30/04/2009

Quarta Noite

E QUANDO FOI A QUARTA NOITE
Ela disse:

Contaram-me, ó Rei, que quando o pescador disse ao ifrit: “Não acreditarei nunca, a menos que te veja com meus próprios olhos, entrar no vaso.” O ifrit se agitou, sacudiu-se e tornou-se em fumaça que subiu ao céu, condensou-se e começou a entrar no vaso, aos pouquinhos, até o fim. Então o pescador agarrou rapidamente a coberta de chumbo gravada com o sinete de Salomão e fechou o vaso. Depois, chamou o ifrit e lhe disse: “Olá! Estima a pesa o género de morte com que preferes morrer, senão vou te atirar ao mar, e construirei uma casa nas margens e impedirei, seja quem for, de te pescar, dizendo: “Aqui há um génio; libertado, ele quererá matar seu libertador, e enumerará para ele as variedades de morte, permitindo-lhe escolhê-la.” Quando o ifrit ouviu isso, tentou sair, mas não pôde. E viu que estava aprisionado com o sinete de Salomão. Compreendeu, então, que o pescador o fechara na masmorra contra a qual não prevalecem nem os mais fortes nem os mais fracos dentre os génios. E compreendendo que o pescador o levava para o lado do mar, disse-lhe: “Não! Não!” E o pescador: “É preciso, oh! É preciso!” Então o génio começou a adoçar seus termos. Submeteu-se e disse: “Pescador, que vais tu fazer de mim?” Ele disse: “Atirar-te ao mar! Porque se ali estiveste durante mil e oitocentos anos, eu vou lá te prender até a hora do juízo: Pois não te supliquei que me conservasses para que Alá te conservasse? E que não me matasses, para que Alá não te matasse? Ora, tu repeliste uma súplica, e agiste como um celerado! Assim, Alá entregou-te em minhas mãos! E não tenho nenhum remorso do que estou para fazer!” O ifrit então disse: “Abre o vaso e te cumularei de benefícios!” Ele respondeu: “Tu mentes, maldito!” Aliás, entre mim e ti se passa exactamente o que se passou entre o vizir do rei Iunan e o médico Ruian!”
E o ifrit disse: “Mas quem era o vizir do rei Iunan e o médico Ruian? E que história é essa?”


HISTÓRIA DO VIZIR DO REI IUNAN E DO MÉDICO RUIAN

O pescador disse:
“Sabe, ifrit, que havia no tempo passado, na terra de Furs, na terra de Ruman, um rei chamado Iunan. Era poderoso, rico, senhor de exércitos formidáveis. Mas seu corpo era afligido por uma lepra que tinha desesperado os médicos e os sábios. Nem drogas, nem pílulas, nem pomadas produziam efeito sobre ele, e num dos médicos podia encontrar para o rei remédio eficaz. Um dia, um velho médico famoso, chamado Ruian, veio à cidade do rei Iunan. Ele era versado em livros gregos, persas, romanos, árabes e sírios. Tinha estudado medicina e astronomia, das quais sabia muito bem os princípios e as regras, os bons e os maus efeitos; possuía a virtude das plantas e das ervas secas e verdes, e seus bons e maus efeitos; tinha, enfim, estudado a filosofia e todas as ciências médicas, e outras ciências ainda. Assim, quando o médico entrou na cidade e ali passou alguns dias, ficou sabendo a história do rei e da lepra que o atormentava e também dos insucessos dos tratamentos de todos os médicos e sábios. Ouvindo essa notícia, o médico passou a noite preocupado. Mas, quando pela manha acordou, e que a luz do dia brilhou e o sol saudou o mundo, vestiu-se com seus mais belos trajos e entrou no palácio de Iunan. Depois, beijou a terra em frente dele, fez votos pela duração eterna de seu poder e das graças de Alá. Em seguida falou-lhe e o fez saber quem ele era, dizendo: “Soube do mal que caiu sobre teu corpo e sei que a maior parte dos médicos não te pôde curar. Vou tratar-te, ó rei, e não te farei beber medicamentos nem te untarei com pomadas!” A essas palavras o rei Iunan se espantou e disse: “como farás? Se me curares, te enriquecerei até os filhos dos teus filhos e te concederei todos os teus desejos e sua realização, e serás meu companheiro de bebida e meu amigo. Realmente me curarás sem remédios nem pomadas?” Ele respondeu: “Sim. Eu te curarei sem fadigas nem penas para teu corpo.” Então o rei se espantou da maneira mais prodigiosa e disse: “Ó grande médico, que dia e que momento verão realizar-se o que acabas de me prometer? Apressa-te!” Ele respondeu: “Ouço e obedeço.”
Então saiu da casa do rei e alugou uma casa onde colocou seus livros, remédios e plantas aromáticas. Depois fez um extracto com seus medicamentos e seus símplices, preparou um malho curto e recurvo, cuja extremidade esvaziou, e ali adaptou uma bengala. E fez também uma bola, da melhor forma que lhe foi possível. Quando terminou completamente seu trabalho, subiu aos aposentos do rei, no segundo dia, entrou onde ele estava e beijou a terra em frente dele. A seguir prescreveu que fosse à praça de jogos a cavalo, e que jogasse com a bola e com o malho.
O rei foi, acompanhado de seus emires, camareiros, vizires e chefes do reino. Mal tinha chegado à praça quando o médico chegou também e lhe deu o malho dizendo: “Toma este malho e empunha-o desta maneira. Bate no chão e na bola com toda a tua força. E faz de maneira que chegues a transpirar a palma da mão e todo teu corpo. Dessa forma o remédio penetrará na palma de tua mão e circulará por todo o teu corpo. Quando tiveres transpirado e o remédio tenha tido tempo de agir, volta ao palácio e em seguida ao banho. E então, estarás curado. Enquanto isso, que a paz esteja contigo.”
Então o rei Iunan tomou o malho do médico, agarrando-o com toda a mão. Do seu lado, os cavaleiros lhe lançaram a bola. Então ele se pôs a galopar atrás da bola, atingindo-a, batendo-lhe com violência, sempre tendo à mão o malho, fortemente seguro. Não cessou de bater na bola senão quando se viu transpirando bem, na palma da mão e em todo o corpo. Quando o médico Ruian viu que o remédio tinha circulado em todo o corpo, ordenou-lhe que voltasse ao palácio e que fosse imediatamente tomar banho. O rei imediatamente mandou que se preparasse seu banho. Em seguida, vestiu-se, montou em seu cavalo e voltou ao palácio para dormir.
Eis o que fez o rei Iunan. Quanto ao médico, voltou a se deitar em sua casa, levantou-se pela manhã, subiu ao palácio do rei e pediu permissão para entrar, o que o rei permitiu; entrou, beijou a terra em frente dele e começou a declamar alguns versos:

Se a eloquência te escolhesse como pai, ela refloresceria!
E a ninguém mais, além de ti, ela poderia escolher.
Ó luminoso rosto cuja claridade embaçaria a chama de uma
Brasa ardente!
Tuas altas acçoes te fizeram atingir os alcantis da glória
E tu és o bem-amado do destino, que nada tem a recusar-te!
O rei, após ouvir os versos, levantou e atirou-se com carinho ao pescoço do médico. Depois, fê-lo sentar-se ao seu lado, mandando que lhe dessem magníficos trajos de honra.
Com efeito, quando o rei saiu do banho, tinha olhado para seu corpo e não mais encontrara traços da lepra. E sua pele se tornara pura como prata virgem. Ele, então, se regozijara com a mais excessiva alegria, e seu peito se dilatara e se expandira. Quando a manhã se erguera, o rei tinha entrado no Divã e se sentara na sala do trono: e os camareiros e os grandes do reino tinham entrado. Também o médico Ruian. Fora então que, ao vê-lo, o rei se tinha levantado com solicitude e o tinha feito sentar-se a seu lado. Então, serviram aos dois alimentos, iguarias e bebidas, durante todo o dia. Quando a noite tombou, o rei deu ao médico dois mil dinares, sem contar os trajos de honra e os presentes, e lhe deu a montar seu próprio cavalo. E foi assim que o médico voltou à sua casa.
Quanto ao rei, não cessava de admirar a arte do médico e dizer: “Ele me tratou pelo exterior do meu corpo, sem me untar de pomada! Ora, por Alá! É uma ciência sublime! É preciso, pois, que eu cumule esse homem com os benefícios de minha generosidade e que o tome como companheiro afectuoso para sempre!” E o rei se deitou, contentíssimo, cheio de alegria, vendo-se são de corpo e livre da doença.
No dia seguinte pela manhã, sentando-se o rei no seu trono, os chefes da nação ficaram de pé à sua frente, os emires e vizires sentados à sua direita e à sua esquerda. Ele fez, então, chamar o médico que veio, beijou a terra em frente dele. O rei levantou-se, fê-lo sentar-se ao seu lado, comeu com ele, desejou-lhe longa vida, deu-lhe trajos de honra e outras coisas ainda mais magníficas. Depois, cessou de se ocupar dele apenas ao aproximar-se a noite. E lhe fez dar, como remuneração, cinco outros trajos de honra e mil dinares. E foi assim que o médico voltou à sua casa.
Quando chegou a manhã, o rei foi para o Divã, ficando cercado de amires, vizires e camareiros. Entre os vizires havia um, de aspecto repulsivo, rosto sinistro e de mau agouro, terrível, sordidamente avaro, invejoso e petrificado de ciúme e ódio. Quando esse vizir viu o rei colocar a seu lado o médico e lhe conceder todos os benefícios, sentiu-se enciumado e resolveu perdê-lo, segundo o provérbio que diz: “O invejoso ataca toda a gente: a opressão está de emboscada no coração do invejoso. A força a revela e a fraqueza a tem latente.” O vizir aproximou-se entoa do rei Iunan, beijou a terra em frente dele e disse: “Ó Rei, tu que envolves a humanidade nos teus benefícios, tenho comigo um conselho de prodigiosa importância, e que não poderia esconder sem me tornar verdadeiramente um filho adulterino: se me ordenares que te revele, eu to revelarei!” Então o rei, todo perturbado com as palavras do vizir, disse: “E qual é o teu conselho?” Ele respondeu: “Ó Rei glorioso, os antigos disseram: Aquele que não olha o fim e as consequências não terá a fortuna como amiga” – e eu acabo de ver o rei falhar em julgamento, fazendo benefícios ao seu inimigo, àquele que deseja o aniquilamento de seu reino, cumulando-o de favores, cobrindo-o de generosidades. Ora, eu estou, por causa disso tudo, no maior receio em relação ao rei!” A estas palavras o rei ficou extremamente perturbado, mudou de cores e disse: “Quem é esse que tu dizes ser meu inimigo e que eu teria cumulado de favores?” Ele respondeu: “Rei, se estás dormindo, acorda! Porque faço alusão ao médico Ruian!” O rei lhe disse: “Esse é meu bom amigo, é para mim o mais querido dos homens porque me tratou de uma coisa que mantive na mão, e livrou-me da minha doença, que tinha desesperado os médicos! Não há nenhum como ele neste século, no mundo inteiro, no Oriente ou Ocidente! Assim, como ousas falar contra ele? Quanto a mim, desde este dia, vou dar-lhe salárioss e marcar-lhe trabalhos, para que ele tenha por mês mil dinares! Aliás, mesmo que eu lhe desse a metade do meu reino, seria pouco para ele! Assim, creio muitíssimo que tu dizes isso apenas por ciúmes, como se conta na história, que contaram, do rei Sindabad!”


Nesse momento, Sherazade foi surpreendida pela manhã, e parou sua narração.
Então Doniazad disse: Ó irmã, como tuas palavras são doces e gentis, e deliciosas e puras!” E Sherazade disse: “Mas que são essas palavras comparadas ao que contarei aos dois, na próxima noite, se estiver ainda viva e se o Rei houver por bem me conservar!” Então o rei disse, em sua alma: “Por Alá! Eu não a matarei antes de ouvir o seguimento da história!” Depois eles passaram o resto da noite enlaçados. E o rei saiu para sua sala de justiça, onde julgou, nomeou, demitiu, terminou assuntos pendentes, e assim fez até o fim do dia. Depois voltou ao palácio. Quando a noite se aproximou ele fez a coisa do costume com Sherazade, a filha do vizir.





