Esta lenda leva-nos a Viana do Castelo, e mais precisamente a uma casa apalaçada da Rua da Bandeira. Foi isto em tempos que já lá vão, quando nessa casa vivia uma formosíssima donzela chamada Brites Quesado. Não existia entre Douro e Minho quem a igualasse em beleza e fidalguia. As propostas de casamento vinham de todos os cantos do Reino e mesmo de além fronteiras. Todavia, entre tantos pretendentes, D. Brites distinguiu Lopo da Rocha, moço esbelto de elevada estirpe e belos sentimentos, mas que não gozava da simpatia dos pais da donzela. Estes empenhavam-se, por seu turno, em desposá-la com seu primo João de Alvim.
Tanto D. Lopo como D. João amavam sinceramente a jovem D. Brites, e sofriam com receio do futuro.
Certa tarde, estava ela a bordar no varandim cuja escada dava para o pátio. O seu pensamento andava distante do bordado. De súbito, uma voz máscula soou mesmo a seu lado. Ela teve um gritinho e exclamou:
— Assustastes-me, senhor meu primo!
— Lamento profundamente. Daria metade dos meus troféus para vos dar apenas alegrias.
A jovem sorriu. Um sorriso enigmático. Tão enigmático como a sua frase:
— Senhor D. João... está na vossa mão, creio, cumprir esse desejo...
D. João de Alvim tomou-se circunspecto.
— Senhora minha prima! Se basta a minha presença para vos assustar... como ousarei esperar de vós a felicidade?
Voltou a jovem a sorrir. Murmurou como se fosse para si mesma:
— Felicidade! Ninguém ainda a viu… mas existe, pois que alguns a sentem!
— Por exemplo, vós, não é verdade?
Abriu-se mais o sorriso de D. Brites. Adoçou-se a sua expressão.
— Na verdade, não devo queixar-me da minha sorte.
Tornou-se subitamente dura a expressão de D. João de Alvim. A sua voz tomou reflexos de ironia.
— Não deveis queixar-vos, principalmente desde ontem ao pôr do Sol!
D. Brites mostrou-se surpreendida.
— Que quereis dizer, senhor?
Ele tornou:
— Ontem... ao pôr do Sol... vi e ouvi, senhora minha prima!
Ela tentou gracejar.
— Creio que continuais a ver e ouvir...
D. João enervou-se.
— Mas vi o que não queria e ouvi o suficiente para ficar com a alma em noite escura.
— Sim? E o que ouvistes?
— Lopo da Rocha, que vos surpreendeu neste mesmo lugar sem que vos assustasses.
D. Brites ficou subitamente séria. Olhou o primo de frente, interrogando-o com dignidade ofendida:
— Desde quando o senhor meu primo aprendeu a escutar às portas?
Sem se mostrar ofendido, D. João de Alvim replicou:
— Desde que os meus olhos tiveram a desgraça de pousar nos vossos!
A jovem não mostrou surpresa por essa afirmação. Perguntou, altiva:
— E que pretendeis de mim?
D. João tornou, também numa atitude de dignidade:
— Senhora, sou vosso primo! E vossos pais dão-me a honra de me confiarem o seu maior tesouro...
D. Brites interrompeu-o:
— Porém... o tesouro de que falais já não lhes pertence inteiramente. Dei o meu coração!
O fidalgo enervou-se. Alteou a voz.
— Persistis nessa loucura?
Serenamente, a jovem declarou:
— Se loucura é amar um moço fidalgo que por sua grandeza de alma sonha conquistar o meu coração, declaro-vos que amo essa loucura!
D. João empalideceu. Inclinou-se numa vénia para esconder todo o desespero que o dominava e declarou convicto:
— Pois bem, senhora! Retiro-me por agora... mas não desistirei! D. Brites estendeu-lhe a mão que ele mal tocou.
— D. João! Quero recordar-vos que sou das que têm um só parecer. E um único amor! Retirai-vos, pois, na certeza de que amarei apenas a D. Lopo!
Levantou-se e, com uma vénia, entrou no salão onde o crepúsculo marcara audiência.
D. João de Alvim, pálido, trémulo de desespero, ficou ainda algum tempo no varandim. Depois, afastou-se a passos largos.
Alguns meses passaram. A fidalguinha via muitas vezes o eleito do seu coração. Porém, apenas podia trocar com ele, além de apaixonados olhares, uma ou outra missiva, porque seu primo João de Alviin, com o acordo dos pais de D. Brites, parecia sentinela vigilante.
Chegou o dia dos anos da jovem. No palacete foi oferecida uma linda festa. Vieram fidalgos de todo o reino. Havia música, flores e alegria por toda a parte. E entre os fidalgos convidados, com grande surpresa da jovem fidalga, surgiu também Lopo da Rocha. Era bem visto e estimado entre os maiores e seria notada a sua falta.
