À porta de Dona Ausenda
Está uma erva fadada;
Mulher que ponha a mão nela
Logo se sente pejada.
Foi pôr-lhe a mão Dona Ausenda
Em má hora desgraçada:
Assim que pôs a mão nela,
Logo se sentiu pejada
Vinha seu pai para a mesa,
Veio ela muito apressada
Para lhe dar água às mãos,
Como filha bem criada.
Pôs-lhe ele os olhos direitos,
Ela fez-se mui corada.
– «Que é isso, Dona Ausenda?
Voto a Deus que estás pejada.»
– «Não diga tal, senhor pai,
É da saia mal talhada;
Que eu nunca tive amores
Nem homem me deve nada».
Mandou chamar os dois xastres
Que tinham mais nomeada:
– «Vejam-me esta saia, mestres;
Aonde está ela errada?»
Olharam um para o outro:
– «Esta saia não tem nada;
O erro que ela tem
É a menina estar pejada.»
– «Confessa-te Dona Ausenda,
Que amanhã serás queimada.»
– «Ai triste da minha vida,
Ai triste de mim coitada!
Sem nunca ter tido amores,
Vou a morrer desonrada!»
Foram chamar o ermitão
Da ponte da Aliviada;
Era um fradinho velho
Que o encontraram na estrada.
Mal o frade chega à porta,
Deitou-se à erva fadada
Cortou-a pela raiz,
Na manga a leva guardada,
– «Ajoelhai, Dona Ausenda,
Que a vossa hora é chegada:
Confessai vosso pecado
A Deus e à Virgem sagrada.»
– «Padre, eu nunca tive amores,
Nem homem me deve nada;
Más artes são do demónio
Ver-me eu donzela – e pejada!»
– «Há quanto tempo, senhora,
Vos sentis embaraçada?»
– «Os nove meses faz hoje
Que ali naquela ramada
Na noite de São João
Adormeci descuidada;
Sentia o cheiro das flores
E da erva rociada,
Sentia-me eu tão ditosa,
Tão feliz e regalada,
Que o despertar me deu pena
Quando veio a madrugada.
– «Tomai agora esta erva,
Que é uma erva fadada:
Com a bênção que lhe eu deito
Ficará erva sagrada.»
– «Ai! este cheiro meu padre,
É o que eu senti na ramada.»
Não disse mais Dona Ausenda,
Do sono ficou tomada.
Virtude tinha aquela erva,
Outra virtude fadada:
Mulher pejada que a toque
Logo fica despejada.
Ali, sem mais dor nem pena,
Em boa hora abençoada,
Pare uma linda criança
Bem nascida e bem medrada.
Meteu-a o frade na manga,
Foi-se sem dizer mais nada.
Já desperta Dona Ausenda,
Já se sente aliviada;
De tudo quanto passou
Apenas está lembrada:
Um mau sonho lhe parece
Que a deixou perturbada.
Chamou por suas donzelas,
Chamou por sua criada,
Vestiu suas galas mais ricas,
Sua saia mais bem talhada,
Foi-se encontrar com seu pai
Que estava na alpendurada
Vendo armar a fogueira
Em que a queria queimada:
– «Senhor pai, aqui me tendes
Já disposta e confessada;
Agora a vossa vontade
Seja em mim executada.»
O pai que a mira e remira
Tão esbelta e bem pregada,
O seu corpo tão gentil,
Sua saia tão bem talhada:
– «Que feitiço era este, filha,
Com que estavas embruxada?
Como se desfez o encanto,
Que te vejo tão mudada?»
– «Fosse ele poder de encanto,
Ou condão de erva fadada,
Quebrou-o aquele fradinho
Da ponte da Aliviada.»
– «Metade de quanto eu tenho,
Ametade bem contada,
A esse bom ermitão
Desta hora lhe fica dada.»
Palavras não eram ditas
O ermitão que chegava:
– «Aceito a oferta, bom conde,
Se a metade é bem contada,
Se entra nela Dona Ausenda,
E ma dais por desposada.»
Riram-se todos do frade;
Ele sem dizer mais nada,
Despe o hábito e o capuz,
Ergue a cabeça curvada;
Ficou um gentil mancebo,
Senhor de capa e de espada
Era o conde Dom Ramiro,
Que dali perto morava.
Em boa hora Dona Ausenda
Pôs a mão na erva fadada!
Romanceiro, Almeida Garrett