A árvore solitária

Era uma vez um velho carvalho que já vivia há muito tempo na floresta.
Muitos anos antes, uma grande tempestade varrera a floresta, deixando o carvalho quebrado e feio.
Não era mais altivo e belo como as outras árvores.
A primavera cobria sua feiúra com novas folhas verdes; no outono, as folhas se transformavam num belo manto carmim. Mas os ventos na floresta sempre sopravam, carregando o manto de folhas para longe. E, assim, nada restava para disfarçar sua feiúra.
Passaram-se muitos e muitos anos e o carvalho começou a se sentir meio vazio por dentro.
Sentia o coração também ferido, como o corpo. Quando ele já estava muito, muito velho, um vento de outono passou suspirando. O carvalho acabou se lamentando.
- Ninguém me quer. Não tenho mais nenhuma utilidade no mundo.
Tac, toc, to-ro-roc-toc, toc!
Era o senhor pica-pau cabeça vermelha, bicando o tronco do velho carvalho.
Toc-toc!
Foi martelando e furando, até que fez uma portinha de entrada para sua residência de inverno, numa parte oca da árvore. Ele havia encontrado um salão pronto, cheio de bichinhos para ele e sua família comerem, quando chegasse o frio. As paredes da casa eram quentinhas, tudo muito arrumadinho e aconchegante.
- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido!
Cantou o senhor pica-pau cabeça-vermelha.
Schuip! Schuup!
Era o bobby esquilo. Ficou correndo pelo tronco do velho carvalho, até que achou um buraco redondo, que seria sua janelinha da frente.
Bobby esquilo espiou para dentro. Ah! Como era confortável e aconchegante a casinha que ele viu!
Forrou-a com musgo, e nas protuberâncias que formavam prateleirinhas amontoou pilhas e pilhas de nozes, prontas para os banquetes quando chegasse o frio.
Ia ser ótimo morar lá, agasalhado no seu casado de peles e bem alimentado.
Ficaria seguramente abrigado até a chegada da primavera.
- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido! - tagarelou Bobby esquilo.
Então, uma coisa estranha aconteceu com a árvore. As asinhas do passarinho batendo animadas e o coração do esquilinho aqueceram-na por dentro.
O coração do velho carvalho inchou de alegria.
Em vez de suspirar com o vento, seus ramos cantavam de felicidade.
As gotas das chuvas do outono, já congeladas, pendiam de seus dedos de galhos como refulgentes diamantes. A neve cobriu seu corpo com um magnífico manto branco.
À noite, a luz das estrelas e, de dia, os raios de Sol mantinham uma brilhante coroa sobre sua cabeça.
Em toda a floresta, não havia árvore mais feliz nem mais bela que o velho carvalho.


Moral da Estória:
Ser útil. Ter o coração hospitaleiro. A beleza realmente está dentro.




29/04/2009

Os três empregados





Um homem ia fazer uma viagem. Chamou os seus empregados e os pôs para tomarem conta da sua propriedade. e lhes deu dinheiro de acordo com a capacidade de cada um: ao primeiro deu cinco mil moedas de prata; ao outro, duas mil; e, ao terceiro, mil. Então foi viajar. O empregado que tinha recebido cinco mil moedas chegou e entregou mais cinco mil, dizendo:
- O senhor me deu cinco mil moedas. Olhe, aqui estão mais duas mil que consegui ganhar.
- Muito bem, empregado bom e fiel – disse o patrão. – Você foi fiel negociando com pouco dinheiro; por isso vou pôr você para negociar com muito. Venha festejar comigo!
Então o empregado que havia recebido duas mil moedas chegou e disse:
- O senhor me deu duas mil moedas. Olhe, aqui estão mais duas mil que consegui ganhar.
- Muito bem, empregado bom e fiel – disse o patrão. – Você foi fiel negociando com pouco dinheiro, por isso vou pôr você para negociar com muito. Venha festejar comigo!
Aí o empregado que havia recebido mil moedas chegou e disse:
- Eu sei que o senhor é um homem duro; colhe onde não plantou e junta onde não semeou. Fiquei com medo e por isso escondi o seu dinheiro na terra. Veja, aqui está o seu dinheiro.
- Empregado mau e preguiçoso! – disse o patrão. – Você sabia que colho onde não plantei e junto onde não semeei. Por isso você devia ter depositado o meu dinheiro no banco, e, quando eu voltasse, o receberia com juros.
Depois virou-se para os outros empregados e disse:
- Tirem o dinheiro dele e dêem ao que dêem ao que tem dez mil moedas. Porque terá ainda mais; mas que não tem, até o pouco que tem tirarão dele.


Parábolas de Jesus
Mateus 25-14 a 30
Lucas 19-11 a 27


28/04/2009

A semente de mostarda



A semente de mostarda é a menor de todas as sementes. Um homem pega essa semente e semeia no seu sítio,e, quando ela cresce, torna-se a maior de todas as verduras. Assim ela fica uma arvore. E os seus ramos são tão grandes, que os passarinhos vem e fazem ninhos entre as suas folhas.


Parábolas de Jesus
MATEUS 13-31 e 32
MARCOS 4-30 a 32
LUCAS 13-18 e 19


25/04/2009

Mais Devagar

Um jovem atravessou o Japão em busca da escola de um famoso praticante de artes marciais. Chegando ao dojo, foi recebido em audiência pelo Sensei.
- O que você quer de mim ? perguntou-lhe o mestre.
- Quero ser seu aluno e tornar-me o melhor karateca do país. Quanto tempo preciso estudar?
- Dez anos, pelo menos.
- Dez anos é muito tempo respondeu o rapaz . E se eu praticasse com o dobro da intensidade dos outros alunos?
- Vinte anos.
- Vinte anos! E se eu praticar noite e dia, dedicando todo o meu esforço?
- Trinta anos.
- Mas, eu lhe digo que vou dedicar-me em dobro, e o senhor me responde que a duração será maior ?
- A resposta é simples. Quando um olho está fixo aonde se quer chegar, só resta um para se encontrar o caminho.

Contos do Oriente



20/04/2009

Lenda das Três Gémeas


No tempo em que Silves pertencia aos Mouros, vinha o rei Mohamed a passear a cavalo quando encontrou um destacamento do seu exército que trazia reféns cristãos.
Entre estes estava uma lindíssima jovem, sumptuosamente vestida, acompanhada da sua aia, filha de um nobre morto durante o saque ao seu castelo. Mohamed ordenou que a nobre dama fosse levada para o seu castelo, onde a rodeou de todas as atenções, e lhe pediu que abraçasse a fé de Maomé para se tornar sua mulher. A jovem chorou de desespero porque Mohamed não lhe era indiferente, mas a sua aia encontrou a solução: ambas renegariam a fé cristã apenas exteriormente para agradar ao rei mouro e possibilitar o casamento. Passado algum tempo, nasceram três gémeas a quem os astrólogos auspiciaram beleza, bondade e ternura, para além de inteligência, mas avisaram o rei que este deveria vigiá-las quando estas chegassem à idade de casar. O rei não as deveria confiar a ninguém. Passaram alguns anos e a sultana morreu, ficando a aia, que tinha tomado o nome árabe de Cadiga, a tomar conta das jovens. Quando estas eram adolescentes o rei levou-as para um castelo longe de tudo, onde havia apenas o mar por horizonte. As princesas tornaram-se mulheres, mas embora gémeas tinham personalidades muito diferente. A mais velha era intrépida, curiosa, porte distinto e de olhar insinuante e profundo. A do meio era a mais bela, de uma singular beleza e apreciava tudo o que era belo, as jóias, as flores e os perfumes caros. A mais nova era a mais sensível. Tímida e doce, passava horas a olhar o mar sob o luar prateado ou o pôr-do-sol ardente. Um dia, contra todas as indicações do rei aportou perto do castelo uma galera com reféns cristãos, entre os quais se salientavam três jovens belos, altivos e bem vestidos. Curiosas, as princesas perguntaram a Cadiga quem eram aqueles homens de aspecto tão diferente dos mouros. Cadiga respondeu-lhes que eram cristãos portugueses e contou às princesas tudo sobre o seu passado. Como as princesas começassem a ficar demasiado interessadas com os jovens cristãos . Cadiga pediu ao rei que levasse as filhas para junto de si, sem lhe explicar a razão.Cavalgavam as princesas com o rei e o seu séquito a caminho de Silves quando se cruzaram com os três cativos cristãos que não respeitaram a ordem de baixarem o olhar. As princesas quando os avistaram levantaram os véus e o rei, furioso, mandou castigar os cristãos insolentes. As princesas ficaram muito tristes mas conseguiram convencer Cadiga a arranjar maneira de se encontrarem com os jovens cristãos. A paixão violenta desencadeada por aquele encontro foi alegria de pouca dura. Os três cristãos foram resgatados pelo rei português e iriam embora em breve. As princesas dispuseram-se a segui-los e a converterem-se à fé cristã antes de casarem com os nobres cristãos. Cadiga rejubilava por conseguir resgatar para a fé que secretamente professava as filhas da sua ama. Foi então que a princesa mais nova se recusou a partir e a abandonar o pai. Ficou para trás e, conta a lenda, morreu de tristeza pouco tempo depois. A sua alma ainda hoje se lamenta e chora na torre do castelo nas noites sem luar.





O talismã



Dois habitantes da mesma cidade exerciam nela a mesma indústria, mas com resultados bem diversos; um enriquecia-se e o outro arruinava-se, o que não era de espantar, porque o primeiro zelava os seus negócios com uma actividade infatigável, enquanto que o segundo, entregue inteiramente aos seus prazeres, encarregava os estranhos da direcção da sua casa.
«Explica-me, disse um dia este último ao seu colega, qual é a razão porque a sorte nos trata de um modo tão diferente? Vendemos as mesmas mercadorias, a minha loja está tão bem situada como a tua, e apesar disso, enquanto tu ganhas, eu não faço senão perder. E não é porque eu seja estroina; não bebo, nem jogo. Já tenho pensado algumas vezes se não terás tu por acaso algum precioso talismã.»
«Efectivamente, respondeu o outro, herdei de meu pai um talismã de uma virtude incomparável. Trago-o ao pescoço, e ando assim com ele todo o dia por toda a casa, do celeiro para a adega, e da adega para o celeiro. E o caso é que tudo me corre perfeitamente.»
«Olé meu querido colega, empresta-me pelo amor de Deus essa relíquia preciosa de que tanto necessito; podes ter a certeza de que ta restituo.»
«Pois vem buscá-la amanhã de manhã.»
Quando ao outro dia foi procurar o seu generoso concorrente, apresentou-lhe este uma avelã, através da qual tinha passado um fio de seda.
O nosso homem pô-la imediatamente ao pescoço, e começou a correr toda a casa com o talismã. Observou então a completa desordem que por toda a parte ali havia. Na adega faltava-lhe vinho, cerveja e azeite; na cozinha o pão, a carne e os legumes; no celeiro, o milho, o trigo, o feijão; na estribaria, o feno e a aveia, roubados das manjedouras dos cavalos; viu, finalmente, como os seus livros e registros estavam mal escriturados; viu tudo isto, e que era necessário dar-lhe remédio, compreendendo que o dono da casa nunca pode ser substituído por terceira pessoa na direcção dos seus negócios.
Passados alguns dias foi entregar ao dono o precioso talismã, agradecendo-lhe duplamente, em primeiro lugar, o seu bom conselho, e em segundo lugar, a maneira delicada porque lho tinha dado.


Guerra Junqueiro, Contos para a Infância


19/04/2009

A rã e o rato


Trazendo viva guerra antigamente
Rãs e ratos, houve uma tão valente,
Que tomou em um choque prisioneiro
Um rato, que era entre eles cavalheiro.
Pediu-lhe este licença em certo dia,
Para acudir a um pleito que trazia:
Concedeu-lha. Era o rato precisado
A passar um profundo rio a nado:
Deu indício de medo; a rã lhe disse
Que se prendesse a ela e que a seguisse;
Que como no nadar tinha mais arte,
O poria, sem risco, da outra parte.

Aceitou, e de junca fabricaram
Uma boa tamiça a que se ataram;
Porém a falsa rã, que a má vontade
Encobria em finezas de amizade,
Desejava afogá-lo; e lá no meio
Puxava para baixo, e com receio
Puxava para cima o triste rato,
E faziam um grande espalhafato.

Passava acaso uma ave de rapina;
E vendo aquela bulha, o vôo inclina;
Pilha ambos pelo atilho; e a tal contenda
Acabou em fazer deles merenda
Ninguém creia em finezas de inimigo,
Porque o ódio se oculta e não se entende;
Para haver de meter-nos em perigo.
Sabemos que não fica sem castigo;
Porque às vezes no laço em que pretende
Ofender-me, também a si ofende:
Se padecesse só o embusteiro,
Menos mal; porém vou com ele atado,
E posso no penar ser o primeiro;
Por isso nada fico aproveitado,
E talvez aproveite algum terceiro
À custa do inocente e do culpado.

Couto Guerreiro (Trad.)

