Havia, outrora, dois irmãos, filhos do rei Hrauding. O mais velho chamava-se Agnar e tinha dez anos de idade, enquanto o outro tinha oito anos e se chamava Geirrod. Certa feita, ambos haviam saído para pescar, com a autorização do pai, mas como o vento estivesse muito forte, acabaram por se perder e sua embarcação foi parar numa distante ilha.
- E agora, Agnar? - disse o frágil Geirrod, tentando manter a embarcação acima das águas junto com o irmão.
Mas todos os seus esforços resultaram inúteis: depois de dois ou três arremessos mais violentos, a frágil embarcação desfez-se nos penedos que recortavam a ilha. Agnar e Geirrod puderam dar-se por muito felizes por ter escapado com vida do terrível naufrágio.
Nem bem chegaram às areias da praia, mais mortos do que vivos, foram recolhidos por um pescador e sua mulher. Como o inverno recém tivesse começado - e fosse, consequentemente, época de muitos temporais, o que lhes impossibilitava o retorno à sua pátria -, Agnar e Geirrod viram-se obrigados a permanecer na ilha na companhia do casal.
O pescador e sua mulher mostraram-se muito amáveis com os dois jovens, mas, desde logo, ficou claro que ele tinha uma especial predileção por Geirrod, enquanto ela não disfarçava uma maior afeição por Agnar. Embora isto, viveram Iodos em paz e harmonia durante todo o período em que permaneceram na ilha até que a primavera deu os seus primeiros sinais.
- Agnar, meu irmão - disse o caçula Geirrod -, acho que chegou a época de voltar para a casa de nosso pai.
- Estou de acordo - respondeu o outro. - Vamos pedir aos nossos protetores que nos ajudem a construir uma nova embarcação.
E assim se fez. O pescador e sua esposa não se furtaram a ajudá-los, embora sentissem um aperto no coração por ter que se separar, tão cedo, daqueles dois jovens, que já lhes pareciam, de certa maneira, seus próprios filhos.
Agnar e Geirrod partiram, afinal, num belo dia de sol. Antes de embarcar, foram se despedir dos seus benfeitores e o pescador aproveitou para murmurar algo ao ouvido de Geirrod. Uma vez embarcados, tomaram com segurança o rumo de casa, enquanto que Odin e Frigga - pois não eram outros o pescador e sua mulher, senão, as duas principais divindades nórdicas, que ali estavam a passeio - começaram a debater entre si sobre qual dos irmãos seria o mais justo e correto.
- Não resta a menor dúvida que Agnar tem o coração mais puro - disse Frigga, convicta de suas palavras. - Somente a sua obtusa teimosia poderia levá-lo a pensar o contrário.
- Asneiras! - disse Odin, abanando a cabeça com desdém. - Qualquer idiota pode ver, perfeitamente, que o jovem Geirrod é, infinitamente, melhor que o irmão.
E a esta discussão entregaram-se com tanto gosto, que, em breve, já estavam a um passo de se engalfinhar. Odin decidiu, então, retornar para Asgard antes que o tempo fechasse de uma vez.
Mas lá foi pior, pois Frigga, que se julgava uma deusa muito virtuosa - e por isto mesmo muito rabugenta - retomou a discussão no ponto em que parará.
- Agnar é que é o tal! - corneteava ela o dia inteiro no ouvido do marido, que se fazia de desentendido. - Geirrod não é de nada! Viva Agnar! Viva Agnar!
Não restava dúvida alguma de que ela queria uma boa briga: em casa, no conforto do lar, enxergando todos os seus objetos e conhecendo o ambiente com a palma da mão, Frigga estava em seu território. Odin não tardou a perder a paciência e saiu em defesa de Geirrod e nesta chateação ficaram os dois por muito tempo, atazanando a paciência dos demais deuses com os gritos da luta conjugai.
Enquanto isto, em alto-mar, e já perto da costa onde ficava seu reino, os dois irmãos não viam a hora de desembarcar.
