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30/06/2011

Lenda dos Três Milagres

Ora, bem. Em tempos que já lá vão, na penumbra do passado, certo rei espanhol, desesperado por não ter descendentes, resolveu confiar os seus desejos ao próprio Céu. E como chegassem até ele notícias de que em Portugal — no sítio de Aldeia Rica, no concelho de Celorico da Beira — existia uma imagem de Nossa Senhora que operava milagres sem fim — o rei e a rainha pediram a Nossa Senhora que lhes fizesse o milagre de terem um filho... E o filho nasceu!

Porém, quis a fatalidade que a pobre criança se aleijasse, tornando-se num menino inválido, o que lançou novas amarguras no coração de seus pais.
A rainha lamentava-se tristemente:
— Meu pobre filho! Meu querido filho! Custa-me tanto vê-lo sofrer assim!
O rei abria os braços, molemente, num gesto de desânimo.
— Que mais podemos nós fazer?... Já chamámos todos os sábios... Já tentámos tudo... tudo!
Foi a vez de a rainha ter um breve assomo de energia:
— Tudo, não! Escutais bem o que eu digo? Tudo, ainda não!... Resta-nos ir pedir à Virgem, que no-lo deu... que o salve também!
E tamanha era a fé da sua expressão, tão vivo o fogo do seu olhar, que o rei se quedou, surpreendido e dominado, diante dela.
— Pois é possível?... Vós ainda acreditais noutro milagre?...
Ela ergueu o olhar para o alto e disse, como se falasse para o próprio Céu:
— E porque não? Só a Fé nos pode salvar, meu Rei e Senhor!
Ele voltou ao seu passeio agitado.
— Talvez… talvez a razão esteja convosco... Mas é muito perigoso expor assim a criança por esses caminhos... A tal Aldeia Rica de que nos falaram fica tão longe daqui!...
De novo estacou. Desalentado. Acabrunhado.
— Não considerais uma temeridade? Que terrível será, se sofrermos essa última desilusão!
A rainha, porém, insistiu:
— Por mim, farei a viagem toda, sem medo de sentir qualquer cansaço...
O seu olhar iluminou-se ao dizer:
— Essa Virgem é a mais milagrosa de todas de que tenho ouvido falar...
Com um gesto, indicou ao rei que se sentasse junto dela.
— Sabeis como apareceu?
E como o rei aquiescesse ao convite, ela continuou, num crescendo de entusiasmo:
— Eu vos conto... Um pastor passava por ali, um dia, com seu rebanho de vacas, quando uma das vacas caiu à água... Tresloucado, o homem correu atrás do animal e ficou em perigo de vida... Foi então que pediu a Nossa Senhora que lhe valesse... E assim aconteceu, na verdade... Por milagre divino, salvaram-se o pastor e a vaca... E a notícia do prodígio espalhou-se por muitas léguas em redor, de tal modo que o povo ergueu nesse mesmo local uma capelinha a Nossa Senhora...
O rei escutava-a em silêncio. Ainda trémula, ainda emocionada, a rainha ajuntou, como quem reza uma prece:
— Ah, se Ela quiser... se Nossa Senhora quiser... o nosso filhinho também se há-de salvar!
O rei tornou a erguer-se, pensativo.
— O que me dizeis, senhora, é realmente extraordinário... E há uma força íntima nas vossas palavras… um ardor no vosso olhar... que me fazem crer em tudo o que dizeis!
Depois de hesitar um momento, voltou a ser o monarca das grandes decisões.
— Pronto, Senhora. Faça-se a vossa vontade. Iremos em romagem, com o nosso filhinho, a Nossa Senhora dos Milagres!
Imediatamente el-rei deu ordens para a partida. Iriam apenas ele, a rainha, o pequeno príncipe e um grupo de cavaleiros fiéis e corajosos.
Porém, apesar de todo o segredo, o povo soube do caso e veio para a rua, silencioso e triste, desejar igualmente boa sorte ao principezinho e a seus pais, que assim partiram, entre lágrimas e bênçãos, a caminho da terra portuguesa...

Todavia, a fatalidade parecia persegui-los passo a passo. Quando já faltavam poucas léguas para chegarem à Aldeia Rica, o alarme soou imprevisto e fatal, espalhando a dor e o pânico.
Transtornado e violento, o rei fez sinal de que todos estacassem.
— Parem! Parem! Meu filho já não dá acordo de si... Está morto! Está morto, o meu filho!
Soluçando, perdida, a pobre mãe mais parecia mísera mulher do que poderosa rainha.
— Meu filho, meu querido menino!... Agora que faltava tão pouco... que estávamos quase a chegar!...
Batendo forte no peito, el-rei clamava, num desespero:
— Fui eu que tive a culpa... toda a culpa!... Sim… para que acedi eu aos vossos desejos?... Bem devia ter calculado que esta viagem podia matá-lo!
Sempre chorando, a rainha implorava:
— Oh, minha Nossa Senhora, porque consentistes nisto? Porquê, Senhora?... E eu que vos pedi com tanta fé, com tanta...
Mais não disse, pois as lágrimas lhe embargaram a voz. O rei resolveu então terminar de vez com tão triste provação.
— De nada vos servem as lágrimas, Senhora. Resta-nos enterrá-lo aqui mesmo.
Inesperadamente, essa frase deu novo impulso de coragem à pobre mãe amargurada.
— Não, isso nunca! Não consinto! Não posso consentir!
A sua excitação era tal que o monarca quedou perplexo.
— Que dizeis, Senhora?
Chamando a si todos os débeis laivos de coragem que lhe restavam, a rainha conseguiu dizer lentamente:
— Perdoai-me... mas na verdade não posso, não quero consentir que o nosso filho seja enterrado aqui, neste ermo...
Juntou as mãos em súplica, e acrescentou, novamente trémula e desfeita em lágrimas:
— Permiti, Senhor meu rei e meu esposo, que, apesar de tudo, eu leve o nosso filho aos pés da Virgem Santa... De qualquer modo, cumpriremos a nossa promessa!
Por instantes, de espantado que ficou, o monarca deu ares de recusar terminantemente tal pedido. Mas, por fim, como quem se abandona aos caprichos do destino, aquiesceu.
— Farei o que entenderdes, Senhora!... Já nada mais quero resolver. Depois de tudo isto, a fé morreu em mim... morreu com ele!... Prossigamos viagem, como desejais... E quanto mais depressa acabarmos, melhor!
Voltando-se para o resto da caravana comandou num berro.
— Vamos! A caminho!

Ao cabo de uma jornada angustiante, chegaram finalmente à pequena capela erguida pela fé do povo.
Logo a rainha desceu, levando nos braços o filhinho morto. E avançando devagar, quanto as forças lho permitiam, para a capela, clamava em voz mal segura e entrecortada pelo choro:
— Virgem dos Milagres... Aqui vos trago o meu filho, já sem vida, cuja esperança de salvação eu depositara em Vós, Senhora! Tinha tanta esperança que o salvásseis... e ele morreu pelo caminho… não aguentou a viagem... E eu aqui Vos deixo, Senhora, o meu querido menino... Fazei dele o que quiserdes... Dele e de nós, que somos Vossos escravos!
Depositou o corpo do jovem príncipe junto do altar da Virgem e ajoelhou, entregando-se ao lenitivo da oração...

Entretanto, o rei e os seus cavaleiros tinham-se afastado. Agora o rei, como dissera, não queria acreditar mais em milagres. Preferia dedicar-se à caça, para passar o tempo. A certa altura vieram dizer-lhe que um dos caçadores, transgredindo a lei, se atrevera a soltar um açor.
O rei imediatamente aproveitou o pretexto para fazer explodir todo o rancor armazenado em si.
— Pois esse miserável não sabe que os açores são aves sagradas para mim?... As mais belas aves do mundo!... Ele pagará o seu crime, e sem demora!
Cruzou os braços e ordenou com voz dura:
— Trazei-o à minha presença, e ele ficará a saber de uma vez para sempre que as minhas ordens não podem ser contrariadas!
Daí a pouco, o prevaricador estava diante do seu rei.
— Ah, foste tu... foste tu que tiveste o atrevimento de soltar um açor?
O homem suportou estoicamente o olhar raivoso do monarca, fez um gesto inútil para se libertar dos que o prendiam e disse devagar, em voz forte e calma:
— Sim, fui eu. E só tenho pena de não ter conseguido soltar também os outros açores!
Isso ainda mais enfureceu o rei.
— Estais a ouvi-lo, não é verdade?... Confessa tudo... e confessa até que o seu crime poderia ser maior, se o tivessem deixado!...
Deu um passo em frente, fitando o prisioneiro, sem piedade.
— E porquê?... Porque fizeste tudo isso, miserável?
O outro pareceu não se amedrontar com o tom da pergunta. Pelo contrário, limitou-se a sorrir. A sorrir e a afirmar, como quem presta um esclarecimento:
— Os açores fizeram-se para voar nos céus e não para estar presos!
Uma gargalhada ruim saiu do coração do rei.
— Imbecil! Mil vezes imbecil!... As filosofias não te salvam... Vais pagar com a vida o teu atrevimento!
O prisioneiro voltou a sorrir. Um sorriso sereno, tranquilo, sem espalhafato.
— Como quiseres, rei absoluto e tirano. Mas aquele açor que eu libertei e que vedes agora voando livremente no céu, esse, graças a Deus, não mais o apanharás!
O monarca não podia aguentar aquela imperturbável presença de espírito. Fez um gesto violento e deu a ordem final:
— Levem-no! E comecem já por lhe cortar a mão que deu a liberdade ao açor...
Tudo se preparou rapidamente para cumprir a ordem real. O caçador foi amarrado e somente lhe deixaram livre a mão que iam cortar.
Sem mostrar medo algum, o prisioneiro ergueu os olhos ao Céu.
— Minha Nossa Senhora, que se faça a Vossa Vontade... A vida para nada me serve... E, ao menos, consegui dar liberdade a uma das minhas aves... E quero também pedir-vos, Senhora...
Mas a voz exaltada do rei interrompeu-o, obrigando-o a calar-se.
— Que esperais, idiotas, para cumprir as minhas ordens? Não quero que a rainha assista a esta execução e ela está prestes a terminar as suas orações... Vamos, despachai-vos!... Cortai-lhe a mão!
Nesse mesmo instante, quando o machado já se erguia no espaço, o bonito açor, que voava no alto majestosamente, de súbito renunciou à liberdade e, com grande espanto de todos os presentes, veio pousar suavemente na mão livre do caçador.
Este deu largas à sua alegria enorme.
— Milagre! Milagre! Foi Nossa Senhora que me fez este milagre!
Nesse mesmo momento, a rainha surgiu. Emocionada. Correndo.
— Milagre, Senhor meu rei, grande milagre! Vede com os vossos próprios olhos... Nosso filho está vivo!... Vivo e completamente curado!
E apontando, a tremer, o jovem que se aproximava, balbuciou num fervor de risos e de lágrimas:
— Vede como ele anda!... Vede como ele sorri!...
Num êxtase de fé, a rainha caiu de joelhos, erguendo as mãos e os olhos para o alto.
— Foi um milagre de Nossa Senhora!
Ainda aturdido, o rei limitou-se a baixar a cabeça, como que vergado ao peso de um fardo oculto, e a confessar em voz baixa:
— Tendes razão, Senhora, tendes razão... Milagre maior ainda não vi... Insensato que eu fui em não acreditar!
Caiu também de joelhos ao lado da rainha, clamando para todos os outros:
— Ajoelhai, todos... fazei como eu!... De joelhos, no chão, junto da Rainha, para darmos graças a Nossa Senhora... mil graças por tamanho milagre!
Todos se ajoelharam e se mantiveram em oração muda e sentida. Depois o rei ergueu-se e ordenou, indicando ao caçador prisioneiro:
— Libertem esse homem imediatamente! E dai liberdade também a todos os açores... Os açores fizeram-se para voar nos céus, como ele disse, e muito bem... E fiquem todos a saber que hei-de construir aqui, em vez desta capelinha, como preito de homenagem e gratidão, a igreja de Santa Maria dos Açores!

Segundo tudo parece demonstrar, el-rei cumpriu a sua promessa. E ainda hoje lá está, na antiga Aldeia Rica, aí a uns oito quilómetros de Celorico da Beira, a igreja de Nossa Senhora dos Açores.
E a perpetuar a história dos três milagres, lá estão igualmente três bonitos painéis que representam «O Aparecimento da Virgem ao Rústico da Vaca», «O Açor Pousado na Mão do Caçador» e «O Filho do Rei, Já Ressuscitado».


Gentil Marques
Celorico da Beira




28/06/2011

O gato e a raposa



O gato e a raposa andavam a correr o mundo. Eram muito amigos, apesar da raposa estar sempre depreciando o compadre.
- Afinal de contas, amigo gato, por que não aprende mais truques para fugir dos cachorros que nos perseguem? Sempre ouvi dizer que você é muito inteligente. Será verdade?

- Sei subir rapidamente em árvores, é o que me basta, disse o gato. Vivo muito bem assim. Os cachorros nunca vão me pegar.

A raposa deu um sorriso matreiro:
- Você só sabe isso? Pois, eu sei 99 truques diferentes! Conheço mil manhas, cada uma melhor que a outra. Finjo-me de morta, me escondo nas folhas secas, nas moitas, corro em zigue-zague, disfarço minhas pegadas, sei me esconder atrás de árvores....
Ela continuaria enumerando todos os seus truques senão ouvisse uma matilha de cães chegando. O gato, mais do que rápido, subiu na árvore mais próxima.
A raposa, perseguida de perto, começou a por em prática todos os seus truques mirabolantes... Mas, tudo foi em vão. Os cachorros acabaram por alcançá-la.
E, lá de cima da árvore, bem seguro, o gato pensou:
"Pobre comadre raposa. É sempre preferível saber bem uma só coisa, a saber mal 99 coisas diversas."

Moral: Desconfie das estratégias complicadas. A melhor solução para um problema pode ser a mais simples.


Fábulas de Esopo

Laura e o papagaio



O que eu vou contar, li no jornal. Era uma notícia. Passa a ser uma história.
Um senhora, chamada Laura, tinha uma sapataria. Para atrair a clientela, trouxera de casa um papagaio exótico e multicolor, uma raridade em forma de papagaio.
Uma vez, a loja foi assaltada. O ladrão, entre outros valores, levou-lhe o papagaio, a atracção da loja, por assim dizer o emblema vivo da sapataria.
A senhora Laura ficou desolada.
- Podiam ter-me roubado tudo, menos o papagaio - lamentava-se ela a toda a gente.
Na cidade onde isto se passou, o caso foi comentado. Aconteceu que uns garotos, que andavam pelos arredores, a apanhar caracóis, ouviram, vindo de um casebre isolado, uma vozinha inconfundível gritar:
- Laura! Laura! Laura!
Foram fazer queixa à esquadra. Vieram uma quantidade de polícias, que cercaram a casa, e atrás deles a dona da loja. Quando entraram no casebre e viram o papagaio, deram logo ordem de prisão ao vagabundo, que lá vivia.
Ele tentou desculpar-se, dizendo que tinha encontrado o papagaio, empoleirado numa vedação, mas as botas impecavelmente novas que o homem ostentava não deixaram margem para dúvidas.
Quando a senhora da sapataria, de olhos lacrimejantes, entrou, por sua vez, na casa do ladrão, o papagaio exclamou:
- Laura, Laura, até que enfim.
A história acaba bem, menos para o ladrão.
Comentário de um dos polícias que participou na captura: ?Quem rouba um papagaio que fala, o melhor é ensiná-lo a calar-se..."

António Torrado

26/06/2011

O voo de Hanuman



Com um salto descomunal, Hanuman lançou-se sobre o mar.
Sabendo que o macaco era filho do vento, o oceano pediu a Mainaka, a montanha submersa, que se erguesse bem alto e se oferecesse como um lugar de repouso para Hanuman.
-Agradeço, mas não posso interromper o voo – disse ele, apoiado no ar e tocando a montanha com a ponta do dedo.
Quando os deuses viram o filho do vento varando o espaço, resolveram testar sua força e mandaram Surasa, a mãe das serpentes, devorá-lo. No momento em que ela abriu a boca, o macaco duplicou deu corpo. A serpente abriu a boca ainda mais e ele ficou cem vezes maior.
Por fim, quando ela escancarou a bocarra, Hanuman diminuiu de tamanho, entrou lá dentro e tornou a sair.
-Experimentei sua esperteza e sua força – disse Surasa – e foi para isso que os deuses me mandaram. Você será capaz de cumprir a tarefa.
Hanuman continuou o voo.
Uma figura demoníaca, que vivia no meio do oceano, ao ver na água os reflexos das criaturas que voavam, agarrava-lhes as sombras e elas, assim presas, serviram de comida àquela boca voraz. Quando a diaba pegou a sombra do macaco voador, ele se tornou bem pequeno, entrou no corpo dela, espremeu-lhe o coração e sai pela orelha. A diaba caiu no fundo do mar e foi devorada pelos peixes.
Chegando a cidade de Lanka, Hanuman esperou anoitecer, pousando num rochedo. Depois, tomando a forma de um gatinho, transpôs as muralhas da cidade.
Lankini, a guardiã, percebendo sua chegada perguntou:
-Você aí, aonde vai? Não sabe que todo ladrão intruso é minha comida?
Hanuman lhe deu um soco tão forte que ela vomitou sangue. Mas recuperando-se, levantou e disse que a profecia tinha se cumprido:
-Quando você receber o soco de um macaco, fique sabendo que está tudo acabado com a raça dos demónios – avisavam as palavras proféticas.
Depois de atingir com um salto o palácio de Ravana, de se meter entre os demônios-vigias, de procurar nos jardins e nos pátios, o macaco acabou descobrindo Sita, magra, pálida e abatida, num pequeno bosque atrás do palácio.
Escondido no alto de uma árvore, Hanuman observou a chegada de Ravana, que tentava agradar a moça, sem sucesso. Sita lhe dizia:
-Escute aqui, Dez Cabeças, pode uma flor de lótus florir com a luz de um vaga-lume? Não temes a setas de Rama? Bandido, você me raptou quando estava só. Não se envergonha disso?
Furioso, Ravana ordenou que as bruxas a atormentassem. Mas uma delas resolveu ficar do lado da moça, pedindo-lhe que a salvasse e às suas companheiras, por causa de um sonho profético que tivera. No sonho, aparecia um macaco que incendiava a cidade e matava os demónios e as bruxas, enquanto Ravana, nu, montado num asno, estava com todas suas dez cabeças raspadas e seus vinte braços cortados. Sita prometeu livrá-las da morte.
E foi então que a prisioneira descobriu Hanuman no esconderijo. Apresentando-se como criado e mensageiro de Rama, o macaco lhe entregou o anel conforme o desejo de seu senhor.
-Posso levá-la comigo agora mas não tenho ordens de Rama para fazê-lo. Espere mais uns dias e ele próprio virá com uma tropa de macacos para libertá-la – explicou Hanuman.
-Mas os maçamos são pequenos e os demónios poderosos guerreiros – respondeu-lhe Sita.
Ouvindo isso, Hanuman ficou de um tamanho colossal, mostrando todo seu poder. Despedindo-se de Sita, partiu exibindo aquela forma imensa e derrubando tudo que encontrava pela frente.

24/06/2011

O rato anacoreta



Das curvas unhas de terrível gato
Por milagre escapando-se ligeiro,
No atulhado armazém de um merceeiro
Foi asilo buscar pequeno rato.

Pilha de seis de fundo e vinte de alto
De queijos permissões subia ao tecto,
E atraído de Cheiro tão selecto,
Lá trepa o fugitivo em salto e salto.

Num queijo que à parede mais se unia,
Lá começa a roer, e em pouco espaço
Uni buraco enlapou, que nada escasso
Cubículo e sustento lhe exibia.

Ora dormindo, ora manducando,
Ali vive tranquilo e sem cuidado.
«Do mundo – diz – estou desenganado,
E quero ir minhas expiando!»

Que me dizes, leitor, ao tal ratinho?
Assim vivendo à custa dos patetas,
Nesses conventos regalões roupetas
Da salvação procuram o caminho.


Tradução de Costa e Silva

Lenda dos raminhos de S. João



S. João é um dos santos populares. Com ele brinca e alegra-se o povo no seu dia, com o à-vontade de quem festeja um amigo. Ora acontece que onde há tradição há lenda. E assim são inúmeras as que surgem por esse Portugal fora sobre o santo mais festejado pelo nosso povo. Eis o que se conta dos tradicionais raminhos de S. João, em Cambas, freguesia do concelho de Oleiros.

Na aldeia havia grande efervescência. Chegara-se à véspera do dia de S. João. Embora a manhã viesse alta, já novos e velhos estavam levantados. Havia muito que fazer: preparar as brincadeiras, o baile, a fogueira para a noite.
Luzia, cachopa bonita, estava prometida a José, o moço mais brioso daqueles sítios. Mas uma tristeza mesclada de raiva tirava o ânimo ao jovem lavrador para ajudar os seus companheiros. Sofria. Sofria amargamente, porque Luzia andava com o olhar distante, o pensamento arredio. E ele sabia porquê. Um mês atrás surgira não se sabe donde outro jovem de bela aparência. Aparecia todas as tardes, ao sol-pôr, montado num soberbo cavalo negro. Procurava a casa de Luzia e falava com ela. A conversa não era a de um enamorado. Mas sentia-se a pretensão de a conquistar. Daí o ciúme e a revolta de José. Porque razão Luzia vinha sempre à porta falar ao desconhecido? A aldeia já murmurava. Era necessário tomar uma atitude.
Fechando os punhos num gesto de desespero, José respirou fundo a tentar dominar-se. Pensava para si próprio: «Hoje tem de ser! Ela terá de decidir-se.»
E encaminhava-se, quase sem dar por isso, para casa de Luzia.
Pisando com força o chão, fazia fugir o pó em bailados estranhos. Mas o pó voltava a anichar-se nas botas e nas calças do rapaz. Nunca a distância da sua casa à da sua prometida lhe parecera tão curta. Tinha a sensação de ter voado. Latejavam-lhe as fontes. Batia-lhe forte o coração.
Luzia estava junto da janela aberta, contemplando o novo dia. Sorriu-lhe quando o viu. Mas ele não. Dirigiu-se-lhe com certa dureza:
— Luzia, quero falar contigo!
Ela fingiu-se admirada:
— Que aconteceu?
Com a mesma rudeza na voz, ele retorquiu:
— Algo se está passando. E eu preciso esclarecer-me.
— Pois fala.
— Quero ver-te bem. Vem à porta. Preciso ter a certeza de que me não mentes.
Luzia deixou de sorrir. Abriu a porta da rua e deixou que o sol a beijasse.
— Aqui estou pronta a responder-te.
— Jura que vais ser sincera!
— Juro!
Ele olhou-a demoradamente. Olhos nos olhos, sem deixar que ela se afastasse. E só depois perguntou:
— Quem é esse homem que vem falar-te todas as tardes?
Ela perturbou-se, embora já estivesse certa do que seria a pergunta. Mas respondeu convicta:
— Não sei!
— E que pretende esse cavalheiro?
— Também não sei!
— Nunca te falou de amor?
— Vagamente.
— E ele sabe que vamos casar?
— Sabe. Já lho disse.
— E que respondeu?
— Que o destino de cada um pode ser alterado, se houver força para o conseguir.
— Qual foi a tua atitude?
— Não respondi.
— Portanto… ele tomou isso como uma aceitação.
— Não creio!
— Pois creio eu! E julgas que vou continuar a ser alvo do escárnio dos outros?
Ela afligiu-se:
— José, peço-te! Ajuda-me!
— Ajudar-te em quê?
— A desembaraçar-me desse homem!
— Pois é fácil: manda-o embora! Diz-lhe que não queres falar mais com ele!
Ela confessou, aterrada:
— Não posso!
José olhou-a de novo, olhos nos olhos.
— Não podes? Ora essa! E porquê?
— Não sei! Há no seu olhar uma força estranha que me deixa atordoada.
José ia falar, mas Luzia tomou-lhe uma das mãos, num arrebatamento.
— Não é o que tu pensas! Juro que não o amo, pois só a ti desejo para meu marido!
O rapaz não se deixou convencer.
— Luzia! Estás a querer tomar-me por parvo?
Ela abanou a cabeça, num aceno negativo. Havia aflição no seu olhar, na sua voz.
— Acredita em mim, peço-te! Não amo esse homem. Tão-pouco o admiro. Causa-me medo, podes crer. Um medo horrível, e também não sei porquê. Mas não consigo furtar-me à sua presença. Mal o oiço, fico inquieta e tenho de lhe abrir a porta!
José, de sobrancelhas franzidas, escutava Luzia com assombro. Desta vez não duvidava de que ela falasse com sinceridade. Mas a que atribuir esse domínio de um desconhecido sobre a vontade da rapariga?
José olhava a noiva, silencioso, pois não atinava com o que verdadeiramente desejaria dizer Luzia, lágrimas nos olhos, coração batendo, voltou a falar:
— José! Acredita em mim!
O rapaz olhou a aldeia que se estendia à sua frente. E completou alto o seu pensamento:
— De que servirá eu acreditar? Os outros não compreenderão que não tenhas coragem de o mandar embora. Por isso...
Não completou a frase. Ela, assustada, obrigou-o a concluir o pensamento:
— Por isso… o quê?
— Deixarei de vir falar-te… até que esse homem não volte mais aqui!
Luzia baixou a cabeça. As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Mas quedou-se silenciosa. E foi em silêncio, também, que José se afastou.

O fumo subia no ar. As fogueiras acesas nas ruas davam à aldeia um aspecto estranho. Rapazes e raparigas cantavam alegres:

Ó meu S. João Baptista,
Ó meu Baptista das flores,
Na noite do vosso dia
Hei-de tomar-me de amores!

Luzia, arredada das outras raparigas, não quisera entrar na marcha. Era quase meia-noite. Ela sabia que assim que o arraial terminasse todas as suas companheiras correriam à fonte para molharem o rosto e beber água — segundo a tradição. Mas Luzia já tinha o rosto molhado pelas suas próprias lágrimas. Não vira, sequer, o José. Ele, que era sempre dos mais divertidos e o que melhor cantava. Já não assistira à cavalhada. E todos sabiam porquê. Todos apontavam Luzia sem se apiedarem dela. Atormentada, viu e ouviu o rancho que passava à sua beira, a cantar:

Na fonte lavei a face
Na manhã de S. João,
Assim a água me lavasse
As mágoas do coração.

Luzia não pôde conter-se mais. Correu para a igrejinha e prostrou-se de joelhos. A porta estava fechada. Encostou o rosto à madeira. Soluçou. Do seu peito saiu um queixume:
— Ó meu S. João! Bem sabeis que quero livrar-me daquele desconhecido. Mas não sei como! Ajuda-me! Ajuda-me, por caridade!
Então, a seu lado uma voz soou:
— De madrugada, quando o arraial terminar, faz uma cruz de flores campestres e coloca-a à tua porta!
Luzia voltou-se admirada. Havia luar, mas estava ali sozinha. Amedrontou-se. Deixou de chorar e correu para junto das outras raparigas. Elas, porém, folgavam e riam sem lhe ligarem importância. Luzia começou a recuperar a calma. Foi buscar rosmaninho, cravos e malmequeres e fez com eles uma cruz. E silenciosamente dirigiu-se para casa, colocando a cruz à sua porta.

O dia de S. João nasceu claro, luminoso, quente. No coração da jovem Luzia começava a raiar também a esperança. Algo lhe dizia no íntimo do seu ser que daí em diante as coisas mudariam. Começou a ganhar confiança em si própria. Secou-se-lhe o pranto. Quase tinha vontade de cantar. Vestiu o seu vestido domingueiro. Pensou em descer ao largo e ir rezar à capela. De súbito, ouviu chamar pelo seu nome. Estremeceu. Era a voz do outro, do desconhecido. Estava lá fora e pedia-lhe que chegasse à janela. A voz insistia:
— Vem à janela, Luzia! Preciso falar-te.
Luzia aproximou-se. Com o coração a bater, mas animosa.
— Que me deseja?
O outro olhou-a. Um olhar faiscante.
— Abre a porta e leva estas flores daqui!
Luzia achou forças para perguntar.
— E porque hei-de levar as flores?
— Não as quero aí!
— Quero eu! A casa é minha!
— Mas tu hás-de pertencer-me!
Luzia surpreendeu-se a ripostar enérgica:
— Engana-se! Não o quero! Tenho o meu José! Pode retirar-se!
Ele gritou:
— Abre a porta!
— Não!
— Tira isso daí!
— A cruz de flores? Também não. Coloquei-a na porta para me proteger e proteger a minha casa.
Então, numa praga tremenda, o desconhecido montou no cavalo negro, que esperava impaciente, e desapareceu como levado pelo vento.
Atónita, Luzia não podia acreditar no que via. Mas teve, de súbito, a noção do que se passava. O desconhecido era o Demónio disfarçado de jovem bonito e elegante, que vinha tentá-la. E Deus havia-lhe dado o ensejo de o vencer!
Correu para a rua. Desceu a vereda que levava à igreja. Entrou nela ofegante. Caiu de joelhos. Orou cheia de unção. Da sua alma subia um cântico de louvor e graças a Deus e a S. João Baptista. A seu lado as mulheres olhavam-na estupefactas. E quando ela saiu vieram todas ao adro fazer-lhe perguntas. Na sua sinceridade ela contou, alegremente, o que lhe havia acontecido. E a nova espalhou-se de boca em boca.
À tarde, Luzia cantava, enquanto juntava rosmaninho e alfazema para as fogueiras:

Eu hei-de ir ao rosmaninho
Àquela terra de além
para acender as fogueiras
Ao S. João que lá vem.

Na noite de S. João
Fui falar ao meu derriço.
Pôs-se a Lua e o Sol nasceu,
Nenhum de nós deu por isso.

Sorrindo, José, que a espiava, oculto, respondeu na sua voz máscula, bonita:

Alfazema e rosmaninho
Numa cruz teu mal levou.
Foi S. João, com carinho,
Que de novo nos juntou!

Luzia voltou-se. Uma alegria imensa iluminou-lhe o rosto. O seu José estava ali, como dantes, ou mais amorável ainda. Deixou-se abraçar. Sentiu-se bem dentro dessas grades humanas. Que importava que os vissem assim? Iam casar. Casar brevemente. Antes mesmo que o ano findasse. Vencera o mal com a ajuda da Cruz. Agora, tinha a certeza de que seria feliz.
E conta a lenda que, desde então, ficou por hábito naquelas redondezas todas as raparigas casadoiras fazerem ramos de rosmaninho e flores campestres para oferecer a S. João no dia da sua festa, pedindo-lhe que as livre de todo o mal.


Gentil Marques
Castelo Branco