No pequeno lugar de Guilhufe existiu em tempos que já lá vão um nobre chamado Viliúlfo. Viera de terras do Norte e era belo, ardoroso, valente e suficientemente jovem para inspirar paixões. Instalou-se o jovem guerreiro numas terras que adquirira e a que deu o nome de Viliulfi, proveniente do seu nome. Num lugar próximo habitava outro senhor chamado Rodrigo, que já era casado e tinha uma filha muito bela, chamada Berta. A fama da beleza de Berta corria léguas em redor. E assim o famoso e belo Viliúlfo ouviu falar da jovem e enviou um emissário à residência de D. Rodrigo, pedindo-lhe a filha em casamento. Como a fama de Viliúlfo não era menor que a de Berta, aceitaram todos com alegria a proposta do cavaleiro e ficaram esperando a sua chegada, pois fora convidado para passar uns dias no palácio de D. Rodrigo, a fim de se conhecerem melhor.
Os preparativos para e boda começaram. Gisela, prima de Berta e órfã de pai e mãe, vivia em casa dos tios, mas era tratada como servidora. Andava de um lado para o outro compondo a casa, tratando do enxoval, saindo a cavalo para lugares distantes, a fim de buscar o que de melhor houvesse para o dia festivo do casamento de Berta.
Por vezes, Gisela ficava-se a sonhar, também, com a sua boda. Porém, embora a sua condição de sangue igualasse ou superasse a da prima, faziam-se esquecidos do facto e apresentavam-lhe apenas propostas que ela rejeitava com toda a força da sua alma. Sabia que, uma vez casada a prima e não fazendo já falta na casa para cuidar dos vestidos de Berta, tratariam de casá-la também contra a sua vontade.
Quantas vezes Gisela, quando se via só, pensara em fugir, montada num cavalo possante! Quantas vezes! Mas para onde iria? Que faria? A incógnita do futuro atormentava-a, e acabava por abafar no peito todas as naturais impaciências.
Nessa tarde, Gisela aprontava um vestido maravilhoso de Berta. Seria aquele que ela envergaria no primeiro jantar em que Viliúlfo tomasse parte. E Gisela, numa associação de pensamentos, ficou-se a imaginar como seria o noivo da prima. Estremeceu, portanto, quando esta chegou à porta do aposento e lhe falou.
— Gisela, deixa agora isso e escuta-me. Achas-me realmente bonita?
Gisela olhou a prima e declarou com sinceridade:
— Nunca vi mulher tão bela como tu!
— Mas ele gostará de mim?
— Decerto! Os homens apreciam a beleza e o luxo.
— E ele? Será belo como dizem?
— Talvez!
— É loiro e tem olhos verdes.
— Deve ser estranho!
— Mas é forte! E valente e poderoso!
— Sim, ouvi dizer isso.
— Se estivesses no meu lugar, estarias feliz?
— Decerto que sim! A não ser que ele...
Calou-se. Berta obrigou-a a continuar.
— Vamos, quero saber tudo o que pensas!
Gisela olhou a prima.
— Berta... nós temos maneiras diferentes de ver as coisas. A mim não me bastaria um homem belo e poderoso. Desejaria que também fosse generoso e bom.
— Como hei-de saber isso?
— Se não houver outra maneira... descobrir-se-á pelo olhar.
— Como?
— Não sei... Eu conheço.
— Que te diz o meu olhar?
Gisela calou-se. Berta mostrou-se autoritária.
— Anda, quero saber tudo! Que te diz o meu olhar?
— Que és altiva, vaidosa e egoÃsta.
Berta arrancou das mãos de Gisela o seu bonito vestido e gritou:
— Vai-te daqui! O que tu tens é inveja!
— Eu?
— Sim, tu! Gostarias de ser bela como eu... e não és!
— Sou como sou. Não me lamento.
— Mas ninguém te quer!
— Ninguém?
— Ninguém daqueles que andam à minha volta!
Gisela sorriu tristemente.
— Ouve, Berta, uma verdade que julguei jamais dizer-te: aqueles que te buscam... não serviriam para mim!
Berta deu uma gargalhada:
— Que louca! Claro que não serviriam para ti... porque não te buscariam!
