26/11/2010

Narasinha



A narrativa purânica diz que um demónio muito poderoso quis solicitar ao criador Brahma a bênção da imortalidade. Brahma disse que a imortalidade era algo impossível de ser obtida já que ela não faz parte da criação (todo ser criado deve ser mortal).

Por esperteza esse demónio (Hyranyakshipu) pediu a Brahma que não fosse morto por qualquer criatura jamais criada, ou por qualquer criatura nascida de uma mãe, de um pai, de um ventre, de um ovo ou gerada por qualquer outra entidade viva criada, nem de dia nem de noite, que não morresse em um canto de lugar algum, nem na terra, nem na água e nem no ar, que não fosse morto por qualquer tipo e arma, que o metal jamais perfurasse sua carne, que sempre estivesse livre de doenças provocadas por microrganismos, que sempre fosse protegido de catástrofes naturais e que o seu próprio corpo e mente não fossem jamais causa da sua morte.
Brahma foi bastante solícito em conceder-lhe todas essa bênçãos, que aos olhos de um simples mortal equivalem à imortalidade.
Hyranyakashipu tornou-se um flagelo para toda a criação, vivendo sempre em busca de prazeres mundanos, tais como ouro (hyranya) e cama farta (kashipu), rapinando a própria espécie e todas as demais.
Seu filho, o humilde Praladha, invocou o poder de Vishnu para destruir seu pai que se dizia imortal.
Vishnu se encarnou como Narasinha (entidade viva sem forma definida, mais parecida como um leão) e jocosamente cumpriu as bênçãos proferidas por Brahma: a sua forma era inusitada e jamais havia sido criada por Brahma, ele surgiu do meio de um pilar de pedra e não foi gerado por uma mãe, pai, ventre, ovo, etc., sua morte ocorreu no crepúsculo, nem de dia e nem de noite, Vishnu o matou sobre o seu joelho usando a unha para estripá-lo (sobre o joelho é o tipo de “lugar nenhum,” nem na terra, nem na água e nem no ar, e a unha não é um arma de metal) e foi assim que o demónio morreu gozando de excelente saúde!

25/11/2010

A mulher que veio do ovo

Um jovem saiu em busca de uma esposa, pois não gostava de nenhuma das donzelas de sua aldeia. A mãe disse que ele procurasse em outro lugar, mas certamente a fome o traria de volta, ou a sede.
Enquanto o rapaz atravessava a floresta, seu estômago logo deu sinal de fome e sua garganta ficou seca. Ele viu um ninho no alto de uma árvore e subiu até lá, em busca de ovos para comer. Encontrou três ovos e, quando estava de volta ao chão, quebrou-se um dos ovos. Para sua surpresa , uma linda donzela surgiu à sua frente.
-Dê-me água, disse ela, e eu serei sua, assim como você será meu!
O rapaz não tinha água, e a moça desapareceu. Ele quebrou o segundo ovo e surgiu outra donzela ainda mais bonita que também lhe pediu água.
- Dê-me água, disse ela, e serei sua, assim como você será meu!
Antes que ele conseguisse arranjar água, ela desapareceu. Ele, mais experiente, procurou onde arranjar água antes de abrir o terceiro ovo. Encontrou um poço, encheu uma taça com água e então, quebrou o ovo que faltava. Apareceu uma donzela deslumbrante, vestida com uma túnica dourada e, no mesmo instante ele se apaixonou por ela. Ela disse:
- Dê-me água, e eu serei sua, assim como você será meu!
Ele ofereceu a taça com a água que apanhara no poço, e ela bebeu dizendo: Agora eu sou sua e você é meu!
O rapaz desejava imensamente que a donzela voltasse com ele para casa, então lhe disse: - Se você esperar por mim aqui, junto deste poço, buscarei uma carruagem para levá-la até minha casa. Ela concordou e ficou esperando perto do poço. Logo em seguida, uma bruxa, aproximou-se dela acompanhada de sua horrível filha e lhe perguntou: - Por que você está aqui tão só?
A donzela respondeu: -Estou esperando por quem será meu marido, ele foi buscar uma carruagem para me levar até sua casa.
A bruxa pensou: “Isso é o que você pensa!” Agarrou a jovem, tirou-lhe as roupas e gritou: - Será a minha filha que será a mulher que o rapaz levará para casa, e não você!
A jovem saltou para dentro do poço, empurrada pela bruxa e, tornou-se um peixe, nadando até sumir.
Pouco depois, chegou o rapaz com a carruagem. Quando viu aquela mulher horrível, recuou e perguntou: - O que aconteceu com você? Você era tão linda quando te deixei aqui!
- Infelizmente, falou ela, você me deixou exposta ao sol e eu fiquei assim, preta. Mas, se você me levar para sua casa , tomarei banho e voltarei a ser linda novamente. Ele concordou e foram para a casa dele, mas quando a mãe dele viu a mulher, exclamou: - Sua noiva é uma impostora!
A filha da bruxa, banhou-se, mas não mudou em nada. O rapaz cumpriu o que prometera e casou-se com ela, mesmo ela sendo horrível.
No dia do casamento, ela deitou-se na cama e disse: - Só uma coisa pode devolver-me a beleza, comer um peixe mágico, que vive dentro do poço, onde eu te esperei. Se eu comê-lo, volto a ser o que era.
O rapaz, no dia seguinte, mandou esvaziar o poço, e capturou o único peixe que ali existia. Trouxe-o para casa, e sua esposa comeu-o todo com imenso prazer, jogando as espinhas no quintal, porém continuou feia como antes.
No dia seguinte, um pato surgiu vindo da casa da vizinha, que era uma velha que trabalhava na casa do rapaz, e comeu todas as espinhas. Em poucos dias, o pato começou a ter penas douradas. A velha ficou muito admirada e arrancou algumas colocando-as numa vasilha.
Dias depois, a velha foi à Igreja e quando voltou, se surpreendeu porque seu jantar sumira. Alguém comera, pensou ela. Isso aconteceu durante três dias seguidos. Mas no terceiro dia, a velha voltou do meio do caminho, e espiou pelo buraco da porta e viu uma linda jovem de cabelos dourados, sair de dentro da vasilha de penas douradas e comer sua comida. A velha correu para dentro de casa e tocou na moça, o que a libertou. Daí em diante, as duas viveram juntas. Toda a manhã, a velha ia trabalhar na casa do rapaz. Certo dia, a moça perguntou à velha: - Deixe-me ir no seu lugar hoje, para trabalhar para o vizinho? A velha disse que não, porque o rapaz se a visse desejaria ficar com ela.
Bem, disse a moça, usarei roupas bem velhas e sujas, ele nem me olhará duas vezes. Assim fez, feito maltrapilha, foi para casa do rapaz.
Quando entrou, ele olhou-a rapidamente, mas olhou uma segunda vez e a reconheceu. Pediu então, às mulheres que contassem uma história para passar o tempo. Sua mãe contou uma história, após ela a feia, mas quando chegou a vez da maltrapilha, ela disse: - Não tenho história para contar, só um sonho.
Serve, disse o rapaz.
Ela começou a contar o sonho. Certa vez, sonhei com um rapaz que não gostava de nenhuma moça de sua aldeia. Ele foi embora em busca de uma esposa. No caminho, encontrou um ninho com três ovos de ave. Quando quebrou o primeiro a donzela que surgiu de dentro dele pediu água... Nisso a feia começou a andar de um lado para o outro. Voltou-se para o marido e perguntou: - Por que você não vai desconsar um pouco?
Não, disse ele, quero escutar a história dela, insistiu o rapaz, e, assim, a moça descreveu tudo que acontecera com ela, mas não sabia como o sonho acabara , porque acordara quando o rapaz fora buscar a carruagem.
Tente lembrar-se, insistiu o rapaz, mas ela só lembrava da bruxa e de sua filha horrível. Quando o rapaz ouviu isso, agarrou a sua mulher e trancou-a no quarto. Foi depois até a casa da bruxa e perguntou:- O que você acha de uma pessoa que rouba a esposa de um homem, tenta matá-la e a substitui por uma medonha?
A bruxa respondeu: - Ora, essa pessoa devia ser trancada num barril cheio de pregos e jogada do alto da maior montanha que existir e também a falsa esposa.
Foi exactamente o que o rapaz fez. Jogou mãe e filha pela montanha abaixo e casou-se com a donzela que veio do ovo e viveram felizes!!!