A ilha de S. Brandão

A lenda da Ilha de S. Brandão, transmitida oralmente, tornou-se popular, aproximadamente, a partir do século X, quando um anónimo, provavelmente, um monge irlandês, escreveu o livro Navigatio Sancti Brandani, onde se relata a existência de uma ilha, descoberta por S. Brandão, que considerava ser o Jardim do Éden.
São Brandão nasceu em 484 d.C., em Tralee, na região de Kerry, na Irlanda. Foi baptizado e educado pelo bispo Erc de Kerry. Tornou-se abade, fundou vários mosteiros e morreu em 577, em Annaghdown (Eunachdunne), condado de Galway. É através das suas viagens marítimas, em busca do Paraíso, que S. Brandão se tornou célebre na História e na literatura como "Brandão, o Navegador".
A versão mais conhecida da história da Ilha de S. Brandão foi escrita por Benedeit, por volta de 1130, no capítulo "Navegação de S. Brandão à procura do paraíso" do seu livro Paraíso. Conta-se que S. Brandão terá pedido a Deus para ver o Paraíso e o Inferno e, após a sua fuga e a dos restantes monges aos invasores Normandos, S. Brandão e os monges (em número que variava entre 18 a 300 pessoas) iniciaram uma viagem, que durou sete anos, em busca do Paraíso. A lenda narra várias aventuras fantásticas, como aquela em que encontrou uma baleia em cima da qual rezou, mantendo-se em comunhão com Deus. Em seguida, atracaram na Ilha dos Pássaros, onde ficaram durante dois meses e onde se aprovisionaram de mantimentos, partindo depois rumo ao Oriente. Após quarenta dias, em alto mar, sem avistar terra, deparam com um grande muro de nevoeiro que circundava o que pensavam ser a ilha do Paraíso e que impedia os descendentes de Adão de entrar. Com a ajuda e a permissão de Deus (caso contrário seria impossível franquear a entrada que estava aberta no espesso nevoeiro), seguiram nesse caminho durante três dias até que ao quarto dia avistam o Paraíso, envolto numa parede mais branca do que a neve e cravejada de pedras preciosas: topázios, calcedónias, jacintos, esmeraldas, jaspe, ametistas e cristais, entre outras. Montes de mármore, batidos pelo mar, precediam uma montanha de ouro fino que, por sua vez, dava lugar aos muros do paraíso que delimitavam o jardim. A entrada, guardada por dragões brilhantes como o fogo, abriu-se para deixar passar um mensageiro de Deus. Um belo jovem acolheu-os, nomeou-os pelos seus nomes verdadeiros e beijou-os com carinho, antes de acalmar os dragões, que depois se deitaram humildemente sem resistência. À ordem do jovem guia, um anjo abriu a porta e os monges entraram no Paraíso guiados pelo jovem que lhes mostrou as árvores, os rios, as flores, os frutos, os perfumes (que pairavam no ar de um doce e eterno Verão), os bosques cheios de animais de caça e a enorme abundância de peixes, num local que não conhecia pobreza, dor, doença, fome e sede.
S. Brandão, felicíssimo por se encontrar ali, foi levado pelo jovem a um monte alto, onde lhe foram descritas as recompensas destinadas a cada um e onde ambos observaram maravilhas que nenhum homem pode compreender, contemplaram também os anjos que se alegravam por recebê-los e ouviram melodias. Em seguida, o jovem guia aconselhou os monges a regressar, já que estes não podiam adquirir mais conhecimentos sobre o Paraíso e sobre as suas glórias futuras, porque ainda eram de carne e osso. A Revelação seria feita quando voltassem, em espírito, para o seu julgamento. Antes da partida, S. Brandão e os monges receberam pedras de ouro como recordação e como forma de lhes incutir coragem.
Na época dos Descobrimentos, ainda se perseguia o sonho de ilhas fantásticas, das quais a Ilha de S. Brandão, também chamada Ilha Perdida, era disso exemplo. A Ilha de S. Brandão manteve-se na cartografia dos séculos XIII ao XIX e, à medida que os conhecimentos do oceano avançavam, a ilha ia sendo deslocada para paragens mais remotas. A Ilha de S. Brandão surge na carta Dulcert de 1339, no local onde, em 1350, no Atlas Mediceu, aparece a ilha da Madeira.
As imagens do Jardim do Éden associam-se a outras lendas fantásticas e mitológicas, das quais se destacam, ainda, o mito de Atlântida, o jardim das Hespérides, a Antília (ou das Sete Cidades), as lhas Afortunadas, o Brasil, entre outros.
De missionário a viajante marítimo, S. Brandão tornou-se num aventureiro e num descobridor, creditado pelo folcore, que o relacionou com as fábulas e com as sagas dos povos da costa ocidental irlandesa. De referir ainda, que dois investigadores árabes, Goeje e Asín, consideraram haver analogias entre a Navigatio e as viagens de Simbad, o Marinheiro, que integra o livro das Mil e Uma Noites.


Ficheiro:Brandon Bay.JPG


18/04/2009

O cordão de oiro

Lá se vai o capitão
C’os seus soldados à guerra:
Duzentos eram quintados,
Eram duzentos de leva.
Se todos eles vão tristes,
Um mais que todos eram:
Baixa traz a sua espada,
Seus olhos postos em terra.
Lá no meio do caminho
O capitão lhe dissera:
- «Porque vais triste, soldado
Essa paixão por quem era?»
- «Não é por pai nem por mãe,
nem por irmã que eu tivera,
É pela esposa que deixo
Lá tão só na minha terra.
Este cordão de oiro fino,
Que sete arráteis bem pesa,
Mais me pesa a mim levá-lo,
Que ao partir lho não dera!»
- «Soldado, tens sete dias
Para que voltes a vê-la.
Se a encontrares chorando,
Ficas sete anos com ela:
Senão, nem mais uma hora
Terás de aguardo ou de espera.»
Quem saltava de contente
O meu soldadito era.
Deixou estrada direita,
Por atalhos se metera;
Inda não é meia-noite,
À sua porta batera.
- «Quem bate à minha porta,
Quem bate com tanta pressa?
- «É um soldado, senhora,
Que voz traz novas da guerra.»
- «Mal haja a nova que traz,
E mais quem veio trazê-la!
Ergue-te tu, minha vida,
Assoma-te a essa janela;
Despede-me esse soldado
Que a tão má hora aqui chega.»
- «Amigo, vindes errado
Co’as vossas novas da guerra:
Deixai-nos dormir em paz,
Que bem precisamos dela.»

Foi-se dali o soldado
Mais pronto do que viera:
- «Bem haja o meu capitão
Pelo bem que me fizera!
Com sete dias de aguardo...
Nem sete horas carecera
Para me quitar saudades,
Livrar-me de toda a pena!
Tomai lá meu capitão
Os mimos da minha terra;
Este cordão de oiro fino,
Que agora inda mais me pesa.
Minha mulher não precisa,
Que os primos podem mantê-la.»
- «Pois tua mulher tem primos,
E tu vinhas com dó dela!...»

Romanceiro, Almeida Garrett





Daniel



Daniel morava em uma grande cidade chamada Jerusalém.
Ele era forte, bonito e muito inteligente. Era educado como os outros jovens judeus: aprendendo a obedecer a Deus e a comer só alimentos que não fizessem mal à saúde. Porém, um dia, aconteceu uma coisa horrível: a sua cidade foi cercada pelos soldados do rei Nabucodonosor. Eram muitos e muitos soldados, valentes e bem armados. Os judeus moradores da cidade de Jerusalém não conseguiram resistir e foram vencidos pelos soldados inimigos.
Foi uma tristeza! Vocês nem imaginam...
Então o rei Nabucodonosor mandou levar para a Babilõnia, seu país, os vasos da casa de Deus e muitas coisas bonitas que pertenciam aos judeus.
Ele decidiu levar também para o seu palácio, algumas pessoas jovens, inteligentes e que tivessem muita saúde. Entre esses jovens, Daniel foi escolhido, juntamente com três amigos seus.
Daniel viveu no palácio real durante muitos anos como conselheiro de Nabucodonosor e também de outros reis.
Quando Dario ficou sendo rei da Babilõnia, ele fez com que Daniel se tornasse um chefe a quem todos os outros governadores tinham de prestar contas. Muitas dessas pessoas ficaram aborrecidas com Daniel por ele ter-se tornado tão importante e queriam descobrir um jeito de acusá-lo diante do rei Dario. Pensaram então que a melhor maneira seria pela sua religião.
Então esses homens invejosos foram até o rei Dario e pediram que assinasse um decreto para que toda pessoa que, durante trinta dias, fizesse oração a qualquer Deus ou a qualquer homem e não a ele, seria jogado na cova dos leões, O rei concordou, assinou o decreto e o mandou publicar.
Daniel soube disso, mas continuou fazendo suas orações a Deus, em seu quarto, três vezes ao dia.
Os homens maus foram a casa dele e viram que ele estava ajoelhado pedindo a bênção de Deus,
Imediatamente eles foram ao palácio e contaram ao rei.
O rei Dario ficou muito triste pois gostava muito de Daniel, mas teve que jogá-lo na cova dos leões,
A porta foi fechada com uma grande pedra. Assim que amanheceu, o rei Dario foi correndo à cova dos leões e, com voz muito triste, chamou Daniel.
Daniel respondeu que nada de mal havia lhe acontecido, pois Deus havia mandado seu anjo para livrá-lo dos leões.
O rei Dario ficou tão maravilhado com o fato dos leões não terem feito nada de mal a Daniel, que fez um decreto para que todo mundo adorasse o Deus de Daniel, porque Ele é um Deus eterno, o seu reino e seus domínios Ele não terão fim. Ele livra, Ele salva, faz sinais e maravilhas nos céus e na terra e livrou Daniel do poder dos leões.
Daniel foi conselheiro do rei Dario e, também do rei Ciro, sendo sempre muito sábio e obediente a Deus.


15/04/2009

Huang Di combate Chi You


Há milhares de anos, as margens dos rios Amarelo e Yangtsé eram habitadas por muitas tribos. Reza a tradição que Huang Di e Yan Di eram os mais famosos chefes no curso do rio Amarelo e, ao mesmo tempo, no rio Yangtsé, Chi You comandava a tribo Jiuli.
Chi You tinha 81 irmãos. Todos possuíam corpos de animais, rostos humanos, cabeças de bronze e braços de ferro. Eram hábeis na produção de armas como a faca e o arco e flecha. Valendo-se desta poderosa força, Chi You hostilizava com frequência outras tribos.
Certa vez, Chiyou teria ocupado a região de Yan Di. Este queria retomar o território perdido, mas acabou derrotado e se retirou para Zhuolu, território sob o domínio de Huang Di.
Huang Di pretendia, desde há muito, eliminar a tribo de Chi You e organizou uma frente entre várias tribos para travar uma guerra contra Chi You.
No início, as tropas de Huang Di não podiam fazer frente ao poderio bélico de Chi You e acumularam várias derrotas. Em certa ocasião, quando ambos os exércitos estavam em meio a uma renhida batalha, Chi You fez um conjuro produzindo uma densa neblina que desorientou os soldados de Huang Di. Mas, graças ao carro-bússola que Huang Di tinha fabricado, seus homens se orientaram e puderam romper o cerco.
Logo, Chi You chamou o deus do vento e a chuva para promover uma tempestade. Mas, Huang Di chamou sua filha, a deusa da Seca, emanando uma grande quantidade de calor que acabou de um golpe com a tempestade.
A batalha decisiva se realizou em Zhuolu, imortalizada em muitos livros e registros históricos. Com a ajuda dos Kuafu, uma tribo de gigantes do Norte, cujo ancestral era Kuafu, aquele que morreu de sede ao perseguir o Sol, Chi You fez com que Huang Di retrocedesse 25 quilómetros. No entanto, este pôs em prática uma estratégia ensinada pela Deusa dos Noves Céus e venceu finalmente Chi You, que acabou capturado e decapitado. Para evitar o ressurreição de Chi You, Huang Di ordenou que sua cabeça fosse enterrada em Shandong, a mais de 500 quilómetros de distância do local onde fora enterrado seu corpo.
Depois da vitória sobre Chi You, Huang Di tornou-se o chefe de todas as tribos das planícies centrais, dominando uma área que se estendia até o Mar no Leste, a província atual de Gansu no Oeste, o rio Yangtsé no Sul e as actuais províncias de Shanxi e Hebei no Norte. Segundo a lenda, quando Huang Di completou 100 anos, um dragão alado o levou ao céu.




13/04/2009

O Monge e o Escorpião na Ponte


Um monge cruzava uma ponte na qual mal se conseguia equilibrar. Embora seus passos fossem curtos e lentos, a ponte cada vez baloiçava mais. Nisto um escorpião, escondido na ponte, começou a subir pela sua mão. Continuou lentamente pelo braço até alcançar-lhe o ombro . O monge gelado de medo parou a sua caminhada. Antes de entrar em pânico lembrou-se de respirar fundo e acalmar a mente. O escorpião não se mexeu e, como numa providência divina, uma rajada de vento fê-los balançar violentamente e o escorpião caiu pelo abismo. Feliz , o monge agradeceu ao vento e seguiu sua caminhada.

Contos do Oriente



12/04/2009

A Rocha



O aluno perguntou ao Mestre :
- Como faço para me tornar o maior dos guerreiros ?
- Vá atrás daquelas colina e insulte a rocha que se encontra no meio da planície.
- Mas para que, se ela não vai me responder ?
- Então golpeie-a com a tua espada.
- Mas minha espada se quebrará !
- Então agrida-a com tuas próprias mãos.
- Assim eu vou machucar minhas mãos ... E também não foi isso que eu perguntei. O que eu queria saber era como que eu faço para me tornar o maior dos guerreiros.
- O maior dos guerreiros e aquele que é como a rocha, não liga para insultos nem provocações, mas está sempre pronto para desenvencilhar qualquer ataque do inimigo.


