Conta-se - mas Alá é mais bem-informado - que havia certa vez um pescador chamado Abdala, que tinha uma mulher e nove filhos a sustentar e era muito pobre. Sua rede constituía seu único sustento, sua loja, sua profissão e a porta de segurança de sua casa. Lançava-a ao mar todos os dias, vendia o que apanhava e gastava o que recebia, dizendo: "O pão de amanhã virá amanhã." Chegou um dia em que a mulher deu à luz um décimo menino (pois seus outros nove filhos eram também varões pela graça de Alá!), e não havia em casa sequer um pedaço de pão para comer. Abdala saiu, dizendo que iria lançar a rede em nome do recém-nascido. Pediu as bênçãos de Alá e lançou a rede. Quando a retirou, estava cheia de estrume, areia, cascalhos e algas marinhas, sem uma sombra de peixe. Entristecido e surpreso, o pescador gritou: "Terá Alá criado essa criança sem prover-lhe o sustento? Não pode ser. Ele tomou a si satisfazer as necessidades de todas as suas criaturas, o Generoso, o Sábio. Glorificado seja seu nome." Andou na praia e lançou a rede noutro lugar. Quando quis retirá-la, estava muito pesada. Nela encontrou um burro morto e fedendo. O pescador revoltou-se e pensou: "Este azar vem de minha mulher. Quantas vezes disse-lhe que o mar nada mais tinha para nós e que deveríamos mudar de profissão. Mas ela fica repetindo: "Alá karim! Alá karim! Sua generosidade não tem limites. Não desesperes, ó pai de meus filhos! Onde está a generosidade de Alá? Simbolizará este asno morto o destino de meu último filho?" Por um tempo, Abdala ficou paralisado pela decepção, mas acabou reagindo, pediu perdão a Deus por suas dúvidas, e jogou mais uma vez a rede ao mar. Sentiu-a mais pesada ainda do que da segunda vez. Depois de trazê-la para a costa com muitos esforços, teve a estupefacção de encontrar nela um ser humano um filho de Adão que tinha cabeça, faces, barba, corpo e braços como os outros homens, mas acabava em rabo de peixe. Abdala não teve dúvida de que estava na presença de um Afrit, um daqueles que se tinham rebelado contra nosso mestre Soleiman Ibn Daud e tinham sido encarcerados em barris de cobre e jogados no mar. Com o tempo, pensou o pescador, o metal apodreceu; o Afrit escapou e segurou-se na minha rede para vir à terra. E pôs-se a correr na praia, aterrorizado e gritando: "Tem pena de mim, tem pena de mim, ó Afrit de Soleiman!" Mas o homem da rede chamou-o: "Vem para perto de mim, ó pescador, e não tenhas medo. Eu não sou nem Afrit nem Marid nem Ghul. Sou um homem como tu. Se me ajudares a sair desta rede, cumular-te-ei com riquezas." O pescador se acalmou e aproximou-se com prudência da estranha criatura. E esta repetiu: "Não sou nem Afrit nem Marid nem Ghul. Sou um homem que crê em Alá e em Maomé, seu profeta.
- E quem te jogou no mar?
- Ninguém me jogou no mar. Eu nasci lá. Sou um dos filhos do mar, um povo numeroso que vive nas profundezas marítimas. Vivemos no mar como vós viveis na terra e como os pássa-ros vivem no ar. Somos muçulmanos e seguimos os preceitos do Livro. Tua rede me captou pelo decreto do destino. Mas agora quero ser-te útil. Aceitas entrar num pacto comigo pelo qual cada um jura ser amigo do outro, dar e receber presentes? Por exemplo, tu virias aqui todos os dias trazendo-me as frutas da terra: uva, figos, melancia, melão, pêssegos, amei-xas, romãs, bananas, tâmaras. E eu te traria os frutos do mar: coral, pérolas, crisólitos, águas-marinhas, esmeraldas, safiras, rubis. Encheria a própria cesta na qual tu me trarias frutas. Aceitas?