Conto da Alemanha

24/11/2010

Odin na Côrte do Rei Geirrod



Havia, outrora, dois irmãos, filhos do rei Hrauding. O mais velho chamava-se Agnar e tinha dez anos de idade, enquanto o outro tinha oito anos e se chamava Geirrod. Certa feita, ambos haviam saído para pescar, com a autorização do pai, mas como o vento estivesse muito forte, acabaram por se perder e sua embarcação foi parar numa distante ilha.
- E agora, Agnar? - disse o frágil Geirrod, tentando manter a embarcação acima das águas junto com o irmão.
Mas todos os seus esforços resultaram inúteis: depois de dois ou três arremessos mais violentos, a frágil embarcação desfez-se nos penedos que recortavam a ilha. Agnar e Geirrod puderam dar-se por muito felizes por ter escapado com vida do terrível naufrágio.
Nem bem chegaram às areias da praia, mais mortos do que vivos, foram recolhidos por um pescador e sua mulher. Como o inverno recém tivesse começado - e fosse, consequentemente, época de muitos temporais, o que lhes impossibilitava o retorno à sua pátria -, Agnar e Geirrod viram-se obrigados a permanecer na ilha na companhia do casal.
O pescador e sua mulher mostraram-se muito amáveis com os dois jovens, mas, desde logo, ficou claro que ele tinha uma especial predileção por Geirrod, enquanto ela não disfarçava uma maior afeição por Agnar. Embora isto, viveram Iodos em paz e harmonia durante todo o período em que permaneceram na ilha até que a primavera deu os seus primeiros sinais.
- Agnar, meu irmão - disse o caçula Geirrod -, acho que chegou a época de voltar para a casa de nosso pai.
- Estou de acordo - respondeu o outro. - Vamos pedir aos nossos protetores que nos ajudem a construir uma nova embarcação.
E assim se fez. O pescador e sua esposa não se furtaram a ajudá-los, embora sentissem um aperto no coração por ter que se separar, tão cedo, daqueles dois jovens, que já lhes pareciam, de certa maneira, seus próprios filhos.
Agnar e Geirrod partiram, afinal, num belo dia de sol. Antes de embarcar, foram se despedir dos seus benfeitores e o pescador aproveitou para murmurar algo ao ouvido de Geirrod. Uma vez embarcados, tomaram com segurança o rumo de casa, enquanto que Odin e Frigga - pois não eram outros o pescador e sua mulher, senão, as duas principais divindades nórdicas, que ali estavam a passeio - começaram a debater entre si sobre qual dos irmãos seria o mais justo e correto.
- Não resta a menor dúvida que Agnar tem o coração mais puro - disse Frigga, convicta de suas palavras. - Somente a sua obtusa teimosia poderia levá-lo a pensar o contrário.
- Asneiras! - disse Odin, abanando a cabeça com desdém. - Qualquer idiota pode ver, perfeitamente, que o jovem Geirrod é, infinitamente, melhor que o irmão.
E a esta discussão entregaram-se com tanto gosto, que, em breve, já estavam a um passo de se engalfinhar. Odin decidiu, então, retornar para Asgard antes que o tempo fechasse de uma vez.
Mas lá foi pior, pois Frigga, que se julgava uma deusa muito virtuosa - e por isto mesmo muito rabugenta - retomou a discussão no ponto em que parará.
- Agnar é que é o tal! - corneteava ela o dia inteiro no ouvido do marido, que se fazia de desentendido. - Geirrod não é de nada! Viva Agnar! Viva Agnar!
Não restava dúvida alguma de que ela queria uma boa briga: em casa, no conforto do lar, enxergando todos os seus objetos e conhecendo o ambiente com a palma da mão, Frigga estava em seu território. Odin não tardou a perder a paciência e saiu em defesa de Geirrod e nesta chateação ficaram os dois por muito tempo, atazanando a paciência dos demais deuses com os gritos da luta conjugai.
Enquanto isto, em alto-mar, e já perto da costa onde ficava seu reino, os dois irmãos não viam a hora de desembarcar.
- Finalmente, caro Geirrod, estamos quase em casa! - gritava Agnar, sem conter a euforia.
Geirrod, no entanto, tinha o olhar voltado para a praia. Seus olhos vasculhavam a costa inteira para se certificar de que ninguém os enxergava.
- O que houve? - disse Agnar, intrigado com o mutismo do irmão.
- Nada, nada... - disse o outro, procurando disfarçar. - Estou tentando avistar algum conhecido na beira da praia.
O barco aproximou-se da costa. Geirrod pediu, então, que Agnar fosse buscar algo no fundo da embarcação e, tão logo este lhe deu as costas, golpeou-o com um pesado bastão.
- Pronto, agora fique quietinho aí!... - disse ele, com um sorriso perverso.
Tomando do remo, ele aproximou a embarcação da praia, desembarcou num pulo e devolveu às águas o barco, o qual, engolfado rapidamente numa corrente marinha, foi levado para bem longe do reino. Geirrod tinha certeza que o irmão pereceria de fome e sede antes de chegar a qualquer lugar habitado.
- Adeus, importuno! - disse Geirrod, abanando para a embarcação. - A partir de agora, o herdeiro da coroa passa a ser eu!
Geirrod apresentou-se no mesmo dia diante do pai, o velho e quase decrépito rei Hrauding, e lhe contou a história à sua maneira, repetindo-a tal como ocorrera, mudando apenas o final.
- Oh, papai...! - disse ele, engasgando fingidamente. - Não sei como lhe diga...! O seu adorado Agnar morreu em alto-mar e nossos olhos nunca mais o avistarão!
O adorado Agnar, entretanto, fora parar muitos dias depois, com as roupas em tiras e virado em um esqueleto semi-morto, numa ilha habitada por gigantes, onde ficaria ainda por muitos anos até se restabelecer da ferida provocada pelo traiçoeiro golpe, bem como das sequelas da inanição.
Mas tudo isto deveria servir, pelo menos, para resolver, de uma vez, a pendenga em Asgard: o canalha era mesmo Geirrod.

***

Infelizmente, não serviu: a partir daí mesmo é que a discussão pegou fogo na morada dos deuses. Odin, sem querer dar o braço a torcer - mesmo após o ato abominável perpetrado pelo seu favorito -, teimava, como um pai cego pelo amor, em declarar o perverso Geirrod melhor que o irmão Frigga, a seu turno, possuída pela ira e repleta de argumentos, investia contra o esposo como uma valquíria enfurecida.
- Vai teimar ainda, depois de tudo o que seu queridinho fez? - disse ela, com as mãos na cintura. - Então, ficou cego dos dois olhos de uma vez...!
- Geirrod é que é o tal - só dizia o deus, sem encontrar outro argumento.
Os anos passaram e Odin resolveu recorrer ao deboche, uma vez que Frigga não cessava de tripudiá-lo. Um dia, então, estando sentado em seu trono mágico, de onde podia avistar tudo o que se passava em qualquer parte do universo, chamou sua irritante esposa.
- Está vendo os dois? - disse ele, com uma indisfarçada nota de presunção na voz. - Geirrod é, hoje, um rei em seu país; já seu protegido não passa do afilhadinho efeminado de uma giganta qualquer numa ilha perdida no fim do mundo!
Não adiantava Frigga retorquir que Geirrod era um patife e que adquirira sua posição à custa de um odioso crime: ela bem sabia que um passado vil se dilui, facilmente, diante de um presente magnífico. Geirrod era agora um rei inconteste, sólido em seu trono, tal como Odin no seu - e, para a ralé mundana, era isto o que contava.
Então Frigga, cuja virtude neurastênica a tornava extremamente hábil na invenção de tormentos e castigos, decidiu fazer com que seu obtuso esposo provasse um pouco da perversidade de seu protegido. "Infelizmente, somente desta maneira dolorosa meu pobre esposo chegará a reconhecer a verdade...!", pensou Frigga, sentindo-se tão nobre e piedosa que chegou a converter a pena fingida que sentia por seu marido numa pena sincera por si mesma.
- Seu queridinho é tão mesquinho e egoísta - disse Frigga - que tem o péssimo hábito de torturar os próprios hóspedes, desde que não lhe caiam no agrado!
Odin enfureceu-se de verdade desta vez.
- Oh, mulher vil e caluniosa...! - disse Odin, expelindo, involuntariamente, alguns perdigotos divinos pela boca. - De onde tirou tal disparate?
- Todos sabem disto naquela corte infame! - retrucou Frigga, triunfante. - Só você, o grande patusco, é que desconhece o fato!
Odin fez, então, o que sua esposa já esperava que fizesse: prontificou-se a ir até a corte do seu protegido para provar que aquilo era uma calúnia baixa.
- Desta vez, você desceu demais e eu vou lhe provar isto!... - disse o deus, erguendo-se num ímpeto e indo logo buscar na estrebaria o seu magnífico cavalo, Sleipnir - aquele de oito patas, que era o mais veloz do universo e tudo o mais.
- Espere, leve, ao menos, um agasalho para não apanhar um resfriado na viagem - disse Frigga, demonstrando um súbito resquício de afecto, que chegou a embaraçar, por alguns instantes, o seu irado esposo. Enquanto Frigga esteve ausente - um bom tempo -, Odin chegou mesmo a sentir por ela um resquício de ternura.
"Ora, gostei disto...!", pensou ele, com uma certa humidade no olhar. "Ela ainda preocupa-se comigo, afinal!" E chegou a dar graças a si mesmo por não lê-la chamado de Frigga frígida, ofensa medonha que só usava em último caso, por saber que nada a deixava mais enlouquecida.
Dali a muito tempo, ela retornou com a pele de urso predilecta de Odin, dizendo:
- Pronto, vá lá e veja você mesmo com quem está lidando!

***

Odin chegou à noite à corte de Geirrod, incógnito, sob o nome falso de (irimnir.
- Deixem-me passar, lacaios! - disse ele, ao chegar ao portão do palácio tio novo rei, pois não fazia muito tempo que o velho havia morrido e o tratante assumido o seu lugar.
O que ele não sabia, no entanto, é que Frigga havia ordenado a um de seus mensageiros que fosse na frente levar um recado ao perverso rei (daí a demora em lhe trazer a pele de urso). Este recado dizia simplesmente:

"Magnífico rei: um canalha e traidor da pior espécie, que atende pelo nome de Grimnir, aproxima-se de sua morada para lhe trazer a desgraça e o infortúnio; se ainda quiser ter o pescoço em cima dos ombros no alvorecer do próximo dia, trate logo de aprisioná-lo e metêlo nos tormentos, assim que ele ousar pôr os pés no mesmo chão que seus divinos pés abençoam. "
Ass.: "Uma Amiga."