- Finalmente, caro Geirrod, estamos quase em casa! - gritava Agnar, sem conter a euforia.
Geirrod, no entanto, tinha o olhar voltado para a praia. Seus olhos vasculhavam a costa inteira para se certificar de que ninguém os enxergava.
- O que houve? - disse Agnar, intrigado com o mutismo do irmão.
- Nada, nada... - disse o outro, procurando disfarçar. - Estou tentando avistar algum conhecido na beira da praia.
O barco aproximou-se da costa. Geirrod pediu, então, que Agnar fosse buscar algo no fundo da embarcação e, tão logo este lhe deu as costas, golpeou-o com um pesado bastão.
- Pronto, agora fique quietinho aí!... - disse ele, com um sorriso perverso.
Tomando do remo, ele aproximou a embarcação da praia, desembarcou num pulo e devolveu às águas o barco, o qual, engolfado rapidamente numa corrente marinha, foi levado para bem longe do reino. Geirrod tinha certeza que o irmão pereceria de fome e sede antes de chegar a qualquer lugar habitado.
- Adeus, importuno! - disse Geirrod, abanando para a embarcação. - A partir de agora, o herdeiro da coroa passa a ser eu!
Geirrod apresentou-se no mesmo dia diante do pai, o velho e quase decrépito rei Hrauding, e lhe contou a história à sua maneira, repetindo-a tal como ocorrera, mudando apenas o final.
- Oh, papai...! - disse ele, engasgando fingidamente. - Não sei como lhe diga...! O seu adorado Agnar morreu em alto-mar e nossos olhos nunca mais o avistarão!
O adorado Agnar, entretanto, fora parar muitos dias depois, com as roupas em tiras e virado em um esqueleto semi-morto, numa ilha habitada por gigantes, onde ficaria ainda por muitos anos até se restabelecer da ferida provocada pelo traiçoeiro golpe, bem como das sequelas da inanição.
Mas tudo isto deveria servir, pelo menos, para resolver, de uma vez, a pendenga em Asgard: o canalha era mesmo Geirrod.
***
Infelizmente, não serviu: a partir daí mesmo é que a discussão pegou fogo na morada dos deuses. Odin, sem querer dar o braço a torcer - mesmo após o ato abominável perpetrado pelo seu favorito -, teimava, como um pai cego pelo amor, em declarar o perverso Geirrod melhor que o irmão Frigga, a seu turno, possuída pela ira e repleta de argumentos, investia contra o esposo como uma valquíria enfurecida.
- Vai teimar ainda, depois de tudo o que seu queridinho fez? - disse ela, com as mãos na cintura. - Então, ficou cego dos dois olhos de uma vez...!
- Geirrod é que é o tal - só dizia o deus, sem encontrar outro argumento.
Os anos passaram e Odin resolveu recorrer ao deboche, uma vez que Frigga não cessava de tripudiá-lo. Um dia, então, estando sentado em seu trono mágico, de onde podia avistar tudo o que se passava em qualquer parte do universo, chamou sua irritante esposa.
- Está vendo os dois? - disse ele, com uma indisfarçada nota de presunção na voz. - Geirrod é, hoje, um rei em seu país; já seu protegido não passa do afilhadinho efeminado de uma giganta qualquer numa ilha perdida no fim do mundo!
Não adiantava Frigga retorquir que Geirrod era um patife e que adquirira sua posição à custa de um odioso crime: ela bem sabia que um passado vil se dilui, facilmente, diante de um presente magnífico. Geirrod era agora um rei inconteste, sólido em seu trono, tal como Odin no seu - e, para a ralé mundana, era isto o que contava.
Então Frigga, cuja virtude neurastênica a tornava extremamente hábil na invenção de tormentos e castigos, decidiu fazer com que seu obtuso esposo provasse um pouco da perversidade de seu protegido. "Infelizmente, somente desta maneira dolorosa meu pobre esposo chegará a reconhecer a verdade...!", pensou Frigga, sentindo-se tão nobre e piedosa que chegou a converter a pena fingida que sentia por seu marido numa pena sincera por si mesma.
