08/07/2010

Dois grãos de areia



Dois grãos de areia encontraram-se, numa praia. Vinham de sítios diferentes. Um andara pelo mar, revolvido do fundo, ao sabor de ondas e marés. O outro provinha de uma pedreira, esbarrondada por chuvas e vendavais. Não tinham a mesma experiência de vida.
O grão do mar, encostado ao grão de terra, pôs-se a recordar:
- Milhares de anos até vir aqui ter... O que eu passei!
- E eu? - suspirava o outro grãozinho. - Se te contasse, nem acreditavas...
- Merecemos descanso - concluiu o grão do mar. - E, a propósito, o colega podia chegar-se um pouco mais para lá? Estamos tão apertados.
- Não é culpa minha. Empurram-me outros grãos. São muitos.
- É o inconveniente destas praias. Muito povoadas de grãos de areia - lamentou-se o do mar. - Quem me dera um espaço só para mim!
O destino fez-lhe a vontade. As sandálias de um menino arrebataram-no. Nem tempo teve de se despedir do companheiro de ocasião...
- Tens as sandálias cheias de areia - disse a mãe do menino ao menino, à porta de casa. - Sacode-as bem.
Ele assim fez e o grão de areia saiu disparado para um cova de rua. Veio a roda de um carro e cuspi-o para o parapeito de uma janela. Veio o espanador e atirou-o para um quintal.
A pétala de uma flor acolheu-o. Uma tesoura cortou a flor. A flor foi para uma jarra. A pétala esmoreceu e caiu no chão. O grãozinho escorregou, rolou e foi parar a um canto de pó. Estava, finalmente, sozinho.
E do outro grão, que nascera numa pedreira, também querem saber? Então, eu conto.
Uma gaivota a espanejar-se na areia levou-o na asa. A sobrevoar um rochedo, a gaivota sacudiu-o e o grãozinho caiu para dentro de um mexilhão, que estava de casca aberta. Ondas altas partiram a casca do mexilhão. O grãozinho rolou e conheceu os fundos do mar. Veio um peixe e engoliu-o. Veio uma rede e pescou o peixe. Veio uma faca e abriu o peixe. Veio a água da torneira e lavou as areias das entranhas do peixe, que correram cano abaixo, até serem despejadas no mar.
?Outra vez?", estranhou o grãozinho. Mas, por pouco tempo. Uma ondinha atirou-o para uma enseada. Como não era praia que ele conhecesse, nem procurou pelo colega, com quem há muito tempo tinha estado à conversa.
Alguém poisou o relógio sobre a superfície da areia. O peso inesperado sobressaltou milhares de grãos, que acorreram ao tic-tac. Um deles, por acaso ou curiosidade, insinuou-se por um buraquinho e entrou dentro do maquinismo. Era o nosso grão, o que quase dera a volta ao mundo.
- Este relógio não anda a trabalhar bem - disse, tempos depois, não sei quem. - Tenho de levá-lo ao relojoeiro.
E levou. O relojoeiro abriu a caixa do relógio e, de lupa assestada no olho esquerdo, debruçou-se para os rodízios, que pulsavam nervosamente.
- Tem um grão de areia na alma, a travar o mecanismo.
Isto disse o relojoeiro, como se fosse um cirurgião e o relógio um doente. Com uma pinça desalojou o grãozinho. O relógio voltou a marcar ajuizadamente o tempo.
O grão de areia rolou. Pisado por muitos pés, andou aos baldões. Era um grão de areia resistente, que já experimentara muita vida. Até, uma vez, quase parara o tempo...
Foi ter a um canto de pó.
- Olá, colega - saudou-o uma voz. - Se não me engano, já nos conhecemos, ou não?
Era o outro grão do princípio desta história. Há coisas que até custam a crer...
- Por onde é que andou?
- Por aí, um pouco ao acaso - respondeu o grãozinho recém-chegado.
- Eu também - respondeu o mais velho no lugar. - Mas já descansei. Tão sozinho que estava, já me sentia mal. Ainda bem que veio.
Ficaram a contar um ao outro as respectivas aventuras. Como nós já as conhecemos, podemos ficar por aqui.
É que se não acabamos, mais dia menos dia, os dois grãos vão separar-se outra vez e voltar a correr mundo.


António Torrado