— É isso mesmo. Nem eles me desejavam pobre... nem eu os cobiçarei, mesmo sendo eles homens ricos.
— E porquê?
— Porque não gosto do olhar deles.
Riu, de novo, a jovem Berta. Depois comentou:
— Pobre Gisela! Ao menos vives de um sonho que não chegarás a realizar! Mas deixemo-nos de mais disparates. Minha mãe quer que vás buscar a Anégia umas coisas que fazem falta para o banquete.
Gisela surpreendeu-se.
— Já?
— Sim. O meu noivo deve chegar amanhã.
— Vem só?
— Creio que não. Mas não julgues que os seus amigos se possam interessar por ti. Não cries mais sonhos nessa pobre cabeça!
Gisela ficou-se a olhar o espaço, alheia a tudo. Mas um grito de Berta despertou-a.
— Não ouviste? Bem sabes que o pai não quer que chegues a casa depois do sol-posto e Anégia ainda fica longe!
Lentamente, como autómato, Gisela levantou-se e foi em busca do seu cavalo favorito.
A tarde estava longe de morrer quando Gisela empreendeu o caminho de regresso. Viajava só, envolta num manto, e os homens do campo já a conheciam pelo trotar do seu cavalo branco. Todos a respeitavam. Ou antes: todos a admiravam. E diziam de si para si: «Como pode andar assim sozinha uma jovem tão bela e tão bondosa?»
Gisela gostava de cavalgar. Essa saÃda como servidora dos seus tios não a molestava. Achava bom respirar o ar puro do campo, a liberdade de uma correria, como se o jugo da casa não existisse. Esquecida dos seus tios e prima, entregue só à volúpia dessa tarde amena, nem ouviu outro tropel de cavalo que, todavia, a sua montada denunciou. Tomando mais rápido andamento para apanhar a donzela, o cavaleiro, que vinha perto, estacou o seu cavalo. Gisela parou também o seu. Olharam-se frente a frente. O desconhecido mostrava surpresa no olhar e perguntou:
— Donde vens, tão só e tão bela?
Ela sorriu.
— Venho de perto. Não estou só, porque trago o meu cavalo branco. E não sou bela.
— Não te disseram ainda quanto vales?
Ela encolheu os ombros.
— Sim… várias vezes! Sou órfã... sou pobre... vivo por esmola em casa de meus tios a quem ajudo nos trabalhos caseiros. Já vês que sei quanto valho.
— E quem são os teus tios?
— D. Rodrigo e sua esposa.
O olhar do cavaleiro fixou-se em Gisela. Ela estremeceu e perguntou, com certa ansiedade na voz:
— E quem és tu, cavaleiro que por aqui nunca andaste?
— Dizes bem: nunca andei por estes lados. Se tivesse aqui vindo, decerto já teria dado por ti.
— Não respondeste à minha pergunta.
— Tens razão, perdoa-me! Não nasci nesta terra. Vim para aqui há pouco tempo. Mas ouvi falar na beleza da filha de D. Rodrigo.
— Ah! Então... tu és Viliúlfo?
— Sou.
— Devia tê-lo adivinhado logo!
— Porquê?
— Porque me disseram que eras loiro e tinhas olhos verdes.
— Não há por aqui ninguém com a cor dos meus olhos?
— Creio que não.
— Diz-me: a tua prima é tão bela como tu?
— É muito mais bela! E veste bem... e é rica. Tem muitos pretendentes.
— Ainda bem!
— Porquê?
Viliúlfo teve um risinho. Depois tornou-se sério. Perguntou:
— Quando me esperam lá em casa?
— Só amanhã.
— Pois irei hoje! Gosto das surpresas. Aprende-se muito com elas. Não acreditas?
Ela ia responder, mas arrependeu-se. Disse apenas:
— Então... vamos. Mas diz-lhes que me pediste que te ensinasse o caminho.
— Na verdade, não o sei. Mas porque será necessária a justificação?
— De contrário não gostariam que te acompanhasse.
— Porquê? Sou um cavaleiro!
— Por isso mesmo.
— Não entendo!
— Vais entender quando lá chegarmos.
E dando de esporas ao cavalo, Gisela meteu a galope a caminho de casa.