- Seu queridinho é tão mesquinho e egoísta - disse Frigga - que tem o péssimo hábito de torturar os próprios hóspedes, desde que não lhe caiam no agrado!
Odin enfureceu-se de verdade desta vez.
- Oh, mulher vil e caluniosa...! - disse Odin, expelindo, involuntariamente, alguns perdigotos divinos pela boca. - De onde tirou tal disparate?
- Todos sabem disto naquela corte infame! - retrucou Frigga, triunfante. - Só você, o grande patusco, é que desconhece o fato!
Odin fez, então, o que sua esposa já esperava que fizesse: prontificou-se a ir até a corte do seu protegido para provar que aquilo era uma calúnia baixa.
- Desta vez, você desceu demais e eu vou lhe provar isto!... - disse o deus, erguendo-se num ímpeto e indo logo buscar na estrebaria o seu magnífico cavalo, Sleipnir - aquele de oito patas, que era o mais veloz do universo e tudo o mais.
- Espere, leve, ao menos, um agasalho para não apanhar um resfriado na viagem - disse Frigga, demonstrando um súbito resquício de afecto, que chegou a embaraçar, por alguns instantes, o seu irado esposo. Enquanto Frigga esteve ausente - um bom tempo -, Odin chegou mesmo a sentir por ela um resquício de ternura.
"Ora, gostei disto...!", pensou ele, com uma certa humidade no olhar. "Ela ainda preocupa-se comigo, afinal!" E chegou a dar graças a si mesmo por não lê-la chamado de Frigga frígida, ofensa medonha que só usava em último caso, por saber que nada a deixava mais enlouquecida.
Dali a muito tempo, ela retornou com a pele de urso predilecta de Odin, dizendo:
- Pronto, vá lá e veja você mesmo com quem está lidando!
***
Odin chegou à noite à corte de Geirrod, incógnito, sob o nome falso de (irimnir.
- Deixem-me passar, lacaios! - disse ele, ao chegar ao portão do palácio tio novo rei, pois não fazia muito tempo que o velho havia morrido e o tratante assumido o seu lugar.
O que ele não sabia, no entanto, é que Frigga havia ordenado a um de seus mensageiros que fosse na frente levar um recado ao perverso rei (daí a demora em lhe trazer a pele de urso). Este recado dizia simplesmente:
"Magnífico rei: um canalha e traidor da pior espécie, que atende pelo nome de Grimnir, aproxima-se de sua morada para lhe trazer a desgraça e o infortúnio; se ainda quiser ter o pescoço em cima dos ombros no alvorecer do próximo dia, trate logo de aprisioná-lo e metêlo nos tormentos, assim que ele ousar pôr os pés no mesmo chão que seus divinos pés abençoam. "
Ass.: "Uma Amiga."
Odin foi recebido de maneira um tanto desleixada pelo rei, o qual estava mais deitado do que sentado em seu trono ordinário (pois aquele reino era, na verdade, bem miserável, comparado a outras cortes, infinitamente, mais ricas e brilhantes).
Um serviçal vil e careca, que parecia se regozijar, imensamente, com sua subalternidade, acabara de ler ao tirano o conteúdo do bilhete. As palavras sussurradas pelo verme calvo pareciam ter-lhe deliciado ao extremo, pois, logo em seguida, as duas tiras secas dos seus lábios se arreganharam num sorriso torpe.
- Ah! É você, então, o ilustre estrangeiro! - disse ele, escorregando mais um pouco no seu troninho de pau, pintado com uma casquinha de ouro tão fina que a unha poderia descascá-la.
Odin olhou para o alto, pois sabia que de algum lugar sua esposa o observava.
"Ilustre estrangeiro...!", pensou ele, com a vitória na mão. "Aí está, linguaruda", acrescentou, esquecendo o fiapo de ternura e assumindo, outra vez, a postura cruel do vencedor.
O estrondo de um escudo que caíra ao se desprender de uma das paredes encardidas, entretanto, atroou todo o recinto, dissolvendo o seu pequenino triunfo.