Contos do Oriente



11/04/2009

Os trabalhadores da plantação de uvas


O dono de uma plantação de uvas saiu de manhã bem cedo para contratar trabalhadores para a sua plantação. Como era o costume, ele combinou com eles o salário de uma moeda de prata por dia e mandou que fossem trabalhar na sua plantação. Às noves horas, saiu outra vez, foi à praça do mercado e viu ali alguns homens que não estavam fazendo nada. Então disse: “Vão vocês trabalhar na minha plantação de uvas, e eu pagarei o que for justo.”
E eles foram. Ao meio-dia e às três horas da tarde fez a mesma coisa com outros trabalhadores. Eram quase cinco horas da tarde quando o dono da plantação voltou à praça. Viu outros homens que ainda estavam ali e perguntou: “Por que vocês estão o dia todo aqui sem fazer nada?”
“É porque ninguém nos contratou.”, responderam eles.
Então ele disse: “Vão vocês trabalhar na minha plantação.”
No fim do dia, ele disse ao administrador: “Chame os trabalhadores e faca o pagamento, comecando com os que foram contratados por último e terminando pelos primeiros.”Os homens que começaram a trabalhar ás cinco horas da tarde receberam uma moeda de prata cada um. Então ao que foram contratados primeiro pensaram que ia receber mais, porem eles também receberam uma moeda de prata cada um. Pegaram o dinheiro e começaram a resmunga contra o patrão, dizendo: “Estes homens que foram contratados por ultimo trabalharam somente uma hora, mas nos agüentamos o dia todo debaixo deste sol quente. No entanto o pagamento deles foi igual ao nosso !”A i o dono disse a um deles : “escute, amigo, eu não fui injusto com você. Você não concordou em trabalhar o dia todo por uma moeda de prata? Pegue o seu pagamento e vá embora. Pois eu quero dar a este homem, que foi contratado por ultimo, o mesmo que dei a voce. Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com o meu próprio dinheiro? Ou voce estar com inveja somente por que fui bom para com ele?” Assim aqueles são os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros.


Parábolas de Jesus
Mateus 20: 1-16


Alberto



Alberto tinha seis anos. Era filho de um jardineiro. Via seu pai e seus irmãos, que eram activos e laboriosos, plantar árvores e fazer sementeiras, que nasciam, cresciam e davam fruto. Tinha visto um único feijão produzir cem feijões e muitas vezes mais, e de uma talhada de batata nascerem quarenta batatas magníficas; sabia que a terra pagava com juros exorbitantes o que lhe emprestavam. Um dia achou uma libra no quarto do pai, e foi enterrá-la imediatamente no seu jardinzinho. «Há-de nascer uma árvore, dizia ele consigo, que dará libras como uma cerejeira dá cerejas, e irei entregá-las ao papá, que ficará muito contente.» Todas as manhãs ia ver se a libra tinha nascido, mas não rebentava nada. Entretanto o pai procurava a libra por toda a parte. Por fim perguntou ao Albertinho se a tinha visto.
«Vi papá; achei-a e fui semeá-la.»
«Como, semeá-la? doido! julgas talvez que vai nascer como uma couve?»
«Mas, papá, ouvi dizer que o oiro se encontrava na terra.»
«É verdade, mas não nasce como uma semente; o oiro não tem vida.»
Desenterrou-se a libra, e Alberto foi castigado por dispor do que lhe não pertencia.
Há contudo, meus filhos, uma maneira de semear o oiro, fazendo-lhe produzir os mais belos frutos que existem no mundo. Quereis saber como é? É dando-o aos pobres. Faz-se no Paraíso a colheita dessa sementeira.


Guerra Junqueiro, Contos para a Infância


09/04/2009

A lenda das árvores gémeas


Nkatu e Nsanda são duas lendárias árvores gémeas, que partilham um mesmo caule, diferenciadas, porém, pela peculiaridade dos seus ramos e folhas. Localizadas na encosta do antigo morro de Porto Rico, junto ao palácio do governo provincial de Cabinda, a história das árvores gémeas vem de 1901, altura em que o saudoso ancião e sacerdote tradicional Tchi-Luemba Tchi-Tula Nkonko realizou naquele espaço um ritual implorando a Nzambi-Mpungo - Deus Supremo - a reposição das chuvas, que já não aconteciam há 4 anos em toda a zona Sul de Cabinda.
Sustenta a mesma história que foi a partir da realização desta cerimónia tradicional, em que esteve presente o antigo representante do governador de Angola em Cabinda, Henrique Quirino da Fonseca, que aquelas duas árvores se tornaram marcos de referência cultural, pelo impacto positivo que o ritual desencadeou na vida das populações locais, que logo depois do acto começaram a ter chuvas em abundância, livrando-se, assim, da prolongada estiagem e da penúria alimentar que se fazia então sentir.


Lenda de Angola


08/04/2009

Linda-a-Pastorinha

- «Linda pastorinha, que fazeis aqui?»
- «Procuro o meu gado que por aí perdi.»
- «Tão gentil senhora a guardar o gado!.
- «Senhor, já nascemos para esse fado.»
- «Por estas montanhas em tão grande p’rigo!»
Diga me, ó menina, se quer vir comigo.»
- «Um senhor tão guapo dar tão mau conselho
Querer que se perca o gado alheio!»
- «Não tenha esse medo que o gado se perca
Por aqui passarmos uma hora de sesta.»
- «Tal razão como essa eu não na ouvirei:
Já dirão meus amos que de mais tardei,»
- «Diga-lhe, menina, que se demorou
Co’esta nuvem de água que tudo molhou.»
- «Falarei verdade, que mentir não sei:
À volta do gado eu me descuidei.»
- «Pastorinha, escute, que oiço balar gado...»
- «Serão as ovelhas que me têm faltado.»
- «Eu lhas vou buscar já muito depressa,
Mas que me espedace por essa chaneca.»
- «Ai como vai grave de meias de seda!
Olhe não as rompa por essa resteva.»
- «Meias e sapatos, tudo romperei
Só por lhe dar gosto, minha alma, meu bem.»
- «Ei-lo aqui vem; é todo o meu gado.»
- «Meu destino foi ser vosso criado.»
- «Senhor, vá-se embora, não me dê mais pena,
- «Que há-de vir meu amo trazer-me a merenda.»
- «Se vier seu amo, venha muito embora;
Diremos, menina, que cheguei agora.»
- «Senhor, vá-se, vá-se, não me dê tormento:
Já não quero vê-lo nem por pensamento.»
- «Pois adeus, ingrata da Linda-a-Pastora!
Fica-te, eu me vou pela serra fora.»

- «Venha cá, Senhor, torne atrás correndo...
Que o amor é cego, já me está rendendo.»
Sentaram-se à sombra... tudo estava ardendo...
Quando elas não querem, então ‘stão querendo.

Romanceiro, Almeida Garrett

A Menina que não falava

Certo dia, um rapaz viu uma rapariga muito bonita e apaixonou-se por ela. Como se queria casar com ela, no outro dia, foi ter com os pais da rapariga para tratar do assunto.
- Essa nossa filha não fala. Caso consigas fazê-la falar, podes casar com ela, responderam os pais da rapariga.
O rapaz aproximou-se da menina e começou a fazer-lhe várias perguntas, a contar coisas engraçadas, bem como a insultá-la, mas a miúda não chegou a rir e não pronunciou uma só palavra. O rapaz desistiu e foi-se embora.
Após este rapaz, seguiram-se outros pretendentes, alguns com muita fortuna mas, ninguém conseguiu fazê-la falar.
O último pretendente era um rapaz sujo, pobre e insignificante. Apareceu junto dos pais da rapariga dizendo que queria casar com ela, ao que os pais responderam:
- Se já várias pessoas apresentáveis e com muito dinheiro não conseguiram fazê-la falar, tu é que vais conseguir? Nem penses nisso!
O rapaz insistiu e pediu que o deixassem tentar a sorte. Por fim, os pais acederam.
O rapaz pediu à rapariga para irem à sua machamba, para esta o ajudar a sachar. A machamba estava carregada de muito milho e amendoim e o rapaz começou a sachá-los.
Depois de muito trabalho, a menina ao ver que o rapaz estava a acabar com os seus produtos, perguntou-lhe:
- O que estás a fazer?
O rapaz começou a rir e, por fim, disse para regressarem a casa para junto dos pais dela e acabarem de uma vez com a questão.
Quando aí chegaram, o rapaz contou o que se tinha passado na machamba. A questão foi discutida pelos anciãos da aldeia e organizou-se um grande casamento.


Conto tradicional moçambicano


07/04/2009

Warashibe Choja




Há muitos e muitos anos atrás, na região de Yamato (hoje Nara), viveu um jovem de nome Yosaku. Ele era um lavrador sem-terra, por isso peregrinava de vila em vila ajudando outros agricultores e sobrevivia comendo vegetais que ganhava em troca de seu trabalho. Como era um trabalhador sem-teto, dormia em templos budistas dedicados a Kannon, a Deusa da Misericórdia.
- Deusa Kannon hoje trabalhei bastante e estou exausto. Como não tenho casa própria onde dormir, permita-me pernoitar mais uma vez em seu templo. Amanhã, por favor ajude-me a encontrar trabalho.
Após a oração, Yosaku estirou-se na varanda do templo e adormeceu cansado. Nessa noite ele teve um sonho fascinante. Irradiando uma luz dourada, a Deusa Kannon, apareceu ao seu lado e disse:
-Yosaku, você é rapaz admirável. Mesmo sendo pobre jamais queixou de sua condição e está sempre disposto a ajudar ou outros, sem se importar com pagamentos. Vou lhe conceder a graça de uma vida feliz. Amanhã vai cair casualmente em suas mãos algo que trará uma grande fortuna para você. Dizendo isso a deusa desapareceu.
No dia seguinte o rapaz saiu para procurar trabalho, tropeçou numa pedra no meio da estrada e foi de cara ao chão. Na queda sua mão caiu sobre algo.Era um pedaço de palha de arroz, Yosaku ia jogar fora, mas lembrou do sonho e guardou a palha e continuou caminhando pensativo:
-Não consigo entender como um pedaço de palha de arroz pode me deixar rico. Será que foi a essa palha que a misericordiosa Deusa Kannon se referiu?
Assim continuou caminhando pensativo. De repente um besouro veio voando aos zumbido perto de seu rosto. Yosaku tentou afastar o inseto com um galhinho de árvore, mas o besouro persistia em voar em sua volta. O jovem então apanhou o inseto e amarrou-o na extremidade de um pedaço de pau, com uma tira da palha que havia guardado no bolso. Assim espetou o pauzinho no chão e ficou vendo o inseto se debatendo para fugir. Então foi desfiando a palha de arroz e fez um círculo em torno de onde o bichinho estava amarrado. Curiosamente o besouro começou andar em círculo, contornando a palha, e tornou-se um passatempo divertido para os transeuntes daquela estrada.
Nesse momento ia passando um carro de boi muito rico e um menino, filho de nobre que estava nesse carro, disse ao velho conselheiro do palácio que acompanhava o cortejo.
-Quero aquele brinquedo para mim.
Yosaku que ouviu tudo, ofereceu o besouro amarrado ao garoto. Como retribuição, a dama de companhia do nobre garoto, deu a Yosaku três laranjas.
-Nossa, três laranjas deliciosas por um besouro e tiras de palha.
O jovem então amarou as laranjas com a palha que sobrou num galho, botou no ombro e saiu andando. Pouco depois encontrou uma senhora distinta acompanhada por um criado. Ela estava lastimando sentada a beira da estrada.
-Ai que sede! Quero beber água, não agüento mais essa garganta seca. Vou desmaiar, água por favor.
O criado que a acompanhava disse que já havia percorrido toda redondeza e não encontrou nenhum poço ou riacho.
Yosaku estendeu as laranjas para a senhora dizendo:
-Tenho essas laranjas, se servir para amenizar sua sede, sirva-se por favor.
A dama chupou avidamente as laranjas e sua palidez foi passando. Assim que estava totalmente recuperada, a senhora lhe agradeceu:
-Se o senhor não passasse por aqui com essas laranjas, a esta hora eu já estaria morta. Gostaria de recompensá-lo condignamente, mas aqui nada tenho além dessas peças de pano, por favor aceite como prova de minha gratidão.
Yosaku que nunca tinha visto peças de seda pura, ficou maravilhado.
-Nossa, três peças de seda por três laranjas, hoje é meu dia de sorte. Só pode ser obra da Deusa Kannon.
O rapaz continuou a caminhada e cruzou com um samurai montado num garboso cavalo branco. Yasaku percebeu que o cavalo estava muito cansado, mesmo assim era um belo animal. De repente o cavalo dobrou as pernas e caiu exausto.
Os criados do samurai correram em socorro do animal, dando-lhe água e massageando seu pescoço, porém o cavalo não se mexia, ficando estirado como quem estava morrendo.
-Cavalo inútil, sacrifiquem esse animal perfurando seu coração com a lança - disse o samurai aos seus vassalos.
Yosaku que de perto assistia a cena, ficou penalizado com o destino do cavalo e pediu ao samurai.
-Honorável senhor, desculpe-me do atrevimento, mas peço que poupe a vida do cavalo, um animal tão bonito não merece uma morte sacrificada. Ofereço uma peça de seda em troca da vida dele.
-Ao contrário do que está imaginando, mandei sacrificar o cavalo para ele não ter uma morte lenta e agonizante. Apenas pretendia abreviar o sofrimento do animal. Mas se você faz questão de trocar a vida dele por uma peça de seda, aceito de bom grado. O animal fica sendo de sua responsabilidade.
Assim o samurai apanhou a peça de seda e seguiu em frente. Yosaku pacientemente deu água ao cavalo e ficou horas ao lado dele. Aos poucos o cavalo foi melhorando de aspecto e finalmente se levantou.
Yosaku montou no cavalo e seguiu sua andança rumo a capital. Quando passou perto de uma casa de agricultor trocou a segunda peça de seda por sela e rédea. Quando chegou a periferia de Heian-kyo (hoje Kyoto), então capital do Japão, trocou a terceira peça de seda por pousada, comida e roupa lavada.
No dia seguinte quando se preparava para entrar na capital, passou diante de um casebre e um homem estava se preparando sua mudança, colocando utensílios da casa em um grande carrinho puxado a mão.
-Que belo cavalo! Se eu tivesse um, minha mudança seria facilmente realizável. Disse o homem da casa.
-Quer comprar o cavalo? Perguntou Yosaku.
-Gostaria muito de adquiri-lo, mas, o pouco dinheiro que tenho, não posso gastar agora. Devo guardar para começar nova vida, bem distante daqui, com uma pessoa que está me esperando. Será que você aceita trocar o cavalo por essa modesta casa e esse terreno para plantar?
-Um terreno para plantar é tudo que sempre desejei!
Assim Yosaku tornou-se proprietário de terra na entrada da capital. Sua plantação de arroz cresceu maravilhosamente e ganhou fama. Quando era feito a colheita os nobres corriam para comprar o arroz da plantação de Yosaku. O moço trabalhou bastante e depois de alguns outonos, havia se tornado um fazendeiro abastado. Os andarilhos que rumavam a capital paravam para descansar em sua casa e sempre recebiam uma pelota de arroz e uma xícara de chá. Yosaku sentia prazer em ajudar as pessoas e fazia questão de contar sua história, para transmitir sua fé na Deusa Kannon.
Por causa de sua bondade passou a ser chamado carinhosamente de Warachibe Choja (Milionário da Palha de Arroz) pelas pessoas que passavam por sua casa.