Com o tropel dos cavalos, os cães acorreram ladrando e alertaram as pessoas. Ao saber da grande nova, a balbúrdia foi grande em casa de D. Rodrigo. Berta gritava pelo vestido novo. A tia de Gisela pedia a esta que fosse para a cozinha ajudar as servas, e D. Rodrigo esforçava-se por agradar ao futuro genro.
Berta, envergando o vestido novo, perguntou à prima:
— Achas-me bem?
Deslumbrada, ela respondeu:
— Estás maravilhosa!
Então Berta voltou a perguntar:
— E ele? É tão belo como se dizia?
— Mais ainda!
Radiante, Berta correu para o salão.
Frente a frente, Berta e Viliúlfo olharam-se. O cavaleiro não pôde esconder a sua admiração.
— Na verdade, és ainda mais bela que tua prima!
O cumprimento não agradou à jovem, que retorquiu:
— Para ser mais bonita que Gisela, não é preciso muito!
Ele franziu as sobrancelhas.
— Assim o julgas? Pois garanto-te que Gisela é uma das mulheres que mais me impressionaram!
Berta julgou ter ouvido mal.
— O quê? Aprecias uma rapariga para quem ninguém olha?
Viliúlfo voltou a franzir as sobrancelhas.
— Berta, creio que cavaste uma grande distância entre a tua pessoa e Gisela!
— De facto, essa distância existe!
Viliúlfo sorriu.
— Tens razão. Só agora o notei. Essa grande distância existe. Tu és mais bela do que tua prima. Isso é verdade. Mas o teu olhar é tão cruel... a tua voz tão dura... que em nada se pode assemelhar ao olhar e à voz da deliciosa Gisela!
Berta zangou-se.
— Vieste para me insultar?
— Vim para buscar-te e fazer de ti minha esposa. Mas agora tenho de conversar com teu pai.
Berta saiu dali furiosa e foi procurar Gisela. Encontrou-a, preparando a comida. Gritou-lhe:
— Ladra!
Gisela não entendeu. Perguntou:
— Que dizes?
— Ladra, queres roubar-me o meu noivo! Tu, que nada tens para lhe dar senão a tua triste miséria!
Gisela tentou agarrar-lhe as mãos, mas Berta esquivou-se. Estava pálida e a sua voz tremia.
— Estás a dizer coisas loucas! Eu não pretendo o teu noivo nem ele me pretende! Apenas nos encontrámos no caminho e ele veio comigo até aqui.
Berta gritou-lhe:
— Pois volta para esse caminho! Não te quero mais nesta casa, reles mulher que roubas os noivos a quem te tem dado de comer!
Gisela olhou a prima com perplexidade. Não havia lágrimas nos seus olhos. Mas um nó na garganta, muito apertado, martirizava-a. Berta voltou a gritar:
— Porque esperas? Disse-te que abandonasses imediatamente esta casa!
Julgando estar vivendo um pesadelo, Gisela arriscou:
— Acalma-te, Berta! Não sabes o que dizes! Viliúlfo não pode...
Suspendeu a frase. Quase na sua frente estava Viliúlfo, sorrindo, e D. Rodrigo, com a expressão dos seus dias maus. O cavaleiro falou para a jovem Berta:
— Acabo de apresentar a teu pai as minhas desculpas, pois, na verdade, não pretendo para esposa uma mulher que tanto tem de belo como de mau!
Berta fez-se pálida. Os seus olhos faiscaram de indignação. Declarou com voz dominada pela cólera:
— Ainda bem que assim pensas! Jamais aceitaria para esposo quem acaba de demonstrar um gosto tão pouco apurado! A minha prima talvez sirva... Eu não!
Sempre sorrindo, o cavaleiro respondeu:
— Acertaste! A tua prima serve-me admiravelmente. E, já que acabaste de a expulsar de casa, aproveito para declarar a teu pai que a levarei comigo e com ela casarei na primeira capela onde houver um sacerdote.
D. Rodrigo, arrogante, respondeu:
— Não te apresses! Gisela vive na minha casa e sob a minha tutela!
Viliúlfo redarguiu:
— Diz antes que viveu na tua casa e sob a tua tutela. Mas Berta acaba de expulsá-la, sem ligar muito ou nada à tua opinião. Eu farei o mesmo.