- Quem não aceitaria? respondeu o pescador com alegria. Mas, primeiro, vamos selar nosso pacto com a autoridade da Fatiha.
O homem do mar concordou, e os dois recitaram a primeira surá do Alcorão em alta voz. Então, Abdala libertou seu cativo.
- Qual é teu nome? Perguntou-lhe
- Abdala, respondeu o homem do mar. Se, por acaso, não me encontrares aqui quando vieres pela manhã, chama-me por este nome e logo sairei das águas e virei a teu encontro. E qual é o teu nome, meu irmão?
- Chamo-me também Abdala.
- Que auspiciosa coincidência, gritou o outro. Tu és Abdala Terra e eu sou Abdala Mar. Espera que te traga já um primeiro presente.
E o homem mergulhou no mar. Quando saiu após um momento, suas duas mãos estavam carregadas de pérolas, corais, esmeraldas, jacintos, rubis e outras pedras preciosas, que ofereceu ao pescador, dizendo: "Lamento que seja tão pouco hoje porque não disponho de cestas. Mas quando me trouxeres uma cesta, enchê-la-ei até a beirada. E não esqueças nosso pacto. Volta para cá a cada levantar do sol." Depois, despediu-se do pescador e desa-pareceu no mar.
Abdala estava maravilhado. Voltou para a cidade, bêbado de alegria. Parou à porta do benevolente padeiro que tinha sido bom para com ele nos dias sombrios. "Irmão," disse-lhe, "a fortuna começa a andar no meu caminho. Tu sempre me disseste: "Se tens pouco dinheiro, paga o que podes. Se nada tens, leva todo o pão de que precisas para tua família e paga-me quando a prosperidade descobrir o caminho de tua casa." Meu bom amigo, a prosperidade já é meu conviva. Contudo, o que te ofereço hoje é pouco em vista de tua cordialidade quando a necessidade me esmagava. Aceita este presente agora. Muito mais virá."
Falando assim, o pescador ofereceu ao padeiro mais da metade das jóias que Abdala Mar lhe trouxera. Pediu-lhe algum dinheiro, e foi ao mercado comprar carne, vegetais, frutas e doces. Abdala contou à mulher tudo que lhe acontecera e, cedo no dia seguinte, voltou à praia carregando um cesto cheio de todas as frutas. Não vendo Abdala Mar, bateu as mãos e chamou: "Onde estás, Abdala Mar?" Imediatamente, uma voz respondeu-lhe de baixo das ondas: “Aqui estou." E logo o outro apareceu e recebeu com agradecimentos o cesto de frutas. Mergulhou e voltou com o cesto sobrecarregado de esmeraldas, águas-marinhas, topázios, diamantes e os demais frutos esplêndidos do oceano. Na volta, Abdala Terra deu a metade do cesto ao padeiro. Depois, escolheu as amostras mais finas de cada espécie e cor e levou-as aos joalheiros do mercado.
O síndico dos joalheiros perguntou-lhe: "Tens mais dessas?"
Respondeu Abdala: "Tenho um cesto cheio."
- Prendei este homem, gritou o síndico. É o ladrão que roubou as jóias da rainha.
Juntaram-se todos os joalheiros, e cada um atribuiu ao pescador algum roubo de jóias cujo autor não fora identificado. Abdala guardou silêncio, nem confirmando, nem negando as acusações. Deixou-se levar ao sultão pelo síndico e os joalheiros, que esperavam vê-lo con-fessar seus crimes e ser enforcado na hora. Disse o sultão a seu eunuco-chefe: "Leva estas jóias a tua ama, rogando lhe dizer se são as jóias que perdeu." Ao ver as jóias, a rainha ficou maravilhada e respondeu: "Não são minhas. Eu encontrei meu colar. Estas são bem mais belas que as minhas e não têm iguais no mundo. Corre, ó eunuco, e pede ao rei para comprar um colar destes para nossa filha Ikbal."
