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30/11/2008

A onça e o coelho



A onça possuía uma roça que estava coberta de capim. Por isso, resolveu reunir os outros animais, dizendo-lhes que aquele que conseguisse limpar a roça sem se coçar, ganharia um boi de presente. O macaco foi o primeiro a tentar, mas logo foi despedido porque se coçou. Depois dele, o veado e o bode também tentaram, mas tiveram o mesmo resultado. Então, o coelho ofereceu-se para o trabalho. Mas a onça replicou que se os outros animais não haviam conseguido, muito menos ele conseguiria. Acabou por aceitar o trabalho do coelho. Quando o coelho já havia limpado bom pedaço da roça, a onça, cansada, resolveu sair e deixar um filho tomando conta do trabalho do coelho, com o intuito de cuidar se este se coçava. O coelho, aproveitando-se da ingenuidade do menino, pergunta se o boi que ganharia era pintado, mostrando o lugar das pintas em seu próprio corpo e aproveitando para coçar-se. O menino, sem dar-se conta do que ocorrido, respondia que sim. Dessa forma, conseguiu terminar todo o trabalho e ganhando o boi. A onça disse-lhe que aquele boi deveria ser morto onde não houvesse moscas nem mosquito e onde galo nem galinha cantassem. O coelho, então, partiu com o seu boi. Durante a sua caminhada, ia prestando a atenção se encontrava moscas, mosquito, galos e galinhas. Quando encontrou o lugar certo, matou o boi. Nesse momento, apareceu a onça dizendo-lhe que gostaria de um pedaço da carne, pois estava grávida e temia abortar. O coelho lhe deu a carne, mas ela pediu mais, ameaçando matá-lo. Foi assim que a onça acabou por comer todo o boi. O coelho, então, voltou para casa prometendo a si mesmo que se vingaria da onça. Ao verificar o lugar por onde passava a onça, foi para lá cortar cipó. A onça, ao perceber a sua atividade, perguntou-lhe o que estava fazendo, ao que ele respondeu dizendo que Deus castigaria o mundo com uma grande ventania e que aqueles cipós serviriam para amarrá-lo. A onça insistiu muito para que ele a amarrasse primeiro. O coelho fingiu não querer amarrá-la, afirmando que ainda tinha de prender toda a sua família. Como a onça persistisse no seu pedido, o coelho disse que a amarraria por ela ser comadre. Após amarrá-la, saiu correndo. Quando o macaco passou, a onça pediu que ele a desamarrasse, porém ele respondeu que Deus deveria ajudar àquele que a havia posto ali, o mesmo acontecendo com o veado e com o bode. Ao lembrar-se da onça, o coelho foi ver se ela ainda estava viva. Assim que ela o viu pediu para ser solta. O coelho fingiu não ser o autor da façanha e estar com muita pena. Desamarrou os cipós. Assim que se viu livre a onça tentou devorar o coelho, mas ele fugiu para um buraco. Todavia, antes que ele entrasse a onça ainda lhe conseguiu pegar uma perna. O coelho, então, chamou-a de tola, dizendo que havia pegado uma raiz de pau. Ao ouvir isso, a onça soltou a perna. O coelho escondeu-se no fundo do buraco e a onça pediu a uma garça que cuidasse enquanto ela ia buscar um enxada para cavar o buraco. O coelho, percebendo o que acontecia, disse a garça que quem cuida de um coelho deve espiar no buraco com os olhos arregalado, ao que a garça atendeu. O coelho jogou-lhe areia aos olhos, saindo sem que ela visse. Quando a onça retornou, cavou sem encontrar coelho algum no buraco. Perguntando à garça sobre onde se encontrava o coelho obteve como resposta que esta não sabia, pois o bichinho havia lhe enchido os olhos de areia e fugido. A onça, desapontada, foi-se embora para casa.

