17/03/2011

Os artifícios de Dalila, a trapaceira



Conta-se, ó afortunado rei, que vivia em Bagdá no reinado de Harun Ar-Rachid, um homem chamado Ahmed Danaf, que se destacara a tal ponto no roubo e na fraude que o califa, sempre atento a usar qualquer talento, nomeou-o chefe da polícia, com vencimentos de 5 mil dinares de ouro por mês, guarda de honra e tudo mais. Naquela mesma época, vivia na mesma cidade, uma temível megera chamada Dalila, conhecida sob a alcunha de Dalila, a Trapaceira. Vendo as recompensas que Ahmed recebia por ser um grande ladrão, jurou à filha, Zainab, a Embusteira, que inventaria embustes que fariam esquecer os de Ahmed. Começou por cobrir a face com um véu, vestir um manto de sufi com mangas tão largas que varriam o chão e pendurar rosários no pescoço. Assim disfarçada, saiu pelas ruas a repetir: "Alá! Alá!" em alta voz, rezando com a língua, enquanto o coração corria na companhia dos demónios e os olhos procuravam algo a explorar. Dentro em pouco, passou por um palácio sumptuoso e parou para pensar. Ora, esse palácio pertencia ao chefe de guarda do califa, um homem rico e influente, mas violento e mal educado. Chamavam-no Mustafá Terror-das-Ruas, porque, com ele, os socos vinham primeiro, e só depois as explicações. Esse homem era casado com uma linda mulher chamada Khatum a quem jurara, na noite da primeira penetração, nunca tomar uma segunda esposa. Naquela manhã, Mustafa tinha tido uma briga com ela. Pois, apesar de seus cabelos brancos, Mustafa estava sem filho algum, enquanto todos os homens com quem lidava tinham dois, três ou mais filhos. - Sai da minha frente, tinha gritado ele para a mulher. O dia em que te conheci foi um dia nefasto para mim. - O que está ocorrendo? perguntara a mulher. - Está ocorrendo que és uma tola estéril, um vale de pedras em que desperdicei minhas sementes. A mulher respondera no mesmo tom: "Digo-te que a culpa é tua. És um mulo estéril, com um nariz chato. Teus testí-culos só contêm água e sementes mortas." - Achas? Na volta tomarei outra mulher, e vere-mos, retrucara o homem e saíra. Khatum lamentou então sua falta de paciência e de enge-nhosidade e ficou à janela, preocupada. Naquele momento, Dalila a viu coberta de jóias e de vestidos luxuosos e bela como a lua. "Dalila," disse a bruxa a si mesma, "chegou a hora de abrir o saco de teus artifícios." Parou debaixo da janela a repetir: "Alá! Alá! Vós todos os amigos de Deus, abri caminho para mim." "Talvez," pensou a mulher de Mustafa, `Alá me conceda sua graça por intermédio desta santa mulher," e mandou Abu-Ali, o administrador da casa, convidá-la a subir.
A bela Khatum jogou-se aos pés da mulher e beijou-lhe as mãos. "Minha filha", disse a astu-ta Dalila, "vim porque Alá inspirou-me a ideia de que precisavas de meus conselhos." Kha-tum ofereceu à visitante toda espécie de iguarias conforme as tradições da hospitalidade árabe, mas Dalila negou-se a tocar em qualquer delas, explicando: "Não tenho apetite senão para as iguarias do Paraíso. Por isso, ando sempre de jejum, excepto cinco dias por ano." Khatum ficou ainda mais impressionada e contou à mulher seu drama com o marido. - Vê-se, minha filha, replicou a velha, que nunca ouviste falar das virtudes de meu amo, o Xeque Pai-dos-Impulsos, o Santo Multiplicador-das-Gravidezes. Uma única visita a este santo transforma qualquer mulher estéril num campo frutífero. Se quiseres, levar-te-ei até ele hoje mesmo e, quando voltares, deixa teu marido penetrar em ti; e ficarás grávida no acto. Ouvindo essas promessas, a ingénua Khatum ficou encantada, pôs seus vestidos mais ricos, cobriu-se de jóias e seguiu a mulher. Quando chegaram perto da loja de Sidi Muhsim, um formoso jovem mercador, ainda solteiro, Dalila pediu a Khatum que a esperasse e entrou na loja.
- Amigos teus te recomendaram a mim, disse a Sidi Muhsim. Aquela moça é minha filha. Seu pai morreu, legando-lhe uma fortuna imensa. Está saindo de casa pela primeira vez, pois acaba de atingir a idade do casamento. Apressei-me a sair com ela, conforme o aviso dos sábios: "Oferece tua filha cedo e teu filho tarde." Uma inspiração divina e os elogios de teus amigos trouxeram-me até aqui. Não queres casar-te com ela? Se és rico, serás mais rico. Se precisas de dinheiro, ela te dará o dinheiro deixado pelo pai, e terás duas lojas em vez de uma.