Quando o rei ouviu a resposta da rainha, censurou duramente o síndico e os joalheiros por haverem prendido e maltratado um homem inocente.
- Ó rei do tempo, defendeu-se o síndico, nós sabíamos que este homem era um pobre pes-cador; assim, quando vimos essas jóias entre suas mãos e soubemos que possuía ainda um cesto cheiro delas, concluímos que essa riqueza era grande demais para ser adquirida honestamente.
Essa resposta enfureceu o rei ainda mais. Gritou: "Ó mentes vulgares, ó heréticos, ó almas presas à terra! Não sabeis que qualquer fortuna, não importa quão maravilhosa e repentina, é possibilidade no destino de todo verdadeiro crente? Desgraçados, tivestes a impudência de condenar este homem sem interrogá-lo e sem nada verificar sob o texto absurdo de que tal riqueza era grande demais para ele. Vós o tratastes de ladrão e o desonrastes. Não pensastes um minuto em Alá que distribui seus favores sem a mesquinhez comum aos joalheiros? Sumi da minha frente e possa Alá recusar-vos suas dádivas."
Após consolar Abdala, perguntou-lhe o rei como havia obtido esses tesouros. Abdala contou-lhe toda a sua aventura com o homem do mar e o pacto que fizeram. O rei maravilhou-se com a generosidade de Alá para com seus fiéis, e disse ao pescador: "Esta fortuna estava escrita no teu destino. Devo apenas avisar-te que as riquezas precisam de protecção e que um homem rico deve ocupar uma alta posição. Querendo defender-te contra as incertezas do futuro, casar-te-ei com minha filha única Ikbal, que já está na idade certa, e nomear-te-ei meu vizir, ligando-te assim ao trono antes de minha morte."
E assim foi feito.
Abdala, que fora um pescador e era agora vizir do rei, desempenhou-se de suas novas funções a contento de todos e nunca esqueceu de carregar as frutas de cada estação a seu amigo Abdala Mar em troca de pedras e metais preciosos. Assim, cada manhã suas riquezas aumentavam de um cesto cheio de jóias.
Um dia, os dois Abdalas se detiveram a conversar na praia, e Abdala Terra perguntou a Abdala Mar: "Nunca me falaste de teu país. Ele é belo?" Respondeu Abdala Mar: "É muito belo. Se quiseres, posso levar-te comigo às profundezas do mar e mostrar-te as suas inú-meras maravilhas. Visitarás minha casa e serás meu hóspede."
- Mas como poderei sobreviver no mar? A água penetraria meu corpo e me afogaria. Eu nasci para viver na terra.
- Não te preocupes com isso, retrucou Abdala Mar. Dar-te-ei um unguento que, passado no teu corpo, permitir-te-á permanecer comigo no mar tanto tempo quanto desejares sem te
prejudicar de maneira alguma.
Abdala Terra concordou, e seu companheiro mergulhou e voltou logo com o unguento. E os dois amigos entraram juntos no mar. Quando atingiram as profundezas, Abdala Terra abriu os olhos e viu campinas marinhas que nenhum olho terrestre havia visto desde a aurora dos tempos. Viu florestas de coral vermelho, de coral branco, de coral cor-de-rosa. Viu cavernas de diamantes sustentadas por pilares de rubi, crisólitos, berilo, topázio, ouro. Viu peixes como flores, peixes como frutas, peixes como pássaros, peixes como búfalos, vacas, cachor-ros e alguns até como homens. Andou entre montes de pérolas, esmeraldas, ouro, diaman-tes.
Deslumbrado, Abdala Terra perguntou a Abdala Mar: "Será que existem cidades no teu país, similares às cidades da terra?" "Se há cidades em meu país? repetiu Abdala Mar. Pela vida do Profeta, se passasses mil anos connosco, mostrar-te-ia uma nova cidade por dia e em cada cidade mil maravilhas - e não terias visto dez por cento das cidades de meu país... Como nosso tempo é limitado, quero que visites agora minha cidade e conheças minha família."
