04/06/2008

A douta escrava simpatia


Conta-se que vivia certa vez em Bagdá um mercador muito rico e cumulado com honrarias e privilégios. Mas Alá o privara de uma felicidade: Não tinha filho - nem mesmo uma filha. Na medida em que envelhecia e o peso dos anos encurvava-lhe as costas, aumentava seu desespero por nada conseguir de suas numerosas esposas. Um dia, porém, após ter distribuído esmolas e visitado santos e rezado com fervor, deitou com sua mulher mais jovem e, pela graça de Alá, engravidou-a. No fim de nove meses, a mulher deu à luz um menino tão lindo quanto um pedaço de lua. A título de agradecimentos a Alá, o mercador alimentou os pobres, as viúvas e os órfãos durante sete dias, e chamou seu filho Abu-Husn. A criança foi alvo de todos os cuidados como uma jóia rara. Quando atingiu a idade em que se começa a aprender, deram-lhe instrutores de todas as ciências e artes. Abu-Husn tornou-se assim ao mesmo tempo um adolescente instruído e de mágica beleza. Sua graça juvenil, o frescor de suas faces, as flores de seus lábios foram assim celebrados pelo poeta: Embora a primavera já tenha passado sobre as roseiras, aqui há botões que ainda não abriram. Neste agradável jardim que não conhece as mudanças, Abu-Husn reinará com dois cetros reunidos: a beleza e a graça. Abu-Husn iluminou assim os últimos anos de seu velho pai. Quando o pai sentiu aproximar-se o termo inelutável, chamou a si Abu-Husn e disse-lhe: "Meu filho, a minha hora chegou. Lego-te grandes riquezas que devem durar por toda a tua vida e a de teus
filhos e netos. Aproveita-as sem excesso, agradece ao Doador e sê moderado e bom para com todos." E o santo homem morreu. Abu-Husn quis seguir os conselhos do pai, mas seus camaradas levaram-no para outros caminhos. Freqüentou músicos e dançarinas, seguiu todos os caprichos, gastou imoderadamente - e, um dia, acordou para verificar que só lhe restava de todas as suas riquezas uma única jovem escrava.
Agora, parai, e admirai os caminhos do destino. Decretou ele que essa jovem seria a maravilha suprema das mulheres do Oriente e do Ocidente. Era chamada Simpatia. E nunca um nome foi mais apropriado a seu dono. Era erecta como a letra Alef. Sua boca parecia ter sido selada por Soleiman para nela guardar as pérolas mais preciosas. Seus seios eram como duas romãs separadas por um vale de sombras e luzes acima de um umbigo que parecia o centro de um planeta. E suas ancas! Deixavam impressa no divã a marca de curvas suaves. Disse dela um poeta: Se ela aparecesse aos pagãos,largariam seus ídolos e a adorariam. E se tomasse banho de mar, ao contacto de sua doçura, a água perderia seu sal e viraria doce.
Tendo verificado que estava arruinado, Abu-Husn caiu numa desolação que lhe roubou o apetite e o sono e pôs-lhe a vida em perigo. Mas sua escrava Simpatia decidiu tudo fazer para salva-lo. Vestiu-se tão elegantemente quanto pôde, usando o que lhe sobrava de jóias, e procurou seu amo. ‘ para por à fim a tuas desgraças com minha ajuda," disse-lhe. "Leva-me ao califa Harun Ar-Rachid e oferece-me a ele por 10 mil dinares. Se ele achar o preço alto, pede-lhe que me examine para dar-se conta de que valho mais do que isso." Na sua devassidão, Abu-Husn nunca reparara nas dádivas raras de sua bela escrava. Levou-a ao califa. O califa interessou-se por ela e perguntou-lhe: - Como te chamas? - Meu nome é Simpatia. – Ó Simpatia, és mesmo instruída e podes citar os ramos de saber nos quais te destacas? - Meu amo, estudei a sintaxe, a poesia, o direito, a música, a astronomia, a aritmética, a jurisprudência. Conheço de cor o Livro Sublime. Sei o número de suras, versículos, vocábulos, letras de que se compõe. Conheço as leis e o dogma. Conheço a lógica, a arquitectura, a filosofa. Sei compor poemas. Além disso, sei cantar, dançar e toco o alaúde e a flauta. Quando , vestida e perfumada, caminho balançando os quadris, posso matar. Quando toco em alguém dou-lhe a vida, e quando me afasto dele dou-lhe a morte. O califa ficou assombrado e disse a Abu-Husn: "Vou mandar os mestres da ciência porem à prova tua escrava. Se ela vencer, não apenas te darei 10 mil dinares como te cumularei de honrarias. Se ela fracassar, continuará a ser tua." O califa mandou reunir os maiores sábios, poetas, gramáticos, médicos, astrónomos, filósofos, jurisconsultos e teólogos. À ordem do califa, sentaram-se todos em uma roda, enquanto Simpatia pôs-se no meio deles, sorridente e com o rosto coberto com um véu transparente. Dirigindo-se à assembleia, declarou Harun Ar-Rachid: "Fiz-vos comparecer aqui, ó sumidades, para que examineis esta adolescente quanto à variedade e profundidade de seus conhecimentos. Não vos