- Oh, o escudo magnífico de meu bisavô! - exclamou Geirrod, irado. -Quem foi o imbecil que o deixou cair?
Fora o Tempo, o imbecil que deixara o velho escudo cair, mas já outro imbecil - o lacaio da cabeça pelada - arremessara-se a ele sem perder um segundo.
- Aqui está, realíssima alteza!... - disse o serviçal, cuja careca estava es-carlate pela expectativa de uma recompensazinha.
- Idiota! - exclamou o tirano. - Deixou que ele amassasse!
De fato, o escudo maravilhoso - o melhor e mais rico objeto do palácio inteiro - depois da queda, virará uma bacia velha e amassada. Na verdade, o metal do qual fora feito era tão ordinário que o ferrão de uma abelha poderia atravessá-lo de lado a lado.
Mas logo as atenções estavam voltadas, novamente, para o visitante.
- O seu nome...! - disse Geirrod a Odin, com secura na voz. - As coisas começavam a dar para trás e isto era o bastante para ele mandar às favas o verniz que recobria, mal e porcamente, a sua péssima educação.
- Grimnir é meu nome! - disse Odin, com altivez.
- Levem-no imediatamente! - bradou o rei. - E já sabem para onde!
Por que Geirrod usara daquele tom?, pensava Odin, desconfiando um pouco da fidalguia do seu anfitrião. Mas, quando os guardas agarraram-no pelos braços e o levaram de arrasto para dentro do palácio, Odin ficou mais branco que um coelho enterrado na neve. O deus foi lançado na mais fétida das masmorras, e ali esteve trancafiado a noite inteira até que, ao alvorecer, dois guardas vieram e o levaram, coberto de algemas e correntes até a presença do rei.
Quando chegou ao salão, viu que havia duas fogueiras armadas.
- Coloquem-no entre as duas fogueiras! - disse o rei, que estava com uma perna por cima da guarda do trono, como quem estivesse prestes a assistir a um espetáculo muito divertido. - Agora você ficará aí nos próximos oito dias, até confessar quais são seus nefandos propósitos!
Odin estava envolto num manto escuro de propriedades mágicas e, graças a ele, pôde suportar os primeiros dias daquela bárbara prova, o que lhe deu ânimo para inventar desculpas para o comportamento monstruoso de seu anfitrião.
- Afinal, está um frio dos diabos, mesmo!... - disse, mais para que sua esposa Frigga escutasse do que para si mesmo.
Mas, no quarto dia o suplício tornou-se a tal ponto insuportável que Odin teve de admitir, finalmente, que estava diante de um tremendo canalha.
- Muito bem, Frigga, você venceu! - exclamava ele, em meio às labaredas.
O manto de Odin tinha esquentado tanto que já aderira à sua pele, causando-lhe indizíveis dores. No oitavo dia, entretanto, o filho de Geirrod - que linha o mesmo nome de seu infeliz tio, Agnar, e também o seu bom coração - sentiu pena do hóspede maltratado e lhe levou um chifre repleto de hidromel.
Um pouco refeito dos seus padecimentos, Odin chegou à conclusão dique já era hora de acabar com sua teimosia.
- Muito bem, tirano maldito! - disse o deus, liberte-me já! Caso contrário será punido com a morte!
- Enlouqueceu de vez! - disse o rei, ainda mais deliciado.
Então Odin começou a entoar as suas runas mágicas e as cadeias foram caindo uma a uma a seus pés, ao mesmo tempo em que as duas fogueiras se extinguiam diante dos olhos do rei.
Liberto, o deus supremo pôs-se em pé, pronto para a desforra. Geirrod, aterrado, ergueu-se lambem, mas ao ver que seu inimigo avançava sobre ele, tomou de sua espada. Porém, ao descer de seu trono mambembe, meteu o pé num furo do tapete vermelho e caiu de cara na ponta da espada, morrendo no mesmo instante.
