24/10/2011

Os animais enfermos da peste



Mal que espalha o terror, e que a ira celeste
Inventou para castigar
Os pecados do mundo; a peste, em suma a peste;
Capaz de abastecer o Aqueronte num dia,
Veio entre os animais lavrar;
E se nem tudo sucumbia,
Certo é que tudo adoecia.
Já nenhum, por dar vida ao moribundo alento,
Catava mais nenhum sustento.
Não havia manjar que o apetite abrisse,
Raposa ou lobo que saísse
Contra a presa inocente e mansa,
Rola que à rola não fugisse,
E onde amor falta, adeus, folgança.
O leão convocou uma assembleia e disse:
«Sócios meus, certamente este infortúnio veio
A castigar-nos de pecados.
Que o mais culpado entre os culpados
Morra, por aplacar a cólera divina.
Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.
Em casos tais é de uso haver sacrificados,
Assim a história no-lo ensina.
Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,
Pesquisemos a consciência.
Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glutão,
Devorei muita carneirada.
Em que é que me ofendera? Em nada.
E tive mesmo ocasião
De comer igualmente o guarda da manada.
Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.
Mas assim como me acusei,
Bom é que cada qual se acuse; de tal sorte
Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto
Justo) caiba ao maior dos culpados a morte.
– Meu senhor – acudiu a raposa – é ser rei
Bom de mais; é provar melindre exagerado.
Pois então devorar carneiros,
Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?
Não. Vós fizestes-lhes, senhor,
Em os comer muito favor.
E no que toca aos pegureiros,
Toda a calamidade era bem merecida;
Pois são daquelas gentes tais
Que imaginaram ter posição mais subida
Que a de nós outros animais.»
Disse a raposa; e a corte aplaudiu-lhe o discurso.
Ninguém do tigre nem do urso,
Ninguém de outras iguais senhorias do mato,
Inda entre os actos mais daninhos
Ousava esmerilhar um acto;
E até os últimos rafeiros,
Todos os bichos rezingueiros
Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.
Eis chega o burro: – «Tenho ideia que no prado
De um convento, indo eu a passar, e picado
Da ocasião, da fome e do capim viçoso,
E pode ser que do tinhoso,
Um bocadinho lambisquei
Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade.»
Mal o ouviu a assembleia exclama: aqui d’el-rei!
Um lobo, algo letrado, arenga e persuade
Que era bom imolar esse bicho nefando,
Empestiado autor de tal calamidade.
E o pecadilho foi julgado
Um atentado.
Pois comer erva alheia! oh, crime abominado!
Era visto que só a morte
Poderia purgar um pecado tão duro.
E o burro foi ao reino escuro.
Segundo sejas tu miserável ou forte,
Áulicos te farão detestável ou puro.


tradução de Machado de Assis