Muda de espanto, Gisela sentia o coração saltar-lhe do peito.
Viliúlfo falou-lhe com voz branda:
— Vem, Gisela! Não quero que tragas nada do que usaste nesta casa.
Ela arriscou:
— Nem o meu cavalo?
Ele sorriu.
— Está bem: levarás apenas o teu cavalo branco! Sorri, minha pobre Gisela! Sorri! Acabas de alcançar o teu triunfo!
A jovem, atónita, não sabia que fazer ou dizer. Foi o tio quem a ajudou a tomar uma decisão. Com ar resoluto, exclamou:
— Porque hesitas? Agradece a generosidade do cavaleiro Viliúlfo! Embora o não achasse suficientemente poderoso para a tua prima, é, contudo, bom demais para ti, que não tens dote!
Gisela fez-se pálida. Pela primeira vez não suportou ser amesquinhada diante de alguém a quem já amava. E declarou com aparente serenidade:
— Senhor meu tio! Agradeço o conselho que me dá. Sinto que de hoje em diante a vida vai sorrir-me, e poderei finalmente ser feliz!
Viliúlfo tomou uma das mãos pequeninas e beijou-a, dizendo:
— Vamos, querida! Temos de procurar um sacerdote antes que o Sol nos fuja no horizonte!
Sorrindo, Gisela exclamou:
— O Sol, levo-o eu na alma!
E lado a lado saÃram do palácio de D. Rodrigo. Quando as suas silhuetas se perderam no horizonte, Berta arrepelou os cabelos, gritando:
— Ele é um louco! É um louco! Desprezou-me por Gisela!
Serenamente, a mãe de Berta tocou-lhe num ombro. A sua voz era cariciosa.
— Filha! Sempre me ouviste dizer que a beleza do corpo não basta! Tu eras mais bonita que tua prima, mas Gisela triunfou porque possuÃa a maior beleza que se pode possuir: — a da alma!
Calou-se a esposa de D. Rodrigo, olhando a filha com tristeza. Pouco a pouco, Berta deixou de chorar. Depois, olhando a mãe, exclamou:
— Tenho muitos pretendentes, muitos! Vou escolher um deles e casar-me! Gisela não se adiantará muito tempo a mim! Havemos de nos encontrar nos salões… e depois... depois veremos!
D. Rodrigo abanou a cabeça e resmungou:
— Esta filha põe-me louco!
Lá fora o Sol parecia rir, na verdade, de tanta loucura!
Os preparativos para e boda começaram. Gisela, prima de Berta e órfã de pai e mãe, vivia em casa dos tios, mas era tratada como servidora. Andava de um lado para o outro compondo a casa, tratando do enxoval, saindo a cavalo para lugares distantes, a fim de buscar o que de melhor houvesse para o dia festivo do casamento de Berta.
Por vezes, Gisela ficava-se a sonhar, também, com a sua boda. Porém, embora a sua condição de sangue igualasse ou superasse a da prima, faziam-se esquecidos do facto e apresentavam-lhe apenas propostas que ela rejeitava com toda a força da sua alma. Sabia que, uma vez casada a prima e não fazendo já falta na casa para cuidar dos vestidos de Berta, tratariam de casá-la também contra a sua vontade.
Quantas vezes Gisela, quando se via só, pensara em fugir, montada num cavalo possante! Quantas vezes! Mas para onde iria? Que faria? A incógnita do futuro atormentava-a, e acabava por abafar no peito todas as naturais impaciências.
Nessa tarde, Gisela aprontava um vestido maravilhoso de Berta. Seria aquele que ela envergaria no primeiro jantar em que Viliúlfo tomasse parte. E Gisela, numa associação de pensamentos, ficou-se a imaginar como seria o noivo da prima. Estremeceu, portanto, quando esta chegou à porta do aposento e lhe falou.
— Gisela, deixa agora isso e escuta-me. Achas-me realmente bonita?
Gisela olhou a prima e declarou com sinceridade:
— Nunca vi mulher tão bela como tu!
— Mas ele gostará de mim?
— Decerto! Os homens apreciam a beleza e o luxo.