Agnar, o filho de Geirrod, sucedeu ao pai no trono e a primeira medida que tomou foi mandar trazer do exílio o seu tio, de modo que ambos viveram felizes para sempre naquele pobre, porém, decente reino.
- E agora, Agnar? - disse o frágil Geirrod, tentando manter a embarcação acima das águas junto com o irmão.
Mas todos os seus esforços resultaram inúteis: depois de dois ou três arremessos mais violentos, a frágil embarcação desfez-se nos penedos que recortavam a ilha. Agnar e Geirrod puderam dar-se por muito felizes por ter escapado com vida do terrível naufrágio.
Nem bem chegaram às areias da praia, mais mortos do que vivos, foram recolhidos por um pescador e sua mulher. Como o inverno recém tivesse começado - e fosse, consequentemente, época de muitos temporais, o que lhes impossibilitava o retorno à sua pátria -, Agnar e Geirrod viram-se obrigados a permanecer na ilha na companhia do casal.
O pescador e sua mulher mostraram-se muito amáveis com os dois jovens, mas, desde logo, ficou claro que ele tinha uma especial predileção por Geirrod, enquanto ela não disfarçava uma maior afeição por Agnar. Embora isto, viveram Iodos em paz e harmonia durante todo o período em que permaneceram na ilha até que a primavera deu os seus primeiros sinais.
- Agnar, meu irmão - disse o caçula Geirrod -, acho que chegou a época de voltar para a casa de nosso pai.
- Estou de acordo - respondeu o outro. - Vamos pedir aos nossos protetores que nos ajudem a construir uma nova embarcação.
E assim se fez. O pescador e sua esposa não se furtaram a ajudá-los, embora sentissem um aperto no coração por ter que se separar, tão cedo, daqueles dois jovens, que já lhes pareciam, de certa maneira, seus próprios filhos.
Agnar e Geirrod partiram, afinal, num belo dia de sol. Antes de embarcar, foram se despedir dos seus benfeitores e o pescador aproveitou para murmurar algo ao ouvido de Geirrod. Uma vez embarcados, tomaram com segurança o rumo de casa, enquanto que Odin e Frigga - pois não eram outros o pescador e sua mulher, senão, as duas principais divindades nórdicas, que ali estavam a passeio - começaram a debater entre si sobre qual dos irmãos seria o mais justo e correto.
- Não resta a menor dúvida que Agnar tem o coração mais puro - disse Frigga, convicta de suas palavras. - Somente a sua obtusa teimosia poderia levá-lo a pensar o contrário.
- Asneiras! - disse Odin, abanando a cabeça com desdém. - Qualquer idiota pode ver, perfeitamente, que o jovem Geirrod é, infinitamente, melhor que o irmão.
E a esta discussão entregaram-se com tanto gosto, que, em breve, já estavam a um passo de se engalfinhar. Odin decidiu, então, retornar para Asgard antes que o tempo fechasse de uma vez.
Mas lá foi pior, pois Frigga, que se julgava uma deusa muito virtuosa - e por isto mesmo muito rabugenta - retomou a discussão no ponto em que parará.
- Agnar é que é o tal! - corneteava ela o dia inteiro no ouvido do marido, que se fazia de desentendido. - Geirrod não é de nada! Viva Agnar! Viva Agnar!
Não restava dúvida alguma de que ela queria uma boa briga: em casa, no conforto do lar, enxergando todos os seus objetos e conhecendo o ambiente com a palma da mão, Frigga estava em seu território. Odin não tardou a perder a paciência e saiu em defesa de Geirrod e nesta chateação ficaram os dois por muito tempo, atazanando a paciência dos demais deuses com os gritos da luta conjugai.
Enquanto isto, em alto-mar, e já perto da costa onde ficava seu reino, os dois irmãos não viam a hora de desembarcar.
- Finalmente, caro Geirrod, estamos quase em casa! - gritava Agnar, sem conter a euforia.
Geirrod, no entanto, tinha o olhar voltado para a praia. Seus olhos vasculhavam a costa inteira para se certificar de que ninguém os enxergava.