D. Lopo estava na festa. Mas D. João e os pais de D. Brites conseguiam tê-la sempre isolada do jovem fidalgo a quem ela tanto queria. Somente já no fim do sarau e nos alvores do dia seguinte D. Lopo da Rocha conseguiu encontrar-se com D. Brites num recanto do salão, junto ao varandim que dava para o pátio. Tomou-lhe uma das mãos, que beijou com ternura. A sua voz soou repassada de emoção:
— Meu amor! Julguei sonhar toda esta noite! Fitai uma vez mais os vossos olhos nos meus! Tal como o nadador que antes de mergulhar enche os pulmões de ar puro, assim eu pretendo armazenar no coração o olhar da mulher a quem tanto amo!
Enleada, D. Brites corou de felicidade.
— Meu bem-amado! Falais com tanto ardor, tanto carinho!... Que mais posso eu dizer-vos do que isto: levais convosco a minha alma inteira! Viva ou morta pertencer-vos-ei para sempre!
— Jurais?
Ela olhou-o perplexa. Como se tivesse pressa da resposta, ele insistiu:
— Jurais que cumprireis o que me dissestes?
Ainda surpreendida pelo tom de voz e pela palidez repentina do rosto do seu bem-amado, ela afirmou:
— Juro, meu amor! Viva ou morta, serei sempre vossa. Seguirei sempre a vossa sorte no mundo e na Eternidade. Porém, dizei-me: porque empalidecestes?
Ele suspirou:
— Senhora! Não sei que estranho pressentimento me assalta! Mas agora estou mais sossegado.
Olhava-a com tanta intensidade que ela baixou o olhar. Mas o jovem insistiu:
— Não… não escondais os vossos olhos bonitos sob as pálpebras! Quero ver o brilho do vosso olhar a projectar-se no meu. Assim… assim mesmo... Levo-vos na alma!... Adeus, meu anjo!... Hei-de amar-vos mesmo para além da minha morte!
Beijou-lhe uma das mãos, mais uma vez, com ternura. Depois saiu do salão, desceu a escadaria que levava ao pátio, e preparava-se para se afastar quando esbarrou com um embuçado. O desconhecido gritou-lhe:
— Cautela, vilão!
Pela voz, D. Lopo reconheceu o embuçado. E sem dar mostras de surpresa ripostou-lhe:
— Enganais-vos, senhor D. João de Alvim! Vilão sois vós, que injuriais quem vos não ofendeu!
D. João descobriu-se. Replicou colérico:
— São vilões os que fazem vilanias requestando fidalgas ricas às escondidas de seus pais!
Cerrando os dentes, D. Lopo perguntou:
— É uma provocação, o que procurais?
— Não! É uma vingança!
E sem dar tempo a que D. Lopo se pusesse em guarda, D. João desferiu uma estocada ao peito do seu rival.
Nesse mesmo instante, D. Brites, que assistira à cena, gritou no auge do desespero:
— Lopo! Defendei-vos, senão morrereis!
Com uma das mãos na espada, outra no peito donde o sangue corria, D. Lopo tentou falar.
— Brites... afastai-vos, meu anjo!
D. João gracejou:
— Na verdade chegais tarde, minha prima, pois já matei o vosso bem-amado!
Num assomo de energia, D. Lopo ergueu a espada. E vibrando um golpe certeiro no rival rouquejou:
— Mais uma vez vos enganastes, senhor D. João! Como vedes, ainda não morri!
Com o supremo esforço que fizera, D. Lopo não resistiu. Caiu prostrado, junto do corpo do seu rival.
D. Brites soltou um grito estridente. Depois, chorando, suplicava, ajoelhada junto de D. Lopo:
— Meu amor! Vivei! Vivei só para mim!
Porém, D. Lopo já não a ouvia neste mundo. Do salão começou a correr gente. Ante o quadro macabro que se lhes oferecia, as senhoras desmaiavam, e os homens rodeavam os cadáveres dos dois jovens fidalgos, tentando levá-los dali. Debruçada sobre um deles, a jovem Brites não consentia que a separassem do seu bem-amado. Gritava, dizia incoerências... Chorava como uma criança, ou ficava-se como fera pronta a saltar sobre o caçador que lhe põe em perigo a cria. Compreenderam então que a jovem fidalga havia enlouquecido. Só com muito esforço conseguiram arrancá-la do pátio. A sua loucura era das que não mais encontram alívio. Desfazia-se em choros, em lamentos, e repetia a jura mil vezes jurada:
— Viva ou morta serei sempre vossa! E seguirei sempre a vossa sorte no mundo e na Eternidade!