— E ele? Será belo como dizem?
— Talvez!
— É loiro e tem olhos verdes.
— Deve ser estranho!
— Mas é forte! E valente e poderoso!
— Sim, ouvi dizer isso.
— Se estivesses no meu lugar, estarias feliz?
— Decerto que sim! A não ser que ele...
Calou-se. Berta obrigou-a a continuar.
— Vamos, quero saber tudo o que pensas!
Gisela olhou a prima.
— Berta... nós temos maneiras diferentes de ver as coisas. A mim não me bastaria um homem belo e poderoso. Desejaria que também fosse generoso e bom.
— Como hei-de saber isso?
— Se não houver outra maneira... descobrir-se-á pelo olhar.
— Como?
— Não sei... Eu conheço.
— Que te diz o meu olhar?
Gisela calou-se. Berta mostrou-se autoritária.
— Anda, quero saber tudo! Que te diz o meu olhar?
— Que és altiva, vaidosa e egoÃsta.
Berta arrancou das mãos de Gisela o seu bonito vestido e gritou:
— Vai-te daqui! O que tu tens é inveja!
— Eu?
— Sim, tu! Gostarias de ser bela como eu... e não és!
— Sou como sou. Não me lamento.
— Mas ninguém te quer!
— Ninguém?
— Ninguém daqueles que andam à minha volta!
Gisela sorriu tristemente.
— Ouve, Berta, uma verdade que julguei jamais dizer-te: aqueles que te buscam... não serviriam para mim!
Berta deu uma gargalhada:
— Que louca! Claro que não serviriam para ti... porque não te buscariam!
— É isso mesmo. Nem eles me desejavam pobre... nem eu os cobiçarei, mesmo sendo eles homens ricos.
— E porquê?
— Porque não gosto do olhar deles.
Riu, de novo, a jovem Berta. Depois comentou:
— Pobre Gisela! Ao menos vives de um sonho que não chegarás a realizar! Mas deixemo-nos de mais disparates. Minha mãe quer que vás buscar a Anégia umas coisas que fazem falta para o banquete.
Gisela surpreendeu-se.
— Já?
— Sim. O meu noivo deve chegar amanhã.
— Vem só?
— Creio que não. Mas não julgues que os seus amigos se possam interessar por ti. Não cries mais sonhos nessa pobre cabeça!
Gisela ficou-se a olhar o espaço, alheia a tudo. Mas um grito de Berta despertou-a.
— Não ouviste? Bem sabes que o pai não quer que chegues a casa depois do sol-posto e Anégia ainda fica longe!
Lentamente, como autómato, Gisela levantou-se e foi em busca do seu cavalo favorito.
A tarde estava longe de morrer quando Gisela empreendeu o caminho de regresso. Viajava só, envolta num manto, e os homens do campo já a conheciam pelo trotar do seu cavalo branco. Todos a respeitavam. Ou antes: todos a admiravam. E diziam de si para si: «Como pode andar assim sozinha uma jovem tão bela e tão bondosa?»
Gisela gostava de cavalgar. Essa saÃda como servidora dos seus tios não a molestava. Achava bom respirar o ar puro do campo, a liberdade de uma correria, como se o jugo da casa não existisse. Esquecida dos seus tios e prima, entregue só à volúpia dessa tarde amena, nem ouviu outro tropel de cavalo que, todavia, a sua montada denunciou. Tomando mais rápido andamento para apanhar a donzela, o cavaleiro, que vinha perto, estacou o seu cavalo. Gisela parou também o seu. Olharam-se frente a frente. O desconhecido mostrava surpresa no olhar e perguntou:
— Donde vens, tão só e tão bela?
Ela sorriu.
— Venho de perto. Não estou só, porque trago o meu cavalo branco. E não sou bela.
— Não te disseram ainda quanto vales?
Ela encolheu os ombros.
— Sim… várias vezes! Sou órfã... sou pobre... vivo por esmola em casa de meus tios a quem ajudo nos trabalhos caseiros. Já vês que sei quanto valho.
— E quem são os teus tios?
— D. Rodrigo e sua esposa.
O olhar do cavaleiro fixou-se em Gisela. Ela estremeceu e perguntou, com certa ansiedade na voz:
— E quem és tu, cavaleiro que por aqui nunca andaste?
