Quem me contou esta história foi o senhor Tomé. Passo-lhe a palavra:
?O meu cão Farol era um portento. Um faro que só ele! Não há-de haver em todo o mundo e arredores um cão caçador que se lhe compare.
Felpa de coelho que ele cheirasse, num rasgo de urzes, era, daí a nada, mais um trangalhadanças preso ao meu cinto. Sim, eu é que dava o tiro, mas o mérito todo da caçada pertencia-lhe.
Às vezes, dava comigo a pensar se o caçador não seria ele... Bem vistas as coisas, o Farol é que me levava atrás, ele é que buscava, ele é que apanhava o rasto, ele é que corria, ele é que levantava a caça. E eu sempre atrás. Dar o tiro de remate não custava nada.
Quando eu via o coelho a fugir aos ziguezagues, gritava-lhe, a avisar:
- Pára, senão disparo.
Como nunca nenhum coelho parou ao meu mandado, tive sempre de cumprir o prometido. Sem falhar um.
O Farol trazia-mo, depois, na boca, a babar-se de riso, como quem me dá os parabéns pela pontaria, mas isso que importância tinha, comparado com o esforço dele? Fazia-lhe uma esfregada na peitaça, sinal e festa de agradecimento, que mais parecia pedido de desculpa por tirar-lhe o coelho dos dentes.
Estou convencido que, mesmo sem festas, o Farol me devolveria a caça. Ele era um mansarrão. Um companheirão. Um cão.
Envelheceu como eu envelheci. Já nos ia faltando genica para correr montados. Mas passei sempre as culpas para mim:
- Sabes, Farol, o teu dono está um pitosga. Não acerta nem numa perdiz no choco. Tremem-lhe as mãos. Tremem-lhe as pernas e já não troca as pantufas pelas botas de caçador.
Não era tanto assim, mas eu tinha de exagerar um bocado.
- Por este andar, amigo Farol, vais ter de arranjar outro dono que te leve à caça.
À maneira de resposta, o Farol poisava a cabeça nos meus joelhos, como se quisesse dizer que já não estava em idade de mudar de dono.
Na época da caça é que se enervava mais. Ouvia os outros latirem lá fora, mais os estampidos das caçadeiras. Talvez ainda lhe chegasse às narinas o cheiro a medo, que vinha das luras, das moitas, do esconso das matas.
Nessas ocasiões, para entretê-lo, sabe o que é que eu fazia? Sombras chinesas, no muro do quintal:
- Olha o coelho, Farol. Busca! - gritava-lhe.
Ele saltava. A sombra robusta do cão caçador cobria a cabeça do coelho, que eu desenhara, à contraluz, com a habilidade das minhas mãos. Desde criança que eu não brincava a isto. Para o que me havia de dar, chegado a velho...
- Olha, agora, Farol, esta lebre. Corre!
E a lebre desaparecia, engolida pela sombra do Farol.
Dei-lhe as satisfações que podia. Só não estava na minha mão prolongar-lhe a vida..."
O senhor Tomé, no fim do contar, enxugou uma lágrima. Depois, ainda disse, enquanto fixava, tristemente, o muro do quintal, caiado, muito branco, à luz do sol:
- De consolação fica-me a memória do belo cão que ele foi.
A cabeça bonita de um cão perdigueiro recortou-se, então, em sombras nítidas, na caliça do muro.
?O meu cão Farol era um portento. Um faro que só ele! Não há-de haver em todo o mundo e arredores um cão caçador que se lhe compare.
Felpa de coelho que ele cheirasse, num rasgo de urzes, era, daí a nada, mais um trangalhadanças preso ao meu cinto. Sim, eu é que dava o tiro, mas o mérito todo da caçada pertencia-lhe.
Às vezes, dava comigo a pensar se o caçador não seria ele... Bem vistas as coisas, o Farol é que me levava atrás, ele é que buscava, ele é que apanhava o rasto, ele é que corria, ele é que levantava a caça. E eu sempre atrás. Dar o tiro de remate não custava nada.
Quando eu via o coelho a fugir aos ziguezagues, gritava-lhe, a avisar:
- Pára, senão disparo.
Como nunca nenhum coelho parou ao meu mandado, tive sempre de cumprir o prometido. Sem falhar um.
O Farol trazia-mo, depois, na boca, a babar-se de riso, como quem me dá os parabéns pela pontaria, mas isso que importância tinha, comparado com o esforço dele? Fazia-lhe uma esfregada na peitaça, sinal e festa de agradecimento, que mais parecia pedido de desculpa por tirar-lhe o coelho dos dentes.
Estou convencido que, mesmo sem festas, o Farol me devolveria a caça. Ele era um mansarrão. Um companheirão. Um cão.
Envelheceu como eu envelheci. Já nos ia faltando genica para correr montados. Mas passei sempre as culpas para mim:
- Sabes, Farol, o teu dono está um pitosga. Não acerta nem numa perdiz no choco. Tremem-lhe as mãos. Tremem-lhe as pernas e já não troca as pantufas pelas botas de caçador.
Não era tanto assim, mas eu tinha de exagerar um bocado.
- Por este andar, amigo Farol, vais ter de arranjar outro dono que te leve à caça.
À maneira de resposta, o Farol poisava a cabeça nos meus joelhos, como se quisesse dizer que já não estava em idade de mudar de dono.
Na época da caça é que se enervava mais. Ouvia os outros latirem lá fora, mais os estampidos das caçadeiras. Talvez ainda lhe chegasse às narinas o cheiro a medo, que vinha das luras, das moitas, do esconso das matas.
Nessas ocasiões, para entretê-lo, sabe o que é que eu fazia? Sombras chinesas, no muro do quintal:
- Olha o coelho, Farol. Busca! - gritava-lhe.
Ele saltava. A sombra robusta do cão caçador cobria a cabeça do coelho, que eu desenhara, à contraluz, com a habilidade das minhas mãos. Desde criança que eu não brincava a isto. Para o que me havia de dar, chegado a velho...
- Olha, agora, Farol, esta lebre. Corre!
E a lebre desaparecia, engolida pela sombra do Farol.
Dei-lhe as satisfações que podia. Só não estava na minha mão prolongar-lhe a vida..."
O senhor Tomé, no fim do contar, enxugou uma lágrima. Depois, ainda disse, enquanto fixava, tristemente, o muro do quintal, caiado, muito branco, à luz do sol:
- De consolação fica-me a memória do belo cão que ele foi.
A cabeça bonita de um cão perdigueiro recortou-se, então, em sombras nítidas, na caliça do muro.