31/08/2009

O anjo e a princesa



...Waft me hence to thy owu sphere,
Thy heaven or – ay, even that wit thee.

MOORE, LOVES OF THE ANGELS



Oh que choros vão no paço
Oh que lutos, que tristeza!
Morre, morre a cada instante
A nossa linda princesa.

Os físicos não se entendem,
Vão-se uns e outros vêm;
Mas o mal que ela padece
Não lho descobre ninguém.

Nos olhos que se lhe enturvam,
Já treme a luz derradeira.
Reza o ofício da agonia
Negro monge à cabeceira.

Se inda chegará a tempo
Dessas guerras dalém-mar
O bom do rei que inda possa
A sua filha abraçar!

A filha que ele ama tanto,
Única filha querida,
A menina dos seus olhos,
Bordão da cansada vida!

Pois chegou. Tanto cativo,
Tanto despojo que traz!...
Com vitórias o enganava
Fortuna, que acinte o faz.

Pelas porta do palácio
O real cortejo entrava,
Olha o rei a um lado e outro,
Nem uma voz o aclamava...

Pela filha, que não via,
Não se atreve a perguntar,
Mas ao quarto da princesa
Foi direto sem parar:

- Minha filha, minha filha !
Que tens tu, filha querida?
E ela abria os olhos turvos
Que já não têm quase vida...

«A metade do meu reino,
Da minha c’roa real,
A quem salvar a princesa,
Quem acertar c’o este mal.»

A estas palavras do pai
Meneia a pálida fronte,
Com quem diz: «Não o entendem,
Nem cura o meu mal consente.»

- «São pesares... não se sabe...»
Responde o físico-mor,
Outro mal lhe não descubro...
Só se for o mal d’amor.»

Um rubor desfalecido
Assomou na face lenta
Que já do suor da morte
Se cobria macilenta.

Os olhos que no pai tinha
Cravados desde que o viu,
Com mostras de pejo e medo
Para a terra os descaiu.

- «Não tenhas, filha, receio,
Levanta os olhos, querida;
Seja quem for, será teu:
Jurei-o por tua vida,

Seja ele ou rico ou pobre,
Seja fidalgo ou peão,
Desde já por genro o tomo,
E aqui lhe dou tua mão.»

Como quem o ultimo esforço
De doce mágoa fazia,
Com inefável brandura
Os olhos ao pai erguia;

Suave longo suspiro
Dentre os lábios lhe fugiu...
Era a vida que passava,
Que sem dor se despediu.

Foram para a amortalhar,
No peito um sinal lhe achavam
De letras que ninguém leu,
Que estranhas formas tomavam.

Sete sábios são chamados
Para haver de as decifrar:
Cada um sete línguas sabe,
Não nas podem soletrar.

Só o mais velhos dos sete,
Que andara na Palestina,
Disse: - «Outras letras como estas
Eu já vi numa ruína,

«Junto dos cedros do Líbano,
Já no meio entre a terra e o céus,
Do tempo que às filhas do homem
Falavam anjos de Deus.

«Mas lê-las não sei nem posso:
Nem que soubesse, o fizera:
Segredos são de outro mundo
Que, neste, Deus não tolera.»

No alto daquele monte
Um alto cedro nasceu;
Ou anjos o semearam,
Ou foram aves do céu.

Que ali cresceu de repente,
De uma noite para um dia;
E outro igual em todo o reino
Como aquele não havia;

Foi à noite que a princesa
Ali veio a sepultar;
Era um sítio seu querido
Donde soia de estar,

Aonde horas esquecidas,
Sòzinha, de quando em quando,
Com as estrelas do céu
Parecia estar falando;

E onde, uma noite sem lua
Que as estrelas mais bilhavam,
Houve quem visse nos ares
Umas roupas que alvejavam,

E descer a pouco e pouco,
E ao pé da infanta parar
Um vulto... visão... ou sombra...
Mas sombra de luz sem par:

E foi desde aquela noite
Que a não viu mais rir ninguém.
Anjo era o que lhe falava...
Mas se Deus... ou de quem?...


Romanceiro, Almeida Garrett