— Dizes bem: nunca andei por estes lados. Se tivesse aqui vindo, decerto já teria dado por ti.
— Não respondeste à minha pergunta.
— Tens razão, perdoa-me! Não nasci nesta terra. Vim para aqui há pouco tempo. Mas ouvi falar na beleza da filha de D. Rodrigo.
— Ah! Então... tu és Viliúlfo?
— Sou.
— Devia tê-lo adivinhado logo!
— Porquê?
— Porque me disseram que eras loiro e tinhas olhos verdes.
— Não há por aqui ninguém com a cor dos meus olhos?
— Creio que não.
— Diz-me: a tua prima é tão bela como tu?
— É muito mais bela! E veste bem... e é rica. Tem muitos pretendentes.
— Ainda bem!
— Porquê?
Viliúlfo teve um risinho. Depois tornou-se sério. Perguntou:
— Quando me esperam lá em casa?
— Só amanhã.
— Pois irei hoje! Gosto das surpresas. Aprende-se muito com elas. Não acreditas?
Ela ia responder, mas arrependeu-se. Disse apenas:
— Então... vamos. Mas diz-lhes que me pediste que te ensinasse o caminho.
— Na verdade, não o sei. Mas porque será necessária a justificação?
— De contrário não gostariam que te acompanhasse.
— Porquê? Sou um cavaleiro!
— Por isso mesmo.
— Não entendo!
— Vais entender quando lá chegarmos.
E dando de esporas ao cavalo, Gisela meteu a galope a caminho de casa.
Com o tropel dos cavalos, os cães acorreram ladrando e alertaram as pessoas. Ao saber da grande nova, a balbúrdia foi grande em casa de D. Rodrigo. Berta gritava pelo vestido novo. A tia de Gisela pedia a esta que fosse para a cozinha ajudar as servas, e D. Rodrigo esforçava-se por agradar ao futuro genro.
Berta, envergando o vestido novo, perguntou à prima:
— Achas-me bem?
Deslumbrada, ela respondeu:
— Estás maravilhosa!
Então Berta voltou a perguntar:
— E ele? É tão belo como se dizia?
— Mais ainda!
Radiante, Berta correu para o salão.
Frente a frente, Berta e Viliúlfo olharam-se. O cavaleiro não pôde esconder a sua admiração.
— Na verdade, és ainda mais bela que tua prima!
O cumprimento não agradou à jovem, que retorquiu:
— Para ser mais bonita que Gisela, não é preciso muito!
Ele franziu as sobrancelhas.
— Assim o julgas? Pois garanto-te que Gisela é uma das mulheres que mais me impressionaram!
Berta julgou ter ouvido mal.
— O quê? Aprecias uma rapariga para quem ninguém olha?
Viliúlfo voltou a franzir as sobrancelhas.
— Berta, creio que cavaste uma grande distância entre a tua pessoa e Gisela!
— De facto, essa distância existe!
Viliúlfo sorriu.
— Tens razão. Só agora o notei. Essa grande distância existe. Tu és mais bela do que tua prima. Isso é verdade. Mas o teu olhar é tão cruel... a tua voz tão dura... que em nada se pode assemelhar ao olhar e à voz da deliciosa Gisela!
Berta zangou-se.
— Vieste para me insultar?
— Vim para buscar-te e fazer de ti minha esposa. Mas agora tenho de conversar com teu pai.
Berta saiu dali furiosa e foi procurar Gisela. Encontrou-a, preparando a comida. Gritou-lhe:
— Ladra!
Gisela não entendeu. Perguntou:
— Que dizes?
— Ladra, queres roubar-me o meu noivo! Tu, que nada tens para lhe dar senão a tua triste miséria!
Gisela tentou agarrar-lhe as mãos, mas Berta esquivou-se. Estava pálida e a sua voz tremia.
— Estás a dizer coisas loucas! Eu não pretendo o teu noivo nem ele me pretende! Apenas nos encontrámos no caminho e ele veio comigo até aqui.
Berta gritou-lhe:
— Pois volta para esse caminho! Não te quero mais nesta casa, reles mulher que roubas os noivos a quem te tem dado de comer!