Pouco tempo durou a que fora a formosa D. Brites. Morreu cansada de sofrer, de se lamentar... E conta a lenda velhinha que a alma de D. Brites continua a errar por ali, altas horas da noite, naquela casa apalaçada da rua da Bandeira, em Viana do Castelo.
Tanto D. Lopo como D. João amavam sinceramente a jovem D. Brites, e sofriam com receio do futuro.
Certa tarde, estava ela a bordar no varandim cuja escada dava para o pátio. O seu pensamento andava distante do bordado. De súbito, uma voz máscula soou mesmo a seu lado. Ela teve um gritinho e exclamou:
— Assustastes-me, senhor meu primo!
— Lamento profundamente. Daria metade dos meus troféus para vos dar apenas alegrias.
A jovem sorriu. Um sorriso enigmático. Tão enigmático como a sua frase:
— Senhor D. João... está na vossa mão, creio, cumprir esse desejo...
D. João de Alvim tomou-se circunspecto.
— Senhora minha prima! Se basta a minha presença para vos assustar... como ousarei esperar de vós a felicidade?
Voltou a jovem a sorrir. Murmurou como se fosse para si mesma:
— Felicidade! Ninguém ainda a viu… mas existe, pois que alguns a sentem!
— Por exemplo, vós, não é verdade?
Abriu-se mais o sorriso de D. Brites. Adoçou-se a sua expressão.
— Na verdade, não devo queixar-me da minha sorte.
Tornou-se subitamente dura a expressão de D. João de Alvim. A sua voz tomou reflexos de ironia.
— Não deveis queixar-vos, principalmente desde ontem ao pôr do Sol!
D. Brites mostrou-se surpreendida.
— Que quereis dizer, senhor?
Ele tornou:
— Ontem... ao pôr do Sol... vi e ouvi, senhora minha prima!
Ela tentou gracejar.
— Creio que continuais a ver e ouvir...
D. João enervou-se.
— Mas vi o que não queria e ouvi o suficiente para ficar com a alma em noite escura.
— Sim? E o que ouvistes?
— Lopo da Rocha, que vos surpreendeu neste mesmo lugar sem que vos assustasses.
D. Brites ficou subitamente séria. Olhou o primo de frente, interrogando-o com dignidade ofendida:
— Desde quando o senhor meu primo aprendeu a escutar às portas?
Sem se mostrar ofendido, D. João de Alvim replicou:
— Desde que os meus olhos tiveram a desgraça de pousar nos vossos!
A jovem não mostrou surpresa por essa afirmação. Perguntou, altiva:
— E que pretendeis de mim?
D. João tornou, também numa atitude de dignidade:
— Senhora, sou vosso primo! E vossos pais dão-me a honra de me confiarem o seu maior tesouro...
D. Brites interrompeu-o:
— Porém... o tesouro de que falais já não lhes pertence inteiramente. Dei o meu coração!
O fidalgo enervou-se. Alteou a voz.
— Persistis nessa loucura?
Serenamente, a jovem declarou:
— Se loucura é amar um moço fidalgo que por sua grandeza de alma sonha conquistar o meu coração, declaro-vos que amo essa loucura!
D. João empalideceu. Inclinou-se numa vénia para esconder todo o desespero que o dominava e declarou convicto:
— Pois bem, senhora! Retiro-me por agora... mas não desistirei! D. Brites estendeu-lhe a mão que ele mal tocou.
— D. João! Quero recordar-vos que sou das que têm um só parecer. E um único amor! Retirai-vos, pois, na certeza de que amarei apenas a D. Lopo!
Levantou-se e, com uma vénia, entrou no salão onde o crepúsculo marcara audiência.
D. João de Alvim, pálido, trémulo de desespero, ficou ainda algum tempo no varandim. Depois, afastou-se a passos largos.
Alguns meses passaram. A fidalguinha via muitas vezes o eleito do seu coração. Porém, apenas podia trocar com ele, além de apaixonados olhares, uma ou outra missiva, porque seu primo João de Alviin, com o acordo dos pais de D. Brites, parecia sentinela vigilante.
Chegou o dia dos anos da jovem. No palacete foi oferecida uma linda festa. Vieram fidalgos de todo o reino. Havia música, flores e alegria por toda a parte. E entre os fidalgos convidados, com grande surpresa da jovem fidalga, surgiu também Lopo da Rocha. Era bem visto e estimado entre os maiores e seria notada a sua falta.