- O que houve? - disse Agnar, intrigado com o mutismo do irmão.
- Nada, nada... - disse o outro, procurando disfarçar. - Estou tentando avistar algum conhecido na beira da praia.
O barco aproximou-se da costa. Geirrod pediu, então, que Agnar fosse buscar algo no fundo da embarcação e, tão logo este lhe deu as costas, golpeou-o com um pesado bastão.
- Pronto, agora fique quietinho aí!... - disse ele, com um sorriso perverso.
Tomando do remo, ele aproximou a embarcação da praia, desembarcou num pulo e devolveu às águas o barco, o qual, engolfado rapidamente numa corrente marinha, foi levado para bem longe do reino. Geirrod tinha certeza que o irmão pereceria de fome e sede antes de chegar a qualquer lugar habitado.
- Adeus, importuno! - disse Geirrod, abanando para a embarcação. - A partir de agora, o herdeiro da coroa passa a ser eu!
Geirrod apresentou-se no mesmo dia diante do pai, o velho e quase decrépito rei Hrauding, e lhe contou a história à sua maneira, repetindo-a tal como ocorrera, mudando apenas o final.
- Oh, papai...! - disse ele, engasgando fingidamente. - Não sei como lhe diga...! O seu adorado Agnar morreu em alto-mar e nossos olhos nunca mais o avistarão!
O adorado Agnar, entretanto, fora parar muitos dias depois, com as roupas em tiras e virado em um esqueleto semi-morto, numa ilha habitada por gigantes, onde ficaria ainda por muitos anos até se restabelecer da ferida provocada pelo traiçoeiro golpe, bem como das sequelas da inanição.
Mas tudo isto deveria servir, pelo menos, para resolver, de uma vez, a pendenga em Asgard: o canalha era mesmo Geirrod.
***
Infelizmente, não serviu: a partir daí mesmo é que a discussão pegou fogo na morada dos deuses. Odin, sem querer dar o braço a torcer - mesmo após o ato abominável perpetrado pelo seu favorito -, teimava, como um pai cego pelo amor, em declarar o perverso Geirrod melhor que o irmão Frigga, a seu turno, possuída pela ira e repleta de argumentos, investia contra o esposo como uma valquíria enfurecida.
- Vai teimar ainda, depois de tudo o que seu queridinho fez? - disse ela, com as mãos na cintura. - Então, ficou cego dos dois olhos de uma vez...!
- Geirrod é que é o tal - só dizia o deus, sem encontrar outro argumento.
Os anos passaram e Odin resolveu recorrer ao deboche, uma vez que Frigga não cessava de tripudiá-lo. Um dia, então, estando sentado em seu trono mágico, de onde podia avistar tudo o que se passava em qualquer parte do universo, chamou sua irritante esposa.
- Está vendo os dois? - disse ele, com uma indisfarçada nota de presunção na voz. - Geirrod é, hoje, um rei em seu país; já seu protegido não passa do afilhadinho efeminado de uma giganta qualquer numa ilha perdida no fim do mundo!
Não adiantava Frigga retorquir que Geirrod era um patife e que adquirira sua posição à custa de um odioso crime: ela bem sabia que um passado vil se dilui, facilmente, diante de um presente magnífico. Geirrod era agora um rei inconteste, sólido em seu trono, tal como Odin no seu - e, para a ralé mundana, era isto o que contava.
Então Frigga, cuja virtude neurastênica a tornava extremamente hábil na invenção de tormentos e castigos, decidiu fazer com que seu obtuso esposo provasse um pouco da perversidade de seu protegido. "Infelizmente, somente desta maneira dolorosa meu pobre esposo chegará a reconhecer a verdade...!", pensou Frigga, sentindo-se tão nobre e piedosa que chegou a converter a pena fingida que sentia por seu marido numa pena sincera por si mesma.
- Seu queridinho é tão mesquinho e egoísta - disse Frigga - que tem o péssimo hábito de torturar os próprios hóspedes, desde que não lhe caiam no agrado!