Gisela olhou a prima com perplexidade. Não havia lágrimas nos seus olhos. Mas um nó na garganta, muito apertado, martirizava-a. Berta voltou a gritar:
— Porque esperas? Disse-te que abandonasses imediatamente esta casa!
Julgando estar vivendo um pesadelo, Gisela arriscou:
— Acalma-te, Berta! Não sabes o que dizes! Viliúlfo não pode...
Suspendeu a frase. Quase na sua frente estava Viliúlfo, sorrindo, e D. Rodrigo, com a expressão dos seus dias maus. O cavaleiro falou para a jovem Berta:
— Acabo de apresentar a teu pai as minhas desculpas, pois, na verdade, não pretendo para esposa uma mulher que tanto tem de belo como de mau!
Berta fez-se pálida. Os seus olhos faiscaram de indignação. Declarou com voz dominada pela cólera:
— Ainda bem que assim pensas! Jamais aceitaria para esposo quem acaba de demonstrar um gosto tão pouco apurado! A minha prima talvez sirva... Eu não!
Sempre sorrindo, o cavaleiro respondeu:
— Acertaste! A tua prima serve-me admiravelmente. E, já que acabaste de a expulsar de casa, aproveito para declarar a teu pai que a levarei comigo e com ela casarei na primeira capela onde houver um sacerdote.
D. Rodrigo, arrogante, respondeu:
— Não te apresses! Gisela vive na minha casa e sob a minha tutela!
Viliúlfo redarguiu:
— Diz antes que viveu na tua casa e sob a tua tutela. Mas Berta acaba de expulsá-la, sem ligar muito ou nada à tua opinião. Eu farei o mesmo.
Muda de espanto, Gisela sentia o coração saltar-lhe do peito.
Viliúlfo falou-lhe com voz branda:
— Vem, Gisela! Não quero que tragas nada do que usaste nesta casa.
Ela arriscou:
— Nem o meu cavalo?
Ele sorriu.
— Está bem: levarás apenas o teu cavalo branco! Sorri, minha pobre Gisela! Sorri! Acabas de alcançar o teu triunfo!
A jovem, atónita, não sabia que fazer ou dizer. Foi o tio quem a ajudou a tomar uma decisão. Com ar resoluto, exclamou:
— Porque hesitas? Agradece a generosidade do cavaleiro Viliúlfo! Embora o não achasse suficientemente poderoso para a tua prima, é, contudo, bom demais para ti, que não tens dote!
Gisela fez-se pálida. Pela primeira vez não suportou ser amesquinhada diante de alguém a quem já amava. E declarou com aparente serenidade:
— Senhor meu tio! Agradeço o conselho que me dá. Sinto que de hoje em diante a vida vai sorrir-me, e poderei finalmente ser feliz!
Viliúlfo tomou uma das mãos pequeninas e beijou-a, dizendo:
— Vamos, querida! Temos de procurar um sacerdote antes que o Sol nos fuja no horizonte!
Sorrindo, Gisela exclamou:
— O Sol, levo-o eu na alma!
E lado a lado saÃram do palácio de D. Rodrigo. Quando as suas silhuetas se perderam no horizonte, Berta arrepelou os cabelos, gritando:
— Ele é um louco! É um louco! Desprezou-me por Gisela!
Serenamente, a mãe de Berta tocou-lhe num ombro. A sua voz era cariciosa.
— Filha! Sempre me ouviste dizer que a beleza do corpo não basta! Tu eras mais bonita que tua prima, mas Gisela triunfou porque possuÃa a maior beleza que se pode possuir: — a da alma!
Calou-se a esposa de D. Rodrigo, olhando a filha com tristeza. Pouco a pouco, Berta deixou de chorar. Depois, olhando a mãe, exclamou:
— Tenho muitos pretendentes, muitos! Vou escolher um deles e casar-me! Gisela não se adiantará muito tempo a mim! Havemos de nos encontrar nos salões… e depois... depois veremos!
D. Rodrigo abanou a cabeça e resmungou:
— Esta filha põe-me louco!
Lá fora o Sol parecia rir, na verdade, de tanta loucura!
Gentil Marques
Penafiel
Penafiel