Lenda do Japão


O gaio que se revestiu das penas do pavão


De certo pavão na muda
Um gaio as penas tomou,
E a roupagem cambiante
Ao próprio corpo adaptou.

Foi, depois, fazer figura,
A pimpar entre os pavões.
Conhecido — ei-lo enxotado,
A bicadas e empuxões.

Foge, entre vaia estrondosa,
Corrido, ludibriado;
Leva o corpo em carne viva,
Pelos pavões depenado.

Buscando asilo e refúgio
Entre os gaios, sem iguais,
Foi repelido a assobios
E gargalhadas gerais.

Gaios bípedes conheço
Que não são imaginários;
Usurpam alheias penas
E se chamam plagiários.

Mas, chíton! Não é meu fito
Apontar os impostores!
Entre os pavões são notórios
Os gaios usurpadores.


Barão de Paranapiacaba (Trad.)

O Túnel: uma Parábola do mistério pascal

Havia uma ilha, perto do continente, mas separada por um pedaço de mar. Era perigoso esse mar. Era difícil a vida para as pessoas daquela ilha: não havia maneira de se comunicarem com o continente, ali nasciam e morriam sem perspectivas de algo melhor, os recursos eram poucos... era um tédio morar naquela ilha!
É certo que muitos já haviam falado da existência de um túnel que ligava a ilha ao continente, passando por debaixo do mar... mas nunca ninguém tinha sobrevivido ao atravessá-lo. Todo mundo sabia que existia esse túnel, mas ninguém acreditava que ele pudesse ser solução: era uma viagem sem retorno! Todos os que nele entravam, acabavam por não regressar!
E já ninguém mais naquela ilha tinha esperança de coisa alguma! Até que um dia apareceu um jovem diferente: Falava de esperança! Falava de uma vida nova, de uma nova condição de vida! Falava de algo bem mais feliz! E falava do velho túnel... que para aquele povo já se havia tornado símbolo de medo e fonte de superstições. Não acreditaram nele. ‘É mais um louco! - diziam - acabará como todos os outros!’ Mas aquele jovem continuava falando e provocando o povo, interpelando sobretudo aqueles que exploravam a angústia do povo e se aproveitavam de sua falta de perspectivas!
Um dia, alguns tramaram contra esse jovem! Já estava incomodando demais! E resolveram jogá-lo na boca do túnel, para se livrarem dele! O povo aplaudiu, pagando para ver o que aconteceria com ele! E a mesma história de muitos começava a se repetir: o jovem sumiu no túnel! Não voltava!
Mas, passados uns dias, para surpresa geral, eis que aquele jovem surge de novo na ilha! Feliz e radiante! Seus olhos brilhavam mais do que nunca! Ele estava de volta para dizer que era possível atravessar o túnel! Ele estava de volta para dizer que era possível chegar ao continente! Ele estava de volta para dizer que havia esperança! Que a vida não estava condenada às limitações daquela ilha! Que o povo da ilha não estava sozinho! Ele estava de volta! ... Para que todos entendessem o caminho do continente!
O povo continuou morando naquela ilha! Mas tudo havia mudado! Agora, eles sabiam que não estavam sozinhos! Agora eles sabiam que estavam ligados ao continente e que um dia para lá poderiam ir! Agora, seus horizontes havia se alargado: não estavam mais condenados ao isolamento de viver naquela ilha! Viver na ilha, agora, tinha um sentido novo!
E mudou, a vida naquela ilha! Era totalmente novo o jeito de viver! A esperança era forte! Ninguém mais poderia continuar explorando a angústia do povo, porque o povo tinha uma nova esperança e uma nova razão de viver!

06/04/2009

Os dois irmãos

Era uma vez dois irmãos, um rico e outro pobre. O rico era ourives, e malvado até não poder mais. O pobre ganhava a vida fabricando vassouras, e era bom e honesto. O pobre tinha dois filhos, dois gémeos iguaizinhos como duas gotas d'água. De vez em quando, eles iam até à casa do rico e, às vezes, ganhavam umas sobras de comida.
Um dia, o fabricante de vassouras foi até o bosque apanhar uns gravetos de bétula e viu um pássaro todo dourado, mais bonito do que qualquer outra ave que ele jamais tivesse visto. Pegou uma pedra, jogou nele, e atingiu o pássaro, mas de raspão. Uma pena caiu no chão e o animal voou e foi embora. O homem pegou a pena e a levou até o irmão, que olhou para ela e disse:
— Mas é ouro puro!
E deu muito dinheiro por ela.
No dia seguinte, o fabricante de vassouras subiu numa bétula, para arrancar alguns galhos. De repente, viu o mesmo pássaro sair voando da árvore. Olhou em volta e acabou encontrando um ninho com um ovo dentro, um ovo de ouro. Ele pegou o ovo, levou para casa e o mostrou ao irmão, que mais uma vez disse:
— É ouro puro!
E deu a ele tudo o que o ovo valia.
Finalmente, o ourives disse:
— Gostaria de ter esse pássaro.
Pela terceira vez, o fabricante de vassouras foi até o bosque. Novamente, viu o pássaro dourado, desta vez pousado num galho, e jogou uma pedra nele, que caiu. Levou o pássaro para o irmão, que lhe deu um dinheirão.
Agora vou poder dar um jeito em minha vida — pensou o fabricante de vassouras. E foi para casa.
Acontece que o ourives era esperto e sabia uma porção de coisas. Sabia que tipo de pássaro era aquele. Chamou a mulher e disse:
— Quero que você asse este pássaro com todo cuidado e não deixe se perder nem um pedacinho dele. Quero comer ele todo, sozinho.
Fique sabendo que esse pássaro não era como os outros. Tinha uma coisa maravilhosa: quem comesse o coração e o fígado dele passaria a achar, todas as manhãs, uma moeda de ouro debaixo do travesseiro.
A mulher limpou o pássaro e o pôs num espeto para assar. Enquanto ele estava assando, ela teve que sair da cozinha por causa de algum outro trabalho, e bem nessa hora os filhos do fabricante de vassouras entraram correndo. Pararam do lado do fogo, rodaram o espeto algumas vezes e, quando dois pedacinhos pequenos caíram na panela, um dos dois meninos disse:
— Vamos comer esses pedacinhos? Estou com tanta fome... E ninguém vai reparar.
E puseram os dois pedacinhos na boca.
Quando a mulher voltou, viu que eles tinham comido alguma coisa e perguntou:
— O que é que vocês andaram comendo?
— Uns pedacinhos que caíram dessa ave — disseram eles.
--Eram o coração e o fígado! — gritou a mulher, aflita.
Como ela não queria que o marido desse falta e ficasse zangado, rapidamente matou um frango, tirou o coração e o fígado e os pôs dentro do pássaro dourado. Quando a ave ficou pronta, ela a serviu ao ourives, que comeu tudo sozinho. Mas na manhã seguinte, quando ele pôs a mão debaixo do travesseiro, esperando encontrar uma moeda de ouro, não havia nada diferente de todos os outros dias.
Os dois meninos nem desconfiavam de sua boa fortuna. Quando se levantaram no dia seguinte, alguma coisa caiu no chão, tilitando. Quando olharam, viram que eram duas moedas de ouro. Mostraram ao pai, que ficou muito espantado:
— Que será isso? — perguntou. Mas, no dia seguinte, quando acharam mais duas, e mais duas na outra manhã, e assim por diante, ele resolveu ir procurar o irmão e contar aquele caso estranho.
Imediatamente, o ourives descobriu que as crianças tinham comido o fígado e o coração do pássaro dourado. Mas ele era um homem invejoso e sem piedade e, para se vingar, disse ao pai dos meninos:
— Seus filhos fizeram um pacto com o diabo. Não fique com esse ouro, nem deixe que ele fique guardado em sua casa, porque o diabo já se apossou de seus filhos e, se você deixar, vai acabar destruindo você também.
O pai tinha muito medo do diabo. Por mais que odiasse fazer uma coisa dessas, levou os gémeos para a floresta e lá, com o coração apertado, largou os dois.
As crianças andaram e andaram, procurando o caminho de casa, mas não conseguiram achar. Quanto mais andavam, mais se perdiam. Finalmente, encontraram um caçador, que perguntou:
— Quem são vocês? De onde vocês vêm?
— Somos os filhos do pobre fabricante de vassouras — responderam.
E contaram a ele que o pai não podia mais ficar com eles em casa, porque todas as manhãs apareciam duas moedas de ouro debaixo dos travesseiros deles.
— Não há nada de mal nisso — disse o caçador — desde que vocês continuem sendo bons e honestos e não comecem a ficar preguiçosos.
O bom homem gostou das crianças. Como não tinha filhos, resolveu tomar conta dos meninos e disse:
— Eu vou ser pai de vocês e criá-los.
E fez isso mesmo: criou os dois e os ensinou a caçar. Eles continuaram a achar moedas de ouro todas as manhãs, mas o caçador as guardava com cuidado, para o caso de algum dia eles precisarem.
Um dia, quando eles já tinham crescido e estavam uns homens feitos, o pai de criação os levou à floresta e disse:
— Hoje eu vou testar a perícia de vocês como atiradores. Se passarem no teste, deixarão de ser aprendizes e eu vou declará-los mestres-caçadores.
Foram todos para o esconderijo de caça e ficaram um tempão à espera, de tocaia, mas não apareceu nenhum animal. Depois, o caçador viu que vinha no céu um bando de gansos selvagens, voando numa formação em triângulo, e disse a um dos rapazes:
— Abata um em cada ponta.
O rapaz acertou e passou no teste.
Daí a pouco, outro bando veio chegando, desta vez voando na forma do número dois. O caçador disse ao outro irmão que acertasse um ganso em cada canto, e ele também passou no teste. Diante disso, o pai de criação exclamou:
— Muito bem! Vocês agora são mestres-caçadores.
Então os dois irmãos foram juntos para a floresta, pensaram, conversaram muito e combinaram um plano. De noite, disseram ao pai de criação:
— Resolvemos que não vamos tocar em um único bocado da comida enquanto o senhor não nos fizer um favor.
— E qual é esse favor? — perguntou ele.
— Já aprendemos bem nosso ofício — replicaram. — Agora devemos nos por à prova, nós mesmos. Queremos sair para correr mundo.
O velho ficou feliz e respondeu:
— Vocês falam como caçadores de verdade. Era isso mesmo o que eu esperava. Podem ir. Tenho certeza de que vão se dar muito bem.
E então eles comeram e beberam juntos, muito alegres.
Quando chegou o dia em que tinham resolvido partir, o pai de criação deu a cada um uma boa arma e um cachorro, e disse que eles levassem consigo todas as moedas de ouro que quisessem, daquelas que estavam guardadas. Seguiu com eles por uma parte do caminho e, na despedida, deu aos dois uma faca com a lâmina muito brilhante.
— Se algum dia vocês se separarem — recomendou —, enfiem esta faca numa árvore na encruzilhada. Dessa maneira, se um de vocês voltar, vai poder saber como está passando o irmão ausente, porque o lado da lâmina que estiver na direcção em que ele foi vai enferrujar se ele morrer. Mas, enquanto ele estiver vivo, continuará brilhante.
Os dois irmãos continuaram, indo cada vez mais para longe, e chegaram a uma floresta tão grande que não foi possível atravessá-la em um único dia. Pararam para passar a noite e comeram o que tinham em suas sacolas de caça. Depois, caminharam o outro dia inteiro, mas ainda não conseguiram chegar ao fim da floresta. Não tinham mais nada para comer e um dos irmãos disse:
— Vamos ter que abater alguma caça ou ficar com fome.
Carregou a arma e olhou em volta. Quando uma velha lebre apareceu, ele fez pontaria, mas a lebre gritou:
— Bom caçador,
deixe eu viver,
dou dois pequenos
para você.