Odin foi recebido de maneira um tanto desleixada pelo rei, o qual estava mais deitado do que sentado em seu trono ordinário (pois aquele reino era, na verdade, bem miserável, comparado a outras cortes, infinitamente, mais ricas e brilhantes).
Um serviçal vil e careca, que parecia se regozijar, imensamente, com sua subalternidade, acabara de ler ao tirano o conteúdo do bilhete. As palavras sussurradas pelo verme calvo pareciam ter-lhe deliciado ao extremo, pois, logo em seguida, as duas tiras secas dos seus lábios se arreganharam num sorriso torpe.
- Ah! É você, então, o ilustre estrangeiro! - disse ele, escorregando mais um pouco no seu troninho de pau, pintado com uma casquinha de ouro tão fina que a unha poderia descascá-la.
Odin olhou para o alto, pois sabia que de algum lugar sua esposa o observava.
"Ilustre estrangeiro...!", pensou ele, com a vitória na mão. "Aí está, linguaruda", acrescentou, esquecendo o fiapo de ternura e assumindo, outra vez, a postura cruel do vencedor.
O estrondo de um escudo que caíra ao se desprender de uma das paredes encardidas, entretanto, atroou todo o recinto, dissolvendo o seu pequenino triunfo.
- Oh, o escudo magnífico de meu bisavô! - exclamou Geirrod, irado. -Quem foi o imbecil que o deixou cair?
Fora o Tempo, o imbecil que deixara o velho escudo cair, mas já outro imbecil - o lacaio da cabeça pelada - arremessara-se a ele sem perder um segundo.
- Aqui está, realíssima alteza!... - disse o serviçal, cuja careca estava es-carlate pela expectativa de uma recompensazinha.
- Idiota! - exclamou o tirano. - Deixou que ele amassasse!
De fato, o escudo maravilhoso - o melhor e mais rico objeto do palácio inteiro - depois da queda, virará uma bacia velha e amassada. Na verdade, o metal do qual fora feito era tão ordinário que o ferrão de uma abelha poderia atravessá-lo de lado a lado.
Mas logo as atenções estavam voltadas, novamente, para o visitante.
- O seu nome...! - disse Geirrod a Odin, com secura na voz. - As coisas começavam a dar para trás e isto era o bastante para ele mandar às favas o verniz que recobria, mal e porcamente, a sua péssima educação.
- Grimnir é meu nome! - disse Odin, com altivez.
- Levem-no imediatamente! - bradou o rei. - E já sabem para onde!
Por que Geirrod usara daquele tom?, pensava Odin, desconfiando um pouco da fidalguia do seu anfitrião. Mas, quando os guardas agarraram-no pelos braços e o levaram de arrasto para dentro do palácio, Odin ficou mais branco que um coelho enterrado na neve. O deus foi lançado na mais fétida das masmorras, e ali esteve trancafiado a noite inteira até que, ao alvorecer, dois guardas vieram e o levaram, coberto de algemas e correntes até a presença do rei.
Quando chegou ao salão, viu que havia duas fogueiras armadas.
- Coloquem-no entre as duas fogueiras! - disse o rei, que estava com uma perna por cima da guarda do trono, como quem estivesse prestes a assistir a um espetáculo muito divertido. - Agora você ficará aí nos próximos oito dias, até confessar quais são seus nefandos propósitos!
Odin estava envolto num manto escuro de propriedades mágicas e, graças a ele, pôde suportar os primeiros dias daquela bárbara prova, o que lhe deu ânimo para inventar desculpas para o comportamento monstruoso de seu anfitrião.
- Afinal, está um frio dos diabos, mesmo!... - disse, mais para que sua esposa Frigga escutasse do que para si mesmo.
Mas, no quarto dia o suplício tornou-se a tal ponto insuportável que Odin teve de admitir, finalmente, que estava diante de um tremendo canalha.
- Muito bem, Frigga, você venceu! - exclamava ele, em meio às labaredas.
O manto de Odin tinha esquentado tanto que já aderira à sua pele, causando-lhe indizíveis dores. No oitavo dia, entretanto, o filho de Geirrod - que linha o mesmo nome de seu infeliz tio, Agnar, e também o seu bom coração - sentiu pena do hóspede maltratado e lhe levou um chifre repleto de hidromel.
Um pouco refeito dos seus padecimentos, Odin chegou à conclusão dique já era hora de acabar com sua teimosia.
- Muito bem, tirano maldito! - disse o deus, liberte-me já! Caso contrário será punido com a morte!
- Enlouqueceu de vez! - disse o rei, ainda mais deliciado.
Então Odin começou a entoar as suas runas mágicas e as cadeias foram caindo uma a uma a seus pés, ao mesmo tempo em que as duas fogueiras se extinguiam diante dos olhos do rei.
Liberto, o deus supremo pôs-se em pé, pronto para a desforra. Geirrod, aterrado, ergueu-se lambem, mas ao ver que seu inimigo avançava sobre ele, tomou de sua espada. Porém, ao descer de seu trono mambembe, meteu o pé num furo do tapete vermelho e caiu de cara na ponta da espada, morrendo no mesmo instante.
Agnar, o filho de Geirrod, sucedeu ao pai no trono e a primeira medida que tomou foi mandar trazer do exílio o seu tio, de modo que ambos viveram felizes para sempre naquele pobre, porém, decente reino.

23/11/2010

A baba do passarinho

Há tempos atrás, num país longe daqui, existia um rei muito sábio e bondoso. Seus súbditos o amavam e respeitavam, pois no reino todos viviam felizes.
Um dia, porém, correu pelo país uma no­tícia muito triste: o rei estava doente, vítima de um mal terrível que o deixara cego dos dois olhos. E os médicos da corte, por mais que se esforçassem, nada conseguiram fa­zer para curá-lo. Vieram também outros ­dicos, de todos os cantos do mundo, mas ne­nhum deles, nem mesmo o mais sábio de to­dos, conseguiu encontrar a cura para a es­tranha doença do rei.
O reino inteiro mergulhou, então, numa profunda tristeza. O pobre rei, achando que só um milagre poderia salvá-lo, passou a fi­car horas e horas rezando, pedindo a Deus que o fizesse voltar a enxergar.
Até que uma noite, enquanto rezava, o rei ouviu uma voz suave, que lhe disse:
"Longe, muito longe, no lugar onde o seu reino termina, há uma fada, presa num cas­telo de ferro e guardada por um feroz dragão. Na sala ao lado de onde ela fica trancada, também está prisioneiro um passarinho, nu­ma gaiola de diamantes. Esta ave é encan­tada e, quando canta, deixa escorrer pelo bico uma baba muito fina e perfumada.
Se alguém juntar essa baba e passá-la por três vezes nos olhos de um cego, ele voltará a enxergar imediatamente.
Para se apoderar do pássaro encantado, é preciso antes libertar a fada do encanta­mento. E o ousado jovem que realizar esse feito terá como recompensa a mão da fada em casamento, ela que é na verdade uma princesa muito rica e poderosa."
Depois de dizer isso, a voz se calou tão misteriosamente quanto havia surgido. E o rei não conseguiu dormir o resto da noite, tamanha era sua ansiedade.
No dia seguinte, mal o sol nasceu, man­dou anunciar a todo o povo a revelação que lhe havia sido feita. Os jovens corajosos do reino foram convocados para saírem em bus­ca do castelo de ferro e do prémio destinado a quem desencantasse a fada e o passarinho.

Não faltaram pretendentes para a em­preitada, e logo todos os jovens do país come­çaram a se preparar para a viagem.

Em frente ao palácio real morava um viúvo que tinha três filhos. O mais moço dos três, que se chamava Lúcio, era uma cria­tura muito bondosa. Os dois mais velhos eram maus e invejosos e viviam fazendo de tudo para humilhar e aborrecer o irmão. Logo que ficaram sabendo da convocação do rei, os dois iniciaram os preparativos para a viagem. E, quando Lúcio veio dizer-lhes que pretendia ir também, os dois ficaram furio­sos e disseram:
— Seu tolo! Você pensa que uma aventura como essa é coisa para crianças? Vamos enfrentar muitos perigos pelo caminho, e um boboca como você só iria nos dar tra­balho!
Lúcio, porém, era persistente. E insistiu tanto que o pai obrigou os irmãos a levarem-no. Os dois malvados, entretanto, assim que saíram de casa, já combinaram um jeito de se livrarem do irmão. E, na primeira noite que passaram na mata, esperaram que Lúcio dormisse profundamente para lhe roubarem todo o dinheiro. Depois partiram em silên­cio, deixando-lhe apenas o cavalo e um pouco de comida.
Na manhã seguinte, ao acordar e ver que tinha sido roubado e abandonado pelos ir­mãos, Lúcio ficou muito triste. Mas, como era um rapaz corajoso e decidido, resolveu não voltar para casa e tentar encontrar sozi­nho o castelo de ferro.
Seguiu cavalgando sem saber bem para onde, até chegar à margem de um rio, onde viu sentado um velho muito pobre, quase mor­to de fome e com o corpo cheio de feridas.
Lúcio, que tinha bom coração, teve pena do velho. Desceu do cavalo e, depois de divi­dir com o pobre homem a pouca comida que ainda possuía, lavou-o e tratou de suas feri­das. Além disso, tirou da sacola a única mu­da de roupa que trazia e entregou-a ao velho.
— Muito obrigado, meu bom rapaz! — disse o homem, olhando-o agradecido. — Seu coração é muito bom e você vai ser recompen­sado. Sei que deixou a cidade em busca do pássaro encantado, para curar o rei. Essa é uma tarefa muito difícil e perigosa, mas eu vou ajudá-lo. Seus irmãos passaram por mim antes de você, e não quiseram me socorrer. Eles são muito maus e, por isso, jamais con­seguirão encontrar o castelo de ferro!
— Mas quem é o senhor, meu bom velho? — perguntou Lúcio, admirado.
— Sou o protetor dos bons, meu filho. E agora vou guiá-lo, para que você seja feliz. Ouça com atenção: perto daqui há uma fa­zenda, onde você deve dormir esta noite. Como está sem dinheiro, logo que chegar venda o seu cavalo, pois ele de nada vai lhe servir. Com parte do dinheiro, compre o cavalo mais magro, velho e doente que en­contrar na fazenda. Escolha mesmo o pior de todos, aquele que já estiver cercado pelos urubus. Não se importe com comentários. Monte nele e saia. Assim que deixar a fa­zenda, ele se transformará num animal forte e bonito, que, em vez de correr, voa velozmen­te. Ele o levará ao castelo de ferro. Logo na entrada do castelo, você vai encontrar o dra­gão alado, que mantém prisioneiros a fada e o passarinho. A chave do castelo fica es­condida na garganta desse monstro e, para consegui-la, você precisa esperar que ele es­teja dormindo. Mas o dragão, para enga­nar quem se aproxima do castelo, dorme com os olhos abertos. Por isso, se, quando você chegar, ele estiver com os olhos fecha­dos, não se aproxime, pois ele estará acor­dado! Ao contrário, se seus olhos estiverem escancarados, tire a chave da garganta dele sem medo e abra a porta do castelo. Logo na primeira sala, vai encontrar a fada, que você desencantará, tirando a chave de ouro que ela carrega no pescoço. Esta chave abre a sala seguinte, onde está preso o passarinho. Mas tome muito cuidado: não deixe que a beleza da fada o seduza, porque senão você não conseguirá fazer nada e ainda cairá prisioneiro do monstro. E não se preocupe com a fada, porque ela, depois de desencan­tada, não correrá mais perigo. Preocupe-se apenas em fugir dali com o pássaro o mais rápido possível. Pois o dragão logo acorda­ para sair em sua perseguição. Fuja mon­tado no cavalo alado e, quando o monstro es­tiver quase para alcançá-lo, desmonte e, com esta espada que lhe entrego, abra a barriga do cavalo e se esconda com o passarinho lá dentro, gritando: "A mim, bom velho!". De­pois que o dragão for embora, saia da bar­riga do cavalo e costure-a com esta agulha e esta linha que estou lhe dando, e verá que ele voltará a viver e a voar tão bem quanto antes. O monstro voltará a persegui-lo e, quando ele estiver bem perto de você, grite de novo por mim e lance ao ar este punhado de alfinetes; mais adiante, este punhado de cinzas e, depois, este monte de sal, sempre chamando por mim. De volta à fazenda, venda o cavalo, porque não vai precisar mais dele. Com o dinheiro, compre de novo o seu e, sem perder tempo, volte depressa ao reino. E não pare por nada no mundo, enquanto não receber as bênçãos de seu pai, que está muito preocupado com você.
Lúcio beijou as mãos do velho e agrade­ceu-lhe. Guardou bem a espada, a agulha, a linha, os alfinetes, as cinzas, o sal e seguiu viagem.
Chegou à fazenda ao anoitecer, cansado e faminto. Vendeu o cavalo e usou parte do dinheiro para pagar a hospedagem. Com o que sobrou, comprou, no dia seguinte, o ca­valo mais velho e fraco que havia no lugar. Era um animal tão magro e acabado, que o próprio Lúcio chegou a duvidar das palavras do velho. Até o dono da fazenda não queria acreditar que alguém quisesse mesmo comprar um animal em tal estado.
Mas Lúcio não se arrependeu de seguir fielmente as recomendações do bom velho, pois, assim que saiu da fazenda montado no cavalo, ele começou a engordar e a correr. Dali a pouco, criou asas e, logo em seguida, Lúcio saía voando numa rapidez incrível.

No fim de algumas horas de viagem, che­gou ao castelo de ferro. Bem na entrada, en­xergou o dragão, que por sorte estava com os olhos arregalados e portanto dormia. A boca enorme do monstro estava escancara­da; por isso não foi difícil tirar a chave de dentro da garganta e com ela abrir a porta do castelo.

