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31/10/2008

Dom Gaifeiros

Sentado está Dom Gaifeiros
Lá em palácio real,
Assentado ao tabuleiro
Para as tábulas jogar.
Os dados tinha na mão,
Que já os ia deitar,
Senão quando vem seu tio
Que lhe entra a pelejar:
– «Para isso és, Gaifeiros,
Para os dados arrojar;
Não para ir tomar damas,
Com a moirisma jogar.
Tua esposa lá têm moiros,
Não sabes ir buscar:
Outrem fora seu marido,
Já lá não havia estar.»
Palavras não eram ditas,
Os dados vão pelo ar...
A que não fora o respeito
Da pessoa e do lugar,
Távolas e tabuleiro
Tudo fora espedaçar.
A seu tio, Dom Roldão,
Tal resposta lhe foi dar:
– «Sete anos a busquei, sete,
Sem a poder encontrar;
Os quatro por terra firme,
Os três sobre águas do mar.
Andei por montes e vales,
Sem dormir, nem descansar;
O comer, da carne crua,
No sangue a sede matar.
Sangue vertiam meus pés
Cansados de tanto andar;
E os sete anos cumpridos
Sem a poder encontrar.
Agora a saber sou vindo
Qua Sansonha foi parar;
E eu sem armas nem cavalo
Com que a possa ir buscar:
Que a meu primo Montezinhos
Há pouco os fui emprestar
Para essa festa de Hungria
Onde se foi a justar.
Mercê vos peço, meu tio,
Se ma vós quiséreis dar,
Vossas armas e cavalo
Que mos queirais emprestar.»
– «Sete anos são cumpridos,
Bem nos deves de contar,
Que Melisendra é cativa
E a vida leva a chorar.
E sempre te vi com armas,
Com cavalos a adestrar;
Agora que estás sem eles
É que a queres ir buscar?
Minhas armas não te empresto
Que as não posso desarmar;
Meu cavalo bem vezeiro,
Não o quero mais vezar.»
– «As vossas armas, meu tio,
Que mas não queirais negar
A minha esposa cativa
Como a hei-de eu ir buscar?
– Em São João de Latrão
Fiz juramento no altar,
De a ninguém não prestar armas
Que mas faça acobardar.»

Dom Gaifeiros, que isto ouviu,
A espada foi a tirar;
Saltam-lhe os olhos da cara
De merencório a falar:
– «Bem parece, mal pesar!
O muito amor que me tendes
Para assim me afrontar.
Mandai-me dizer por outrem
Que me las possa pagar,
Essas palavras, meu tio,
Que vos não quero tragar.»
Acode ali Dom Guarino,
O almirante do mar,
Durandarte e Oliveiros
Que os vêm a separar;
Com outros muitos dos Doze
Que ali sucedeu de estar.
Dom Roldão muito sereno
Assim lhe foi a falar:
– Bem parece, Dom Gaifeiros,
Bem se deixa de mostrar
Que a falta de anos, sobrinho,
Em tudo vos faz faltar.
Aquele que mais te quer
Esse te há-de castigar:
Foras tu mau cavaleiro,
Nunca eu te dissera tal,
Porque sei que tu és bom, to disse...
E agora, armar e selar!
Meu cavalo e minhas armas
Aí estão a teu mandar,
E mais, terás o meu corpo
Para te ir acompanhar.»
– «Mercês, meu tio, hei-de ir só,
Só, tenho de a ir buscar.
Venham armas e cavalo
Que já me quero marchar,
De covarde a mim! ninguém
Nunca ninguém me há-de apelidar.»
Dom Roldão a sua espada
Ali lhe foi entregar:
– «Pois só queres ir, sobrinho,
Esta te há-de acompanhar.
Meu cavalo é generoso,
Não o queiras sopear;
Dá-lhe mais rédea que espora,
Nele te podes fiar».

Andando vai Dom Gaifeiros,
Andando de bom andar.
Por essas terras de Cristo,
Té a Moirama chegar.
Ia triste e pensativo,
Cheio de grande pesar;
Melisendra em mãos de moiros,
Como lha há-de sacar?...
Pára às portas de Sansonha
Sem saber como há-de entrar:
Estando neste cuidado
As portas se abrem de par.
El-rei com seus cavaleiros
Saía ao campo a folgar;
Mui galãs iam de festa,
Mui ledos a cavalgar.
Furtou-lhe as voltas de Gaifeiros,
Pelas portas foi entrar;
Deu com um cristão cativo
Que ali andava a trabalhar:

– «Por Deus te peço cativo,
E ele te venha livrar!
Assim me digas se ouviste
Nesta terra anomear
A uma dama cristã,
Senhora de alto solar,
Que anda cativa entre moiros
E a vida leva a chorar.»
– «Deus te salve, cavaleiro,
Ele te venha ajudar!
A assim me dê outra vida,
Que esta se vai a chorar.
Pelos sinais que me destes,
Já bem te posso afirmar
Que a dama que andas buscando
Em palácio deve estar.
Toma essa rua direita
Que leva ao paço real,
Lá verás pelas janelas
Muitas cristãs a folgar.»
Tomou a rua direita
Que no passo vai dar
Alçou os olhos ao alto,
Melisendra viu estar,
Sentada àquela janela
Tão entregue a seu pensar,
Que as outras em redor dela
Não nas sentia folgar.
Rua abaixo, rua acima
Gaifeiros a passear.
– «Oh que lindo cavaleiro,
De tão gentil cavalgar!»
– «Melhor sou jogando às damas,
Com moiros a batalhar!»
Melisendra que isto ouviu
Começava a chorar:
Não já que ela o conhecesse,

Nem tal se podia azar,
Tão coberto de armas brancas,
Tão dif ‘rente no trajar;
Mas por ver um cavaleiro
Que lhe fazia lembrar
Aqueles Doze de França,
Aquela terra sem par,
As justas e os torneios
Que ali soíam de armar
Quando por sua beleza
Andavam a disputar.
Com voz chorosa e sentida
Começou de o chamar:
– «Cavaleiro, se a França ides,
Recado me heis levar,
Que digais a Dom Gaifeiros
Por que me não vem buscar.
Se não é medo de moiros
De com eles pelejar,
Já serão outros amores
Que o fizeram olvidar...
Enquanto eu presa e cativa
A vida levo a chorar
E mais se este meu recado,
O não quis aceitar.
Dá-lo-eis a Oliveiros
A Dom Beltrão o heis-de dar.
E a meu pai o Imperador
Que já me mande buscar,
Pois me querem fazer moira
E de Cristo renegar.
Com um rei mouro me casam
De além das bandas do mar,
Dos sete reis de Moirama
Rainha me hão-de coroar.»
– «Esse recado, senhora,
Vós mesma lho haveis de dar;
Dom Gaifeiros aqui o tendes
Que vos vem a libertar.»

Palavras não eram ditas,
Os braços lhe foi a dar,
Ela do balcão abaixo
Se deitou sem mais falar.
Maldito perro de moiro
Que ali andava a rondar!
Em altos gritos o moiro
Começava a bradar:
– «Acudam à Melisendra,
Que a vêm os cristãos roubar.»
«Melisendra minha esposa,
Como havemos de escapar?
– «Com Deus e a Virgem Maria
Que hão-de acompanhar.»
– «Melisendra, Melisendra,
Agora é o esforçar!»
Aperta a cilha ao cavalo,
Afrouxa-lhe o peitoral,
Saltou-lhe em cima de um pulo
Sem pé no estribo poisar.
Tomou-a pela cintura,
Que o corpo ergueu por lhe dar;
Assenta a esposa à garupa
Para que o possa abraçar,
Finca esporas ao cavalo,
Que o sangue lhe fez saltar.
Aqui vai, acolá voa...
Ninguém no pode alcançar.
Os moiros pela cidade
A correr e a gritar;
Quantas portas ela tinha
Todas as foram cerrar.
Sete vezes deu a volta
Da cerca sem a passar,
O cavalo às oito vezes
De um salto a foi saltar.
Já os moiros da cidade
O não podem avistar:
Acode o rei Almançor
Que vinha de montear,
Com todos seus cavaleiros
Lá deitam a desfilar,
Sentiu logo Dom Gaifeiros
Como o iam alcançar:
– «Não te assustes, Melisendra,
Que é força aqui apear
Entre estas árvores verdes
Um pouco me hás-de aguardar.

Enquanto eu volto a esses cães
Que os hei-de afugentar.
As boas armas que trago
Agora as vou a provar.»
Apeou-se Melisendra,
Ali ficava a rezar.
O cavalo, sem mais rédea,
Aos moiros se foi voltar:
Cansado ia de fugir
Que já mal podia andar,
Cheirou-lhe ao sangue maldito,
Todo é fogo de abrasar
Se bem peleja Gaifeiros,
Melhor é seu pelejar;
A qual dos dois anda a lida
Mais moiros há-de matar
Já caem tantos e tantos
Que não têm conto nem par;
Com o sangue que corria
O campo se ia a alagar.
Rei Almançor que isto via,
Começava de bradar
Por Alá e Mafamede
Que o viessem amparar:
«Renego de ti, cristão,
E mais do teu pelejar!
Não há outro cavaleiro
Que se te possa igualar,
Será este Urgel de Nantes,
Oliveiros singular,
Ou o infante Dom Guarim
Esse almirante e do mar?
Não há nenhum dentre os Donze
Que bastasse para tal...
Só se fosse Dom Roldão
O encantado sem par!»

Dom Gaifeiros que o ouvia,
Tal resposta lhe foi dar:
– «Cala-te daí, rei moiro,
Cala-te, não digas tal,
Muito cavaleiro em França
Tanto como esses val.
Eu nenhum deles não sou,
E me quero nomear:
Sou o infante Dom Gaifeiros,
Roldão meu tio carnal,
Alcaide-mor de Paris
Minha terra natural.»

Não quis o rei mais ouvir
E não quis mais porfiar,
Voltou rédeas ao cavalo,
Foi-se em Sansonha encerrar.
Gaifeiros, senhor do campo,
Não tem com quem pelejar;
Cheio de grande alegria
Melisendra foi buscar.
– «Ai! se vens ferido, esposo?
Eram tantos esses moiros,
E tu só a batalhar.
Mangas de minha camisa,
Com elas te hei-de pensar;
Toucas de minha cabeça
Faixas para te apertar.»
– «Cala-te daí, infanta,
E não queiras dizer tal;
Por mais que foram n‘os moiros,
Não me haviam fazer mal:
São de meu tio Roldão
Estas armas de provar;
Cavaleiro que as trouxesse,
Nunca pode perigar.»

Cavalgam, vão caminhando,
Não cessam de caminhar,
Por essa Moirama fora
Sem mais temor nem pesar;
Falando de seus amores
Sem de mais nada pensar.
Em terras de cristandade
Por fim vieram a entrar.
A Paris já são chegados,
Já saem para os encontrar,
Sete léguas da cidade
A corte os vai esperar.
Saía o Imperador
A sua filha a abraçar;
Palavras que lhe dizia,
As pedras fazem chorar.
Saíu toda a fidalguia,
Cleresia e secular,
Os Doze Pares de França,
Damas sem conto nem par.
Dona Alda com Dom Roldão

E o almirante do mar,
O arcebispo Turpim
E Dom Julião de além-mar,
E o bom velho Dom Beltrão,
E quantos soem de estar
Ao redor do Imperador
Em sua mesa a jantar.

Grande honra a Dom Gaifeiros!
Os parabéns lhe vão dar;
Por sua muita bondade
Todos o estão a louvar,
Pois libertou sua esposa
Com valor tão singular.
As festas que se fizeram
Não têm conto nem par.


Romanceiro, Almeida Garrett





27/10/2008

Pikassa o inventor do fogo

Kera-Kia e Kíri-Kosse pescavam juntos e dividiam o resultado do seu trabalho ao final do dia. Porém, nunca conseguiam fazer uma divisão justa, pois sempre um ficava com um pouco mais do que o outro. Por isso, Pikassa ofereceu-se para entrar na sociedade e fazer a divisão. O problema é que eles, por não conhecerem o fogo, comiam os seus peixes crus. Certo dia, Pikassa percebeu uma pedra vermelha perto de um bocado de ferro. Sem querer, tropeçou no ferro, que bateu na pedra e faiscou. Então, Pikassa teve a ideia de passar gamute sobre a pedra e esfregar nela o ferro. Até que fez faísca e pegou fogo durante algum tempo no gamute. Pikassa descobrira o fogo, que proporcionou, a todos os habitantes da ilha,a possibilidade de comer peixes assados.

Conto de Timor

23/10/2008

O pintassilgo


Ao voltar para o ninho, trazendo no bico uma minhoca, o pintassilgo não encontrou seus filhotes. Alguém os havia levado embora durante sua ausência.
Começou a procurá-los por toda parte, chorando e gritando.
A floresta inteira ecoava seus gritos, mas ninguém respondia.
Dia e noite, sem comer nem dormir, o pintassilgo procurou seus filhotes, examinando todas as árvores e olhando dentro de todos os ninhos.
Certo dia, um pássaro lhe disse:
- Acho que vi seus filhotes na casa do fazendeiro.O pintassilgo voou, cheio de esperança, e logo chegou à casa do fazendeiro.
Pousou no telhado, mas lá não havia ninguém. Voou para o pátio, ninguém.
Então, levantando a cabeça, viu uma gaiola pendurada do lado de fora de uma janela. Os filhotes estavam presos lá dentro.
Ao verem a mãe subindo pela grade da gaiola, os filhotes começaram a piar, suplicando-lhe que os libertasse.
O pintassilgo tentou quebrar as grades com o bico e com as patas, mas foi em vão.
Em seguida, com um grito de grande tristeza, voou novamente para a floresta.
No dia seguinte o pintassilgo voltou para junto da gaiola dentro da qual seus filhotes estavam presos. Fitou-os longamente, com o coração carregado de tristeza.
Em seguida alimentou-os um a um, através das grades, pela última vez.
Levara-lhes uma erva venenosa, e os passarinhos morreram.
- Antes a morte - disse o pintassilgo - do que perder a liberdade.






22/10/2008

Parábola do gato e o rato


Certa feita um gato montês e um rato habitavam a mesma árvore na selva; o rato morava num buraco da raiz e o gato nos galhos, onde se alimentava de ovos de pássaros e de filhotes inexperientes. O gato também gostava de comer ratos, mas este de nosso conto conseguia manter-se fora do alcance de suas garras.
Um dia veio um caçador e armou habilmente uma rede sob a árvore e, naquela noite, o gato ficou preso em suas malhas. O roedor, contente, saiu de seu esconderijo e experimentou um prazer enorme ao andar em volta da armadilha, mordiscando a isca e tirando o máximo proveito daquela situação. Logo se deu conta de que dois outros inimigos haviam chegado: um pouco mais acima, entre a escura folhagem da árvore, pousar uma coruja de olhos resplandecentes prestes a lançar-se sobre ele, enquanto que por terra se aproximava, sorrateiramente, um mangusto. O rato, sem saber o que fazer, maquinou com rapidez um surpreendente estratagema. Dirigindo-se ao gato disse-lhe que o libertaria, roendo as malhas, se antes lhe permitisse entrar na rede e abrigar-se em seu colo. Mal o outro concordou, o pequeno animal, aliviado, foi para dentro da rede.
Todavia, se o gato esperava ser salvo de imediato sofreu uma grande decepção, pois o rato aninhou-se confortavelmente em seu corpo, escondendo-se de modo a fugir dos olhares atentos de seus dois outros inimigos; e então, uma vez seguro em seu refúgio, decidiu tirar uma soneca. O gato protestou mas o rato disse que não havia pressa. Ele sabia que poderia safar-se a qualquer instante e que a seu contrariado hospedeiro só restava ser paciente, na esperança de obter a liberdade. E então, o roedor falou francamente ao seu inimigo natural que iria esperar pelo caçador. Desse modo, o gato também estando ameaçado, não aproveitaria sua independência para apanhar e devorar seu libertador. O felino nada pôde fazer; seu pequeno hóspede cochilou bem no meio de suas garras. O rato esperou tranqüilamente a chegada do caçador e, quando viu o homem aproximar-se para examinar as armadilhas, cumpriu sem risco sua promessa roendo as malhas com rapidez e pulando em sua toca, ao passo que o gato, num salto desesperado, escapuliu e alcançou um galho, livrando-se da morte certa.
Depois que o frustrado caçador afastou-se carregando sua rede inutilizada, o gato desceu da árvore e, aproximando-se à morada do rato, chamou-o docemente, convidando-o para sair e reunir-se ao seu velho companheiro. Disse-lhe que a situação em que se viram envolvidos na noite anterior já havia passado e a ajuda que cada um prestara tão lealmente ao outro, na luta em comum pela sobrevivência, havia consolidado uma união duradoura que apagava todas as diferenças anteriores. Dali em diante, os dois seriam amigos para sempre, baseando-se numa confiança mútua. Porém, o rato mostrou-se cético e inarredável diante da retórica do gato; recusou-se terminantemente a sair do abrigo seguro em que estava. Uma vez terminada a situação paradoxal que os havia colocado juntos numa estranha e temporária cooperação, não havia palavra que pudesse persuadir o arguto animalzinho a se achegar a seu inimigo natural. Para justificar sua recusa aos galantes mas insidiosos sentimentos do outro, o rato pronunciou a fórmula destinada a servir de moral ao conto. Disse, franca e diretamente: “No campo da batalha política não existem coisas como uma amizade perdurável.”

Parábola Indiana





21/10/2008

O caracol e a roseira

EM volta do jardim havia um bosque de avelãs e mais adiante se estendiam os campos e os prados, nos quais havia vacas e ovelhas; porém no meio do jardim havia uma roseira em plena floração. A seus pés estava um caracol, o qual valia muito, segundo a sua própria opinião.
– Espere que chegue o meu tempo dizia. – Farei muito mais do que dar rosas, avelãs ou leite, como as vacas,ou ovos como as galinhas.
– Espero muito de você – respondeu a roseira. – Poderei saber quando veremos essas maravilhas que tanto anuncia?
– Levarei para isso o tempo que achar necessário – replicou o caracol. – Você sempre tem tanta pressa em seu trabalho, que não chega a despertar a curiosidade de ninguém.
No ano seguinte, o caracol estava quase no mesmo lugar de antes, isto é, ao sol e ao pé da roseira; esta estava cheia de botões, que começavam a abrir-se, mostrando umas rosas magníficas, sempre viçosas e novas.
E o caracol, mostrando meio corpo para fora da concha, esticou seus tentáculos e os encolheu novamente, para voltar a esconder-se.
– Tudo tem o mesmo aspecto do ano passado. Não se vê o mínimo progresso em nenhum lugar. A roseira está coberta de rosas ... mas nunca fará nada de novo.
Passou-se o verão e logo após o outono; A roseira dera rosas lindas, até que começaram a cair os primeiros flocos de neve.
O tempo ficou húmido e tempestuoso e a roseira se inclinou até o solo, enquanto o caracol se escondia dentro da terra.
Começou novo ano e a roseira reviveu. 0 caracol também apareceu.
– Você já é uma roseira velha – disse o caracol – de forma que logo secará. Você já deu ao mundo tudo o que havia dentro de si. E se isso valeu alguma coisa, é assunto que não tenho tempo de examinar; mas o certo e que você não fez nada para o seu aperfeiçoamento, senão teria produzido algo diferente. Pode negá-lo? E agora você se converterá numa vara seca e desnuda. Entende o que digo?
– Está me alarmando – exclamou a roseira. – Nunca pensei nisso. jamais imaginei o que está dizendo.
– Não, você não se preocupou muito em pensar em algo. – Porém, nunca pensou em averiguar a razão de sua floração, por que você produz flores? E por que motivo o fazia sempre de forma igual?
– Não – replicou a roseira – Dei flores com a maior alegria, porque não podia fazer outra coisa. O sol era tão quente e o ar tão bom!... Eu bebia o orvalho e a chuva; respirava... e vivia. Logo me chegava novo vigor da terra, assim como do céu. Experimentava um certo prazer, sempre novo e maior, e era obrigada a florescer. Tal era a minha vida, não poderia fazer outra coisa.
– Você sempre levou uma vida muito cómoda – observou o caracol.
– Na realidade, sinto-me muito favorecida – disse a roseira – e, de agora em diante, não vou possuir tantos bens. Você possui uma dessas mentes inquiridoras e profundas e de tal maneira é bem dotado, que não duvido de que assombrará o mundo sem demora.
– Não tenho tal propósito – replicou o caracol. – O mundo não e nada para mim. Que tenho a ver com ele? já tenho muito o que fazer comigo mesmo.
– Em todo caso, não temos o dever, na terra, de fazer o que pudermos pelo bem dos demais e de contribuir para o bem comum com todas as nossas forças? Que foi que você já deu ao mundo?
– Que foi que eu dei? Que lhe darei? Pouco me importa o mundo. Produza as suas rosas, porque sabe que não pode fazer outra coisa; que as avelãs dêem avelãs e as vacas leite. Cada um de vocês possui um público especial; eu tenho o meu, dentro de mim mesmo, Vou entrar dentro de mim e permanecer aqui. O mundo para mim não é nada e não me oferece o mínimo interesse.
E assim o caracol entrou em sua casa e se fechou.
– Que lástima! – exclamou a roseira. Não posso colocar-me num lugar abrigado, por mais que o deseje. Sempre tenho que dar rosas e mudas de roseira. As folhas caem ou são arrastadas pelo vento e o mesmo acontece com as pétalas das flores. Em todo o caso, eu vi uma das rosas entre as páginas do livro de orações da dona da casa; outra de minhas rosas foi colocada no peito de uma jovenzinha muito formosa, e outra, enfim, recebeu um beijo dos lábios suaves de um menino, que se entusiasmou ao vê-la. Tudo isso me encheu de felicidade e será uma das recordações mais gratas de toda a minha vida.
E a roseira continuou florescendo com a maior inocência, enquanto que o caracol continuava retirado dentro da sua viscosa casa. Para ele o mundo não valia nada.
Passaram-se os anos.
O caracol voltou para a terra e a roseira também; do mesmo modo a rosa seca no livro de orações já desaparecera, mas no jardim floresciam novas rosas e também havia novos caracóis; e se escondiam dentro de suas casas, sem se incomodarem com os outros... porque para eles o mundo não representava nada.
Teremos que contar também a estória deles. Não, porque, no fundo, não se diferenciariam nada daquilo que já contamos.


Hans Christian Andersen





20/10/2008

Lenda de Egas Moniz



Egas Moniz, dito «o Aio» (1080 — 1146) foi um rico -homem portucalense, da linhagem dos Riba Douro uma das cinco grandes famílias do Entre-Douro e Minho do século XII, a quem Henrique de Borgonha, conde de Portucale confiou a educação do filho, Afonso Henriques .
Por esta altura Portucale era dependente de Leão e Castela, então regidos pela rainha D. Urraca. Por morte desta em 1127, sucede-lhe no trono Afonso VII, o qual adopta o título de imperador de toda a Hispânia, procurando a vassalagem dos demais reinos, e também do Condado Portucalense, que há muito lutava pela independência.
Em 1128, Afonso Henriques, então com vinte anos, foi feito chefe dos barões que temiam a influência galega sobre Portucale e, forçado a batalhar contra as forças de sua mãe, Teresa de Leão, vence-as nos campos de São Mamede e assume a liderança política do condado.
Pouco depois, Afonso VII cerca Guimarães, então capital do condado, e exige um juramento de vassalagem a seu primo Afonso Henriques; Egas Moniz dirigiu-se ao imperador, comunicando-lhe que o primo aceitava a submissão.Contudo, depois de deslocar a sua capital para Coimbra (1131), Afonso Henriques sente-se com força para destruir os laços que o ligavam a Afonso VII; faz-lhe guerra e invade a Galiza, travando-se a batalha de Cerneja (1137), da qual saem vitoriosos os portucalenses.
Como Afonso Henriques não cumpriu o acordado por seu aio, Egas Moniz, segundo reza a lenda, ao saber do sucedido, deslocou-se a Toledo, a capital imperial, descalço e com um baraço ( corda ) ao pescoço. Acompanhado da sua esposa e filhos, colocou ao dispor do imperador a sua vida e a dos seus, como penhor pela manutenção do juramento de fidelidade de nove anos antes.
Diz-se que o imperador, comovido com tanta honra, o perdoou e mandou em paz de volta a Portucale.Egas Moniz está sepultado no Mosteiro de Paço de Sousa, do qual foi padroeiro. O seu túmulo representa precisamente este episódio .

13/10/2008

João Sem Medo


Havia uma vez um pai que tinha dois filhos, o maior era calmo e prudente, e podia fazer qualquer coisa. Mas o jovem era estúpido e não conseguia aprender nem entender nada, e quando o povo o via passar diziam:
- Este rapaz dará problemas a seu pai.
Quando se tinha que fazer algo, era sempre o maior que tinha que fazer, mas se o pai o mandava trazer algo quando era tarde ou no meio da noite, e o caminho o conduzia através do cemitério ou algum outro lugar sombrio, reclamava:
- Ah, não, pai! não irei, me dá pavor – pois tinha medo.
Quando se contavam historias ao redor do fogo que colocava a carne de galinha pra assar, os ouvintes algumas vezes diziam:
- Me dá medo!
O rapaz se sentava numa canto e escutava os demais, mas não podia imaginar o que era ter medo:
- Sempre dizem: “Me dá medo”, “Me causa pavor”. - pensava - Essa deve ser uma habilidade que não compreendo.
Ocorreu que o pai lhe disse um dia:
- Escuta com atenção, estás ficando grande e forte, e deves aprender algo que te permita ganhar o pão.
- Bem, pai - respondeu o jovem - a verdade é que há algo que quero aprender, se se pode ensinar. Gostaria de aprender a ter medo, não entendo de todo o que é isso.
O irmão maior sorriu ao escutar aquilo e pensou: “Deus santo, que cabeça de minhoca é esse meu irmão. Nunca servirá para nada.
O pai suspirou e respondeu: - logo aprenderás a ter medo, mas não se vive disso.
Pouco depois o sacristão foi à casa de João, em visita, e o pai lhe contou que seu filho menor estava tão atrasado em qualquer coisa que não sabia nem aprendia nada. - Veja – disse o pai - quando perguntei como ia ganhar a vida, me disse que queria aprender a ter medo.
- Se isso é tudo. - respondeu o sacristão - pode aprender comigo. Mande-o a mim.
O pai estava contente de enviar seu filho com o sacristão porque pensava que aquilo serviria para endireitar João. Então o sacristão tomou ao rapaz sob sua guarda em sua casa e tinha que tocar o sino da igreja. Um dia o sacristão acordou à meia-noite, e o fez levantar para ir À torre da igreja tocar o sino.
“Logo aprenderás o que é ter medo” pensava o sacristão. E, sem que João se desse conta, levantou-se e subiu na torre. Quando o rapaz estava no alto da torre, e foi dar a volta para pegar a corda do sino e viu uma figura branca de pé, nas escadas do outro lado do poço da torre.
- Quem está aí?- gritou o rapaz, mas a figura não respondeu nem se moveu.
- Responde, - gritou o rapaz - o saia. Não perdeste nada aqui.
O sacristão, sem dúvida, continuou de pé, imóvel, para que João pensasse ser um fantasma. O rapaz gritou a segunda vez:
- Que fazes aqui?. Diz o que queres ou te tirarei pelas escadas.
O sacristão pensou que era onda de João e continuou paradão, quieto, como uma estátua. Então o rapaz avisou a terceira vez e como não serviu de nada, se jogou contra ele e empurrou o fantasma escada abaixo. O”fantasma” rodou dez degraus e caiu num canto. Então João fez soar o sino e se foi para casa e, sem dizer nada, voltou a dormir. A esposa do sacristão ficou esperando seu marido um bom tempo, mas ele não voltou. Ela ficou inquieta e acordou João.
Perguntou:
- Sabes onde está meu marido? Subiu na torre antes de ti.
- Não sei - respondeu o rapaz - Mas alguém estava de pé no outro lado do poço da torre, e como não me respondia nem se ia, achei que era um ladrão e o joguei das escadas.
A mulher saiu correndo e encontrou seu marido queixando-se no canto, um uma perna machucada. Depois de ajudá-lo, ela, chorando, foi ver o pai do rapaz.
- Teu filho- gritava ela – causou um desastre. Jogou meu marido pelas escadas e quebrou-lhe a perna. Leva esse inútil de nossa casa.
O pai estava aterrado e correu ao rapaz pra saber o que houve: - Que conversa foi essa?
- Pai, - respondeu – escuta. Sou inocente. Ele estava ali, de pé, no meio da noite, como se fosse fazer algo mau. Não sabia quem era e pedi que falasse por três vezes. -Ah!- disse o pai - só me trazes desgosto. Sai da minha frente, não quero te ver mais.
- Sim, pai, como queiras, mas espera que seja dia. Então partirei para aprender o que é ter medo, e então aprenderei um ofício que me permita me sustentar.
- Aprende o que quiseres- disse o pai – tanto faz. Aqui tens 50 moedas para ti. Pega e vai pelo mundo, mas não digas de onde vens e nem quem é teu pai. Tenho razões para me envergonhar de ti.
– Sim, pai, farei isso. Se não for mais nada que isso, posso lembrar fácil.
Assim que amanheceu, o rapaz colocou as 50 moedas no bolso e se foi pela estrada principal, dizendo continuamente:
- Se pudesse ter medo, se soubesse o que é temer...
Um homem se aproximou e ouviu o monólogo de João e, quando haviam caminhado um pouco mais longe, onde se viam os patíbulos, o homem disse: - Olha, ali está a árvore onde sete homens se casaram com a filha do açougueiro, e agora estão aprendendo a voar. Sente-se perto da árvore e espera o anoitecer, então aprenderás a ter medo.
- Se isso é o que tenho a fazer, é fácil. - disse o jovem - Mas se aprendo a ter medo tão rápido , te darei minhas 50 moedas. Volta amanhã de manhã bem cedo.
Então o homem se foi e ele sentou ao lado da forca, e esperou até a noite. Como tinha frio, acendeu um fogo. À meia-noite, o vento soprava tão forte que, apesar do fogo, não conseguia se esquentar e como o vento fazia chocarem-se os enforcados entre si, e se balançavam, ele pensou: “Eu aqui, junto ao fogo, já sinto frio, imagino quanto devem estar sofrendo esses que estão aí em cima.”
Como davam pena, levantou a escada, subiu e um a um os foi desatando e baixando. Então avivou o fogo e os dispôs ao redor para que se esquentassem. Mas ficaram sentados sem se mover e o fogo prendeu em suas roupas. Então o rapaz disse:
- Tenham cuidado ou os subirei outra vez.
Os enforcados, é lógico, não escutaram e permaneceram em silêncio, deixando seus farrapos queimarem.
O jovem se zangou e disse: - se não querem ter cuidado, não posso ajudá-los e não me queimarei com vocês. E colocou-os de volta no lugar. Depois se sentou junto ao fogo e ficou dormindo. Na manhã seguinte o homem veio para pegar suas 50 moedas, lhe disse:
- Bem, agora sabes o que é ter medo.
- Não - disse o rapaz - como querias se os tipos lá de cima não abriram a boca?, e são tão idiotas que deixam que os poucos e velhos farrapos que vestiam se queimem.
O homem, vendo que esse dia não ia conseguir as 50 moedas, se ajoelhou dizendo:
- Nunca encontrei alguém assim.
O jovem continuou seu rumo e outra vez começou a falar sozinho - se pudesse ter medo...
Um carreteiro que andava por ali escutou e perguntou:
- Quem és?
- Não sei - respondeu o jovem.
Então o carreteiro perguntou:
- De onde és?
- Não sei- respondeu o rapaz.
- Quem é tu pai?- insistiu.
- Não posso dizer - respondeu o rapaz.
- Que é isso que estás sempre murmurando? - perguntou o carreteiro.
- Ah, - respondeu o jovem – gostaria de aprender ter medo, mas nada me ensina.
- Deixa de dizer bobagens - disse o carreteiro - Vamos, vem comigo, e encontrarei um lugar para ti.
O jovem foi com o carreteiro e, ao anoitecer, chegaram a uma pousada onde iriam passar a noite. Na entrada do salão o jovem disse, bem alto:
- Se pudesse ter medo...
O pousadeiro escutou e rindo disse:
- Se isso é o que queres, saiba que aqui encontras uma boa oportunidade.
- Cala-te, - disse a dona da pousada – muitos intrometidos já perderam sua vida, seria uma lástima se olhos tão bonitos não voltassem a ver a luz do dia.
Mas o rapaz disse:
- Não importa o tão difícil que seja, aprenderei, é por isso que tenho viajado tão longe. E não deixou em paz o dono da pensão até que ele contou que não longe dali havia um castelo encantando onde qualquer um poderia aprender com facilidade o que é ter medo se pudesse permanecer ali durante três noites. O rei havia prometido que qualquer um que conseguisse teria a mão de sua filha, que era a mulher mais bela sobre a qual havia brilhado o Sol. Por outro lado, no castelo há um grande tesouro, guardado por malvados espíritos. Esse tesouro seria libertado e fazia rico ao libertador. Ainda que alguns tivessem tentado, nenhum havia saído.
Na manhã seguinte o jovem foi a ver o rei e disse: - Se me permitir, desejaria passar 3 noites no castelo encantado.
O rei observou-o e como o jovem o agradava, disse:
- Podes pedir três coisas para levar contigo ao castelo, mas devem ser três objectos inanimados.
Então o rapaz disse:
- Pois quero um fogo, uma faca e uma tábua para cortar. - o rei fez que levassem essas coisas ao castelo durante o dia. Quando se aproximava a noite, o jovem foi ao castelo e acendeu um fogo brilhante numa das salas, pôs a tábua e o cutelo ao seu lado e se sentou junto ao torno – se pudesse ter medo – dizia – mas vejo que não aprenderei aqui.
Era meia-noite e estava atiçando o fogo, e enquanto soprava, algo gritou de repente de um canto:
- Miau, miau. Temos frio.
- Tontos, - respondeu - por que se queixam, se têm frio venham sentar-se junto ao fogo.
Quando disse isto 2 enormes gatos negros saíram dando um tremendo salto e se sentaram um de cada lado de João. Os gatos o olhavam com selvageria. Aos poucos, quando se aqueceram, disseram - Camarada, joguemos cartas.
- Por que não? – disse o rapaz - Mas primeiro ensinem-me.
Os gatos mostraram suas garras.
- Oh!, - disse ele – tens unhas muitos compridas. Esperem que as corto num segundo.
Então os pegou pelo pescoço, os colocou na tábua de cortas e lhes atou as patas rapidamente.
- Depois de ver os dedos, - disse – me passou a vontade de jogar cartas.
Logo os matou e os atirou na água. Mas quando se havia desfeito deles e ia sentar-se junto ao fogo, de cada canto saíram cães e gatos negros, com correntes, e continuaram saindo até que não havia mais para onde se mover. Gritavam horrivelmente, esparramaram o fogo e apagaram-no. João observou tranquilamente durante uns instantes, mas quando estavam passando da conta, pegou a faca e gritou:
- Fora daqui, sacanas - e começou a esfaqueá-los. Alguns fugiram, enquanto que os que matou, jogou ao fogo. Quando terminou não podia manter os olhos abertos por causa do sono. Olhou em volta e viu uma cama enorme.
- Justo o que precisava- disse e se meteu nela. Quando estava para fechar os olhos a cama começou a se mover por si mesma e o levou por todo castelo.
- Isto está bom - disse - mas vá mais rápido.
Então a cama rodou como se seis cavalos a puxassem, acima e abaixo, pelos umbrais e escadarias. Mas de repente girou sobre si mesma e caiu sobre ele como uma montanha. João saiu debaixo da cama dizendo: - Hoje em dia deixam qualquer um dirigir... E se foi para junto do fogo, onde dormiu até a manhã seguinte.
Na manhã seguinte o rei foi vê-lo, e ao encontrá-lo atirado ao chão, pensou que os espíritos o haviam matado. Disse:
- Depois de tudo é uma pena, um homem tão corajoso...
O jovem o escutou, se levantou, e disse:
- Não é para tanto.
O rei estava perplexo, mas muito feliz, e perguntou como tinha sido.
- A verdade é que bastante bem - disse – Já tinha passado uma noite, as outras serão do mesmo jeito.
Foi ver o dono da pousada que, olhando com olhos do tamanho de pratos, disse:
- Nunca pensei que voltaria a te ver com vida! Afinal, aprendeste a ter medo?
- Não - respondeu - é inútil. se alguém me pudesse explicar...
A segunda noite voltou ao velho castelo, se sentou junto ao fogo e uma vez mais começou a cantilena: - se pudesse ter medo... se pudesse ter medo...
À meia-noite se escutou ao redor um grande barulho que parecia que o castelo vinha abaixo. No início se escutava baixinho, mas foi crescendo mais e mais.
De repente, tudo ficou em silêncio e, de repente, com um grito, a metade de um homem caiu diante de João.
- Ei, - gritou o jovem – falta-te a metade!
Então o barulho começou de novo, se escutaram rugidos e gemidos e a outra metade caiu também.
- Tranquilo, - disse o jovem - vou avivar o fogo.
Quando havia terminado e olhou ao redor, as duas metades haviam se unido e um homem espantoso estava sentado no lugar de João.
- Isso não entrava não trato, - disse ele - esse banco é meu.
O homem tentou empurrá-lo, mas o jovem não o permitiu, então o empurrou com todas as forças e se sentou em seu lugar.
Mais homens caíram do mezanino, um atrás do outro. Recolheram nove pernas humanas e duas caveiras e começaram a jogar com elas. João também quis jogar:
- Escuta, posso jogar?
- Se tens dinheiro, sim. - responderam eles.
- Tenho - respondeu - Mas essas bolas não são redondas o bastante.
Pegou as caveiras, colocou-as no torno e as arredondou.
- Agora está muito melhor.
- Hurra, - disseram os homens - agora nos divertiremos.
Jogou com eles e perdeu algum dinheiro, mas quando deram as doze, todos desapareceram. Ele então se encostou e dormiu. Na manhã seguinte o rei foi ver como estava:
- E aí, como foi desta vez? – perguntou.
- Fiquei jogando bola, - respondeu - e perdi um par de moedas.
- Então não tiveste medo? - perguntou o rei.
- Quê? - disse – passei muitíssimo bem. O que realmente não aconteceu foi ter medo.
Na terceira noite sentou-se em seu banco e entristecido, disse: - se pudesse ter medo...
Quando ficou tarde, seis homens muito altos entraram trazendo consigo um caixão. E disseram ao jovem:
- Hahahaha. É meu primo, que morreu há dois dias.
Puseram o caixão no chão, abriram a tampa e se viu um cadáver caído em seu interior. O jovem tocou-o no rosto que estava frio como o gelo.
- Espera, - disse - te aquecerei um pouco.
Se foi ao fogo, esquentou as mãos e as colocou na cara do defunto, mas esta continuou fria. Tirou-o do ataúde, sentou-o junto ao fogo e o apoiou em seu peito mexendo seus braços para que o sangue circulasse de novo. Como isso também não funcionava, pensou: “Quando duas pessoas se metem na cama, se dão calor mutuamente.” Assim, levou-o para a cama e deitou junto dele. Logo o cadáver começou a se aquecer e a mover-se.
O jovem disse:
- Vês primo como te esquentei?
O cadáver se levantou e disse: - Te estrangularei.
- Como?, - disse o jovem – Assim que me agradeces? Pois voltas pro caixão agora mesmo.
E o pegou pelo pescoço, jogou-o no caixão e fechou a tampa. Então os 6 homens vieram e levaram o caixão.
- Não consigo aprender a ter medo – disse – Nunca em minha vida aprenderei.
Um homem mais alto que os demais entrou e tinha um aspecto terrível. Era velho e tinha uma larga barba branca.
- Pobre diabo, - gritou o velho – logo saberás o que é ter medo, porque vais morrer.
- Não tão depressa - respondeu rapaz - que eu terei algo a dizer sobre isso.
- Pronto acabarei contigo. - disse o demónio.
- Pára com essas bobagens que sou tão forte como tu o até mais.
- Vamos testar - disse o velho - se és mais forte, te deixo ir. Vem e comprovaremos.
Levou-o através de paisagens escuras, até uma forja; ali o velho pegou uma enorme acha e de um talho partiu em dois.
- Posso melhorar - disse o rapaz e pegou também uma acha e partiu-a de um talho e, aproveitou o quando partia a acha, talhou também a barba do velho.
- Te venci - disse o jovem - agora vais morrer - e com uma barra de ferro golpeou o velho até que este começou a chorar e a pedir que parasse, que se parasse lhe daria grandes riquezas.
O jovem soltou a barra de ferro e o deixou livre. O velho o levou de novo ao castelo e num sótão mostrou-lhe três cofres cheios de ouro.
- De tudo isto, - disse o velho – um é para os pobres, outro para o rei e o terceiro para ti.-
Então deram as doze e o espírito desapareceu e o jovem ficou no escuro.
Acho que posso encontrar a saída - disse o jovem. e tacteando conseguiu encontrar o caminho até a saída onde estava o fogo e dormiu junto dele.
Na manhã seguinte o rei foi vê-lo e disse:
- Já deves ter aprendido o que é ter medo.
- Não - disse – vi um morto e um homem com barba me deu um montão de dinheiro, mas nada me fez saber o que é ter medo.
- Então, - disse o rei – salvaste o castelo e te casarás com minha filha.
- Tudo isso é óptimo, - disse o jovem - mas sigo sem saber o que é ter medo.
Repartiu-se o ouro e celebrou a boda. Mas por muito que quisesse a sua esposa e por muito feliz que fosse o jovem rei sempre dizia:
- Se pudesse ter medo... se pudesse...
Isso acabou por aborrecer sua esposa: - Encontrarei a cura, aprenderá a ter medo.
Foi ao rio que atravessava o jardim e trouxe um cubo cheio de lambaris. À noite, quando João estava dormindo, sua esposa levantou as cobertas e jogou sobre ele a água fria com os lambaris, de maneira que os peixinhos começassem a saltar sobre ele, que despertou e gritou: “Que susto! Agora sei o que é me assustar.”



Lenda da Bezerra de Monsanto



Em tempos muito antigos estava Monsanto cercada por tropas romanas já há sete duros e terríveis anos. Os seus habitantes tinham sofrido muito e visto morrer muitos dos seus mas não se rendiam. Ao velho chefe da aldeia apenas lhe restava uma única filha, cujos irmãos mais velhos tinham sido todos mortos pelo inimigo. O velho chefe queria que a sua filha fugisse e se pusesse a salvo com o seu rebanho mas esta recusava heroicamente, dizendo-lhe que tinha jurado resistir aos invasores até à morte. Foi então que o chefe lhe disse que como estavam esgotados todos os víveres, ela deveria sacrificar o seu último rebanho e reparti-lo com os habitantes. Talvez assim conseguissem aguentar mais uma semana... Essa semana passou e os soldados romanos aperceberam-se da trágica situação dos sitiados e exigiram a sua rendição mais uma vez. O velho chefe sentia-se perdido mas a sua filha disse-lhe que não esmorecesse porque tinha guardado uma bezerra gorda e tinha um estratagema que a todos salvaria. O velho chefe chegou ao cimo das muralhas e, com uma segurança que a todos surpreendeu, gritou aos romanos que não se renderiam porque tinham ainda muita comida e como prova disso atirou-lhes a bezerra que tinha sobrado do jantar do dia anterior. E que se quisessem mais era só dizer. O cônsul romano cansado de tantos anos de cerco resolveu retirar para Roma, onde tinham pedido a sua presença. A alegria dos habitantes foi enorme e deu lugar a uma grande festa que se tornou uma tradição que ainda hoje se comemora em Monsanto. Todos os anos, os monsantinos festejam ao som do adufe e lançam das muralhas do castelo cântaros enfeitados que simbolizam a bezerra do cerco de Monsanto.

Lenda de Castelo Branco

O Rico Insensato



Um homem que estava no meio da multidão lhe falou: Mestre, ordena a meu irmão que reparta comigo a herança. Mas Jesus lhe respondeu: Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós? Então, lhes respondeu: Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui.
E lhes proferiu ainda uma parábola, dizendo: O campo de um homem rico produziu com abundância. E arrazoava consigo mesmo, dizendo: Que farei, pois não tenho onde recolher os meus frutos? E disse: Farei isto: destruirei os meus celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens. Então , direi à minha alma: tens em depósito muitos bens para muitos anos, descansa, come, bebe e regala-te.
Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus.


Parábolas de Jesus
Evangelho de Lucas cap 12 vers. 13 a 21


12/10/2008

Os lobos e as ovelhas


Os lobos e as ovelhas, que tiveram
Uma guerra entre si, tréguas fizeram:
Os lobos em reféns lhes entregavam
Os filhos; as ovelhas os cães davam.
Os lobinhos, de noite, pela falta
Dos pais, uivavam todos em voz alta:
Acudiram-lhes eles acusando
As ovelhas de um ânimo execrando;
Pois contra o que é razão e o que é direito,
Algum mal a seus filhos tinham feito:
Faltavam lá os cães que as defendessem,
Deu isto ocasião a que morressem.

Haja paz, cessem guerras tão choradas;
Mas fiquem sempre as armas e os soldados,
Que inimigos que são atraiçoados,
Tomaram ver potências desarmadas.
Não durmam, nem descansem confiadas
Em ajustes talvez mal ajustados:
Nem creiam na firmeza dos tratados,
Que os tratados às vezes são tratadas.
Só as armas os fazem valiosos,
E ter muitos soldados ali juntos
Respeitáveis a reis insidiosos;
Senão, para os quebrar há mil assuntos:
E mais tratados velhos, carunchosos.
Firmados na palavra dos defuntos.

Couto Guerreiro (Trad.)

09/10/2008

O pássaro trinador de flores




Era uma vez um Rei que tinha três filhos: Malik Mhuhammad, Malik Dschamschid e Malik Ibrahim. Ibrahim era o mais moço e seu pai o amava, tal como o filho amava o pai. Tendo o Rei adoecido, os médicos de todo o império não conseguiram descobrir qual o remédio para sua doença. Mas aí um certo doutor declarou que o remédio existia, desde que se conseguisse encontrá-lo: pois havia no mar um peixe verde que trazia um anel de ouro na mandíbula, e se alguém conseguisse pescá-lo, abrindo-lhe a barriga e colocando um pedacinho do coração de tal peixe sobre o coração do Sultão, este certamente se restabeleceria.
Os três filhos ofereceram dinheiro a vários mergulhadores e pescadores para que os mesmos procurassem o tal peixe, e afinal, após alguns dias, estes conseguiram pescá-lo e o trouxeram a Malik Ibrahim. Tomando-o nas mãos, o moço ficou tremendamente impressionado com a grande beleza do peixe e, examinando-o, verificou que ele trazia inscrito na testa: “Alá é o único Deus, Maomé é seu profeta e Ali é seu sucessor”. Bem, é esse o credo Shiita maometano. Ora, ao ler aquilo, Malik Ibrahim sentiu-se profundamente comovido e exclamou: “Mesmo que meu pai possa ser curado por este peixe, não posso matá-lo”, e lançou o peixe de volta ao mar.
Enquanto isso, todos aguardavam que ele trouxesse o peixe e, abrindo-lhe a barriga, curasse o pai, até que descobriram que o rapaz devolvera o peixe ao mar, o que os fez morder os dedos de espanto, sem conseguir entender o fato. Quando disseram isso ao Rei, este ficou furioso e falou: “Se na verdade Malik Ibrahim está esperando que eu morra para se apoderar do trono, eu o deserdarei".
Daí em diante o Rei foi piorando cada vez mais, não tendo mais paz nem de dia nem de noite; mais uma vez os médicos se reuniram em torno de seu leito e declararam: “Ainda existe um remédio que conhecemos, que é o Pássaro Trinador de Flores. Toda vez que ele gorjeia, cai-lhe do bico uma linda flor e, se alguém conseguir aprisioná-lo e colocar uma dessas flores sobre o coração do Rei, ele ficará curado de sua enfermidade”.
O Rei beijou seus outros dois filhos, dizendo-lhes: “Agora, minha única esperança é que vocês encontrem o Pássaro Trinador de Flores”. Então os dois filhos montaram seus cavalos e partiram, sendo seguidos por Ibrahim, pouco tempo depois. Os irmãos perguntaram o que estava fazendo ele ali, ao que Ibrahim respondeu que também ele ia em busca do pássaro, de modo que resolveram prosseguir juntos. Chegando a uma encruzilhada onde havia uma árvore e uma fonte, desceram dos cavalos para descansar um pouco. Tendo os seus irmãos adormecido, Ibrahim foi dar um pequeno passeio, e de repente avistou uma tábula de pedra onde estava escrito: “Aqueles que chegarem a esta encruzilhada precisam saber que a estrada da direita não apresenta perigo e é agradável, mas a da esquerda é cheia de perigos e nenhum viajante que por ela seguir poderá ter esperança de voltar”.
Os dois irmãos, naturalmente, tomaram o caminho da direita, enquanto a Ibrahim coube o da esquerda. Mas havia na tábula uma outra inscrição que dizia que quem tomasse o caminho da esquerda deveria levá-la consigo. E assim fez Ibrahim. Primeiramente, foi dar a um castelo cercado de um lindo jardim onde encontrou uma bela jovem que o flertou; ele se apaixonou por ela e esta já sabia o seu nome. De repente porém Ibrahim se lembrou da tábula que trouxera consigo e, retirando-se para um recanto do jardim, viu que nela estava escrito: “Se tomares o caminho da esquerda, encontrarás belíssima e sedutora jovem, mas não te deixes atrair por suas tramas pois ele é uma astuta feiticeira que deseja matar-te. Ela vai te desafiar para uma luta e, quando isso ocorrer, tens de arrancar-lhe a blusa e então verás em seu ombro um sinal negro. Toma tua faca e enterra-a com toda força nessa mancha negra, tratando porém de não errares o alvo, pois se isso acontecer tu serás transformado em pedra negra”.
Aconteceu tudo como fora previsto e Ibrahim conseguiu mergulhar sua adaga na mancha negra da feiticeira. Então surgiu um furacão, com raios e trovões, tendo Ibrahim desmaiado de terror. Ao recobrar os sentidos viu a seu lado o cadáver de uma terrível e decrépita velha; quanto ao jardim e ao palácio, tudo desaparecera e ele se achava num deserto.
Então Ibrahim prosseguiu caminho e logo se achou num jardim muito semelhante ao primeiro; no centro havia um lago e nele vagava um barco. Nadou até o barco e ali encontrou dez homens, dos quais apenas um manifestava sinais de vida. Malik Ibrahim alimentou-o fazendo-o comer pedacinhos de maçã, pois o homem estava demasiado fraco e faminto para poder falar. Após se sentir mais reconfortado, o homem contou a Ibrahim que o barco fora colhido por um redemoinho e que, diariamente, ao meio-dia, surgia das profundezas uma grande mão que arrebatava um deles para dentro do lago, quer estivesse vivo ou morto, e que antes havia vinte homens a bordo, dos quais dez haviam sido agarrados e os demais tinham morrido de fome. Ibrahim recorreu novamente à tábula, na qual leu: “Se chegares a este barco, não te deixes distrair por qualquer coisa que vejas, ou que aconteça, ou que a dona da mão te relate. Essa mão que emerge do fundo das águas pertence à irmã da primeira feiticeira. Tens que apertá-la com toda a tua força, que é para romperes a maldição. Caso sejas superado na luta, perderás para sempre tua liberdade”.
Aí surgiu da água uma linda mão enquanto uma voz o saudava dizendo: “Apertemos as mãos, em sinal de amizade!” Ao que Ibrahim respondeu: “Sim, com todo prazer”, e estendeu-lhe a mão; reparando porém que a outra o ia puxando cada vez mais para a água, ele se colocou sob a proteção de Deus e, com quantas forças tinha, apertou tanto a tal mão, que a esmagou; novamente desabou uma tempestade e ele viu a seu lado o cadáver da feiticeira, achando-se perdido novamente no deserto.
Pôs-se então a caminho e foi dar a um lugar onde havia uma árvore alta e uma fonte, com muitos macacos em torno da árvore. Ele não sabia como explicar a presença de tantos macacos, mas estes o cercavam, olhando-o com olhos tristes. Ibrahim recorreu à tábula e leu: “Agora que mataste a feiticeira hás de chegar a uma árvore cheia de macacos e a uma fonte. Segue o veio da água e irás dar a um enorme edifício, onde encontrarás uma jovem; mas também é feiticeira e tentará te cativar e te iludir. Desta vez, terás que atirar-lhe à testa esta tábula, para que lhe quebres a cabeça e rompas o encantamento”. Tudo aconteceu como ali estava escrito e, logo que atirou a pedra à cabeça da feiticeira, todos os macacos viraram lindas donzelas. A líder das moças era uma Fada-princesa, que fora à caça de uma gazela com suas damas. Mas a gazela que ela caçava era a própria feiticeira e, mal as jovens entraram na floresta, a gazela começou a correr em círculos transformando-se numa mulher horrorosa e, no mesmo instante, transformou as jovens em macacos. Agora que Ibrahim matara a bruxa-gazela, as moças estavam libertas do encanto.
Ibrahim levou a Fada-princesa de volta à casa de seu pai e pediu-a em casamento, porém o Rei confessou a Ibrahim que não tinha só essa filha, Maiúne, que ele desencantara, mas também um filho que tentara dar combate às feiticeiras e fora morto, achando-se sepultado num cemitério próximo. Todas as noites, porém, chegavam as feiticeiras e, como a bruxa de Endor, da qual fala a Bíblia, retiravam da tumba o corpo do filho do Rei, ainda envolto nos restos da sua mortalha; e a cada manhã o cadáver tinha que ser novamente sepultado até que, na noite seguinte, tudo se repetisse.
Por isso Ibrahim se colocou, à noite, perto do túmulo e, tendo sido outra vez instruído do que lhe competia fazer, tomou uma lança e, quando duas feiticeiras apareceram para reiniciar suas artimanhas, em um só golpe ele as degolou, tendo-se desencadeado, no mesmo instante, uma terrível tempestade. Quando, porém, tudo se acalmou, o Príncipe morto ressuscitou e declarou que, por ter sido libertado por Ibrahim, fazia-se seu escravo para sempre.
Depois disso Malik Ibrahim se casou com a Fada-princesa, embora continuasse determinado a partir em busca do Pássaro Trinador de Flores. Alguém lhe disse que o pássaro se encontrava numa grande montanha rodeada por milhares de demoniozinhos e que ninguém podia por ali passar. Mas Ibrahim simplesmente se dirigiu aos mil demoniozinhos e, quando estes o atacaram, destemidamente os fez estacar, o que os deixou curiosos por saber o que é que aquele simpático e ingênuo rapaz pretendia ali. Em lugar de o matarem imediatamente, deram-lhe a chance de dizer porque viera. Ibrahim então confessou que desejava o Pássaro Trinador de Flores. Abertamente contou-lhes toda a verdade e os demoniozinhos então disseram que o pássaro se achava ali na montanha e que pertencia a Tarfe Banu, filha do Rei; acrescentaram que eles não lhe podiam trazer o pássaro e que Ibrahim teria que roubá-lo sozinho; eles não se importariam. Chegaram mesmo a conduzir Ibrahim ao castelo encantado, onde, num dos aposentos, encontrou Tarfe Banu adormecida sobre um coxim todo ornamentado com pedras preciosas. Ela era tão bela que não existe linguagem humana capaz de descrever-lhe a beleza. À sua cabeceira se achava uma linda gaiola, dentro da qual estava o Pássaro Trinador de Flores, e a cada trinada que este emitia caíam-lhe do bico flores suavemente perfumadas. Ibrahim com grande rapidez se apoderou da gaiola e fugiu, pedindo aos demoniozinhos que o levassem para casa. Quando já se achava próximo do castelo onde morava, pendurou a gaiola numa árvore e caiu no sono. Então, como se pode imaginar, os irmãos apareceram e roubaram o pássaro, levando-o para o Rei, a quem disseram terem sido eles mesmos que o haviam encontrado. Mas o pássaro não cantava!
Ibrahim consegue chegar à corte e, ao vê-lo, o pássaro logo se põe a cantar e as flores a lhe tombarem do bico, de modo que o Rei logo fica curado. Eis, porém, que chega ali um exército. Ao redor do palácio surge grande número de tendas e os irmãos, horrorizados, descobrem que Tarfe Banu viera em busca de quem lhe roubara o Pássaro. O ladrão, disse ela, teria que comparecer à sua presença, pois não falaria com qualquer outra pessoa. Todos empalideceram, mas Ibrahim se declarou disposto a ir. Vestiu-se principescamente e compareceu diante da Princesa, que o recebeu muito afavelmente, declarando-lhe ter feito um juramento de se casar com ele porque, a despeito da perseguição das feiticeiras, conseguira encontrá-la, bem como ao pássaro, e que por isso era ele o único que merecia se tornar seu esposo.
Ibrahim se casou, portanto, com Tarfe Banu, permitindo que mais tarde Maiúne viesse se reunir a ele e todos viveram felizes até o fim de suas vidas, como manda o destino.


Conto Iraniano



07/10/2008

Não quero


Um dia, indo eu pela estrada, ouvi dois rapazinhos falando muito alto:
–Não, dizia um com voz enérgica, não quem.
Parei e perguntei-lhe:
– Que é que tu não queres, meu rapaz?
– Não quero dizer à minha mãe que venho da escola, porque é mentira. Vai-me ralhar, bem sei; mas dantes me ralhe do que mentir.
– E fazes bem, volvi eu. Es um rapaz como se quer.
Apertei-lhe a mão, enquanto o outro pequeno, o que lhe insinuara a mentira, se ia embora todo envergonhado.
Daí a tempos, passando pela mesma aldeia e necessitando de falar ao professor, entrei na escola, onde reconheci logo os dois pequenos; o que não quis mentir, sorria-me, enquanto que o outro, vendo-me, baixou os olhos. Ao despedir-me, interroguei o mestre sobre os dois alunos:
– Oh! disse-me ele, falando do primeiro, é um magnífico estudante, um pouco teimoso mas honrado, sincero, sempre disposto a confessar as suas faltas e, o que é ainda melhor, a repará-las. O outro, ao contrário, é mentiroso, covarde, incorrigível.
– Pois já vejo que me não tinha enganado.
E contei-lhe o que se passara.





06/10/2008

A fábula do tigre




Um filhote de tigre fora criado entre cabras. Prenhe e balofa, sua mãe passara vários dias à procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um rebanho de cabras selvagens. Estava faminta, o que explica a violência de sua investida. O esforço do ataque precipitou o parto e ela acabou morrendo de esgotamento. As cabras, que haviam se dispersado, retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela compaixão maternal adoptaram a débil criatura; amamentaram-na junto com suas próprias crias e dela cuidaram ternamente. O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados, pois o pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz àquele som suave e mostrou tanto afecto quanto qualquer cabrito. A princípio teve alguma dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariana o mantinha enfraquecido, conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.
Certa noite - quando o órfão, crescido entre as cabras, já havia alcançado a idade da razão - o rebanho foi atacado, desta vez por um velho e feroz tigre. As cabras se dispersaram, porém o jovem permaneceu onde estava, sem medo ainda que surpreso. Achando-se face a face com a terrível criatura da selva, fitou-o estupefacto. Passado o primeiro impacto, começa a tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o olhar perplexo do outro.
De repente, o poderoso intruso pergunta:
- Que fazes aqui entre as cabras?! Que estás mastigando?!
A resposta foi um berro. O outro, indignado, disse num rugido:
- Por que emites este som estúpido?!
E antes que o pequeno pudesse responder, apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como se quisesse fazê-lo recobrar a lucidez. O tigre da selva carregou o assustado animal até um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície espelhada da água, então iluminada pela lua.
- Vê estas duas imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é como a minha. Por que te iludes pensando seres um cabrito? Por que berras? Por que mastigas pasto?!
O tigrezinho, incapaz de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas imagens reflectidas. Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de aflitiva incerteza. A velha fera novamente o carregou porém agora até seu covil, onde lhe ofereceu um pedaço de carne crua e sangrenta, sobra de uma refeição anterior. Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância mas o velho, ignorando o fraco gesto de protesto, ordenou rudemente:
- Come! Engole!
O outro resistiu, porém a horripilante carne foi forçada a passar entre seus dentes; o tigre vigiava atentamente seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para engolir. Sua não-familiaridade com a consistência da carne causava-lhe certa dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro quando começou a experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou o restante com avidez, sentindo um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o estômago. Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe uma sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e, erguendo-se, deu um largo bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite de sono - uma noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se, arqueou as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de súbito, irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizente rugido de um tigre.
O inflexível mestre, que estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A transformação, de fato, acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:
- Agora sabes quem realmente és?
E para completar a iniciação de seu jovem discípulo no saber secreto de sua própria e verdadeira natureza, acrescentou:
- Vem! Vamos caçar juntos pela selva.


Fábula indiana



A Morena

Fui-me à porta da Morena,
Da Morena mal casada:
- «Abre-me a porta, Morena
Abre-ma por tua alma!»
- «Como te hei-de abrir a porta
Meu frei João da minha alma,
Se tenho a menina ao peito
E meu marido à ilharga?»
Estando nestas razões,
O marido que acordava:
- «Que é isso, mulher minha,
A quem dás as tuas falas?»
- «Digo à moça do forno,
Que veio ver se amassava,
Se amasasse pão de leite,
Que lhe deitasse pouca água.»
- «Ergue-te, ó mulher minha
Vai cuidar da tua casa;
Manda teus moços à lenha,
Teus escravos buscar água.»
- «Ergue-te daí, marido,
Vai ao monte pela caça;
Não há coelho mais certo
Do que é o da madrugada.»

O marido que sáia,
Morena que se enfeitava;
Seu mantéu de cochonilha
De doze tostões a vara,
Meia de seda encarnada
Que na perna lhe estalava,
Sua bengala na mão
Que mal no chão lhe tocava.
Foi-se direita ao convento,
À portaria chegava.
O porteiro é frei João
Que pela mão a tomava;
Levou-a à sua cela,
Muito bem a confessava...
Penitência que lhe deu,
Logo ali mesmo a rezava.

À saída do convento
O marido que a encontrava:
- «Donde vens, ó mulher minha,
Donde vens tão arraiada?»
- «Venho de ouvir missa nova,
Missa nova bem cantada:
Disse-a o padre frei João,
Que assim venho consolada.»
- «Consolar-te hei-de eu agora
Com a ponta desta espada...»
Deu-lhe um golpe pelos peitos,
Deixou-a morta deitada.
- «Não se me dá de morrer,
Que o morrer não custa nada;
Dá-se-me da minha filha,
Que a não deixo desmamada!»
- «Foras tu melhor mãe que és,
Não foras tão mal casada,
Não havias de morrer
Desta morte desastrada.»

Levavam-na ao convento,
Numa tumba amortalhada:
Sorria-se o frei João,
E o marido... é quem chorava.

Romanceiro, Almeida Garrett






03/10/2008

A raposa e as uvas


Contam que certa raposa,
Andando muito esfaimada,
Viu roxos maduros cachos
Pendentes de alta latada.

De bom grado os trincaria,
Mas sem lhes poder chegar.
Disse: "Estão verdes, não prestam,
Só cães os podem tragar!"

Eis cai uma parra, quando
Prosseguia seu caminho,
E crendo que era algum bago,
Volta depressa o focinho.

Bocage (Trad.)