Saiu correndo para dentro de uma moita e voltou com dois filhotes de lebre. As lebrinhas brincavam tão alegres e eram tão engraçadinhas que os caçadores não tiveram coragem de matá-las. Então, resolveram poupá-las e elas começaram a segui-los.
Daí a pouco, apareceu uma raposa. Eles iam atirar, mas a raposa gritou:
— Bom caçador,
deixe eu viver,
dou dois pequenos
para você.

É claro que, em seguida, trouxe duas raposinhas. De novo, os caçadores não tiveram coragem de matá-las e disseram que elas podiam fazer companhia às lebres.
Não tinha se passado muito tempo e um lobo saiu do mato. Os caçadores apontaram a arma, mas o lobo gritou:
— Bom caçador,
deixe eu viver,
dou dois pequenos
para você.

Os caçadores puseram os dois filhotes de lobo com os outros bichos e todos foram andando atrás deles.
Depois apareceu um urso, que queria continuar a viver e gritou:
— Bom caçador,
deixe eu viver,
dou dois pequenos
para você.

Os dois ursinhos foram levados para junto dos outros animais, e agora já eram oito. E quem veio no fim de todos? Apareceu um leão, sacudindo a juba. Mas não assustou os caçadores. Eles fizeram pontaria e, bem como os outros tinham feito, o leão disse:
— Bom caçador,
deixe eu viver,
dou dois pequenos
para você.