Logo na primeira sala, Lúcio encontrou a fada. Ela era mesmo lindíssima e a sua beleza seduziu tanto o jovem, que ele ficou ali parado, sem conseguir despregar os olhos daquele belo rosto. Mas o cavalo alado, per­cebendo o perigo, bateu três vezes com a pata no chão para avisar a Lúcio do perigo que corria. Lembrando-se imediatamente das pa­lavras do velho, ele tirou logo a chave de ouro do pescoço da fada, que se desencantou, voltando a ser uma princesa. Lúcio nem olhou para trás. Correu até a sala seguinte, tirou dali a gaiola de diamantes com o passa­rinho encantado e mal teve tempo de montar no cavalo e sair voando. O dragão acordou e imediatamente se deu conta do que tinha acontecido e, mais rápido do que o vento, saiu no encalço de Lúcio.
Seguindo as recomendações do velho, ele esperou que o dragão chegasse bem perto para desmontar. Depois, abriu a barriga do cavalo com a espada que o velho tinha dado e se escondeu lá dentro junto com a gaiola do passarinho, gritando:
— A mim, bom velho!
O monstro, desnorteado, parou. Farejou em volta do cavalo e, vendo-o morto, pensou que havia perdido a pista dos fugitivos. De­sesperado, saiu voando ao léu, à procura de nova pista.
Lúcio saiu então da barriga do cavalo, costurou-a com a agulha e a linha que trazia e imediatamente o animal se recuperou e se­guiram viagem voando a toda velocidade.
Mas não demorou para que o monstro reaparecesse, mais rápido e mais furioso ainda, voando perto deles. Já quase alcan­çava o cavalo, quando Lúcio jogou para o ar o punhado de alfinetes, gritando:
— A mim, bom velho!
E viu, maravilhado, os alfinetes se trans­formarem num espinheiro enorme e tão fe­chado que o dragão ficou preso, levando um bom tempo para conseguir se soltar.
Lúcio aproveitou esse tempo para tomar fôlego e tentar ganhar distância de seu perse­guidor. Mas o dragão era mesmo muito ve­loz, pois logo os alcançava de novo. Quando já estava quase por apanhá-los, Lúcio atirou o punhado de cinzas para o ar e gritou:
— A mim, bom velho!
E as cinzas se transformaram, como por milagre, numa neblina tão forte que o dragão não conseguia enxergar, ficando desnorteado. Só com muita dificuldade foi que conse­guiu passar e recomeçar a perseguição ao cavalo alado, que já ia longe.
Logo depois, entretanto, lá estava ele de novo tentando alcançá-los. Lúcio, então, pe­gou a última coisa que lhe restava, o punha­do de sal, e o atirou ao ar, rezando para que isso o livrasse de uma vez do terrível mons­tro. Enquanto o sal caía, gritou, como sem­pre:
— A mim, bom velho!
E, olhando para trás, viu surgir um ocea­no imenso, que engoliu o dragão com suas ondas gigantescas. O monstro ainda tentou escapar, mas, como suas asas estavam mo­lhadas, não conseguiu. Ficou se debatendo nas águas furiosamente, até desaparecer no fundo do mar.
Lúcio suspirou aliviado, e, seguindo as recomendações do velho, não parou um ins­tante. Seguiu voando, o mais rápido que po­dia, em direção à fazenda. Lá chegando, não perdeu tempo: vendeu o cavalo, que agora já não tinha asas, mas que continuava forte e muito bonito, e com o dinheiro comprou o seu de volta. E partiu, levando a gaiola com o passarinho.
Já ia bem longe, em direção à casa do pai, quando viu dois homens cavalgando. Reconheceu neles seus irmãos e, esquecendo-se das palavras do seu protetor, parou para encontrá-los.
Os dois malvados estavam cansados e famintos, pois haviam viajado horas seguidas, sem nada encontrar. Ao verem Lúcio, fin­giram ficar felizes com o encontro, mas a ver­dade era bem outra. Eles não se agüentavam de inveja e ciúme por Lúcio ter conseguido encontrar o pássaro encantado. Arrancaram-lhe, então, a gaiola das mãos e depois, para que ele não os denunciasse, bateram-lhe mui­to e lhe furaram os olhos, deixando-o quase morto na beira da estrada.
Ao chegarem em casa, mentiram ao pai, dizendo que Lúcio havia morrido no castelo de ferro. E, sem se preocuparem com a tris­teza do velho, tiraram o passarinho da gaiola de diamantes para levá-lo ao palácio do rei.
A corte inteira recebeu os dois mentirosos com todas as honras, e o rei, cheio de espe­rança, ordenou que levassem o passarinho para perto de seu trono.
Na sala real, todos aguardaram em si­lêncio absoluto que a ave encantada come­çasse a cantar. Mas, para decepção do rei e dos membros da corte, o passarinho não só ficou mudo, como se recolheu a um cantinho da nova gaiola que lhe deram, cada vez mais triste e recusando tudo que lhe ofereciam para comer.
O rei, desesperado, vendo que o passari­nho se recusava a cantar, achou que a voz que ouvira naquela noite não era mais que uma zombaria que lhe haviam feito. E, muito triste, deixou-se ficar sentado no trono, sem ânimo para nada.
Enquanto isso, ainda na beira da estrada, Lúcio chorava de dor e de mágoa pelo que os irmãos lhe haviam feito. Não conseguia en­tender o porquê de tanta maldade e, chorando amargamente, esperava que a morte o levasse, livrando-o de tanto sofrimento. De repente, lembrou-se mais uma vez do seu velho protetor e de como ele havia prometido sempre ajudá-lo. Assim, juntou as últi­mas forças que lhe restavam e gritou o mais alto que pôde:
— A mim, bom velho!
No mesmo instante, ouviu passos ao seu lado. E, com o coração cheio de alegria, ou­viu a voz do velho dizer:
— Meu filho, eu lhe disse que andava pelo mundo escolhendo os bons, para protegê-los. Você me socorreu quando eu precisava de ajuda; por isso, estou aqui para ajudá-lo também.
E, depois de dizer isso, levou Lúcio para um rio perto dali, curou-lhe as feridas e disse:
— Não fique triste por estar cego, por­ que você logo voltará a enxergar. O passa­rinho está ao lado do rei, mas não cantará enquanto seu verdadeiro salvador não che­gar ao palácio. Eu levarei você até lá.
E, tomando a mão de Lúcio, o velho o conduziu até o palácio. Na sala real, o rei continuava sentado no trono, sem nenhuma esperança de se ver curado da sua doença. Entretanto, assim que o rapaz entrou na sala, o passarinho encantado recuperou-se e saiu voando em sua direcção. E no palácio inteiro reinou o mais profundo silêncio, enquanto ele cantava maravilhosamente, pousado na mão do seu salvador.
O velho recolheu, então, a baba encanta­da que escorria do bico da ave e passou-a por três vezes nos olhos do rei e de Lúcio, que voltaram imediatamente a enxergar. Pelo reino inteiro espalhou-se uma enorme alegria e o rei, completamente curado, encarregou seus ministros de prepararem a maior festa que o reino já havia tido até então.
Na madrugada seguinte, quando o povo todo se preparava para iniciar os festejos, surgiu na cidade, sem que ninguém soubesse explicar como, um magnífico palácio. De sua entrada partiam três luxuosas estradas: uma forrada de ouro, outra de prata e outra de veludo.
O povo inteiro, tendo o rei à frente, olhava pasmado para o palácio, quando de repente viram sair dele uma carruagem belíssima, toda feita de ouro e cravejada de brilhantes, puxada por seis cavalos brancos. Dentro dela vinha a princesa, ricamente vestida e mais linda do que nunca.
Todos a saudaram com muita alegria e o rei foi recebê-la pessoalmente, dando-lhe as boas-vindas.
— Estou aqui — disse ela — para me casar com o jovem corajoso que libertou a mim e ao passarinho encantado daquele dragão terrível!
O rei lhe respondeu que teria muito pra­zer em realizar aquele casamento, mas como saber a quem cabia o prêmio, se três jovens tinham aparecido para reclamá-lo?
— Só um foi o meu salvador — disse a princesa. — E, para saber qual deles diz a verdade, mande buscá-los, um de cada vez, em minha carruagem, e diga-lhes para escolherem uma das três estradas para chegar ao meu palácio. O mais humilde deles esco­lherá a estrada mais pobre, e esse será sau­dado pelo passarinho, que o reconhecerá.
Assim fez o rei. Mandou buscar o irmão mais velho de Lúcio, ordenando-lhe que indi­casse a estrada que levava ao palácio encan­tado. Quando chegou no lugar onde começa­vam as três estradas, o rapaz gritou para o cocheiro:
— Pela estrada de ouro!
E lá se foi a carruagem. Diante da fada, o irmão mais velho ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos. Mas o passarinho ficou mudo, sem dar sinais de reconhecê-lo, e o rapaz teve de voltar para casa.
O rei mandou buscar, então, o segundo irmão, e também o orientou para que esco­lhesse a estrada pela qual queria seguir.
— Pela estrada de prata! — respondeu ele ao cocheiro.
Ao chegar ao palácio e beijar as mãos da princesa, entretanto, novamente o passarinho se manteve mudo. E, furioso, o segundo ir­mão também teve de voltar para casa.
Chegou a vez de Lúcio, e a carruagem parou no início das estradas, para que ele escolhesse por qual delas queria ir.
Lúcio, sem pensar duas vezes, imediata­mente escolheu a estrada de veludo.
Mal a carruagem partiu em direção ao palácio, o pássaro encantado começou a can­tar e saiu voando ao encontro de seu salvador.
Sempre acompanhado pelo passarinho, Lúcio chegou ao palácio. Aproximou-se da princesa, que o esperava sorrindo, e ajoe­lhou-se a seus pés. E, enquanto lhe beijava as mãos, o pássaro encantado voou por sobre a cabeça da jovem, transformando-se na coroa mais bonita e rica que já se viu no mundo.
No dia seguinte, Lúcio e a princesa se casaram em meio a muita alegria e a grandes festas.
Quanto aos dois irmãos malvados, o rei os condenou à morte, como castigo por todo o mal que haviam cometido.


Autoria desconhecida.

A toupeira



Uma toupeira estava passeando em baixo da terra ao longo das longas galerias subterrâneas que sua família havia escavado durante muitos anos de trabalho.
Andou para a frente e para trás, subiu ao último andar e desceu até o porão como se enxergasse perfeitamente bem. Na realidade, assim como todas as toupeiras, ela tinha olhos muito pequeninos e não via quase nada.
Finalmente chegou a um caminho que não conhecia e prosseguiu adiante!
- Pare! - gritou uma voz vinda do andar inferior - essa galeria conduz ao exterior e é perigosa!
Porém a toupeira continuou a subir até chegar a um monte de terra.
Levantou o focinho e emergiu. Porém a brilhante luz do Sol cegou-lhe os olhos e ela correu de volta para a escuridão de seu abrigo.

22/11/2010

Maria Silva

Andava um dia um príncipe à caça numa certa mata e ouviu chorar uma criança; ele aproximou-se do sítio de onde vinham os vagidos e ouviu uma voz que dizia: Procura, procura que a que chora há-de ser tua. Então o príncipe riu-se daquelas palavras e disse: «Veremos se isso há-de acontecer.» Depois procurou, procurou, até que encontrou uma criança que brincava na relva; tomou-a do chão, marcou-a na testa com um ferro em brasa e cortou-lhe o dedo mínimo da mão direita e foi deitá-la numa silva. A criança tinha sido abandonada por sua mãe, por isso ninguém mais a procurou.
Havia naqueles sítios um pastor que levava as ovelhas a pastar entre as silvas. Quando recolhia as ovelhas, faltava-lhe sempre a cabra melhor do seu rebanho; depois ele voltava a chamá-la; ela ia, mas no dia seguinte sucedia-lhe o mesmo. Um dia disse ele para a mulher:
«Olha, não sabes? Desconfio da nossa cabra maltesa, pois fica sempre entre as silvas e é preciso chamá-la muito para ela vir». Então a mulher no dia seguinte foi espreitar a cabra e viu-a deitada no chão dando de mamar a uma criancinha. Como a mulher não tivesse filhos, ficou muito contente com aquele achado e o pastor também, e criaram a menina como se fosse sua filha. A menina foi crescendo e, depois que morreram os pastores, foi ela para criada de uma princesa que estava para casar.
Ora o príncipe, noivo da princesa, ia muitas vezes ao palácio e, tendo visto um dia Maria Silva, sentiu grande paixão por ela; mas ao reparar que ela tinha uma mancha na testa e que lhe faltava um dedo na mão direita, lembrou-se do que tinha feito a uma criancinha que uma voz lhe tinha dito lhe havia de pertencer. Então o príncipe resolveu fazer uma coisa muito má. Comprou três anéis de oiro muito ricos e presenteou com eles as três criadas da princesa e disse-lhes que aquela que ao fim de três dias não lhe apresentasse o anel morreria enforcada.
Depois recomendou às duas criadas que fizessem com que Maria Silva perdesse o anel, que as havia de premiar bem.
As criadas tais traças empregaram que fizeram com que o anel de Maria Silva caísse ao mar, mas Maria Silva não se afligiu de o ver cair. No dia seguinte, quando o pescador veio trazer o peixe para o palácio, ela pediu ao cozinheiro que lhe deixasse amanhar o peixe e encontrou o anel no bucho de um sável. No dia em que o príncipe veio para ver se todas ainda tinham os anéis, Maria Silva apresentou-se muito contente e o príncipe ficou maravilhado de lhe achar o anel que lhe dera, e bem assim as outras criadas que tinham a certeza de lho ter feito cair ao mar. Então o príncipe perguntou à Maria Silva como é que ela para ali tinha vindo, ao que ela respondeu:

Numa silva fui achada;
Por uma cabra fui criada;
Um pastor me educou
E agora aqui estou.

Então o príncipe contou-lhe tudo o que lhe tinha feito e disse-lhe que já não casava com a princesa, pois era ela, a Maria Silva, que ia ser sua esposa.