Odin enfureceu-se de verdade desta vez.
- Oh, mulher vil e caluniosa...! - disse Odin, expelindo, involuntariamente, alguns perdigotos divinos pela boca. - De onde tirou tal disparate?
- Todos sabem disto naquela corte infame! - retrucou Frigga, triunfante. - Só você, o grande patusco, é que desconhece o fato!
Odin fez, então, o que sua esposa já esperava que fizesse: prontificou-se a ir até a corte do seu protegido para provar que aquilo era uma calúnia baixa.
- Desta vez, você desceu demais e eu vou lhe provar isto!... - disse o deus, erguendo-se num ímpeto e indo logo buscar na estrebaria o seu magnífico cavalo, Sleipnir - aquele de oito patas, que era o mais veloz do universo e tudo o mais.
- Espere, leve, ao menos, um agasalho para não apanhar um resfriado na viagem - disse Frigga, demonstrando um súbito resquício de afecto, que chegou a embaraçar, por alguns instantes, o seu irado esposo. Enquanto Frigga esteve ausente - um bom tempo -, Odin chegou mesmo a sentir por ela um resquício de ternura.
"Ora, gostei disto...!", pensou ele, com uma certa humidade no olhar. "Ela ainda preocupa-se comigo, afinal!" E chegou a dar graças a si mesmo por não lê-la chamado de Frigga frígida, ofensa medonha que só usava em último caso, por saber que nada a deixava mais enlouquecida.
Dali a muito tempo, ela retornou com a pele de urso predilecta de Odin, dizendo:
- Pronto, vá lá e veja você mesmo com quem está lidando!
***
Odin chegou à noite à corte de Geirrod, incógnito, sob o nome falso de (irimnir.
- Deixem-me passar, lacaios! - disse ele, ao chegar ao portão do palácio tio novo rei, pois não fazia muito tempo que o velho havia morrido e o tratante assumido o seu lugar.
O que ele não sabia, no entanto, é que Frigga havia ordenado a um de seus mensageiros que fosse na frente levar um recado ao perverso rei (daí a demora em lhe trazer a pele de urso). Este recado dizia simplesmente:
"Magnífico rei: um canalha e traidor da pior espécie, que atende pelo nome de Grimnir, aproxima-se de sua morada para lhe trazer a desgraça e o infortúnio; se ainda quiser ter o pescoço em cima dos ombros no alvorecer do próximo dia, trate logo de aprisioná-lo e metêlo nos tormentos, assim que ele ousar pôr os pés no mesmo chão que seus divinos pés abençoam. "
Ass.: "Uma Amiga."
Odin foi recebido de maneira um tanto desleixada pelo rei, o qual estava mais deitado do que sentado em seu trono ordinário (pois aquele reino era, na verdade, bem miserável, comparado a outras cortes, infinitamente, mais ricas e brilhantes).
Um serviçal vil e careca, que parecia se regozijar, imensamente, com sua subalternidade, acabara de ler ao tirano o conteúdo do bilhete. As palavras sussurradas pelo verme calvo pareciam ter-lhe deliciado ao extremo, pois, logo em seguida, as duas tiras secas dos seus lábios se arreganharam num sorriso torpe.
- Ah! É você, então, o ilustre estrangeiro! - disse ele, escorregando mais um pouco no seu troninho de pau, pintado com uma casquinha de ouro tão fina que a unha poderia descascá-la.
Odin olhou para o alto, pois sabia que de algum lugar sua esposa o observava.
"Ilustre estrangeiro...!", pensou ele, com a vitória na mão. "Aí está, linguaruda", acrescentou, esquecendo o fiapo de ternura e assumindo, outra vez, a postura cruel do vencedor.
O estrondo de um escudo que caíra ao se desprender de uma das paredes encardidas, entretanto, atroou todo o recinto, dissolvendo o seu pequenino triunfo.
- Oh, o escudo magnífico de meu bisavô! - exclamou Geirrod, irado. -Quem foi o imbecil que o deixou cair?