Também trouxe os dois filhotes dele e agora os caçadores tinham dois leões, dois ursos, dois lobos, duas raposas e duas lebres que iam atrás deles e os serviam. Só que isso não matava a fome. Então eles disseram às raposas:
— Todo mundo sabe que vocês são espertas e sabidas. Pois então, tratem de nos arranjar comida.
Elas responderam:
— Perto daqui tem uma aldeia onde já nos servimos de galinhas, uma ou duas vezes. Vamos mostrar o caminho a vocês.
Assim, eles foram até a aldeia, compraram alguma coisa para comer, deram comida também aos animais e continuaram a viagem. As raposas conheciam bem a região, porque já tinham andado vigiando todos os galinheiros por ali. Por isso, sempre sabiam mostrar o caminho aos caçadores.
Andaram a esmo durante algum tempo, mas os caçadores não conseguiram encontrar nenhum emprego que permitisse que todos ficassem juntos. No fim, disseram:
— Não tem jeito. Vamos ter que nos separar.
Dividiram os animais, de modo que cada um ficou com um leão, um urso, um lobo, uma raposa e uma lebre. Depois, se despediram, prometeram se amar como bons irmãos até a morte, e enfiaram numa árvore a faca que o pai de criação tinha dado a eles. Depois, um foi para leste, outro foi para oeste.
Seguido por seus animais, um dos irmãos chegou a uma cidade que estava cheia de faixas de crepe preto dependuradas por toda parte. Foi até uma estalagem e perguntou onde podia deixar os animais. O estalajadeiro os botou num celeiro que tinha um buraco na parede. A lebre se esgueirou pelo buraco e acabou conseguindo um repolho. A raposa pegou uma galinha e, depois de comer, acabou pegando também um galo. O lobo, o urso e o leão eram grandes demais para passar pelo buraco, por isso o estalajadeiro teve que levá-los até um lugar onde havia uma vaca deitada no pasto, e eles comeram até se fartar. Finalmente, quando todos os animais já estavam alimentados e abrigados, o caçador perguntou ao estalajadeiro porque toda a cidade estava de luto. O estalajadeiro respondeu:
— Porque a filha única do nosso rei vai ter que morrer amanhã.
— Ela está tão doente assim? — perguntou o caçador.
— Não — disse o estalajadeiro. — Ela tem óptima saúde, mas, de qualquer jeito, vai morrer.
— Como pode ser uma coisa dessas? — quis saber o caçador.
— Não muito longe da cidade, existe uma montanha. Nessa montanha vive um dragão e todos os anos ele precisa ter uma donzela imaculada. Se não, ele devasta todo o país. Todas as donzelas já foram dadas ao dragão, agora só resta a filha do rei. Por isso, filha do rei ou não, ela não pode ser poupada. Amanhã, ela vai ser entregue ao dragão.
— Mas por que ninguém mata esse dragão? — perguntou o caçador.
— É uma história muito triste — disse o estalajadeiro. — Muitos cavaleiros já tentaram, mas todos perderam a vida. O rei prometeu a mão de sua filha em casamento para quem matar o dragão e, além disso, o reino todo de herança quando o velho rei morrer.
O caçador não disse mais nada. Porém, no dia seguinte, saiu com os animais e escalou a montanha do dragão. Lá no alto, havia uma igreja e no altar havia três taças, cheias até a borda, e ao lado havia uma inscrição que dizia:
"Quem esvaziar estas taças será o homem mais forte da terra e poderá brandir a espada que está enterrada do lado de fora da porta."
O caçador não bebeu. Saiu e achou a espada enterrada, mas não conseguiu arredá-la do lugar. Voltou e esvaziou as taças. Aí ficou bem forte, conseguiu tirar a espada do chão e manejá-la à vontade.
Quando chegou a hora de entregar a donzela ao dragão, vieram com ela o rei, o marechal e toda a corte. De longe, ela avistou o caçador na montanha do dragão e achou que era o dragão esperando por ela. Não queria subir, mas isso ia ser a desgraça de toda a cidade. Finalmente, ela acabou se conformando e começando sua amarga subida. Chorando, o rei e os cortesãos voltaram para casa, mas o marechal ficou, pois tinha instruções de acompanhar tudo à distância.
No momento em que a filha do rei alcançou o alto da montanha, viu que quem estava lá esperando por ela não era o dragão, mas o jovem caçador, que a consolou e prometeu salvá-la.
Para começar, ele a levou para a igreja e a trancou lá dentro. Daí a pouco, o dragão de sete cabeças arremeteu com um poderoso rugido. Quando viu o caçador, ficou surpreso e perguntou:
— O que é que você está fazendo na minha colina?
O caçador respondeu:
— Vim para combater você.
O dragão disse:
— Alguns cavaleiros já morreram aqui em cima, e num instante eu vou dar cabo de você também.
Dizendo isso, cuspiu chamas pelas suas setes goelas. A ideia dele era incendiar o capim seco por ali, de modo que o caçador morresse sufocado no calor e na fumaça, mas os animais vieram correndo e pisotearam o fogo até apagar.
Em seguida, o dragão atacou, mas o caçador brandiu a espada com tanta agilidade e rapidez que ela cantou no ar e cortou três cabeças do monstro.
Aí o dragão ficou zangado de verdade. Levantou-se no ar, lançando chamas ferozes, e se abateu sobre o caçador bem no instante em que ele brandiu outra vez a espada e cortou mais três cabeças. O dragão caiu no chão. Mas, apesar de toda a fraqueza que sentia, atacou de novo. Reunindo suas últimas forças, o caçador conseguiu cortar fora a cauda do monstro, mas depois disso não podia lutar mais. Então, chamou os animais, que fizeram o dragão em pedaços.
Depois que a batalha terminou, o caçador abriu a porta da igreja. A filha do rei jazia no chão, porque tinha desmaiado de medo durante a luta. Ele a levou para fora e, quando ela voltou a si e abriu os olhos, ele mostrou a ela os pedaços do dragão e lhe disse que estava salva. Ela ficou muito feliz e disse:
— Então você vai ser meu marido muito querido, porque meu pai prometeu minha mão ao homem que matasse o dragão.
Para recompensar os animais, ela tirou do pescoço o colar de coral e o dividiu entre eles. O leão ficou com o fecho de ouro. Ao caçador, ela deu um lenço, com o nome dela bordado. O caçador cortou as sete línguas do dragão, enrolou-as no lenço e as guardou com cuidado.
Depois disso, como ele estava exausto do incêndio e da luta, disse à filha do rei:
— Nós dois estamos caindo de cansaço. Vamos dormir um pouco.
Ela concordou, eles se deitaram no chão e o caçador disse ao leão:
— Fique de guarda. Não deixe ninguém nos atacar enquanto estivermos dormindo.
E os dois adormeceram. O leão deitou ao lado deles para montar guarda, mas, como também estava muito cansado da luta, chamou o urso e disse:
— Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde.
O urso deitou ao lado dele, mas também estava muito cansado. Por isso, chamou o lobo e disse:
— Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde.
O lobo deitou ao lado dele, mas também estava muito cansado. Por isso, chamou a raposa e disse:
— Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde.
A raposa deitou ao lado dele, mas também estava muito cansada. Por isso, chamou a lebre e disse:
— Deite ao meu lado. Preciso dormir um pouco. Se acontecer alguma coisa, me acorde.
A lebre se sentou ao lado dela, mas, coitadinha, também estava muito cansada e não tinha ninguém para quem pudesse passar adiante a guarda. Mas, mesmo assim, acabou dormindo também. E foi assim que, em pouco tempo, o caçador, a filha do rei, o leão, o urso, o lobo, a raposa e a lebre, todos estavam dormindo a sono solto.
Quando o marechal, que fora instruído para acompanhar tudo à distância, não viu o dragão sair voando com a filha do rei e achou que tudo estava tranquilo na montanha, tomou coragem e foi até lá. Então viu o dragão estraçalhado e, ali por perto, a filha do rei e um caçador com todos os seus animais, todos dormindo profundamente. Como ele era um homem mau e ímpio, tirou a espada, cortou fora a cabeça do caçador, pegou a filha do rei no colo e desceu a montanha com ela. Quando chegaram lá em baixo, ela acordou sobressaltada e o marechal disse:
— Você está em meu poder. Tem que dizer que fui eu quem matou o dragão.
— Não posso dizer uma coisa dessas — respondeu ela. — Foi um caçador com seus animais.
Ouvindo isso, ele puxou a espada e ameaçou matá-la se ela não prometesse confirmar a história dele. Depois, a levou até o rei, que achava que o dragão tinha despedaçado sua filha adorada e não coube em si de alegria ao vê-la viva.
O marechal disse:
— Matei o dragão, salvei sua filha e todo o reino. Agora ela tem que casar comigo, como o senhor prometeu.
O rei perguntou à filha:
— É verdade?
— É... — disse ela deve ser... Mas o casamento não pode ser celebrado antes de um ano e um dia.
Sabe, ela achava que durante esse tempo devia ter alguma notícia de seu amado caçador.
Na montanha do dragão, os animais ainda estavam dormindo ao lado do corpo do seu dono morto. Aí veio uma abelha e pousou no focinho da lebre, mas a lebre a espantou com a pata e continuou dormindo. Ela veio outra vez, e mais uma vez a lebre a espantou e continuou a dormir. Mas quando a abelha veio pela terceira vez e picou o focinho da lebre, ela acordou. E no instante que a lebre acordou, acordou a raposa, e a raposa acordou o lobo, e o lobo acordou o urso, e o urso acordou o leão. E quando o leão acordou e viu que a filha do rei tinha sumido e seu dono estava morto, deu um rugido que parecia um trovão e perguntou:
— Quem fez isto? Urso, por que você não me acordou?
O urso perguntou ao lobo:
— Por que você não me acordou?
O lobo perguntou à raposa:
— Por que você não me acordou?
A raposa perguntou à lebre:
— Por que você não me acordou?
E como a coitadinha da lebre não podia jogar a culpa em cima de ninguém, ficou sendo a única culpada. Iam todos avançar em cima dela, mas ela pediu:
— Não me matem. Eu posso devolver a vida ao nosso dono. Sei de uma montanha onde cresce uma raiz e, se a gente puser essa raiz na boca de um ferido, ele fica inteiramente curado de qualquer doença ou ferimento. Mas essa montanha fica a duzentas horas daqui.
O leão disse:
— Você tem vinte e quatro horas para ir e voltar com essa tal raiz.
A lebre saiu à toda, feito uma flecha, e em vinte e quatro horas estava de volta com a raiz. O leão pôs a cabeça do caçador no lugar, a lebre pôs a raiz na boca do morto e no mesmo instante as partes se costuraram e ficaram juntas outra vez, o coração começou a bater e a vida voltou.
Quando o caçador acordou, ficou tristíssimo de ver que a donzela tinha ido embora.
— Na certa ela quis se livrar de mim — disse ele. — Aproveitou que eu estava dormindo e foi embora.
O leão tinha estado com tanta pressa na hora de consertar o dono, que pôs a cabeça dele ao contrário, de trás para frente. Mas o caçador estava tão ocupado com seus pensamentos tristes sobre a filha do rei, que nem reparou. Lá pelo meio-dia, quando ele foi comer, notou que a cabeça estava de frente para a direção errada. Ficou muito intrigado com isso e perguntou aos animais o que é que tinha acontecido enquanto ele estava dormindo. Então o leão contou a ele que todos estavam tão cansados que acabaram dormindo e que, quando acordaram, descobriram que ele estava morto, com a cabeça cortada, e que a lebre tinha ido buscar a raiz da vida e que ele, leão, tinha colado a cabeça na posição errada porque estava com pressa demais, mas agora ia corrigir o erro. Assim, ele arrancou a cabeça do caçador outra vez, virou-a direito, e a lebre colou e tratou da ferida com a raiz.
A partir desse dia, o caçador, sempre muito triste, passou a andar de um lado para o outro com seus animais, fazendo-os dançar para as pessoas. Quando tinha passado exatamente um ano, ele chegou à mesma cidade onde tinha salvo do dragão a filha do rei. Desta vez, o lugar estava todo enfeitado com faixas vermelhas.
— Que quer dizer isso? — perguntou ao estalajadeiro. Há um ano, a cidade estava toda pendurada com faixas de luto. Agora, está toda de vermelho. Por quê?
O estalajadeiro replicou:
— Há um ano, a filha de nosso rei ia ser entregue ao dragão, mas nosso marechal lutou com o dragão e o matou, e amanhã eles se casam. Por isso é que a cidade estava de preto, de luto, e agora está de vermelho, de alegria.
Ao meio-dia do dia do casamento, o caçador disse ao estalajadeiro:
— O senhor acredita que eu vou comer pão da mesa do rei, bem aqui na sua casa, antes que o dia termine?
O estalajadeiro respondeu:
— Aposto cem moedas de ouro como não vai.
O caçador topou a aposta e pôs em cima da mesa uma bolsa que tinha exatamente as cem moedas de ouro. Depois, chamou a lebre e disse:
— Minha querida Pé-Leve, traga-me um pouco do pão que o rei come.
A lebre era o menor dos animais, não podia passar a ordem adiante para nenhum outro, e disse para si mesma:
— Se eu for correndo pelas ruas sozinha, todos os cachorros carniceiros vão sair me perseguindo.
E foi isso mesmo: os cachorros foram correndo atrás dela, com evidentes intenções de encher sua pele de buracos. Mas ela deu um pulo assim — você não viu? — e se meteu dentro da guarita do sentinela. O soldado nem viu que ela estava lá.
Os cachorros chegaram e tentaram tirá-la dali, mas o soldado não gostou nada daquilo e saiu atrás deles batendo com a coronha da espingarda até que eles fugiram uivando e latindo. Quando a lebre viu que o caminho estava livre, correu para dentro do palácio, foi direto aonde estava a filha do rei, sentou debaixo da cadeira e começou a coçar o pé dela.
A moça achou que era seu cachorro e disse:
— Passa fora!
A lebre coçou o pé dela mais uma vez e de novo ela disse:
— Passa fora!
Mas a lebre não desanimou. Quando coçou o pé da filha do rei pela terceira vez, a moça olhou para baixo e a reconheceu pelo coral no pescoço. Pegou o bichinho no colo, levou-o até seu quarto e disse:
— Minha lebre querida, que é que eu posso fazer por você?
Ela respondeu:
Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pão, dos que o rei come.
Quando ouviu isso, a moça ficou contentíssima. Chamou o padeiro e mandou que ele lhe trouxesse um pão, dos que o rei comia.
— Mas — disse a lebre — o padeiro precisa também entregar o pão, em meu lugar. Se não, os cachorros carniceiros acabam comigo.
O padeiro levou o pão até a porta da estalagem.
Lá chegando, a lebre ficou de pé em suas patas traseiras, pegou o pão nas patas da frente e o levou ao seu dono. Então o caçador disse ao estalajadeiro:
— Como vê, as cem moedas de ouro são minhas.
O estalajadeiro ficou muito espantado, mas o caçador continuou:
— Sim, senhor! Tenho pão, mas agora quero um pouco da carne que o rei come.
O estalajadeiro disse:
— Eis uma coisa que eu queria ver...
Mas dessa vez não propôs nenhuma aposta. O caçador chamou a raposa e disse:
— Raposinha, traga-me um pouco da carne assada que o rei come.
A raposa sabia todos os truques, esgueirou-se ao longo de muros, passou por buracos de cercas, os cachorros nem a viram. Quando chegou ao palácio, sentou-se embaixo da cadeira da filha do rei e coçou o pé dela. A moça olhou, reconheceu a raposa por causa do coral no pescoço, e disse:
— Minha raposa querida, que é que eu posso fazer por você?
Ela respondeu:
— Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco da carne assada que o rei come.
Então a moça mandou chamar o cozinheiro e disse que ele preparasse um assado como o rei comia e o levasse até a porta da estalagem. Depois, a raposa pegou a bandeja, abanou bem a cauda para espantar as moscas que vinham atrás do assado, e o levou até seu dono.
Aí, o caçador disse ao estalajadeiro:
— Como vê, senhor, tenho o pão e tenho a carne, mas agora quero a guarnição do prato, bem como o rei come.
Chamou o lobo e disse:
— Caro lobo, traga-me um pouco da guarnição que acompanha esse assado que o rei come.
O lobo foi direto ao palácio, porque não tinha medo de ninguém. Quando chegou junto da filha do rei, deu um puxão no vestido dela, pelas costas. Ela teve que se virar e olhar para ele, e logo o reconheceu, por causa do coral no pescoço. Levou-o até seu quarto e perguntou:
— Meu lobo querido, que é que eu posso fazer por você?
O lobo respondeu:
— Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco da guarnição que acompanha o assado, bem como o rei come.
Então a moça mandou chamar o cozinheiro, que teve que preparar a guarnição, bem como o rei comia, e levar até a porta da estalagem, onde o lobo tirou a travessa da mão dele e a levou a seu dono.
Aí, o caçador disse ao estalajadeiro:
— Como vê, agora eu tenho pão, carne e acompanhamento, mas também quero uma sobremesa, das que o rei come.
Chamou o urso e disse:
— Caro urso, você gosta de doces. Traga-me um pouco da sobremesa que o rei come.
O urso saiu trotando para o palácio e todo mundo saía da frente dele. Mas quando chegou ao portão, os sentinelas o ameaçaram com seus mosquetes e não queriam deixar que ele passasse. Ele ficou de pé nas patas traseiras e bateu nas orelhas deles com as patas, para a direita e para a esquerda, e todos os sentinelas caíram. Então ele foi direto para onde estava a filha do rei, ficou bem atrás dela e deu uma rosnadinha suave. Ela olhou para trás, reconheceu o urso, pediu-lhe que a seguisse até seu quarto e disse:
— Meu urso querido, que é que eu posso fazer por você?
Ele respondeu:
— Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco da sobremesa que o rei come.
Ela mandou chamar o confeiteiro e ordenou que ele preparasse uns doces como o rei comia de sobremesa e levasse até a porta. Primeiro, o urso lambeu umas ameixas açucaradas que enfeitavam os doces e tinham rolado de cima deles, depois se levantou nas patas de trás, pegou a travessa e a levou até o dono.