(Coimbra)
COELHO, Adolfo, «Contos populares portugueses»


20/11/2010

Iara



A Iara é uma dos mitos mais conhecidos e também dos mais confundidos da região amazônica, o que naturalmente inclui o Pará. Geralmente as pessoas acham que a Iara é uma mulher loura, de olhos azuis e a parte inferior do corpo em forma de peixe. Esta descrição na verdade é da sereia européia e não da Iara amazônica. A Iara, além de ser confundida com a sereia européia, o é também com a Iemanjá africana e na verdade nada tem a ver nem com uma nem com outra.
Em certos locais dizem-na boto-fêmea, também a encantar os homens e levá-los para o fundo, e em outros dizem ser a própria Boiúna (cobra preta), que traduzem erroneamente por cobra grande.
Na verdade, a Iara é uma linda mulher morena, de cabelos negros e olhos castanhos. De beleza ímpar, os que a vêem nua a banhar-se nos rios não conseguem dominar seus desejos e atiram-se nas águas... Nem sempre voltam ao mundo dos vivos... Os que o fazem, voltam assombrados, falando em castelos, séqüitos e cortes de encantados... e é preciso muita reza e pajelança - e de um pajé com muita força - para tirá-lo do estado de torpor. Alguns a descrevem como tendo uma cintilante estrela na testa, que funciona como chamariz para atrair o olhar e assim ser facilmente hipnotizado...
Quanto à possível forma de peixe da parte inferior da Iara, isto é apenas um vestido, ou melhor, uma espécie de saia, que ela veste por vaidade e para dar a ilusão de ser metade mulher, metade peixe...
Confundida ou não com crenças de outras plagas, a Iara até hoje exerce um grande fascínio e maior encantamento nos homens da região...

Lenda do Brasil


19/11/2010

O profeta Balaão

Ficheiro:Gustav Jaeger Bileam Engel.jpg

Os israelitas partiram e acamparam nas planícies de Moabe, a leste do rio Jordão e na altura de Jericó, que ficava no outro lado do rio. O rei de Moabe, Balaque, temia uma invasão dos israelitas às suas terras. Por isso ele mandou chamar o profeta Balaão e ofereceu muitas riquezas, para amaldiçoar o povo de Israel. Balaão ficou tentado por causa das riquezas que ele iria receber, mas Deus não deixou que o povo fosse amaldiçoado. Mas por causa da insistência de Balaão em se encontrar com Balaque, Deus permitiu que ele partisse para falar com Balaque. No dia seguinte Balaão se aprontou, pôs os arreios na sua jumenta e foi com os chefes moabitas. De repente, o Anjo do SENHOR se pôs na frente dele no caminho, para barrar a sua passagem. Quando a jumenta viu o Anjo parado no caminho, com a sua espada na mão, saiu da estrada e foi para o campo. Aí Balaão bateu na jumenta e a trouxe de novo para a estrada. E o anjo apareceu mais duas vezes, fazendo a jumenta parar. E Balaão ficou com tanta raiva, que surrou a jumenta com a vara. Aí o SENHOR fez a jumenta falar, e ela disse a Balaão: — O que foi que eu fiz contra você? Por que é que você já me bateu três vezes? Ele respondeu: — Foi porque você caçoou de mim. Se eu tivesse uma espada na mão, mataria você agora mesmo! Então a jumenta disse a Balaão: — Por acaso não sou a sua jumenta, em que você tem montado toda a sua vida? Será que tenho o costume de fazer isso com você? — Não — respondeu ele. Aí o SENHOR Deus fez com que Balaão visse o Anjo, que estava no caminho com a espada na mão. Balaão se ajoelhou e encostou o rosto no chão. O Anjo do SENHOR disse: — Por que você bateu três vezes na jumenta? Ela me viu e se desviou três vezes de mim. Se ela não tivesse feito isso, eu já teria matado você. Então Balaão disse ao Anjo: — Eu pequei. Não sabia que o senhor estava no caminho para me fazer parar. Porém, se agora o senhor acha que não devo continuar a viagem, eu voltarei para casa. O Anjo respondeu: — Vá com esses homens; mas você falará somente aquilo que eu lhe disser. Assim, Balaão foi com os chefes enviados por Balaque. E lá, ele obedeceu a Deus, não amaldiçoou mas abençoou o povo de Deus.

O espelho, a bota e o cravo



HÁ muitos anos, houve um rei que tinha uma filha muito bonita e graciosa. Quando chegou a ocasião de a moça se casar, apareceram três príncipes, cada qual mais belo e rico. A princesa ficou hesitante entre os três candidatos. Assim, o rei, para resolver a questão, declarou que sua filha só se casaria com aquele que trouxesse um presente que mais lhe causasse admiração.
Os três príncipes aceitaram a sugestão do rei e partiram. Quando chegaram a um lugar em que a estrada se dividia em três caminhos, despediram-se e marcaram o dia em que deveriam reunir-se novamente naquele ponto. Depois, cai la um seguiu por um caminho.
O príncipe mais velho viajou durante vários dias, até que chegou a uma grande cidade. Quando atravessava uma praça, ouviu um menino gritar:
— Quem quer comprar um espelho mágico?
O príncipe aproximou-se e perguntou qual a virtude daquele espelho. O menino respondeu:
— Este espelho tem o poder de refletir tudo o que se passa em qualquer lugar.
O príncipe disse consigo:
— Com este espelho me casarei, na certa, com a princesa.
E adquiriu o espelho mágico.
O segundo príncipe fez também uma longa viagem e foi parar em outra grande cidade. Passeava por uma rua, quando ouviu um homem gritando:
— Quem quer comprar uma bota mágica?
O príncipe aproximou-se e perguntou qual a virtude daquela bota. O homem então respondeu:
— Esta bota tem o poder de levar a pessoa ao lugar que desejar.
O moço disse consigo:
— Com esta bota me casarei, na certa, com a princesa. E a comprou.
O príncipe mais moço viajou durante muitos dias e, por fim, chegou a uma cidade muito grande. Passava por um jardim e ouviu um menino gritando:
— Quem quer comprar um cravo mágico?
O rapaz perguntou qual a virtude daquela flor. E o menino respondeu:
— Este cravo tem o poder de dar a vida a quem estiver morto.
O príncipe disse logo consigo:
— Com este cravo me casarei, na cei ta, com a princesa. E adquiriu a flor mágica.
Quando chegou o dia marcado, os rapazes reuniram i na mesma estrada. O príncipe mais velho abriu o seu espelhi para o mostrar aos outros rapazes. Viram então que a bela princesa estava deitada no leito, morta. Ficaram desesperados. O príncipe mais moço exclamou:
- Se eu pudesse chegar agora ao palácio salvaria a princesa!
O segundo príncipe então disse: — Entrem nesta bota e estaremos lá agora mesmo!
Num instante, chegaram ao palácio. Correram para o quarto da princesa. O príncipe mais moço aproximou sen cravo mágico do nariz da morta. Imediatamente, a princesa ressuscitou.
Surgiu então um problema difícil de ser resolvido. Quen deveria casar-se com a linda princesa?
— Sou eu, dizia o príncipe mais velho. Se não fosse o meu espelho, vocês não saberiam que ela estava morta!
— Sou eu, gritava o segundo príncipe. Sem a minha bota, vocês não chegariam a tempo de salvar a princesa!
— Sou eu, exclamava o príncipe mais moço. Se não fosse o meu cravo, ela não estaria viva!
A discussão prolongou-se por muito tempo. O rei não sabia o que fazer, pois achava que todos os três rapazes tinham razão. Afinal, a princesa que não queria ficar solteirona, decidiu a questão. Casou com o príncipe mais moço porque já estava apaixonada por ele. Os outros príncípes casaram-se com as primas da princesa, também princesas. E assim acabou a história em paz.

18/11/2010

Cavalinho e cavalo



O cavalinho foi ver o pai às corridas.
Tinham-lhe dito que o pai ia concorrer, na Grande Prova Internacional a Todo o Galope, e o cavalinho, que nunca tinha vencido a cerca do prado onde vivia, deu um salto e pronto. Estava do outro lado.
- Se fosse o meu pai, melhor ele saltaria - disse de si para si o cavalinho. - O meu pai é um grande saltador.
Um cavalo na estrada, sem cavaleiro nem atrelado, chama sempre a atenção. Um automóvel parou, ao pé dele.
- Ó cavalicoque, posso dar uma voltinha? - perguntou uma risonha voz de dentro do carro.
O cavalinho assustou-se e fugiu. Correu. O automóvel atrás dele.
Se não tivesse inflectido para um caminho de mau piso, o automóvel tinha-o apanhado. Assim, escapou.
- Se fosse o meu pai, melhor correria - disse de si para si o cavalinho. - O meu pai é um grande corredor.
Era o que se ia ver na tal Grande Prova a Todo o Galope. Postados, na linha de partida, cavaleiros e cavalos. Entre eles, o pai do cavalinho.
Desataram todos a correr ao mesmo tempo. Nem se percebia qual ia à frente, tanto o pó que levantavam.
- Deve ser o meu pai - dizia o cavalinho.
Fosse ou não fosse, o certo é que, numa curva, depois de terem saltado uma barreira, os cavalos tropeçaram uns nos outros e caíram. E magoaram-se. Entre eles, o pai do cavalinho.
Foi interrompida e anulada a corrida.
Agora de novo no prado com a cerca à volta, o cavalinho faz companhia ao pai, que coxeia, de perna ligada, para que se cure depressa.
- Se não tivesse havido aquela confusão, depois da barreira, tu é que tinhas ganho - disse-lhe o filho.
O cavalo de corrida faz que sim com a cabeça e relincha. O pescoço musculoso brilha como seda. As crinas ondeiam. É um lindo cavalo castanho, cor de terra molhada. O filho sai a ele.