E Abdala Mar levou seu companheiro através dos espaços marítimos até que chegaram a sua cidade. Parou diante de uma casa e disse-lhe: "Entra, irmão. Este é meu lar." E chamou a filha. Logo apareceu uma linda adolescente cujo longo cabelo flutuava na água. Tinha seios, ventre, grandes olhos verdes com sobrancelhas pretas e um corpo delgado, mas não tinha nem pernas nem nádegas, pois o corpo terminava com uma cauda. Após considerar com curiosidade o homem da terra, a moça desatou a rir. "Pai, quem é esse sem-cauda?" "Este é o meu amigo Abdala Terra que me tem trazido aquelas frutas de que tanto gostas," respondeu o pai. "Vem cumprimentá-lo." Antes que pudessem terminar a conversação, apareceu na soleira da porta a mulher de Abdala Mar, carregando duas crianças nos braços. Assim que viu o filho de Adão, colocou as crianças no chão e riu gostosamente. "Por Alá, como pode alguém viver sem cauda?" Mãe e filha repetiram juntas: " um sem-cauda." E dançaram e riram. Abdala Terra ofendeu-se e disse ao amigo: "Será que me trouxeste aqui para fazer de mim um objecto de zombaria para tua mulher e filha?" Respondeu Abdala Mar: "Não lhes dês atenção. Como as mulheres da terra nossas mulheres têm pouco juízo." Enquanto falavam, entraram dez altos e vigorosos homens-mar e disseram ao dono da casa: "Nosso rei ouviu falar no teu convidado sem-cauda e deseja conhecê-lo e ver como é feito. Pois ouviu dizer que tem alguma coisa extraordinária atrás e outra coisa ainda mais extraordinária na frente." Os dois Abdala foram logo ao palácio real. Ao ver o homem da terra, o rei sorriu e exclamou: "Como acontece de não teres cauda, ó visitante de outro mundo?"
- Não sei, Majestade. Todos os homens da terra são como eu.
- E como chamas essa coisa que tens no lugar da cauda atrás?
- Alguns chamam-na traseiro; outros a chamam nádegas; outros a chamam bumbum.
- E para que serve?
- Para sentar-se nela quando se está cansado. Nas mulheres é um ornamento muito apreciado, especialmente quando visivelmente saliente.
- E como chamas essa coisa que tens na frente?
- Zib, respondeu Abdala.
- E para que serve?
- Para muitas coisas que não posso explicar por respeito a Vossa Majestade. Posso apenas adiantar que em nosso mundo nada é mais apreciado num homem que um bom e poderoso zib. Um de nossos poetas escreveu: O que vale a vida sem um zib e tudo que um zib repre-senta?
O rei e a sua corte riram mais do que nunca a essas respostas. E Abdala Terra levantou os braços ao céu, dizendo: "Glorificado Alá que criou o traseiro para ser uma glória num mun-do e um motivo de escárnio num outro."
Finalmente, disse o rei: "Ó sem-cauda, teu traseiro me agrada tanto que podes pedir o que quiseres." "Só tenho dois pedidos, Majestade;" respondeu o visitante: "ser devolvido à terra, e levar comigo muitas das jóias do mar."
O rei disse-lhe: "Podes levar tudo que conseguires carregar." Abdala voltou à terra sob o peso das mil jóias que conseguiu carregar, visitou seu rei, contou-lhe a história de sua visita marinha e ofereceu-lhe muitas das jóias trazidas. O rei ficou encantado, mas disse a Abdala: "Não gostaria de ver-te visitar aquela gente indelicada outra vez. O provérbio diz: “ Copo que cai, nem sempre permanece inteiro."' Abdala concordou. E todos viveram em paz e felizes até que foram visitados pelo demónio da morte, demolidor das alegrias e separador dos amigos.
(tradução brasileira)