Quem bate, oh! quem 'stá aí?»
– «Sou Bernal-Francês, Senhora;
Vossa porta, amor, abri.»
– «Ai! se é Bernal-Francês,
A porta lhe vou abrir;
Mas se é outro cavaleiro,
Bem se pode daí ir.»
«Ao saltar da minha cama
Eu rompi o meu frandil,
Ao descer da minha escada
Me caiu o meu chapim,
Ao abrir a minha porta
Me apagaram o meu candil...
Pegaram-lhe pela mão
E o levei ao meu jardim,
Fiz-lhe uma cama de rosas,
Travesseiro de jasmins;
Lavei-o em água de flores
E o deitei a par de mim...»
– «Meia-noite já é dada
Sem te voltares para mim;
Que tens tu, amor querido,
Que nunca te vi assim?
Se teme-los meus criados,
Não virão agora aí;
Se teme-los meus irmãos,
Eles não moram aqui;
Se de meu marido temes,
Longes terras foi daqui,
Por má traça o matem moiros,
E a nova me venha a mim!...»
– «Não temo de teus irmãos
Que bem sei que são por mim,
Não temo dos teus criados
Que mais me querem que a ti;
A teu marido não temo
E dele nunca temi...
Teme tu, falsa traidora,
Pois o tens a par de ti!»
– «Ai! se tu és meu marido,
Quero-te mais que a mim,
Oh que sonho, tão mau sonho,
Que eu tive agora aqui!
Ergamo-nos já, marido,
Deixa-me vestir daí.»
– «Cala-te falsa traidora,
Que não me enganas assim.
Deixa tu vir a manhã,
Que eu é que te hei-de vestir:
Dar-te-ei saia de grana
E gibão de carmesim,
Gargantilha de cutelo,
Pois tu o quiseste assim.»
– «Deixa-me ir por aqui abaixo
Coa minha capa a cair,
Vou-me ver a minha dama
Se ainda se lembra de mim.»
– «Tua amada, meu senhor,
É morta, que eu bem a vi:
Os sinais que ela levava;
Eu tos digo agora aqui:
Levava saia de grana
E gibão de carmesim,
Gargantilha de cutelo,
Tudo por amor de ti
Os sinos que correram
Por minhas mãos os corri;
As andas em que a levaram
Eu de negro lhas cobri;
Caixão em que a amortalharam
Era de oiro e marfim;
Os frades que a acompanhavam
Não tinham conto nem fim;
Saíram-lhe sete condes,
Cavaleiros mais de mil;
As donzelas a chorar,
Os pajens iam a rir
Levaram-na a enterrar
À igreja de São Gil.»
Palavras não eram ditas,
Por morto no chão caí;
Passaram-se horas e horas
Quando me tornei a mim.
Fui-me àquela sepultura.
Queria morrer ali:
– «Abre-te, ó campa sagrada
Esconde-me a par de ti!»
Do fundo da cova triste
Ouvi uma voz sair:
– «Vive, vive, cavaleiro,
Vive tu que eu já morri:
Os olhos com que te olhava
De terra já os cobri,
Boca com que te beijava
Já não tem sabor em si,
O cabelo que entrançavas
Jaz caído a par de mim,
Dos braços que te abraçavam
As canas vê-las aqui!
Vive, vive, cavaleiro,
Vive tu, que eu já vivi:
A mulher com quem casares
Chamem-lhe Ana como a mim,
Quando chamares por ela
Hás-de-te lembrar de mim,
Conta-lhe os nossos amores,
Que aprenda na minha fim.
Filhas que dela tiveres
Ensina-as melhor que a mim,
Que se não percam por homens,
Como eu me perdi por ti».
Romanceiro, Almeida Garrett