O mercador olhou para Khatum, e seu corpo e seu coração se derreteram.
- Aceito com gratidão tua proposta. Mas minha mãe, que era uma mulher experimentada, me fez jurar, antes de morrer, que examinaria pessoalmente qualquer virgem com quem quisesse me casar a fim de prevenir surpresas humilhantes.
-Neste caso, levanta-te e segue-me. Prometo mostrar-te tua noiva completamente nua.
O jovem mercador levantou-se, levou uma bolsa de mil dinares para enfrentar qualquer eventualidade e seguiu a velha charmuta, que pensava com alegria: "Agora, sábia Dalila, prepara-te para sacrificar este jovem touro." Ao passar pela loja do tintureiro Hajji Mahmud - um homem famoso no mercado pela dualidade de suas inclinações, tendo sua faca sempre pronta para cortar tanto machos como fêmeas - Dalila pediu aos dois jovens para esperar e dirigiu-se a ele.
- Com certeza és Hajji Mahmud?
- Sou, sim, senhora, que queres de mim?
- Amigos têm-me falado muito de ti nos termos mais lisonjeiros. Agora, olha para esse belís-simo casal formado por meu filho e minha filha, cuja educação quase me arruinou. A velha casa onde vivem comigo está ameaçada de ruir; já mandei reformá-la. Mas os trabalhos só ficarão prontos daqui a um mês. Até lá, preciso alugar uma casa para instalá-los. Fala-ram-me da casa que tens disponível. Por isso vim a ti. O tintureiro olhou para os dois jovens e regozijou-se. "Ó Hajji Mahmud, disse a si mesmo, eis biscoito com manteiga para teus velhos dentes!" E disse à mulher: `A verdade é que disponho do primeiro andar da casa onde moro; mas preciso de parte dele eventualmente para hospedar certos clientes que vêm de longe."
- Não te preocupes com isto, disse a mulher. Será nosso prazer partilhar esse andar contigo. O homem não se conteve mais, esperando muito dessa coabitação, e entregou as chaves dos dois andares a Dalila. Dalila levou os dois jovens à casa de Hajji Mahmud e, após pedir a Sidi Muhsim que esperasse, levou Khatum a um quarto do primeiro andar e disse-lhe: "Minha filha, no térreo desta casa mora o venerável Santo Multiplicador-das-Gravidezes. Iremos visitá-lo dentro de um momento. Só receio uma coisa. Ele tem por ajudante um filho idiota que não pode ver uma dama vestida como estás vestida sem pular sobre ela e rasgar-lhe a roupa e quebrar-lhe as jóias. Penso que seria melhor que tirasses a roupa e as jóias. Guardá-las-ei num lugar seguro até que voltemos da visita." A jovem mulher, feliz com a prometida gravidez, tirou imediatamente a roupa e as jóias e entregou-as a Dalila. Esta disse que iria avisar o santo e voltar para levá-la a ele. Trancou a porta, guardou o pacote num canto e foi procurar o jovem comerciante.
-A tua noiva virá logo toda nua para que a possas examinar conforme a promessa feita a tua mãe. Mas aconteceu uma coisa desagradável. Quando os vizinhos souberam que tenciono casar-te com minha filha, foram dizer-lhe: "Será que tua mãe não aguenta mais sustentar-te para que queira casar-te com um homem atingido de sarna e lepra? Que podia fazer senão prometer-lhe, como prometeste a tua mãe, mostrar-lhe seu noivo nu antes do casamento?
- Apelo para Alá contra a língua dos caluniadores, gritou o moço, e tirou espontaneamente toda a roupa.
- És tão são quanto bonito, disse a velha.
E vendo-o dobrar a roupa com o cinto, a bolsa com mil dinares e o punhal de prata e ouro, disse-lhe: "É muito perigoso deixar essas coisas tentadoras por aqui. Vou guardá-las num lugar seguro até depois da visita de tua noiva." Embrulhou-as e levou-as, prometendo voltar logo com a noiva nua. Apanhou o outro pacote, trancou a porta e foi embora. Voltou à loja do lascivo tintureiro, elogiou a beleza de sua casa e disse-lhe: "Vou agora transportar os móveis para lá. "Posso pedir-te um favor? Eis um dinar. Compra com ele pão e carne e leva-os a meus filhos que não comem desde ontem. E, por favor, almoça com eles."
- Quem tomará conta de minha loja?
- Teu aprendiz.
-Seja, disse o tintureiro que se alegrava já com a perspectiva de almoçar com os dois jovens. Dalila foi dispor dos dois embrulhos; e quando voltou à loja, disse ao aprendiz: "Teu amo manda-te ir encontrar-se com ele na mercearia onde está comprando pão e carne." - Ouço e obedeço. Assim que o aprendiz saiu, Dalila começou a juntar todos os objectos que podiam ser carregados. Enquanto isso, viu um burriqueiro passar na porta da loja, com seu asno. - Por Alá, disse-lhe, conheces meu filho, o tintureiro?
- Ninguém o conhece melhor do que eu.
- Saberás, bom amigo, que meu filho está falido. Pediu-me juntar os bens de seus clientes para devolver-lhes. Eis um dinar. Aluga me teu asno para levar esses objectos. Enquanto esperares por mim, quebra o que puderes dos móveis desta loja para que o cádi não encon-tre nada para confiscar.
- Com prazer, disse o burriqueiro. Pois teu filho tem sido sempre bom para comigo. E nada cobrarei pelo serviço.
O tintureiro comprou o pão e a carne e dirigiu-se para sua casa. Seu caminho passava pela loja. Viu, pois, o que o burriqueiro estava fazendo.
- Pára! Pára! gritou.
O burriqueiro parou e disse: "Meu coração está contigo. Graças a Alá, evitaste a cadeia."
- O que estás dizendo?
- Foste declarado falido e estou quebrando as coisas para que o cádi não encontre nada para confiscar.
- Quem te contou isto?
-Tua mãe que juntou os bens dos clientes, alugou meu burro e foi entregá-los.
- Ai de mim! Minha mãe morreu há anos, gemeu o tintureiro.
Compreendendo o logro de que era vítima, pôs-se a bater no peito e gritar alto: "Desgraça! Desgraça! Meus bens estão perdidos. Os meus e os dos meus cientes." O burriqueiro pôs-se a chorar, por sua vez, e a gritar: "Desgraça! Desgraça! Desgraça! Meu asno está perdido! Tintureiro de meu traseiro, devolve-me o asno que tua mãe levou." Hajji Mahmud lançou-se sobre o burriqueiro e surrou-o, gritando: "Onde está minha mãe a quem con6aste meus bens, ó burriqueiro mais burro que todos os burros." Um dos vizinhos raciocinou: "Já que a velha alugou a casa de Hajji Mahmud para instalar os filhos nela, por que não a procuram lá e põem as coisas em ordem?"
Foram lá. Bateram em vão à porta. Depois, quebraram-na e entraram. Encontraram um homem nu no térreo e uma mulher nua no primeiro andar.
- Onde está vossa mãe? perguntaram-lhes.
- Nós não somos irmãos, e ela não é a mãe de nenhum de nós. Roubou-nos até a roupa e deixou-nos neste estado.
E contaram toda a história. As quatro vítimas da trapaceira juntaram-se e foram ao califa. "Como iria descobrir uma velha mulher entre tantas velhas mulheres que vivem nesta cida-de?" perguntou o califa. Mas depois, lembrou-se de que designara Ahmed Danaf chefe da polícia justamente porque conhecia todos os ladrões de Bagdá. Chamou-o e ordenou-lhe localizar a velha megera e levá-la a sua presença.
- Ouço e obedeço, disse Ahmed e, em menos tempo do que se leva para contar o facto, localizou Dalila, a Trapaceira e levou-a à presença do califa.
A velha trapaceira jogou-se aos pés do califa e disse: "Califa de Alá, não roubei pelo prazer de roubar, mas somente para chamar a atenção de Vossa Majestade sobre mim. Sempre fui uma mulher virtuosa e pobre, e nunca roubei seja o que for, mas nunca recebi de Vossa Majestade a menor atenção, enquanto Ahmed Danaf, por ser o maior ladrão desta cidade, foi nomeado chefe da polícia com vencimentos de 5 mil dinares de ouro por mês."
O califa achou notável mais esta burla da famosa trapaceira e riu gostosamente. Depois, mandou indemnizar todas as vítimas de Dalila e nomeou-a chefe do khan, tendo sob suas ordens quarenta negros e quarenta cães de caça afegãos. "Tua cabeça responderá pela perda de qualquer um dos pombos, os quais são mais caros a meu coração que meus próprios filhos." Assim foi recompensada por sua vez a arte de enganar e roubar de Dalila, a Trapaceira. Louvado seja Aquele que ensinou aos califas a tolerância e a generosidade!


(tradução brasileira)