Conto do Brasil

26/11/2008

O príncipe sapo


Há muito tempo, quando os desejos funcionavam, vivia um rei que tinha filhas muito belas. A mais jovem era tão linda que o sol, que já viu muito, ficava atónito sempre que iluminava seu rosto. Perto do castelo do rei havia um bosque grande e escuro no qual havia um lagoa sob uma velha árvore. Quando o dia era quente, a princesinha ia ao bosque e se sentava junto à fonte. Quando se aborrecia, pegava sua bola de ouro, a jogava alto e recolhia. Essa bola era seu brinquedo favorito. Porém aconteceu que uma das vezes que a princesa jogou a bola, esta não caiu em sua mão, mas sim no solo, rodando e caindo directo na água. A princesa viu como ia desaparecendo na lagoa, que era profunda, tanto que não se via o fundo. Então começou a chorar, mais e mais forte, e não se consolava e tanto se lamenta, que alguém lhe diz:
- Que te aflige princesa? Choras tanto que até as pedras sentiriam pena.
Olhou o lugar de onde vinha a voz e viu um sapo colocando sua enorme e feia cabeça fora d’água.
- Ah, és tu, sapo - disse - Estou chorando por minha bola de ouro que caiu na lagoa.
- Calma, não chores -, disse o sapo – Posso ajudar-te, porém, que me darás se te devolver a bola?
- O que quiseres, querido sapo - disse ela, - Minhas roupas, minhas pérolas, minhas jóias, a coroa de ouro que levo.
O sapo disse: - Não me interessam tuas roupas, tuas pérolas nem tuas jóias, nem a coroa. Porém me prometes deixar-me ser teu companheiro e brincar contigo, sentar a teu lado na mesa, comer em teu pratinho de ouro, beber de teu copinho e dormir em tua cama; se me prometes isto eu descerei e trarei tua bola de ouro”.
- Oh, sim- disse ela - Te prometo tudo o que quiseres, porém devolve minha bola – mas pensou- Fala como um tolo. Tudo o que faz é sentar-se na água com outros sapos e coachar. Não pode ser companheiro de um ser humano.
O sapo, uma vez recebida a promessa, meteu a cabeça na água e mergulhou. Pouco depois voltou nadando com a boa na boa, e a lançou na grama. A princesinha estava encantada de ver seu precioso brinquedo outra vez, colheu-a e saiu correndo com ela.
- Espera, espera - disse o sapo – Leva-me. Não posso correr tanto como tu -
Mas de nada serviu coachar atrás dela tão forte quanto pôde. Ela não o escutou e correu para casa, esquecendo o pobre sapo, que se viu obrigado a voltar à lagoa outra vez.
No dia seguinte, quando ela sentou à mesa com o rei e toda a corte, estava comendo em seu pratinho de ouro e algo veio arrastando-se, splash, splish splash pela escada de mármore. Quando chegou ao alto, chamou à porta e gritou:
- Princesa, jovem princesa, abre a porta.
Ela correu para ver quem estava lá fora. Quando abriu a porta, o sapo sentou-se diante dela e a princesa bateu a porta. Com pressa, tornou a sentar, mas estava muito assustada. O rei se deu conta de que seu coração batia violentamente e disse: - Minha filha, por que estás assustada? Há um gigante aí fora que te quer levar?
- Ah não, respondeu ela - não é um gigante, senão um sapo.
- O que quer o sapo de ti?
- Ah querido pai, estava jogando no bosque, junto à lagoa, quando minha bola de ouro caiu na água. Como gritei muito, o sapo a devolveu, e porque insistiu muito, prometi-lhe que seria meu companheiro, porém nunca pensei que seria capaz de sair da água.
Entretanto o sapo chamou à porta outra vez e gritou:
- Princesa, jovem princesa, abre a porta. Não lembras que me disseste na lagoa? Princesa, jovem princesa, abre a porta.
Então o rei disse:
- Aquilo que prometeste, deves cumprir. Deixa-o entrar.
Ela abriu a porta, o sapo saltou e a seguiu até sua cadeira. Sentou-se e gritou:
- Sobe-me contigo.
Ela o ignorou até que o rei lhe ordenou. Uma vez que o sapo estava na cadeira, quis sentar na mesa. Quando subiu, disse:
- Aproxima teu pratinho de ouro porque devemos comer juntos.
Ela o vez, porém se via que não de boa vontade. O sapo aproveitou para comer, porém ela enjoava a cada bocado. Em seguida disse o sapo:
- Comi e estou satisfeito, mas estou cansado. Leva-me ao quarto, prepara tua caminha de seda e nós dois vamos dormir.
A princesa começou a chorar porque não gostava da ideia de que o sapo ia dormir na sua preciosa e limpa caminha. Porém o rei se aborreceu e disse:
- Não devias desprezar àquele que te ajudou quando tinhas problemas.
Assim, ela pegou o sapo com dois dedos, e a levou para cima e a deixou num canto. Porém, quando estava na cama o sapo se arrastou até ela e disse:
- Estou cansado, eu também quero dormir, sobe-me senão conto a teu pai.
A princesa ficou então muito aborrecida. Pegou o sapo e o jogou contra a parede.
- Cale-se, bicho odioso – disse ela. Porém, quando caiu ao chão não era um sapo, e sim um príncipe com preciosos olhos. Por desejo de seu pai ele era seu companheiro e marido. Ele contou como havia sido encantado por uma bruxa malvada e que ninguém poderia livrá-lo do feitiço excepto ela. Também disse que no dia seguinte iriam todos juntos ao seu reino.
Se foram dormir e na manhã seguinte, quando o sol os despertou, chegou uma carruagem puxada por 8 cavalos brancos com plumas de avestruz na cabeça. Estavam enfeitados com correntes de ouro. Atrás estava o jovem escudeiro do rei, Enrique. Enrique havia sido tão desgraçado quando seu senhor foi convertido em sapo que colocou três faixas de ferro rodeando seu coração, para se acaso estalasse de pesar e tristeza.
A carruagem ia levar ao jovem rei a seu reino. Enrique os ajudou a entrar e subiu atrás de novo, cheio de alegria pela libertação, e quando já chegavam a fazer uma parte do caminho, o filho do rei escutou um ruído atrás de si como se algo tivesse quebrado. Assim, deu a volta e gritou:
- Enrique, o carro está se rompendo.
- Não amo, não é o carro. É uma faixa de meu coração, a coloquei por causa da minha grande dor quando eras sapo e prisioneiro do feitiço.
Duas vezes mais, enquanto estavam no caminho, algo fez ruído e cada vez o filho do rei pensou que o carro estava rompendo, porém eram apenas as faixas que estavam se desprendendo do coração de Enrique porque seu senhor estava livre e era feliz.






25/11/2008

A mulher teimosa afogada


Um homem que era casado
Com mulher néscia e teimosa,
Que tinha um gênio danado,
Foi um dia
Fazer certa romaria,
Distante do povoado.

Eis que um rio caudaloso
No fim da estrada encontraram,
Que passar era forçoso.
O marido
Sonda o vau, e prevenido
Teme entrar no pego undoso.

A mulher, teimosa e má,
Lhe diz: "Entra n'água, ó fona,
Que perigo nenhum há.
— Há perigo,
Torna-lhe ele, — e não prossigo!"
E ela diz: "Pois eu vou lá!"

Nisto, mete-se imprudente
À levada impetuosa
Feita pela grossa enchente;
Então cai,
E, indo ao fundo aos urros, vai
Envolvida na corrente.

Aterrado o pobre esposo,
Vendo aquela atroz desgraça,
Inda quer salvá-la ansioso;
Que a lastima,
E vai pelo rio acima
Procurando-a cuidadoso.

Os que viram abismá-la
Vendo-o ir contra a corrente,
Dizem: "Valha-te uma bala,
Ó borracho!
Se foi pelo rio abaixo,
Lá em cima é que hás de achá-la?"

Torna-lhe ele: "Este dragão
Sempre com todos viveu
Em fera contradição,
E por má
juro que subindo irá,
Se as águas descendo estão.

Às avessas da outra gente
Andou toda a sua vida;
Mas já teimosa imprudente
Não será;
Que o gênio que o berço dá
Tira-o a tumba somente".

Curvo Semedo (Trad.)

23/11/2008

O génio da garrafa


Era uma vez um pobre lenhador que trabalhava desde a manhã até a noite fechada. Quando finalmente ele conseguiu juntar um pouco de dinheiro, disse ao seu menino:
- Você é meu filho único e quero aplicar o meu dinheiro, que ganhei com o suor do meu rosto, na sua instrução. Se você aprender alguma coisa que preste, poderá me sustentar na minha velhice, quando os meus membros estiverem endurecidos e eu tiver de ficar sentado em casa.
Então o menino foi para uma boa escola e estudou com afinco, de modo que seus mestres o elogiavam, e ficou algum tempo por ali. Ele terminou um par de cursos, mas ainda não tinha se formado em tudo, quando aconteceu que o pouco dinheiro que o pai economizara se acabou e ele teve de voltar para casa.
- Aí, - disse o pai, tristonho - não posso dar-lhe mais nada e com esta carestia não consigo tampouco ganhar nem um vintém a mais que para o pão de cada dia.
- Querido pai, - respondeu o filho - não se preocupe com isso! Se Deus quiser, tudo terá sido para melhor; eu vou me arranjar.
Quando o pai ia sair para a floresta, para ganhar alguma coisa com a lenha preparada, o filho disse:
- Eu quero ir com você e ajudá-lo.
- Sim, meu filho - disse o pai. - Mas isto lhe será muito difícil; você não está acostumado ao trabalho duro e não vai agüentar. Além disso eu não tenho machado sobrando, e nem dinheiro para poder comprar um novo.
- Vá procurar o vizinho - respondeu o filho. - Ele lhe emprestará o seu machado até que eu possa ganhar o bastante para comprar um para mim.
Então o pai tomou um machado emprestado do vizinho e no dia seguinte, de manhã cedinho, os dois saíram juntos para a floresta. O filho ajudou o pai, com esforço e animado, sem se cansar.
E quando o sol estava a pique sobre eles, o pai falou:
- Vamos descansar e almoçar; depois o trabalho rende o dobro.
O filho pegou o seu pedaço de pão e disse:
- Descanse, pai, Eu não estou fatigado; quero passear um pouco pela floresta e procurar ninhos de passarinho.
- Ó rapazinho tolo! - disse o pai. -- Para que quer ficar correndo de um lado para outro, só para ficar cansado e depois não poder erguer o braço? Fique aqui sentado ao meu lado!
Mas o filho se embrenhou na floresta, comeu o seu pão, muito contente, e espiou por entre os galhos a ver se encontrava algum ninho. Assim ele andou de um lado para outro, até que chegou a um grande carvalho, que devia ter muitos séculos de idade, e cujo tronco cinco homens não poderiam abraçar. Ele parou, olhou para a árvore e disse:
- Aqui muitos pássaros devem ter construído seus ninhos.
Mas aí pareceu-lhe de repente ouvir uma voz. Prestou atenção e ouviu gritar em tom bastante abafado: “Deixe-me sair! Deixe-me sair!”
Olhou em volta e não conseguiu ver nada, mas pareceu-lhe que a voz saía de dentro da terra. Então gritou:
- Onde está você?
A voz respondeu:
- Estou encalhado aqui embaixo, junto das raízes. Deixe-me sair, deixe-me sair!
O estudante começou a cavocar debaixo da árvore e a procurar entre as raízes, até que por fim encontrou, num pequeno desvão, uma garrafa de vidro. Levantou-a e segurou-a contra a luz, e então viu lá dentro uma coisa que parecia um sapo, pulando para cima e para baixo.
- Deixe-me sair, deixe-me sair! - ouviu de novo. E o garoto, que não desconfiava de nada de mau, tirou a rolha da garrafa. Imediatamente escapou dela um gênio, que começou a crescer, e cresceu tão depressa que em poucos instantes uma figura terrificante, do tamanho da metade da árvore.
- Sabe - urrou a aparição com voz aparovante - qual é o seu prêmio por ter-me libertado?
- Não - respondeu o estudante, sem se assustar.
- Como posso saber disso?
- Então eu lhe direi - gritou o gênio. - Vou quebrar-lhe o pescoço em troca disso.
- Isto você devia ter-me dito antes - respondeu o estudante. - mas minha cabeça tem de permanecer no lugar!
- A recompensa merecida, esta você vai ganhar - gritou o gênio. - Ou pensa que foi por benevolência que me deixaram trancado dentro da garrafa por tanto tempo? Não, foi por castigo. Eu sou o poderoso Mercúrius; quem me soltar terá o pescoço quebrado.
- Mais devagar! - respondeu o estudante. -- As coisas não vão assim tão depressinha! Primeiro eu preciso ter certeza de que você, com este tamanho todo, estava de fato dentro dessa pequena garrafa, e de que você é o gênio verdadeiro; se você puder entrar e caber lá dentro de novo, então vou acreditar e poderá fazer comigo o que quiser.
O gênio falou, cheio de arrogância:
- Isto não é problema! - e começou a se encolher e ficou tão fino e pequeno como estivera antes, de modo que se enfiou, pela mesma abertura no gargalo, para dentro da garrafa.
Mas nem bem ele estava lá dentro, o estudante tampou depressa a garrafa com a mesma rolha, pôs a garrafa de volta no antigo lugar, e o gênio foi logrado.
Agora o estudante queria voltar para junto do pai, mas o gênio gritou, muito lamentoso:
- Deixe-me sair! Ó, deixe-me sair!
- Não, - respondeu o estudante - você iria me enganar como da primeira vez.
- Você está pondo a perder a sua própria felicidade - disse o gênio. - Eu não lhe farei mal, mas vou recompensá-lo ricamente.
O estudante pensou: “Vou tentar; quem sabe ele mantém a palavra; eu não deixarei que ele me faça mal”.
Então tirou a rolha, e o gênio saiu como da primeira vez, espreguiçou-se e ficou do tamanho de um gigante.
- Agora você terá a sua recompensa - disse ele, entregando ao estudante um pequeno pano, que parecia um emplastro, e continuou: - Se você esfregar um ferimento com uma ponta dele, a ferida se fechará; e se esfregar ferro ou aço com a outra ponta, o metal se transformará em prata.
- Preciso experimentar isso - disse o estudante.
Pegou o seu machado, feriu a casca de uma árvore com ele, e esfregou o corte com uma ponta do emplastro; imediatamente o corte se fechou e a casca sarou.
- Muito bem, a coisa funciona - disse ele ao gênio. - Agora podemos nos separar.
O gênio agradeceu-lhe pela sua libertação e o estudante agradeceu ao gênio pelo presente e voltou para junto do pai.
- Por onde você andou passeando? - perguntou o pai. - Por que esqueceu o trabalho? Bem que eu disse logo que você não seria capaz de fazer coisa alguma.
- Não se zangue, pai; eu vou alcança-lo.
- Sim, alcançar, alcançar; - disse o pai, irritado - isto não é tão fácil.
- Pois preste atenção, pai: vou já derrubar esta árvore aqui tão bem que ela vai tombar com um estrondo.
Então ele pegou o seu machado, esfregou-o com o emplastro e desferiu uma possante machadada na árvore. Mas como o ferro tinha virado prata, a lâmina perdeu todo o corte.
- Ei, pai, veja que machado ruim você me deu. Ele entortou todo com o primeiro golpe. O pai assustou-se e disse:
- Ai, o que foi que você fez! Agora terei de pagar pelo machado e não sei como nem com quê. É esta a vantagem que me traz o seu trabalho...
- Não se zangue, pai! - respondeu o filho. - Eu vou pagar pelo machado.
- Ó seu bobalhão, - exclamou o pai - com o que você vai pagá-lo, se não tem nada além do que lhe dou? Tolices de estudante, é só o que tem na cabeça, mas de cortar lenha você não entende nada.
Dali a pouco, o estudante disse:
- Pai, agora que eu não posso trabalhar mais mesmo, é melhor que encerremos a jornada e vamos para casa.
- Qual o quê! - respondeu o pai. - Você pensa que eu quero cruzar os braços no colo como você? Eu ainda preciso trabalhar, mas você pode se mandar para casa.
- Pai, é a primeira vez que eu estou aqui no meio da floresta, não sei achar o caminho de volta para casa sozinho, venha comigo!
Como a sua cólera já se acalmara, o pai deixou-se persuadir e voltou com o filho para casa. Então lhe disse:
Vá e venda o machado estragado e veja o que pode conseguir por ele. Vou tratar de ganhar a diferença com o meu trabalho, para pagar ao vizinho.
No dia seguinte, o filho pegou o machado e levou-o à cidade, a um ourives. Este fez a prova, colocou o machado na balança e disse:
- Ele vale quatrocentos talers; eu não tenho tanto dinheiro para pagar à vista.
O estudante falou:
- Dê-me o quanto tiver em dinheiro; eu espero pelo restante, em confiança.
O ourives pagou-lhe trezentos talers e ficou devendo cem. Com isso o estudante voltou para casa e disse:
- Pai, eu tenho dinheiro. Vá e pergunte o que o vizinho quer pelo seu machado.
- Isto eu já sei - disse o pai. - Um taler e seis décimos.
- Então dê-lhe dois talers e doze décimos, isto é, o dobro, e é suficiente. Está vendo, pai, eu tenho dinheiro de sobra!
E com isso ele entregou ao pai cem talers e disse:
- Nunca mais vai lhe faltar nada, pai. Viva agora em conforto.
- Meu Deus! - disse o velho. - Como foi que lhe veio essa riqueza?
Então o filho contou-lhe como tudo acontecera, e como ele, confiante na sorte, fizera tão rico achado. Mas com o dinheiro que sobrou, o rapaz voltou para a escola superior e continuou a estudar. E, como podia curar todos os ferimentos com o seu emplastro, ele tornou-se o médico mais famoso do mundo inteiro.






18/11/2008

Os dez anõezinhos da Tia Verde-Água


Era uma mulher casada, mas que se dava muito mal com o marido, porque não trabalhava nem tinha ordem no governo da casa; começava uma coisa e logo passava para outra, tudo ficava em meio, de sorte que quando o marido vinha para casa nem tinha o jantar feito, e à noite nem água para os pés nem a cama arranjada. As coisas foram assim, até que o homem lhe pôs as mãos e ia-a tocando, e ela a passar muito má vida. A mulher andava triste por o homem lhe bater, e tinha uma vizinha a quem se foi queixar, a qual era velha e se dizia que as fadas a ajudavam. Chamavam-lhe a Tia Verde-Água:
– Ai, Tia! vossemecê é que me podia valer nesta aflição.
– Pois sim, filha; eu tenho dez anõezinhos muito arranjadores, e mando-tos para tua casa para te ajudarem.
E a velha começou a explicar-lhe o que devia fazer para que os dez anõezinhos a ajudassem; que quando pela manhã se levantasse fizesse logo a cama, em seguida acendesse o lume, depois enchesse o cântaro de água, varresse a casa, aponteasse a roupa, e no intervalo em que cozinhasse o jantar fosse dobando as suas meadas, até o marido chegar. Foi-lhe assim indicando o que havia de fazer, que em tudo isto seria ajudada sem ela o sentir pelos dez anõezinhos. A mulher assim o fez, e se bem o fez melhor lhe saiu. Logo à boca da noite foi a casa da Tia Verde-Água agradecer-lhe o ter-lhe mandado os dez anõezinhos, que ela não viu nem sentiu, mas porque o trabalho correu-lhe como por encanto. Foram-se assim passando as coisas, e o marido estava pasmado por ver a mulher tornar-se tão arranjadeira e limposa; ao fim de oito dias ele não se teve que não lhe dissesse como ela estava outra mulher, e que assim viveriam como Deus com os anjos. A mulher contente por se ver agora feliz, e mesmo porque a féria chegava para mais, vai a casa da Tia Verde-Água agradecer-lhe o favor que lhe fez:
– Ai, minha Tia, os seus dez anõezinhos fizeram-me um servição; trago agora tudo arranjado, e o meu homem anda muito meu amigo. O que lhe eu pedia agora é que mos deixasse lá ficar.
A velha respondeu-lhe:
– Deixo, deixo. Pois tu ainda não viste os dez anõezinhos?
– Ainda não; o que eu queria era vê-los.
– Não sejas tola; se tu queres vê-los olha para as tuas mãos, e os teus dedos é que são os dez anõezinhos.
A mulher compreendeu a coisa, e foi para casa satisfeita consigo por saber como é que se faz luzir o trabalho.


Recolha de Teófilo Braga

16/11/2008

Justiça de Deus

Preso vai o conde, preso,
Preso vai a bom recado;
Não vai preso por ladrão,
Nem por homem ter matado,
Mas por violar a donzela
Que vinha de San Tiago:
Não bastou dormir com ela,
Senão dá-la ao seu criado!
Acometeu-a na serra,
Mui longe do povoado:
Por morta ali a deixara
Sem mais dó, sem mais cuidado
Chorou três dias, três noites,
E mais teria chorado,
Senão que Deus sempre acode
A amparar o desgraçado.
Passou por alo um velho,
Um pobre velho soldado,
Suas barbas brancas de neve,
Em sua espada abordoado;
Vieiras traz na esclavina,
O chapéu delas cercado;
Chegou-se à pobre romeira
Com muito amor, muito agrado:

– «Não chores mais, filha minha,
Filha, demais tens chorado;
Que esse vilão cavaleiro
Preso vai a bom recado.»
Levou consigo a donzela
O bom velho do soldado;
Vão à presença d el-rei,
Onde o conde era levado:

– «Eu te requeiro, bom rei,
Pelo Apóstolo sagrado,
Que nesta sua romeira
O foro seja guardado.
Da lei divina é casar-se,
Da humana ser degolado:
Que não valem fidalguias
Onde Deus é o agravado.»

Disse el-rei aos do conselho
Com semblante carregado:
– «Sem mais detença, este feito
Quero já desembargado.»
– «Visto está o feito, visto,
Julgado está, bem julgado:
Ou há-de casar com ela,
Ou se não... ser degolado.»
– «Pois que me praz» disse o rei:
O algoz que seja chamado:
Ou já casar, co a romeira
Ou aqui ser degolado.»

– «Venham algoz e cutelo.
Respondeu o acusado:
Mas antes morrer mil vezes
Que viver envergonhado»

Agora ouvireis o velho,
O bom velho do soldado:
– «Fazeis, bom rei, má justiça,
Mau feito tendes julgado:
Primeiro casar com ela,
E depois ser degolado.
Lava-se a honra com sangue,
Mas não se lava o pecado»

Palavras não eram ditas,
A espada tinha arrojado,
Despe insígnias de romeiro,
Despe as armas de soldado,
Nos trajos de um santo bispo
Aparece transformado;
Sua mitra de pedras finas,
De oiro puro o seu cajado:
Tomou a mão da romeira,
A mão do conde há tomado,
Por palavras de presente
Ali os tem desposado.
Choravam todos que o viam,
Chorava mais o culpado;
Chorando, pedia a morte
Por não ficar desonrado.
O santo bispo o absolvia
Contrito de seu pecado:
Dali o levam por morto,
Que nem o algoz foi chamado,
Justiça de Deus foi nele,
Antes de uma hora é finado!
Mas acudiu àquela alma
O Apóstolo sagrado,
Que outro não era o romeiro,
O bispo nem o soldado.


Romanceiro, Almeida Garrett





A Bela e a Cobra


Era uma vez um rei que tinha três filhas, uma das quais era muito formosa e ao mesmo tempo dotada de boas qualidades. Chamava-se Bela. O rei tinha sido muito rico, mas, por causa de um naufrágio, ficou completamente pobre.
Um dia foi fazer uma viagem; antes porém perguntou às filhas o que queriam que ele lhes trouxesse. – Eu, disse a mais velha, quero um vestido e um chapéu de seda.
– Eu, disse a do meio, quero um guarda-sol de cetim.
– E tu que queres? – perguntou ele à mais nova.
– Uma rosa tão linda como eu, respondeu ela.
– Pois sim, disse ele.
E partiu.
Passado algum tempo trouxe as prendas de suas filhas, disse à mais nova:
– Pega lá esta linda rosa. Bem cara me ficou ela!
Bela ficou muito preocupada e perguntou ao pai por que é que lhe tinha dito aquilo. Ele, a princípio, não lho queria dizer, mas ela tantas instâncias fez, que ele lhe respondeu que no jardim onde tinha colhido aquela rosa encontrou uma cobra, que lhe perguntou para quem ela era; que ele lhe respondeu que era para a sua filha mais nova e ela lhe disse que lha havia de levar, se não que era morto. Depois disse ela:
– Meu pai, não tenha pena, que eu vou.
Assim foi. logo que ela entrou naquele palácio, ficou admirada de ver tudo tão asseado, mas ia com muito medo. O pai esteve lá um pouco de tempo e depois foi-se embora. Bela, quando ficou só, foi a uma sala e viu a cobra. Ia-se a deitar quando começaram a ajudarem-na a despir. Estava ela na cama quando sentiu uma coisa fria; deu um grito e disse-lhe uma voz: – Não tenhas medo.
Em seguida foi ver o que era e apareceu-lhe uma cobra. Ela, a princípio, assustou-se, mas depois começou a afagá-la. Ao outro dia de manhã apareceu-lhe a mesa posta com o almoço. Ao jantar viu pôr a mesa, mas não viu ninguém; a noite foi-se deitar e encontrou a mesma cobra. Assim viveu durante muito tempo, até que um dia foi visitar o pai; mas quando ia a sair ouviu uma voz que lhe disse:
– Não te demores acima de três dias, senão morrerás.
Ia a continuar o seu caminho e já se esquecia do que a voz lhe tinha dito. Chegou a casa do pai. Iam a passar três dias quando se lembrou que tinha de tornar; despediu-se de toda a sua família e partiu a galope; chegou lá à noite, foi-se deitar, como tinha de costume, mas já não sentiu o tal bichinho. Cheia de tristeza, levantou-se pela manhã muito cedo, foi procurá-lo no jardim e qual não foi a sua admiração vendo-o no fundo dum poço! Ela começou a afagá-lo chorando; mas, quando chorava, caiu-lhe uma lágrima no peito da cobra; assim que a lágrima lhe caiu a cobra transformou-se num príncipe, que ao mesmo tempo lhe disse:
– Só tu, minha donzela, me podias salvar! Estou aqui há uns poucos de anos e, se tu não chorasses sobre o meu peito, ainda aqui estaria cem anos mais.
O príncipe gostou tanto dela que casou com ela e lá viveram durante muitos anos.


Recolha de José Leite de Vasconcelos

[cobra.jpg]

13/11/2008

O limpador de chaminé

POR acaso você já viu um desses armários antigos, todos negros de velhice, com espirais e flores esculpidas? Pois era exactamente um desses armários que se encontrava no aposento: ele vinha da trisavó e de cima até em baixo era ornado de rosas e tulipas esculpidas.
Mas o que havia de mais estranho, eram as espirais, de onde saíam pequenas cabeças de veado com seus grandes chifres. No meio do armário via-se esculpido um homem de singular aparência: fazia uma careta, pois não se podia dizer que ele sorria.
Tinha pernas de bode, pequenos chifres na cabeça e uma longa barba. As crianças o chamavam de o Grande-General-Comandante-em-Chefe-Perna-de-Bode, nome que pode parecer longo e difícil, mas um título com o qual poucas pessoas foram honradas até hoje.
Enfim, ele estava lá, com os olhos sempre fixos no consolo colocado sob o grande espelho, em cima do qual estava posta uma graciosa pequena pastora de porcelana.
Ela usava sapatos dourados, um vestido enfeitado com uma rosa viçosa, um chapéu dourado e um cajado: era encantadora. Ao lado dela estava um pequeno limpador de chaminés, negro como carvão, e de porcelana também.
Ele era muito bonito, pois, na realidade, não era senão o retrato de um limpador de chaminés. O fabricante de porcelana poderia ter feito dele um príncipe, o que teria sido a mesma coisa.
Mantinha graciosamente sua escada sob um braço e seu rosto era vermelho e branco como o de uma moça; o que não deixava de ser um defeito que se poderia ter evitado colocando nele um pouco de preto. Ele quase tocava a pastora: tinham-nos colocado ali e eles ficaram noivos.
Assim, um combinava com o outro: eram dois jovens feitos da mesma porcelana e todos dois igualmente fracos e frágeis.
Não longe deles havia uma outra figura três vezes maior: era um velho chinês que sabia balançar a cabeça. Também era em porcelana; acreditava ser o avô da pequena pastora, mas nunca pudera prová-lo.
Afirmava ter todo o poder sobre ela e foi por isso que respondeu com um amável inclinar de cabeça ao Grande-General-Comandante-em-Chefe-Perna-de-Bode, quando este pediu a mão da pequena pastora.
– Que marido você terá ali!, – disse o velho chinês –, que marido! Creio mesmo que ele é de acaju. Fará de você a senhora Grande-General-Comandante-em-Chefe-Perna-de-Bode; tem seu armário cheio de pratarias, sem contar o que tem escondido nas gavetas secretas.
– Jamais entrarei naquele armário sombrio – disse a pequena pastora – ouvi dizer que ele tem lá dentro onze mulheres de porcelana.
– E daí? Você será a décima-segunda – disse o chinês. – Esta noite, quando o velho armário começar a estalar, realizaremos o casamento, tão certo como eu ser um chinês.
E ao dizer isso ele balançou a cabeça e adormeceu.
Mas a pequena pastora chorava fitando o seu bem-amado limpador de chaminés.
– Por favor – disse ela – ajude-me a fugir pelo mundo, não podemos mais ficar aqui.
– Eu desejo tudo o que você deseja – disse o pequeno limpador de chaminés. – Vamos fugir; creio que poderei ajudá-la.
– Contanto que nós desçamos do consolo – disse ela – não estarei tranquila enquanto não nos virmos fora daqui.
Ele tranquilizou-a, mostrando-lhe como ela devia colocar seus pezinhos sobre os rebordos esculpidos e sobre a folhagem dourada. Ajudou-a inclusive com a sua escada e logo eles atingiram o assoalho. Mas ao se voltarem para o velho armário, notaram que tudo estava em revolução. Todos os veados esculpidos alongavam a cabeça e viraram o pescoço. O Grande-General-Comandante-em-Chefe-Perna-de-Bode deu um salto e gritou para o velho chinês: “Que fogem! estão fugindo!”
Então eles foram refugiar-se na gaveta do armário da janela.
Lá se encontravam três ou quatro baralhos incompletos e um teatrinho que tinha sido construído. Representavam ali uma comédia, e todas as damas, que pertenciam à família dos naipes de ouros ou espadas, de copas ou paus, estavam sentadas nos primeiros lugares e se pavoneavam com suas tulipas; e atrás delas estavam todos os valetes, que tinham por sua vez uma cabeça em cima e outra em baixo, como acontece com as cartas de baralho.
Tratava-se na peça de um casal que se amava, mas que não podia casar-se. A pastora chorou muito, pois ela pensava tratar-se da sua própria estória.
– Isto me faz muito mal., – disse ela –, preciso deixar esta gaveta.
Mas assim que se puseram no chão novamente e lançaram um olhar para o consolo, perceberam que o velho chinês acordara e que se agitava violentamente.
– Aí vem o velho chinês!, – gritou a pequena pastora, caindo sobre os seus joelhos de porcelana, totalmente desolada.
– Tenho uma ideia – disse o limpador de chaminés. – Vamos nos esconder no fundo do grande cântaro que está lá no canto. Dormiremos sobre as rosas e as lavandas, e, se eles vierem, jogaremos água nos olhos deles.
– Não, isso seria inútil – respondeu ela. – Sei que o velho chinês e a jarra já foram noivos e fica sempre um quê de amizade após semelhantes relações, mesmo muito tempo depois. Não, não temos outro recurso senão fugir pelo mundo.
– E você tem coragem, realmente? – disse o limpador de chaminés. – já pensou em como o mundo é grande? Talvez nunca mais possamos voltar para cá.
– Pensei em tudo – retrucou ela.
O limpador de chaminés fitou-a longamente e disse a seguir: – O melhor caminho para mim é pela chaminé. Você tem mesmo coragem de subir comigo ao longo dos canos? Somente por ali é que poderemos chegar à chaminé e lá eu saberei voltar. Precisamos subir o mais alto possível e bem no alto encontraremos um buraco pelo qual entraremos no mundo.
Ele levou-a até a porta do fogão:
– Deus! como é negro aqui dentro!, – gritou ela.
Enquanto isso, ela o seguiu com bravura e sem hesitação e de lá passaram para os canos, onde fazia uma noite negra como breu.
– Olha a chaminé, – disse ele. – Coragem! O passo mais difícil foi dado. Não tenha medo. Olhe, olhe lá para cima e veja que estrela maravilhosa está brilhando.
Havia realmente no céu uma estrela que, com seu brilho, parecia mostrar-lhes o caminho: e eles subiam, subiam sempre. Era uma estrada perigosa, tão alta! Mas ele a levantava, sustentava-a e mostrava-lhe os melhores lugares em que colocar os seus pezinhos de porcelana.
Chegaram assim até o rebordo da chaminé. Ele saiu em primeiro lugar; e ela o seguiu, muito feliz por deixar finalmente aquele caminho sombrio. Sentaram-se para descansar, tão fatigados estavam!
E tinham motivos para isso!
O céu com todas as suas estrelas se estendia acima deles e os tetos da cidade apareciam lá em baixo.
Passearam seus olhares bem longe em volta deles, por aquele mundo que eles viam pela primeira vez.
A pequena pastora, que vivera até então no consolo, jamais pensara que o mundo fosse assim tão vasto: apoiou a sua cabecinha no ombro do limpador de chaminés e chorou tanto, que suas lágrimas lhe chegaram até a cintura.
– É muito, – disse ela; – muito mais do que eu poderia suportar. O mundo é muito grande: oh! não estou mais em cima do consolo, perto do espelho! Não seria feliz se não voltasse. Segui-o pelo mundo; agora leve-me novamente para lá, se você me ama verdadeiramente.
E o limpador de chaminés falou-lhe sensatamente; lembrou-lhe os dias monótonos que ela passara sobre o consolo, o velho chinês e o Grande-General-Comandante-em-Chefe-Perna-de-Bode.
Mas ela não se deixou convencer, queria descer a todo custo e soluçava tão forte, agarrando-se ao seu pequeno limpador de chaminés, que este não pôde fazer mais do que ceder, embora achasse isto insensato.
Dizendo adeus ao céu estrelado, eles começaram a descer a muito custo pela chaminé; a pequena pastora escorregava a cada passo mas o limpador de chaminés a amparava; chegaram finalmente ao fogão.
Não fora por certo uma viagem de prazer e eles pararam na porta do fogareiro sombrio para ouvir o que se passava no aposento.
Tudo estava muito tranquilo: docemente eles puseram a cabeça para fora, a fim de ver o que havia por ali.
Ai de mim! o velho chinês jazia no assoalho. Caíra do consolo ao querer persegui-los e se quebrara em três pedaços. As costas tinham-se destacado do restante do corpo e a cabeça rolara para um canto.
O Grande-General-Comandante-em-Chefe-Perna-de-Bode conservava sempre a mesma posição e reflectia.
– É terrível, – disse a pequena pastora, .o velho avô quebrou-se e nós é que fomos a causa! Oh! não poderei sobreviver a essa infelicidade!
E cheia de desespero em frente ao seu avô partido em três pedaços, ela apertava as suas mãozinhas.
– Podemos colá-lo, – disse o limpador de chaminés; – sim, podemos colá-lo. Vamos, não fique triste; se colarmos as costas dele e pusermos uma boa atadura na nuca, ele ficará tão sólido e parecerá novo e poderá ainda dizer-nos uma série de coisas desagradáveis. Vamos, pare de chorar. Garanto-lhe que nada está perdido; seu estado não é desesperador.
– Você acha? – perguntou ela.
E eles subiram para o consolo onde viviam há tanto tempo.
– Veja onde chegamos – disse o limpador de chaminés, que era muito sensato; – .por que fizemos tão longa viagem? Poderíamos ter poupado tanto trabalho..
– Oh! Ainda se ao menos o velho avo estivesse colado! – Que felicidade para mim – disse a pequena pastora. – Acha que essa operação custará muito caro?
E o avô foi colado. Chegaram até a colocar-lhe uma atadura no pescoço e ele ficou como novo. Só que não podia mais mexer com a cabeça.
– O senhor está muito bem depois da sua enfermidade – disse-lhe o Grande-General-Comandante-em-Chefe-Perna-de-Bode. Parece-me que não tem nenhum motivo para ficar tão abatido; afinal, quer me dar a mão de sua neta ou não?.
O limpador de chaminés e a pequena pastora lançaram um olhar terno sobre o velho chinês: sabiam que ele não moveria a cabeça; mas não podia fazê-lo, e teria vergonha de confessar que tinha uma atadura no pescoço.
Graças a essa enfermidade, o casal de porcelana pôde continuar junto; renderam graças à atadura no pescoço do avô e se amaram até o dia em que eles mesmos foram quebrados.

Hans Christian Andersen



10/11/2008

Lenda do Castelo de Almourol



No século XII era senhor de Almourol habitando o castelo com o mesmo nome, um emir árabe chamado Almorolon mais a sua adorada e formosa filha .
Quis o destino que a bela jovem se enamorasse dum cavaleiro cristão, a tal ponto que lhe revelou de que forma poderia entrar no castelo sem perigo e às escondidas .Mas os objectivos do cavaleiro eram outros .E assim traiçoeiramente numa dessas visitas nocturnas , deixou a porta do castelo entreaberta a companheiros seus que perto e emboscados aguardavam pelo momento certo.
O Castelo foi então rápida e traiçoeiramente conquistado. Mas triste vitória foi esta, já que o emir e sua filha, estreitamente abraçados, lançaram-se das muralhas do castelo ao rio, preferindo tal morte ao cativeiro resultante de tão vil e humilhante derrota .

O Servo Vigilante

Estejam cingidos os vossos lombos, e acesas as vossas candeias. E sede vós semelhantes aos homens que esperam o seu senhor, quando houver de voltar das bodas, para que quando vier e bater, logo possam abrir-lhe.
Bem-aventurados aqueles servos, os quais, quando o senhor vier achar vigiando! Em verdade vos digo que se cingirá e os fará assentar à mesa e chegando-se os servirá. E, se vier na segunda vigília, e se vier na terceira vigília, e os achar assim, bem-aventurados são os tais servos.
Sabei, porém, isto: se o pai de família soubesse a que hora haveria de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria minar a sua casa. Portanto, estai vós também apercebidos: porque virá o Filho do Homem à hora que não imaginas.
E disse-lhe Pedro: Senhor, dizes essa parábola a nós ou também a todos? E disse o Senhor: Qual é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor pôs sobre os seus servos, para lhes dar a tempo a ração? Bem-aventurado aquele servo a quem o senhor, quando vier achar fazendo assim.
Em verdade vos digo que sobre todos os seus bens o porá. Mas, se aquele servo disser em seu coração: O meu senhor tarda em vir, e começar a espancar os criados e crianças, e a comer e a beber e a embriagar-se. Virá o senhor daquele servo no dia em que o não espera, e numa hora que ele não sabe, e separá-lo-á e lhe dará a sua parte com os infiéis.
E o servo que soube a vontade do seu senhor e não se aprontou, nem fez conforme a sua vontade será castigado com muitos açoites. Mas o que a não soube e fez coisas dignas de açoites, com poucos açoites será castigado. E a qualquer que muito for dado, muito se lhe pedirá, a ao que muito se lhe confiar, muito mais se lhe pedirá.


Parábolas de Jesus
Evangelho de Lucas cap. 12 vers. 35-48



Os ferreiros de Penela

Muito perto de Penela existem dois montes elevados, em forma de cone, que a lenda diz terem sido habitados por dois irmãos ferreiros, Melo e Jerumelo. Estando cada um em seu monte com a sua respectiva forja, possuíam apenas um martelo do qual se serviam alternadamente. A distância entre o topo dos dois montes era curta, assim de dois quilómetros mais ou menos, e os dois irmãos atiravam o martelo um ao outro quando dele precisavam. Decerto que já perceberam que estes irmãos eram gigantes porque de outro modo não teriam força para atirar o martelo. Um dia, Jerumelo zangou-se com o irmão e atirou-lhe o malho com tanta força que este se desconjuntou, caindo o ferro na encosta do monte Melo com tanta força que lhe fez brotar uma fonte de água férrea. O cabo de madeira de zambujo foi espetar-se na terra a dois quilómetros de distância, fazendo nascer um zambujo, que veio dar o nome à povoação de Zambujal. A prova de que esta história tem um fundo verdadeiro está nas ruínas da forja do irmão Melo, que ainda hoje se encontram no cimo do monte com o mesmo nome.


Lenda de Penela (distrito de Coimbra)




O leão velho


Decrépito o leão, terror dos bosques,
E saudoso da antiga fortaleza,
Viu-se atacado pelos outros brutos,
Que intrépidos tornou sua fraqueza.

Eis o lobo com os dentes o maltrata,
O cavalo com os pés, o boi com as pontas,
E o mísero leão, rugindo apenas,
Paciente digere estas afrontas.

Não se queixa dos fados, porém vendo
Vir o burro, animal d'ínfima sorte:
"Ah! Vil raça! — lhe diz — morrer não temo,
Mas sofrer-te uma injúria é mais que morte!"

Bocage (Trad.)

09/11/2008

Lenda de Monserrate




Diz a tradição que nos tempos de domínio árabe morou naquele sítio, no alto da Penha, um moço árabe ou fidalgo cristão, que tinha grande predomínio com todas as famílias cristãs que habitavam a serra.
Esse moço árabe andava em rixa velha com o alcaide do castelo de Sintra, resultando dessa discórdia este vir desafiá-lo a um duelo. Deste duelo resultou a morte do moço árabe que ficou estendido no chão. Logo foi tido em conta por toda a gente como mártir, ao qual levantaram um túmulo e depois uma capelinha de oração.

Esta pequena ermida com o tempo ruiu, sendo em 1500 substituída por outra, edificada pelo padre Gaspar Preto, sob a invocação de Nossa Senhora de Monserrate, tendo vindo de Roma a imagem da Virgem, feita de alabastro.


07/11/2008

Doçura e bondade

Há entre vós, meus filhos, índoles violentas, que não sabem dominar-se, e que se deixam arrastar pelas primeiras impressões. É um grande defeito, e urge emendá-lo:
conduz a desavenças e à prática de acções, cujo arrependimento chega tarde. Citar-vos-ei dois casos, de que fui testemunha.
Um rapaz, sacudido violentamente na rua por um homem que vinha diante dele, volta-se e dá-lhe uma bofetada.
– Oh! senhor! exclamou o outro, mal sabe o remorso que vai ter! bateu num cego!
Um homem ainda novo montado num burro, atravessava uma aldeia, e uns camponeses grosseiros começaram a apupá-lo e a bater no burro, para o fazer correr. O homem apeou-se, foi direito a eles, e mostrando-lhes a sua perna aleijada, disse-lhes:
– Se soubésseis que eu era coxo, não teríeis sido tão covardes.
Os camponeses, envergonhados, coraram, afastando-se sem pronunciar uma palavra.
Que vos parece estas duas lições? Estou convencido que aproveitaram a quem as recebeu.





04/11/2008

O pelicano

Enquanto o pelicano foi buscar alimento, uma cobra, escondida entre os galhos, dirigiu-se para o ninho.
Os filhotes dormiam tranquilamente.
A cobra aproximou-se, e com um brilho de maldade nos olhos, deu início a matança. Uma mordida venenosa em cada um, e as pobres criaturinhas passaram directamente do sono à morte.
Satisfeita, a cobra voltou para seu esconderijo a fim de observar a reacção do pelicano.
Dentro em pouco o pássaro estava de volta.
À vista de tal carnificina começou a chorar, e seu lamento era tão desesperado que todos os habitantes da floresta ouviram e se entristeceram.
- Que sentindo tem minha vida sem vocês? - disse o pobre pássaro, olhando para os filhotes mortos - quero morrer com vocês!
E pôs-se a bicar o próprio peito, bem no lugar do coração. O sangue jorrou da ferida e escorreu para cima dos filhotes que a cobra matara.
Porém de repente o pelicano agonizante teve um sobressalto. Seu sangue morno devolvera a vida aos filhotes. Seu amor ressuscitara-os. Então, finalmente feliz, morreu.