15/05/2012

Lenda da estranha visita

Lê-se no Novo Testamento, no Evangelho de N. S. Jesus Cristo, segundo São Mateus:
«Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindos do Oriente. «Onde está o rei dos Judeus que acaba de nascer? — perguntavam. — Pois vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.» Ao ouvir tal notícia o rei Herodes perturbou-se e toda a Jerusalém com ele. E reunindo todos os sumos sacerdotes e escribas do povo, perguntou-lhes onde devia nascer o Messias. Eles responderam: «Em Belém da Judeia, pois assim está escrito pelo profeta: “E tu Belém, terra de Judá, de nenhum modo és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que apascentará o meu povo de Israel.”»
«Então, Herodes mandou chamar secretamente os magos e pediu-lhes informações exactas sobre a data em que a estrela lhes havia aparecido. E enviando-os a Belém disse-lhes: “Ide e informai-vos cuidadosamente acerca do Menino e, depois de O encontrardes, vinde comunicar-mo, para que também eu vá adorá-Lo.” Após as palavras do rei, puseram-se a caminho e a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que, chegando ao lugar onde estava o Menino, parou. Ao ver a estrela sentiram grande alegria e, entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se O adoraram e, abrindo os seus tesouros, ofereceram-Lhe presentes: ouro, incenso e mirra. Avisados em sonho a não voltarem para junto de Herodes, regressaram à sua terra a por outro caminho.»

A noite caíra, serena. Céu azul-escuro, coalhado de estrelas cintilantes. Noite fria, apesar de o vento estar ausente.
Dentro do pobre casebre onde o Deus Menino nascera, estavam apenas José e Maria junto do pequeno Jesus. Os reis magos haviam saído de lá quando ainda a luz do dia beijava a pobre cabana. Agora, porém, estavam sós. Sós e cansados. As visitas haviam sido muitas. Necessitavam dormir. O Menino fechara os olhitos. Sorria levemente, como em sonhos. Iam apagar a candeia quando, de súbito, mais alguém bateu à porta. José e Maria entreolharam-se, quase assustados. Quem poderia ser a horas tão altas? As batidas repetiram-se. José levantou-se da enxerga e perguntou:
— Quem bate?
Ninguém respondeu. Apenas o Menino choramingou, o que fez Maria debruçar-se sobre Ele, acariciando-O. Mas Ele parecia inquieto. José abriu a porta. Aproximou a candeia. Então ficou perplexo. Uma velha, muito velha, como que carcomida pelo tempo, olhava José com um olhar brilhante — como se tivesse apenas vinte anos.
José perguntou:
— Que quereis?
A velha não respondeu.
José tornou:
— Vindes de muito longe e quereis descansar?
De novo ficou sem resposta. Mas a estranha visita já não reparava em José. Olhava o Menino deitado nas palhinhas. Olhava-O numa expressão de amor e angústia, ao mesmo tempo.
José perguntou ainda.
— Quem sois?
A velha entrou devagar, de joelhos em terra, quase rastejando. Aproximou-se do Menino. Tinha lágrimas nos olhos e não O desfitava.
Maria, que a observava em silêncio, perguntou então, indicando Jesus:
— Vindes vê-Lo, também?
Parecia não os escutar, a estranha visita. José insistiu.
— Estais cansada. Descansai um pouco. Talvez queirais comer alguma coisa...
Só os olhos tinham vida, naquele rosto quase mumificado. E os olhos falavam silenciosamente com o Deus Menino, que lhe sorria, complacente.
Calaram-se, também, Maria e José. Havia algo de dramático naquela muda adoração. E o Menino não dormia. Parecia até compreender aquela voz interior. Às vezes, a estranha visita curvava mais a cabeça. E as lágrimas inundavam as suas mãos gastas pelo rodar dos anos. Quando isso acontecia, o Menino deixava de sorrir. E uma expressão triste toldava o Seu infantil semblante. Depois, a estranha visita olhava-O de novo, mais calma, e o Menino voltava a sorrir.
Assim foram decorrendo as horas, pela noite sem lua. E nem uma palavra voltou a ser pronunciada dentro da cabana onde Jesus havia nascido. Porém, quando a manhã chegou, quando os primeiros raios de Sol passaram através das frestas e da porta, agora entreaberta, a velha rompeu a soluçar, dolorosamente. As lágrimas já não caíam nas suas mãos trémulas, mas nos pezinhos do Menino.
Vendo-a nesse estado de desolação, Maria apiedou-se. Aproximou-se da velha. Tocou-lhe num ombro. Ela, porém, fugiu ao seu contacto, como se fosse doente e não a quisesse contagiar. José quis ajudar Maria e perguntou:
— Mulher, porque chorais assim? Dizei-nos porquê e talvez possamos ajudar-vos.
Como resposta, a estranha visita depositou algo aos pés do Menino, e saiu de costas, rosto quase em terra, rastejando...
José foi até à porta, mas no caminho a velha sumira-se, como se o vento — que não soprava — a tivesse levado. Então, José ouviu Maria chamar por ele:
— José! Anda ver o que a estranha visita deixou ao Menino!
José olhou. Os seus olhos piscaram, como se não acreditassem no que viam. E exclamou:
— Uma maçã!
Maria anuiu:
— Sim, uma maçã! E chorava, a pobre! Chorava arrependida!... Que pensas?
José volveu a olhar Maria:
— Penso que ela era...
Não terminou a frase. Maria concordou.
— Era ela, decerto! Veio também adorar o Menino… e pedir-Lhe perdão...
Olharam ambos o berço improvisado. O Menino sorria. Sorria como a dizer-lhes que tinham identificado a estranha visita.
O Sol brincou com os caracóis do Seu cabelo. Esperneou o Menino, contente desse contacto. Sorria, feliz.
A seu lado Maria e José olhavam essa maçã que o Sol agora doirava, sem se atreverem a tocar-lhe...

Assim se perpetuou, através dos tempos, a ideia de que a estranha visita teria sido a própria Mãe Eva, minada de remorsos — símbolo vivo das consciências atormentadas que depõem o peso e o fruto da sua culpa aos pés divinos de Jesus.


MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal