de ser queimada na fogueira.
Então Owain retornou com a donzela para o reino da Condessa. E quando chegou lá, ele levou a Condessa com ele de volta para a Corte de Artur, como sua esposa por toda a sua vida.
Então, pegou a estrada que levava à corte do homem negro. Owain lutou contra ele tendo seu leão ao seu lado até que o tivessem vencido. E quando chegaram de fato à corte do homem negro e entraram, viram vinte e quatro donzelas, as mais belas que existiam. As roupas que as donzelas vestiam não valiam nem mesmo vinte e quatro centavos e elas estavam tristes e sofridas como se visitadas pela morte. Elas lhes disseram que eram todas filhas de Condes e que ali haviam chegado na companhia de seus maridos, a quem muito amavam. E que haviam sido recebidas com honras e alegrias. No entanto, haviam sido levadas a um estado de torpor e enquanto assim permaneciam, o monstro que era dono daquele castelo matava seus maridos, roubava seus cavalos, suas roupas, seu ouro, sua prata e mantinha os corpos dos maridos mortos ainda dentro daquela casa e, muitos outros corpos também. Esta era a causa de seu sofrimento e lamentavam que ele não houvera chegado antes para livrar-lhes de tanta dor.
Owain sentiu muito ao ouvir tudo aquilo e partiu. Ao deixar o castelo, viu um cavaleiro se aproximando dele, o qual o saudou com muita alegria e gentileza tal qual fossem irmãos. O cavaleiro era o homem negro.
“Em verdade”, disse Owain, “Não vim buscar sua amizade. Na verdade, não há amizade para vós dentro de mim”.
Eles se encararam e lutaram furiosos. Owain o venceu e amarrou as mãos dele atrás de suas costas. Então, o homem negro implorou a Owain que lhe conservasse a vida dizendo o seguinte:
“-Meu Senhor, Owain, já estava previsto que o Senhor viria aqui e me venceria, e assim foi feito. Eu fui um ladrão, minha casa foi uma casa de maus tratos, mas conserve minha vida. Eu me tornarei o zelador de um Hospital, transformarei esta casa em um Hospital para os fortes e para os fracos por todo o resto de minha vida em homenagem a sua alma bondosa”.
Owain aceitou sua proposta e ali passou aquela noite.
No dia seguinte, ele pegou as vinte e quatro senhoras, seus cavalos, suas roupas, seus bens e jóias e prosseguiu com elas para a Corte de Artur. E se Artur ficou feliz ao vê-lo novamente após tê-lo perdido da primeira vez, sua alegria fora ainda maior desta vez. Das vinte e quatro senhoras, as que desejaram permanecer na Corte de Artur permaneceram; as que quiseram partir, partiram.
E, desde então, Owain foi muito amado na Corte de Artur, como chefe da guarda, até partir com seus seguidores, um exército de trezentos pássaros pretos, os quais eram um presente de Kenverchyn. E onde quer que fosse a luta, junto a esses pássaros, Owain era sempre o vitorioso.
E este é o conto da SENHORA DA FONTE.
Da Mitologia Celta