D. Lopo estava na festa. Mas D. João e os pais de D. Brites conseguiam tê-la sempre isolada do jovem fidalgo a quem ela tanto queria. Somente já no fim do sarau e nos alvores do dia seguinte D. Lopo da Rocha conseguiu encontrar-se com D. Brites num recanto do salão, junto ao varandim que dava para o pátio. Tomou-lhe uma das mãos, que beijou com ternura. A sua voz soou repassada de emoção:
— Meu amor! Julguei sonhar toda esta noite! Fitai uma vez mais os vossos olhos nos meus! Tal como o nadador que antes de mergulhar enche os pulmões de ar puro, assim eu pretendo armazenar no coração o olhar da mulher a quem tanto amo!
Enleada, D. Brites corou de felicidade.
— Meu bem-amado! Falais com tanto ardor, tanto carinho!... Que mais posso eu dizer-vos do que isto: levais convosco a minha alma inteira! Viva ou morta pertencer-vos-ei para sempre!
— Jurais?
Ela olhou-o perplexa. Como se tivesse pressa da resposta, ele insistiu:
— Jurais que cumprireis o que me dissestes?
Ainda surpreendida pelo tom de voz e pela palidez repentina do rosto do seu bem-amado, ela afirmou:
— Juro, meu amor! Viva ou morta, serei sempre vossa. Seguirei sempre a vossa sorte no mundo e na Eternidade. Porém, dizei-me: porque empalidecestes?
Ele suspirou:
— Senhora! Não sei que estranho pressentimento me assalta! Mas agora estou mais sossegado.
Olhava-a com tanta intensidade que ela baixou o olhar. Mas o jovem insistiu:
— Não… não escondais os vossos olhos bonitos sob as pálpebras! Quero ver o brilho do vosso olhar a projectar-se no meu. Assim… assim mesmo... Levo-vos na alma!... Adeus, meu anjo!... Hei-de amar-vos mesmo para além da minha morte!
Beijou-lhe uma das mãos, mais uma vez, com ternura. Depois saiu do salão, desceu a escadaria que levava ao pátio, e preparava-se para se afastar quando esbarrou com um embuçado. O desconhecido gritou-lhe:
— Cautela, vilão!
Pela voz, D. Lopo reconheceu o embuçado. E sem dar mostras de surpresa ripostou-lhe:
— Enganais-vos, senhor D. João de Alvim! Vilão sois vós, que injuriais quem vos não ofendeu!
D. João descobriu-se. Replicou colérico:
— São vilões os que fazem vilanias requestando fidalgas ricas às escondidas de seus pais!
Cerrando os dentes, D. Lopo perguntou:
— É uma provocação, o que procurais?
— Não! É uma vingança!
E sem dar tempo a que D. Lopo se pusesse em guarda, D. João desferiu uma estocada ao peito do seu rival.
Nesse mesmo instante, D. Brites, que assistira à cena, gritou no auge do desespero:
— Lopo! Defendei-vos, senão morrereis!
Com uma das mãos na espada, outra no peito donde o sangue corria, D. Lopo tentou falar.
— Brites... afastai-vos, meu anjo!
D. João gracejou:
— Na verdade chegais tarde, minha prima, pois já matei o vosso bem-amado!
Num assomo de energia, D. Lopo ergueu a espada. E vibrando um golpe certeiro no rival rouquejou:
— Mais uma vez vos enganastes, senhor D. João! Como vedes, ainda não morri!
Com o supremo esforço que fizera, D. Lopo não resistiu. Caiu prostrado, junto do corpo do seu rival.
D. Brites soltou um grito estridente. Depois, chorando, suplicava, ajoelhada junto de D. Lopo:
— Meu amor! Vivei! Vivei só para mim!
Porém, D. Lopo já não a ouvia neste mundo. Do salão começou a correr gente. Ante o quadro macabro que se lhes oferecia, as senhoras desmaiavam, e os homens rodeavam os cadáveres dos dois jovens fidalgos, tentando levá-los dali. Debruçada sobre um deles, a jovem Brites não consentia que a separassem do seu bem-amado. Gritava, dizia incoerências... Chorava como uma criança, ou ficava-se como fera pronta a saltar sobre o caçador que lhe põe em perigo a cria. Compreenderam então que a jovem fidalga havia enlouquecido. Só com muito esforço conseguiram arrancá-la do pátio. A sua loucura era das que não mais encontram alívio. Desfazia-se em choros, em lamentos, e repetia a jura mil vezes jurada:
— Viva ou morta serei sempre vossa! E seguirei sempre a vossa sorte no mundo e na Eternidade!
Pouco tempo durou a que fora a formosa D. Brites. Morreu cansada de sofrer, de se lamentar... E conta a lenda velhinha que a alma de D. Brites continua a errar por ali, altas horas da noite, naquela casa apalaçada da rua da Bandeira, em Viana do Castelo.
Gentil Marques
Viana do Castelo
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