acanheis em exibir vossa própria A capacidade e erudição." Todos os presentes inclinaram-se e , pondo as mãos sobre os olhos e as frontes, responderam: "Obediência a Alá e a vós, ó Comandante dos Fiéis." As perguntas mais diversas choveram sobre Simpatia. A todos respondeu com infalível segurança e exactidão. Eis algumas das perguntas e respostas mais notáveis: - Quais são as principais obrigações de nossa religião? - As obrigações indispensáveis de nossa religião são cinco:a profissão de fé ("Não há Deus senão Alá, e Maomé"é o mensageiro de Alá"), as orações, a caridade, o jejum de Ramadã e a peregrinação a Meca. - Quais os actos de fé mais meritórios? - São seis: recitar as orações, distribuir esmolas, jejuar, visitar Meca, combater os maus instintos e participar da guerra santa. - O que é guerra santa? - É a guerra sustentada contra os descrentes quando o islã está em perigo. Só pode ser uma guerra defensiva. Armado, o crente deve andar para a frente e nunca recuar. - Qual é o fruto ou a utilidade das orações? - A verdadeira oração não tem utilidade terrena. Deve ser considerada apenas como um laço espiritual entre a criatura e seu Criador. E susceptível de produzir dez resultados imateriais: ilumina o coração, alegra o compassivo, irrita o demónio, atrai a piedade, expulsa o mal, preserva da aflição, protege contra os inimigos, fortalece o espírito vacilante e aproxima o escravo de seu Mestre e Senhor. - Fala-nos do jejum. - O jejum consiste em abster-se de comer, beber e ter relações sexuais todos os dias do mês de Ramadã, do levantar ao pôr-do sol. É bom também evitar toda conversa fútil e ler exclusivamente o Alcorão. - Qual é o valor do quinhão do pobre que todo crente deve pagar? - Se o crente possui até vinte dirhams de ouro, nada deve. Acima dessa importância, a proporção devida é de três por cento. Assim, um carneiro é pago a cada cinco camelos, um camelo a cada vinte e cinco camelos, e assim por diante. -Podes dizer-nos o que é uma coisa, a metade de uma coisa e menos que uma coisa. -O crente é uma coisa; o hipócrita é a metade de uma coisa e o descrente é menos que uma coisa. - Podes contar-nos em que versículo o Profeta julga os descrentes? - No versículo que proclama: "Os judeus dizem que os cristãos estão no erro; e os cristãos dizem que os judeus estão no erro. Neste ponto, ambos estão certos." - Qual é a causa de todas as doenças? - Nossos erros e excessos alimentares: comer antes que a refeição anterior tenha sido digerida; comer sem ter fome. A gula é causa da maioria das doenças que afligem a humanidade. - Dá-nos uma clara definição da cópula. -A cópula é o ato que une os sexos do homem e da mulher. É um ato benéfico: revigora o corpo e eleva a alma. Afasta a melancolia; acalma o fogo da paixão, promove o amor, satisfaz o coração, consola da ausência do amado e cura a insónia. - Podes dizer-nos que coisa vive sempre na prisão e morre quando respira o ar? - É o peixe. - Explica o seguinte: ` arrasto longas caudas atrás de mim tenho um olho, mas não me é dado ver; faço vestidos que não me é dado usar." - É a agulha. Um astrónomo perguntou-lhe: "Achas que choverá este mês?" Respondeu, dirigindo-se a Harun Ar-Rachid: "Ó Príncipe dos Crentes, peço-vos emprestar-me vossa espada por um momento para que corte a cabeça deste agnóstico sem fé." Ouvindo essas palavras, o califa e todos os sábios deram gargalhadas. E Simpatia prosseguiu: "Deverei ensinar-te, ó astrônomo, que há cinco coisas que somente Alá conhece: a hora da morte, o sexo do feto no útero materno, quando choverá, o que acontecerá amanhã e onde morreremos." Naquela altura, o sábio Ibrahim Ibn Sirah levantou a mão direita e testemunhou publicamente que a escrava Simpatia o ultrapassava em conhecimentos e sabedoria e era a maravilha dos tempos. O califa levantou-se por sua vez e disse: "Possa Alá aumentar ainda mais tuas qualidades, ó Simpatia, e abençoar os que te trouxeram para este mundo e os que te ensinaram." E mandou entregar a Abu-Husn 10 mil dinares de ouro, colocados em cem sacos. Depois virou-se novamente para Simpatia e perguntou-lhe: "Dize-me, ó adolescente maravilhosa , preferes entrar no meu harém e ter um palácio e uma comitiva próprias, ou voltar para a casa deste moço?" Simpatia beijou a terra entre as mãos do califa e respondeu: "Possa Alá continuar a abençoar o soberano do mundo. Vossa escrava prefere voltar para a casa de quem a trouxe para cá." Em vez de sentir-se ofendido, o califa presenteou Simpatia com 5 mil dinares de ouro, dizendo-lhe: "Possas ser tão destra no amor quanto o és na dialética." E todos saíram felizes, abençoando o saber de Simpatia e a generosidade de Harun Ar-Rachid.