Fora o Tempo, o imbecil que deixara o velho escudo cair, mas já outro imbecil - o lacaio da cabeça pelada - arremessara-se a ele sem perder um segundo.
- Aqui está, realíssima alteza!... - disse o serviçal, cuja careca estava es-carlate pela expectativa de uma recompensazinha.
- Idiota! - exclamou o tirano. - Deixou que ele amassasse!
De fato, o escudo maravilhoso - o melhor e mais rico objeto do palácio inteiro - depois da queda, virará uma bacia velha e amassada. Na verdade, o metal do qual fora feito era tão ordinário que o ferrão de uma abelha poderia atravessá-lo de lado a lado.
Mas logo as atenções estavam voltadas, novamente, para o visitante.
- O seu nome...! - disse Geirrod a Odin, com secura na voz. - As coisas começavam a dar para trás e isto era o bastante para ele mandar às favas o verniz que recobria, mal e porcamente, a sua péssima educação.
- Grimnir é meu nome! - disse Odin, com altivez.
- Levem-no imediatamente! - bradou o rei. - E já sabem para onde!
Por que Geirrod usara daquele tom?, pensava Odin, desconfiando um pouco da fidalguia do seu anfitrião. Mas, quando os guardas agarraram-no pelos braços e o levaram de arrasto para dentro do palácio, Odin ficou mais branco que um coelho enterrado na neve. O deus foi lançado na mais fétida das masmorras, e ali esteve trancafiado a noite inteira até que, ao alvorecer, dois guardas vieram e o levaram, coberto de algemas e correntes até a presença do rei.
Quando chegou ao salão, viu que havia duas fogueiras armadas.
- Coloquem-no entre as duas fogueiras! - disse o rei, que estava com uma perna por cima da guarda do trono, como quem estivesse prestes a assistir a um espetáculo muito divertido. - Agora você ficará aí nos próximos oito dias, até confessar quais são seus nefandos propósitos!
Odin estava envolto num manto escuro de propriedades mágicas e, graças a ele, pôde suportar os primeiros dias daquela bárbara prova, o que lhe deu ânimo para inventar desculpas para o comportamento monstruoso de seu anfitrião.
- Afinal, está um frio dos diabos, mesmo!... - disse, mais para que sua esposa Frigga escutasse do que para si mesmo.
Mas, no quarto dia o suplício tornou-se a tal ponto insuportável que Odin teve de admitir, finalmente, que estava diante de um tremendo canalha.
- Muito bem, Frigga, você venceu! - exclamava ele, em meio às labaredas.
O manto de Odin tinha esquentado tanto que já aderira à sua pele, causando-lhe indizíveis dores. No oitavo dia, entretanto, o filho de Geirrod - que linha o mesmo nome de seu infeliz tio, Agnar, e também o seu bom coração - sentiu pena do hóspede maltratado e lhe levou um chifre repleto de hidromel.
Um pouco refeito dos seus padecimentos, Odin chegou à conclusão dique já era hora de acabar com sua teimosia.
- Muito bem, tirano maldito! - disse o deus, liberte-me já! Caso contrário será punido com a morte!
- Enlouqueceu de vez! - disse o rei, ainda mais deliciado.
Então Odin começou a entoar as suas runas mágicas e as cadeias foram caindo uma a uma a seus pés, ao mesmo tempo em que as duas fogueiras se extinguiam diante dos olhos do rei.
Liberto, o deus supremo pôs-se em pé, pronto para a desforra. Geirrod, aterrado, ergueu-se lambem, mas ao ver que seu inimigo avançava sobre ele, tomou de sua espada. Porém, ao descer de seu trono mambembe, meteu o pé num furo do tapete vermelho e caiu de cara na ponta da espada, morrendo no mesmo instante.
Agnar, o filho de Geirrod, sucedeu ao pai no trono e a primeira medida que tomou foi mandar trazer do exílio o seu tio, de modo que ambos viveram felizes para sempre naquele pobre, porém, decente reino.