O caçador então disse ao estalajadeiro:
— Como vê, agora tenho pão, carne, acompanhamentos e sobremesa, mas ainda quero um pouco de vinho que o rei toma.
Chamou o leão e disse:
— Caro leão, você gosta de beber de vez em quando. Traga-me então um pouco de vinho, do que o rei toma.
O leão saiu passando pela rua e as pessoas correram para tudo quanto era lado. Quando chegou ao palácio, os guardas tentaram lhe barrar a entrada, mas ele deu um rugido e eles saíram correndo. Aí ele foi até os aposentos reais e bateu na porta com o rabo. A filha do rei abriu e levou um susto quando viu o leão, mas logo o reconheceu pelo fecho de ouro de seu colar de coral. Pediu que ele fosse com ela até o quarto e perguntou:
— Meu leão querido, que é que eu posso fazer por você?
Ele respondeu:
— Meu dono, que matou o dragão, está aqui. Mandou que eu lhe pedisse um pouco do vinho que o rei toma.
Então ela mandou chamar o encarregado da adega e lhe ordenou que desse ao leão um pouco do vinho que o rei tomava. Mas o leão disse:
— É melhor eu ir junto, para ter a certeza de que ele está pegando o vinho certo.
Foi com o encarregado até a adega e, quando chegaram lá, o funcionário queria pegar um pouco de vinho comum, do que os criados tomavam, mas o leão disse:
— Espere aí! Vou provar esse vinho.
O encarregado deu meio litro ao leão e ele bebeu tudo de um gole. Depois disse:
— Não. Este não é o vinho certo.
O encarregado da adega olhou para ele espantado e foi então até outro barril, que tinha o vinho reservado para o marechal do rei. O leão disse:
— Primeiro, vou provar esse vinho.
Tirou meio litro, bebeu e disse:
— Este é melhor, mas ainda não é o vinho certo.
Isso deixou o encarregado da adega furioso. Tão furioso que disse:
— Como é que um animal estúpido desses pode querer entender alguma coisa de vinho!
O leão deu uma patada tão forte atrás da orelha dele, que ele caiu sentado no chão, fazendo um barulhão. Quando se levantou, não disse nada, mas levou o leão até uma pequena adega separada, onde se guardava o vinho especial do rei, que ninguém jamais tocava. O leão tirou meio litro e provou. Depois, disse:
— Ah, este sim pode ser o vinho certo.
Então, disse ao encarregado da adega que enchesse meia dúzia de garrafas, e depois subiram novamente as escadas. Quando chegaram lá fora, o leão estava ligeiramente alegre, e balançava de um lado para outro. O encarregado da adega teve que carregar o vinho até a porta, onde o leão segurou a alça da cesta nos dentes e levou o vinho até seu dono.
O caçador disse então ao estalajadeiro:
— Como vê, agora tenho pão, carne, acompanhamentos, sobremesa e vinho, como o rei, e agora vou jantar com meus animais.
Sentou-se, comeu e bebeu, dividindo a comida e a bebida com a lebre, a raposa, o lobo, o urso e o leão. Estava feliz, porque via que a filha do rei ainda o amava. Quando acabou a refeição, disse para o estalajadeiro:
— Como vê, senhor, comi e bebi como o rei come e bebe. Agora, vou até o palácio do rei casar com a filha dele.
O estalajadeiro se espantou:
— Como é que pode? Ela está noiva, vai se casar hoje mesmo.
O caçador tirou do bolso o lenço que a filha do rei tinha dado a ele lá na montanha do dragão, e as sete línguas do monstro ainda estavam embrulhadas nele.
— Vou conseguir isso — disse ele — com a ajuda do que tenho aqui na mão.
O estalajadeiro olhou para o lenço e duvidou:
— Estou disposto a acreditar em qualquer coisa, menos nisso. Aposto a minha estalagem.
O caçador tirou da cintura uma bolsinha com mil moedas de ouro, colocou-a sobre a mesa e disse:
— Aposto isto aqui contra a sua estalagem.
Enquanto isso, o rei e sua filha estavam sentados à mesa real.
— O que é que todos aqueles animais que ficaram entrando e saindo do palácio queriam com você? — perguntou ele.
Ela respondeu:
— Estou proibida de dizer, mas o senhor faria muito bem se mandasse buscar o dono desses animais.
O rei mandou um criado ir até a estalagem convidar o estranho para vir até o palácio. O criado chegou assim que o caçador tinha acabado de fazer sua aposta com o estalajadeiro.
O caçador disse ao estalajadeiro:
— Como vê, o rei mandou seu criado me buscar, mas eu não vou assim.
E respondeu ao criado:
— Por gentileza, peça ao rei que me mande trajes reais e uma carruagem com seis cavalos e criados que me sirvam.
Quando o rei ouviu a resposta, perguntou à filha:
— Que é que eu faço agora?
— O senhor faria bem se mandasse buscá-lo, como ele diz respondeu.
Então o rei mandou os trajes reais, a carruagem com seis cavalos e criados para servi-lo. Quando o caçador os viu chegar, disse ao estalajadeiro:
— Como vê, mandaram me buscar, como eu pedi.
Vestiu os trajes reais, apanhou o lenço com as línguas do dragão e foi para o palácio. Quando o rei o viu chegar, perguntou à filha:
— Como devo recebê-lo?
— O senhor faria bem se andasse ao seu encontro — respondeu ela.
O rei se adiantou, foi ao encontro do caçador e o convidou a entrar. Os animais foram atrás. O rei mandou que ele se sentasse a seu lado, perto de sua filha. Do outro lado estava sentado o marechal, porque era o noivo, mas não reconheceu o caçador. Então trouxeram as sete cabeças do dragão para mostrar a todos, e o rei disse:
— O marechal cortou estas sete cabeças do dragão. Portanto, estou dando a ele a mão de minha filha em casamento.
Ouvindo isso, o caçador se levantou, abriu as sete bocas e perguntou:
— O que aconteceu com as sete línguas do dragão?
O marechal ficou pálido de susto e não conseguia pensar em nenhuma resposta para dar. Finalmente, aterrorizado, acabou dizendo:
— Dragões não têm línguas.
O caçador disse:
— Seria muito melhor se quem não tivesse língua fossem os mentirosos. As línguas de um dragão são a presa do matador do dragão.
Abriu o lenço e lá estavam, as sete. Aí ele pôs cada uma das línguas na boca em que ela se encaixava, e todas se ajustaram perfeitamente. Depois, ele pegou o lenço que tinha o nome da filha do rei bordado, mostrou a ela e lhe perguntou a quem ela o tinha dado.
Ela respondeu:
— Ao homem que matou o dragão.
Em seguida, ele chamou os animais, pegou os cordões de coral e o fecho de ouro do leão, mostrou tudo à filha do rei e lhe perguntou a quem pertenciam. Ela respondeu:
— O colar e o fecho de ouro eram meus. Eu os dividi entre os animais que ajudaram a matar o dragão.
— Quando eu estava exausto e me deitei para descansar depois do combate, o marechal veio e cortou minha cabeça enquanto eu dormia. Depois, carregou a filha do rei e disse que quem tinha matado o dragão era ele: Isso é mentira, como eu já provei, com as línguas, o lenço e o colar.
Em seguida, contou sua história. Contou como os animais o tinham salvo com uma raiz milagrosa, como ele tinha andado a esmo durante um ano até voltar à mesma cidade e como, então, tinha ficado sabendo pelo estalajadeiro que o marechal estava enganando todo mundo. O rei então perguntou à filha:
— É verdade que quem matou o dragão foi este jovem?
— É, sim — respondeu ela. — Agora posso falar sobre o crime do marechal, pois todos ficaram sabendo sem que eu dissesse nada. Ele me tinha feito prometer guardar segredo. Por isso é que eu insisti para que o casamento não se celebrasse antes de um ano e um dia.
O rei mandou reunir seus doze conselheiros e lhes pediu que julgassem o marechal. A sentença o condenou a ser esquartejado por quatro bois. Dessa forma, o marechal foi executado e o rei deu a mão da filha ao caçador, que também foi nomeado regente de todo o reino. O casamento foi celebrado com muitos festejos e o jovem rei mandou chamar o pai verdadeiro e o pai adotivo e os cobriu de presentes. Também não se esqueceu do estalajadeiro, mas mandou buscá-lo e disse:
— Como vê, senhor, casei-me com a filha do rei. Agora, sua estalagem é minha.
— De direito, é mesmo — concordou o estalajadeiro.
Mas o jovem rei disse:
— A misericórdia é mais importante que o direito. Pode ficar com sua estalagem. E também vou lhe dar as mil moedas de ouro, de presente.
Aí tudo ficou bem com o jovem rei e a jovem rainha, que viveram felizes juntos. Ele ia sempre caçar, porque gostava muito, e seus fiéis animais sempre iam com ele.
Ora, acontece que havia uma floresta, não muito distante do palácio, que tinha fama de ser encantada. O que se contava é que quem entrava lá custava muito a sair. Mas o jovem rei queria muito ir caçar lá, e não deixou o velho rei em paz enquanto não obteve a permissão para ir. E então, partiu, com um grande séquito.
Quando chegou à floresta, viu uma corça branca e disse a seus homens:
— Fiquem aqui até que eu volte. Vou caçar aquela bela corça.
Entrou na floresta e apenas seus animais o seguiram. Os homens esperaram até cair a noite. Como ele não voltava, eles foram para casa e disseram à jovem rainha:
— O jovem rei foi perseguir uma corça branca na floresta encantada e não voltou mais.
Quando ela ouviu isso, ficou muito preocupada. Enquanto isso, ele perseguia a corça branca, mas não conseguia alcançá-la. Ela parecia estar ao alcance de um tiro às vezes, mas quando ele fazia pontaria e ia atirar, de repente a via dando saltos mais adiante, cada vez mais distante, até que acabou por desaparecer por completo.
Vendo que estava na floresta profunda, muito longe, ele pegou sua trompa de caça e tocou. Mas não houve resposta, pois seus homens não o ouviram. Quando caiu a noite, ele compreendeu que não ia poder voltar naquele dia. Então, apeou do cavalo, acendeu uma fogueira debaixo de uma árvore e se preparou para passar a noite.
Quando estava sentado com os animais à beira do fogo, achou que ouviu de repente uma voz humana. Procurou, mas não conseguiu ver nada. Depois, ouviu um gemido que parecia vir do alto. Olhou e viu uma velha sentada na árvore:
— Ai, ai! — chorava ela. — Estou com tanto frio!
— Pois desça e venha se esquentar — chamou ele.
— Não — disse ela. — Seus animais iam me morder.
— Não se preocupe, vovó — disse ele. — Eles são mansos, não vão lhe fazer nada, pode descer.
Mas a velha era uma bruxa e disse:
— Vou quebrar uma varinha e jogar aí embaixo. Bata nas costas deles, que assim não me machucam.
Ela jogou a varinha e ele bateu nos animais que, num instante, ficaram imóveis, transformados em pedra. Sem os animais para atrapalhar, ela num instante pulou lá de cima e tocou também o caçador com a varinha. No mesmo momento, ele virou pedra. Aí, dando uma gargalhada horrível, ela o arrastou, e aos animais, para um barranco onde já havia uma porção daquelas pedras.
Quando o jovem rei não voltou, a preocupação e o medo da jovem rainha foram ficando cada vez maiores. Ora, acontece que, nessa mesma ocasião, o outro irmão, que tinha ido para o leste quando se separaram, estava chegando a esse reino. Depois de procurar emprego sem encontrar, resolveu ir de vila em vila com os animais, que dançavam para distrair as pessoas. Depois de algum tempo, ele se lembrou da faca que eles tinham enfiado no tronco da árvore quando se separaram, e resolveu ir até lá para saber como estava o irmão. Quando chegou lá, viu que o lado da lâmina que correspondia ao irmão estava metade enferrujado e metade brilhante.
Isso é mau — pensou —, algo deve ter acontecido a meu irmão, mas talvez eu ainda possa salvá-lo, porque metade da lâmina está brilhante.
Saiu caminhando para oeste com os animais e, quando chegou aos portões da cidade, um sentinela veio lhe perguntar se queria que mandasse anunciar sua chegada para a jovem rainha, sua esposa, porque ela estava muito preocupada, com medo de que ele tivesse morrido na floresta encantada. É que o jovem rei e o irmão eram tão parecidos que o sentinela os confundiu, ainda mais porque o irmão também tinha aquele bando de animais selvagens que o seguiam. Ele entendeu o erro do sentinela e pensou: é melhor eu fazer de conta que sou ele, assim fica mais fácil salvá-lo.
Por isso, deixou que o sentinela o levasse ao palácio, onde foi recebido com muita alegria. Sua jovem esposa também achou que era o marido dela e perguntou porque ele tinha demorado tanto.
— Eu me perdi na floresta e não consegui achar o caminho — respondeu ele.
De noite, ele foi levado ao leito real, mas colocou uma espada de dois gumes entre ele e a jovem rainha. Ela não sabia porque, mas ficou com medo de perguntar.
E assim se passaram alguns dias, em que ele tentou descobrir tudo o que podia sobre a floresta encantada. Depois disse:
— Vou lá caçar novamente.
O rei e a jovem rainha tentaram dissuadi-lo, mas ele insistiu e partiu com um grande séquito. Quando chegou à floresta, aconteceu com ele a mesma coisa que tinha acontecido ao irmão. Viu uma corça branca e disse a seus homens:
— Fiquem aqui até eu voltar. Vou caçar essa bela corça branca.
Cavalgou para dentro da floresta, seguido pelos animais.
Mas não conseguiu alcançar a corça e acabou se embrenhando tão profundamente na mata que teve que passar a noite lá. Depois que acendeu a fogueira, ouviu alguém gemendo no alto:
— Ai, ai! Estou com tanto frio!
Ele olhou para cima, viu a bruxa na árvore e disse:
— Pois desça e venha se esquentar!
— Não — disse ela. — Seus animais iam me morder.
Ele então respondeu:
— Não se preocupe, vovó. Eles são mansos, não vão lhe fazer nada, pode descer.
Então ela disse:
— Vou quebrar uma varinha e jogar aí embaixo. Bata nas costas deles, que assim não me machucam.
Quando ouviu isso, o caçador desconfiou da velha:
— Não vou bater nos meus animais. Desça logo ou eu subo aí e pego você — disse ele.
— Não me faça rir... — respondeu a velha. — Você não pode me fazer nada.
Ele então ameaçou:
— Se você não descer, eu lhe dou um tiro.
— Pois pode dar — desafiou ela. — Não tenho medo nenhum das suas balas.
Ele mirou e atirou, mas a bruxa era à prova de balas. Ficou dando gargalhadas e gritando:
— Você não vai conseguir me acertar!
Mas o caçador era muito esperto. Arrancou três botões de prata do paletó e carregou a arma com eles, porque contra a prata não havia poder mágico. No momento em que ele puxou o gatilho, ela despencou aos berros. Ele pôs o pé em cima dela e disse:
— Sua bruxa velha, se você não me disser imediatamente onde está o meu irmão, eu lhe pego com as duas mãos e jogo você no fogo, já, já!
Ela ficou com tanto medo que pediu clemência e disse:
— Ele e os animais estão caídos naquele barranco, viraram pedra.
Ele fez a velha levá-lo até o lugar e a ameaçou:
— Sua macaca velha! Devolve a vida imediatamente a meu irmão e a todas as criaturas que estão aí, ou então vai para o fogo!
Ela pegou uma varinha e tocou as pedras. O irmão e os animais voltaram à vida. E muitos outros homens também, mercadores, artesãos, pastores. Todos se levantaram, agradeceram ao caçador por libertá-los e foram para casa. Os gêmeos se abraçaram e se beijaram, contentíssimos por se encontrarem novamente. Agarraram e amarraram a bruxa e a jogaram na fogueira. Quando ela acabou de queimar, a floresta se abriu sozinha e deu para ver o palácio real à distância, a mais ou menos quatro ou cinco milhas dali.
Os dois irmãos voltaram juntos e, pelo caminho, foram contando o que tinha acontecido com cada um. Quando o mais jovem disse que era regente de todo o país, o outro disse:
— Eu descobri, porque, quando eu cheguei ao palácio e me confundiram com você, me deram honras reais. A jovem rainha achou que eu era o marido dela, e tive que sentar ao lado dela na mesa e dormir na sua cama.
Quando o jovem rei ouviu isso, ficou tão zangado e com tanto ciúme que puxou a espada e cortou fora a cabeça do irmão. Mas quando viu que ele estava caído, morto, e viu o sangue vermelho escorrendo, ficou transtornado de tristeza.
— Meu irmão me salvou — gritava —, e foi assim que eu agradeci!
Chorou e se lamentou, mas depois sua lebre se aproximou e se ofereceu para ir buscar um pouco da raiz da vida. Saiu a toda velocidade e chegou de volta em tempo. Deu para ressuscitar o irmão morto, e ele nem percebeu a cicatriz.
Depois, continuaram andando e o irmão mais moço disse:
— Você se parece comigo, está usando roupas reais, como eu, e os animais seguem você como me seguem. Vamos entrar por dois portões opostos e aparecer ao mesmo tempo diante do velho rei, vindo de direções diversas.
Assim, eles se separaram e depois, dois sentinelas, um de cada portão, chegaram ao mesmo momento junto do velho rei para anunciar que o jovem rei e seus animais estavam voltando da caçada. O velho rei disse:
— Impossível. Os dois portões ficam longe um do outro, é uma caminhada de uma hora.
Mas nesse instante os dois irmãos entraram no pátio, vindos de duas direções opostas, e ambos subiram as escadas ao mesmo tempo. O rei disse à filha:
— Diga-me qual dos dois é seu marido. São tão iguais que não sei.
Ela não conseguia descobrir e estava muito espantada, mas depois se lembrou do colar que tinha dado aos animais. Olhou bem para eles e descobriu o fecho de ouro em um dos leões.
— O meu marido é aquele que este leão seguir — disse, toda contente.
O jovem rei riu e disse:
— É, está certo.
Sentaram-se juntos à mesa, comeram, beberam e se divertiram. Nessa noite, quando o jovem rei foi para a cama, a esposa perguntou:
— Por que foi que você botou uma espada de dois fios na cama nestas últimas noites? Pensei que você ia me matar...
Aí ele ficou sabendo como seu irmão lhe tinha sido fiel.