17/11/2010

Lancelot

Segundo a lenda, Lancelote era filho do rei Ban de Benoíc e da Rainha Helena, mas foi raptado ainda criança pela Dama do Lago, que o educa e o torna o melhor cavaleiro da Távola Redonda e mestre-de-armas do Rei Artur. Lancelot mantinha vínculos com Avalon e sempre que podia visitava sua mãe, porém ele não seguia nenhuma das duas religiões da época (Católica e Celta). Lancelot não era um homem ligado aos cultos religiosos, embora pertencesse à linhagem real e tivesse a visão. Ele era apaixonado por Guinevere, antes mesmo desta se tornar rainha. A sua vida sempre foi regada por vitórias em batalhas e campeonatos.

Lancelote era o mais valoroso guerreiro do rei e o mais hábil domador de cavalos selvagens. Ele não tinha relacionamento com mulher alguma, pois aquela que ele amava não podia ser dele. Era o cavaleiro mais cobiçado pelas damas, mas por uma feitiçaria acabou casando-se com a filha do rei Pelinore e, com isso, se afastou um pouco do reino de Camelot e da rainha Guinevere, com quem passou a ter encontros furtivos e a quem realmente pertencia o seu coração.

O seu romance com Guinevere foi descoberto pelos cavaleiros da Távola Redonda, e depois disso ele foi expulso do reino de Artur e nunca mais voltou. Lancelote morreu velho no reino de seu sogro, o rei Pelinore.


Lendas do ciclo arturiano



A jarra partida


Partiu-se a jarrinha, aquela jarrinha de flores pintadas à mão, tão elegante, tão graciosa que era o enlevo de todas as pessoas que passavam por nossa casa.
- Está na nossa família há séculos. Dizem que foi oferecida por uma rainha de antigamente a uma antepassada nossa - explicava a minha mãe, enternecida, a olhar para a jarrinha de flores pintadas.
Pois, mas partiu-se. Partiu-se em cacos inumeráveis que não há conserto nem cola que lhe valham. Quem foi o desastrado?
- Eu não - safou-se o Tiago. - Quando eu cheguei a casa, já a mãe estava a chorar.
O meu irmão Tiago ficou livre de qualquer suspeita.
- Eu também não fui - apressou-se a dizer o meu pai. - Quando eu cheguei a casa, já a vossa mãe estava a ser consolada pelo Tiago.
- Eu é que não fui - choramingou a minha mãe. - Tinha tanta estimação na jarrinha. Quando eu cheguei a casa, não havia cá ninguém e já a jarra estava partida em mil bocados. Por pouco que não desmaiava de desgosto.
- Só se foi o Bolinhas... - lembrou o Tiago.
O nosso gato Bolinhas desenrolou-se com muita dignidade e disse:
- Eu não fui nem tenho nada a ver com o assunto.
E voltou a enrolar-se e a adormecer. Ai, quem me dera ter podido fazer o mesmo!
- Fui eu - balbuciei.
Todos se viraram para mim.
- Tu, Marcos? E estavas calado?
Suspirei fundo e comecei a contar o que acontecera. À medida que contava, ia ficando mais tranquilo, sem aquela insuportável queimadura nem sei onde - no estômago? no coração? na barriga? - que me fizera correr de casa para a escada, da escada para a rua, como se tivesse lançado fogo ao prédio. Ou a mim próprio.
Tinha sido um azar. É sempre um azar. Para meter a ficha do gravador de vídeo na tomada da parede tive de arredar um bocadinho a estante. Não contava que fosse tão pesada. Com a inclinação da estante, os livros escorregaram. Precipitei-me sobre eles, para evitar o desmoronamento. Não medindo os gestos, dei um encontrão numa mesinha que abalou o expositor onde estava a jarrinha. Estremeceram as bonecas de Saxe e saltaram as chávenas de café nos respectivos pires... A jarrinha, como a casca de um ovo, partiu-se. Acho que ela estava, há muito tempo, à espera de partir-se. Qualquer estremecimento lhe daria o pretexto. Dei eu. A culpa foi minha.
Disse isto com um ar tão enfiado, tão de lamentar que o círculo acusador à minha volta se desanuviou e desfez por si. A minha mãe, suspirando, foi varrer os vidros da jarra para uma caixa, na ilusão de que talvez ainda pudesse ser restaurada, o Tiago lançou-me uma piscadela de olhos de ?fixe, meu" e o meu pai, antes de mergulhar no jornal, confidenciou-me:
- Sabes: a jarra realmente já estava partida. Há tempos, na balbúrdia de uma brincadeira com o Bolinhas, que ainda era gatinho, a jarra rachou-se. Isto é, rachei-a... Como estava sozinho em casa, tive tempo de consertá-la o melhor que pude, para não dar um desgosto à tua mãe. Mas, de facto, a jarra já estava partida.
Por aquela não esperava eu.
- Tu tiveste muita coragem em confessar - continuou o meu pai. - De aqui a bocado, ao jantar, quando estivermos todos juntos, vou ser eu a precisar de coragem. E desculpa...
O meu pai abriu à sua frente as longas páginas do jornal, não sei se para lê-las, se para esconder a cara do embaraço. Também é preciso coragem para pedir desculpa.


António Torrado


16/11/2010

Chuva de algures



Estava a cair uma chuvinha cor-de-rosa, mas persistente.
Isto passa-se num planeta algures - parece que se chama mesmo Algures - lá para os fundos do universo.
Aqui (ou ali?) só vivem sapos e rãs, únicos seres vivos do planeta, onde chove continuamente e sempre às cores. Tanto pode a chuva ser verde-alface como violeta-desmaiado ou azul-marinho ou amarelo dourado. É um planeta muito colorido e festivo e, já se vê, sempre alagado.
Os sapos e as rãs não querem outra coisa, embora lhes seja indiferente a cor da chuva, desde que molhe. Os sapos e as rãs são bichos de gostos pouco requintados.
Pois, como ia dizendo, estava a cair uma chuvinha cor-de-rosa quando, sem quê nem porquê, parou de chover. Escorregou a última gota rosada de chuva sobre a pele esverdeada acastanhada do sapo, que elegemos como herói da nossa história, e o chuveiro emperrou.
O sapo Tubi interrogou com inquietação o céu, que se manteve cinzento e impassível. Nunca tal tinha acontecido.
Podia a época ser de aguaceiros, mas contínuos, sem descanso. Agora, um intervalo na chuva, por mínimo que fosse, era inconcebível.
Saltando e chapinhando de poça em poça, as rãs e os sapos reuniram-se para analisar em conjunto o estranho fenómeno.
- Sinto a pele cada vez mais seca - queixava-se uma rã mais alarmista.
- Por este andar vamos nadar em seco - queixava-se outra rã não menos alarmista.
Tudo um exagero. O planeta Algures, somados os rios, lagos e charcos, tinha água de reserva para muitas e muitas gerações. Mas a inesperada ausência de chuva não deixava de causar inquietação.
No meio da coaxante assembleia, o sapo Tubi acusou-se:
- Fui eu o culpado.
Houve um grande espanto e um grande silêncio, que o sapo Tubi aproveitou para prosseguir a sua confissão pública:
- Se eu não tivesse dito: ?Estou farto desta maldita chuva às cores" nada disto tinha acontecido.
Protestaram sapos e rãs:
- A chuva não anda ao nosso mando. Chove azul, amarelo, verde e encarnado, há que séculos, porque sim. Ninguém manda nas nuvens. Elas é que, azuladas, amareladas, esverdeadas ou encarniçadas, acumulam e carregam a água que desaba sobre a nossa terra. Um insignificante pensamento de um sapo não as faz mudar de prática. Isso não entra na cabeça de ninguém.
Mas o sapo Tubi não saía da sua:
- Eu disse em voz alta, muito alta. As nuvens melindraram-se, ressentiram-se.
Fosse do que fosse, não havia meio de a chuva voltar ao planeta Algures. O caso estava complicado. Podia até imaginar-se que, ao fim de muitas gerações, a persistência da seca acabasse com a vida no planeta. As perspectivas de futuro, a longo prazo, eram calamitosas.
As rãs já não saltavam com o mesmo vigor nem os sapos coaxavam o seu grunhido de uma única sílaba ?Cró! Cró!", noite fora. Andavam todos muito desalentados.
Até que o Tubi, fixando tristemente o céu cinzento, se saiu com esta:
- Quem dera que chovesse, nem que fosse sem cores.
De imediato, uma gota de água transparente caiu no focinho do sapo. Ele lançou a serpentina da língua cá para fora e provou-a. Não sabia a nada, mas era gostosa. Água pura.
Depois da primeira gota, muitas outras se lhe seguiram. Voltava a chover no planeta Algures e logo da primeira vez, depois da seca, a abada era de respeito. As cores variadas da chuva de outrora é que não voltaram mais.
Quando os sapos e as rãs contam esta história ou lenda aos filhos eles riem-se. O riso estica-lhes a pele húmida e luzidia, que ao sol ganha a reverberação das cores do arco-íris. Recordações, talvez, do tempo em que a chuva era às cores.

