O imperador de Roma
Tem uma filha bastarda
A quem tanto quer e tanto
Que a traz mui mal criada.
Pedem-lha condes, senhores,
Homens de capa e de espada;
Ela, isenta e desdenhosa,
A todos lhes punha tacha:
Um é criança, outro é velho,
Este que não tinha barba,
Aquele que não tem pulso
Para puxar pela espada.
Dizia-lhe o pai sorrindo:
- «Inda hás-de ser castigada!
De algum vilão de porqueiro
Te espero ver namorada.»
Por manhã de São João,
Manhã de doce alvorada,
Ao seu balcão muito cedo
A infanta se assomava
Viu andar três segadores
Fazendo sua segada;
O mais pequeno dos três
Era o que mais trabalhava.
Fita que traz no chapéu
De oiro e seda era bordada;
Fina prata que luzia
A foice com que ceifava.
De seu garbo e gentileza
A infanta se namorava.
O ceifeiro vai ceifando...
Bem sabe ele o que ceifava!
Ali estava a aia discreta
Em quem toda se fiava:
- «Vês, aia, aquele ceifeiro
Que anda naquela segada?
Condes, duques, cavaleiros,
Nenhum que o ceifeiro valha.
Vai-mo chamar em segredo,
Que ninguém não saiba nada.»
- «Bom segador, vem comigo,
Que te quer falar minha ama.»
- «Tua ama, não na conheço
Nem tão-pouco a quem me chama.»
- «Cegador de boa estreia,
Traze’la vista mui baixa:
Alça os olhos e verás
A estrela da madrugada.»
- «Vejo o sol que vem nascendo,
Não vejo a estrela de Alva.»
- «Estrela ou sol, vens comigo?»
- «Irei, pois quem pode, manda.»
Entraram por um postigo,
Que a porta inda era cerrada;
No camarim da princesa
O bom do ceifeiro estava.
- «Senhora, que me quereis?
Pois venho à vossa chamada.»
- «Quero saber se te atreves
A fazer minha segada?»
- «Atrever, me atrevo a tudo;
Trabalho não me acovarda.
Dizei vós, senhora minha,
Onde é a vossa segada.»
- «Não é no monte ou no vale,
No baldio ou na coitada;
Segador, é nos meus braços,
Que de ti estou namorada.»
Passou todo aquele dia,
O mais da noite passava,
Ceifando vai o ceifeiro...
Bem sabe ele o que ceifava!
- «Basta, basta, segador,
Feita está tua segada:
Vai-te, que meu pai não venha,
Antes de ser madrugada.»
Palavras não eram ditas,
O pai à cama chegava:
- «Com quem falas, minha filha,
Tão cedo de madrugada?»
- «Falo com esta minha aia
Que me tem desesperada;
Uma cama tão mal feita
Que dormir me não deixava.»
- «É forte aia essa tua
Que a barba tem tão cerrada!
Vista-me já a donzela,
Que, antes de ser madrugada,
Pelo barbeiro do algoz
A quero ver barbeada.»
O segador, muito enxuto,
Sua sentença escutava,
Com uma mão se vestia,
Com a outra se calçava.
Saltou no meio da casa
Como se não fora nada:
- «Venha já esse barbeiro
Com a navalha afiada:
Ao duque de Lombardia
Veremos quem faz a barba.»
O imperador, mui contente,
Depressa ali os casava.
Não quis senhores, nem condes
Homens de capa ou de espada,
Senão só o segador
Que andava em sua segada.
Podia ser um porqueiro
Que a deixasse desonrada...
Saiu-lhe um duque reinante,
Senhor de alta nomeada.
Pois tudo é sorte no mundo,
A sorte foi bem deitada.
Romanceiro, Almeida Garrett