A merenda decorreu alegremente. Houve bolos, bolinhos e bolachas, compota de cereja e de alperce e leite com chocolate para os netos e chá com leite para a avó. O aparecimento da lata com os bolinhos secos, feitos pela Dona Clarisse, foi recebido com palmas e vivas.
– Meninos, tenham compostura – mandava a Dona Clarisse, numa voz com mais açúcar que todos os bolos juntos.
O Mário, que era o mais despachado, lembrou-se de qualquer coisa que queria saber e perguntou logo:
– Ó avó, para que serve aquela caixa de madeira toda pintada com flores e enfeites que tem um rolo dentro, cheio de dentinhos?
– É uma caixa de música, meu neto. Tocava lindamente um minuete chamado... chamado... "A dama vestida de azul", exactamente! Dávamos-lhe corda e ele tocava muito ao de leve... Assim: tlim, tlim, tlim... Já não consigo recordar.
Estava quase triste a Dona Clarisse. Para afastar do rosto da avó aquele ténue véu de tristeza, o Rodrigo perguntou:
– Como é que a caixa de música deixou de trabalhar?
– Escangalhou-se – respondeu ela. – Escangalhei-a eu, quando era garota. Quis saber como é que trabalhava por dentro. Desmontei-a e nunca mais ninguém conseguiu pô-la a funcionar.
Um dos netos anunciou:
– Mas temos aqui o Mané que arranja. O Mané arranja tudo.
Era o irmão mais novo, o "engenheiro" da família. Consertava relógios de sala, fechaduras, estores, autoclismos, transístores e outras coisas sem conserto.
Encadernava livros e reparava cadeiras, ditas de palhinha, mas sem palhinhas. Até parece que estou a fazer propaganda do Mané, de que ele, aliás, não precisa. É um rapaz tranquilo, de silêncios pensativos e de modos arrumados. E muito modesto.
Pois foi assim que o Mané, ajudado pelo Rodrigo e pelo Miguel, se pôs a trabalhar na caixa de música, que tinha teias de aranha mais espessas que tecido.
Demoraram à volta da caixa o resto do dia. Voltaram no dia seguinte e nem quiseram lanchar. A tarefa era absorvente. A avó não quis interrompê-los e voltou à sua renda, sentada no cadeirão do quarto. Estava a dormitar, quando eles apareceram, carregando a caixa de música que poisaram numa mesinha.
– Oiça, avó – disse o Mané triunfante, enquanto, dava corda.
Ela ouviu. Ela, menina na cadeira de baloiço e as mãos de fada a tilintarem um minuete breve, leve, suave, que vem, saltita, saltita, foge, volta, nuvem azul, flor de repente desprendida da haste, pétalas ao vento, e outra vez o minuete, varinhas de condão muito finas, com estrelas na ponta, mãozinhas ágeis batendo o compasso, um sopro, uma brisa, carícias e... pronto, acabou-se!
– Então, avó, gostou? O Mané é um ás, não acha? – perguntava, entusiasmado, o Miguel.
Os outros netos estavam calados e ele calou-se também.
Dos olhos da avó fugiu uma lágrima, que os lábios, entreabertos num longo sorriso, a si chamaram.
– Meninos, tenham compostura – mandava a Dona Clarisse, numa voz com mais açúcar que todos os bolos juntos.
O Mário, que era o mais despachado, lembrou-se de qualquer coisa que queria saber e perguntou logo:
– Ó avó, para que serve aquela caixa de madeira toda pintada com flores e enfeites que tem um rolo dentro, cheio de dentinhos?
– É uma caixa de música, meu neto. Tocava lindamente um minuete chamado... chamado... "A dama vestida de azul", exactamente! Dávamos-lhe corda e ele tocava muito ao de leve... Assim: tlim, tlim, tlim... Já não consigo recordar.
Estava quase triste a Dona Clarisse. Para afastar do rosto da avó aquele ténue véu de tristeza, o Rodrigo perguntou:
– Como é que a caixa de música deixou de trabalhar?
– Escangalhou-se – respondeu ela. – Escangalhei-a eu, quando era garota. Quis saber como é que trabalhava por dentro. Desmontei-a e nunca mais ninguém conseguiu pô-la a funcionar.
Um dos netos anunciou:
– Mas temos aqui o Mané que arranja. O Mané arranja tudo.
Era o irmão mais novo, o "engenheiro" da família. Consertava relógios de sala, fechaduras, estores, autoclismos, transístores e outras coisas sem conserto.
Encadernava livros e reparava cadeiras, ditas de palhinha, mas sem palhinhas. Até parece que estou a fazer propaganda do Mané, de que ele, aliás, não precisa. É um rapaz tranquilo, de silêncios pensativos e de modos arrumados. E muito modesto.
Pois foi assim que o Mané, ajudado pelo Rodrigo e pelo Miguel, se pôs a trabalhar na caixa de música, que tinha teias de aranha mais espessas que tecido.
Demoraram à volta da caixa o resto do dia. Voltaram no dia seguinte e nem quiseram lanchar. A tarefa era absorvente. A avó não quis interrompê-los e voltou à sua renda, sentada no cadeirão do quarto. Estava a dormitar, quando eles apareceram, carregando a caixa de música que poisaram numa mesinha.
– Oiça, avó – disse o Mané triunfante, enquanto, dava corda.
Ela ouviu. Ela, menina na cadeira de baloiço e as mãos de fada a tilintarem um minuete breve, leve, suave, que vem, saltita, saltita, foge, volta, nuvem azul, flor de repente desprendida da haste, pétalas ao vento, e outra vez o minuete, varinhas de condão muito finas, com estrelas na ponta, mãozinhas ágeis batendo o compasso, um sopro, uma brisa, carícias e... pronto, acabou-se!
– Então, avó, gostou? O Mané é um ás, não acha? – perguntava, entusiasmado, o Miguel.
Os outros netos estavam calados e ele calou-se também.
Dos olhos da avó fugiu uma lágrima, que os lábios, entreabertos num longo sorriso, a si chamaram.
António Torrado