António Torrado

15/11/2010

Os tordos e a coruja



Estamos livres! Estamos livres! - gritaram os tordos certo dia, vendo que um homem apanhara a coruja - agora a coruja não vai mais nos assustar. Agora dormiremos em paz.
De fato, a coruja caíra numa armadilha e o homem a colocara dentro de uma gaiola.
- Vamos ver a coruja na prisão! - disseram os tordos, voando e cantando em volta da gaiola de sua inimiga.
Porém o homem capturara a coruja com outra finalidade, a de apanhar os tordos. A coruja aliou-se imediatamente a seu captor, que prendeu-a pelo pé e colocava-a diariamente em cima de uma estaca, bem à vista. A fim de poderem ver a coruja, os tordos voaram para as árvores próximas, nas quais o homem escondera gravetos cobertos de visgo. E assim como a coruja, os tordos também perderam a liberdade.

Fábulas de Leonardo da Vinci

14/11/2010

É Maravilhoso ficar bêbado

Ti Hsi era um nativo de Chungshan e sabia fazer "vinho de mil dias", capaz de manter um homem bêbedo durante mil dias. Havia um homem no mesmo distrito chamado Hsüan Shih que desejou provar o vinho em sua casa. No dia seguinte ele foi ver Ti Hsi e pediu-lhe um gole; este último respondeu - "Meu vinho ainda não está completamente fermentado e não ouso oferecê-lo a você." - "Quero prová-lo assim mesmo", disse Hsüan. Ti Hsi não pôde dizer "não" e deu- lhe um copo. - "é delicioso," observou Hsüan, "quero outro copo." - "Deve ir para casa agora," replicou Ti Hsi. "Volte outro dia. Só esse copo o embebedará por mil dias." Hsüan saiu parecendo um tanto tonto e ao chegar em casa morreu sob a influência do vinho. A família jamais desconfiou de nada: chorou-o e enterrou-o.
Após três anos, Ti Hsi disse consigo mesmo - "Hsüan a esta hora já deve estar acordado. Preciso ir vê-lo." Quando chegou à casa de Hsüan perguntou se este estava. A família surpreendeu-se muito e disse - "Morreu há muito. Até já tiramos o luto." Ti Hsi ficou aflito e disse - "O que! foi efeito do meu maravilhoso vinho, capaz de embebedar um homem por mil dias. Ele deve estar a acordar agora mesmo." Deu, então, ordens para que a família de Hsüan abrisse o sepulcro e o caixão para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se uma nuvem de vapores da tumba, nuvem que se elevou até os céus e em seguida procederam a abertura do caixão. Quando a tampa foi retirada, viram o homem "morto" abrir os olhos, bocejar e dizer - "Oh! como é delicioso ficar bêbedo!" Depois perguntou a Ti Hsi - "Que vinho é esse que você faz? Um só copo produziu esse efeito. Acabo de acordar. Que horas são?" As pessoas que estavam perto riram muito à custa dele mas, devido a forte exalação da tumba, cheiro intenso que lhes entrou pelas narinas, todos caíram bêbedos por três meses.

(Do "Soushenchi", século IV)



13/11/2010

O fazendeiro e a cegonha



Um fazendeiro armou uma rede no campo onde plantara milho , por que ali vinham os pardais comer o milho semeado.
Entre os pardais, caiu na rede uma cegonha.
- Alto lá! Exclamou a cegonha. Não sou pardal , sou cegonha.
-Não tenho nada que ver com isto!
- Solte-me!
O fazendeiro retrucou:
- Se você não é pardal , que estava fazendo no meio desses ladrões?

Moral da estória:Quem é bom não se mistura.


Fábulas de Esopo

11/11/2010

Lenda de S. Martinho


Segundo reza a lenda, num dia frio e tempestuoso de Outono, um soldado romano, de nome Martinho, percorria o seu caminho montado no seu cavalo, quando deparou com um mendigo cheio de fome e frio. O soldado, conhecido pela sua generosidade, tirou a sua capa e com a espada cortou-a ao meio, cobrindo o mendigo com uma das partes. Mais adiante, encontrou outro pobre homem cheio de frio e ofereceu-lhe a outra metade. Sem capa, Martinho continuou a sua viagem ao frio e ao vento quando, de repente, como por milagre, o céu se abriu, afastando a tempestade. Os raios de sol começaram a aquecer a terra e o bom tempo prolongou-se por cerca de três dias. Desde essa altura, todos os anos, por volta do dia 11 de Novembro, surgem esses dias de calor, a que se passou a chamar "Verão de S. Martinho".


06/11/2010

A história do perdão


O pai de Hanoch contou-lhe que, todos os anos, quando era novo, na véspera do Yom Kippur * , ia visitar os seus amigos e conhecidos e fazia-lhes a seguinte pergunta:
— Digam-me, por favor, se vos fiz algum mal, se vos ofendi de alguma forma, ou fui causa de infelicidade. Se o fui, lamento profundamente e peço-vos perdão.
Esta história deu que pensar a Hanoch. O rapaz disse para consigo “E porque não faço eu a mesma coisa?”
Correu para a cozinha, onde a mãe preparava o jantar, atarefada. Reinava ali um grande reboliço, com panelas e frigideiras a fumegar, e um cheirinho agradável no ar.
Ficou junto da porta e esperou pelo momento certo para falar com a mãe. Quando esta o viu, deixou as sertãs e perguntou-lhe:
— O que se passa, filho? Já tens fome?
Hanoch não respondeu. Sentia-se desconfortável.
— Porque estás tão calado, querido? — insistiu a mãe. — Não te sentes bem? Diz-me o que se passa.
— Não estou doente, mamã.
— Nesse caso, o que traz à cozinha no meio da minha azáfama? É melhor ires brincar.
Hanoch foi até junto da mãe e segredou-lhe:
— Hoje é véspera do Yom Kippur e venho pedir-te que me perdoes.
— Perdoar-te, filho? Porquê? Que pecado cometeste?
— Talvez te tenhas esquecido, mamã. Foi quando tiveste aquela dor de cabeça, e estavas deitada. Pediste-me que guardasse as galinhas na capoeira. Prometi-te que o faria, mas fui brincar com as outras crianças. Fui andar com elas de bicicleta e esqueci-me das galinhas. E cinco galinhas foram encontradas mortas na manhã seguinte. Não te disse nada naquela altura porque me sentia muito infeliz.
Enquanto falava, Hanoch tinha lágrimas nos olhos.
— Mas hoje tive de te contar e pedir-te que me perdoes.
A mãe olhou para ele com amor e beijou-o.
— Claro que te perdoo!
O menino abraçou-a e, com o coração já bem mais leve, foi brincar.


Conto de Israel


*O Yom Kipur ou Kippur é um dos dias mais importantes do judaísmo. No calendário hebreu começa no crepúsculo que inicia o décimo dia do mês hebreu de Tishrei (que coincide com Setembro ou Outubro), continuando até ao pôr-do-sol seguinte. Os judeus observam tradicionalmente esse feriado com um período de jejum e orações.



Levin Kipnis
Let us play in Israel
Tel-Aviv, N. Tversky Publishing House, 1966
tradução e adaptação


05/11/2010

O papel e a tinta

Certo dia uma folha de papel que estava em cima de uma mesa, junto com outras folhas exactamente iguais a ela, viu-se coberta de sinais. Uma pena, molhada de tinta preta, havia escrito uma porção de palavras em toda a folha.
- Porque você não me poupou dessa humilhação? - disse, furiosa, a folha de papel para a tinta.
- Espere! - respondeu a tinta - eu não estraguei você. Eu cobri você de palavras. Agora você não é mais apenas uma folha de papel, mas sim uma mensagem. Você é a guardiã do pensamento humano. Você se transformou num documento precioso!
E, realmente, pouco depois, alguém foi arrumar a mesa e apanhou as folhas para jogá-las na lareira. Mas subitamente reparou na folha escrita com tinta, e então jogou fora todas as outras, guardando apenas a que continha uma mensagem escrita.

Fábulas de Leonardo da Vinci



01/11/2010

Uma carica e tanto



Vou contar-vos, hoje, a história desta carica. Não é uma carica qualquer. Desde que nascera que sabia que estava reservada para altos destinos. Descendia da lata, pois descendia, mas à lata não voltaria.
Amoldada, como milhares das suas irmãs, à boca de uma garrafa, foi à vida com a garrafa a que a juntaram.
Um dia, uma pressão - tche! E rua, chão... Chão com a carica que já não serve para nada.
Quem disse que já não serve para nada? Agora é que ela ia começar a viver. Que aventura!
Primeiro, foi moeda de troca. ?Dou-te uma carica destas. Dá-me duas das outras."
Andou por várias colecções, conheceu muitos bolsos, muitas mãos... Sentiu-se moeda de peso, das fortes, das que não se desvalorizam, libra, dobrão de ouro ou mais ainda.
Depois, conheceu o entusiasmo das corridas, na beira dos passeios. Ganhou provas, fez-se notar. Bastava um piparote e lá ia ela, a carica motorizada, a caminho da vitória.
Mas o melhor da festa, o seu dia de glória, foi quando medalhou o peito de um ?general" de brincar por casa. Nesse dia, sentiu-se a estrela mais brilhante da constelação das caricas.
Se lhe perguntassem, então:
- Carica, quanto vales?
Ela responderia:
- Tanto ou mais do que peso. A minha fortuna está no que sirvo. Entrei em muitas corridas, participei em muitas colecções, viajei muito, conheci imensa gente. Não tenho preço. Fui moeda, peso, monóculo, prato, chávena, pires, taça, medalha, automóvel...
Para ser isto tudo e mais ainda, hás-de concordar que é preciso ter muita lata.