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27/02/2008

As Botas de Abu-Kassim Attanburi

Contam que vivia certa vez em Bagdá um homem chamado Abu-Kassim At Tanburi, que usava as mesmas botas havia sete anos. Todas as vezes que alguma parte delas se rasgava, ele a remendava, de modo que as botas se tornaram excessivamente pesadas e passaram a ser citadas em provérbio. Um dia, Abu-Kassim foi ao mercado de vidros. Um corretor lhe disse: "Ó Abu-Kassim, chegou hoje um negociante de Alepo com um carregamento de frascos dourados que ninguém quer comprar. Compra-o. Eu o revenderei para ti mais tarde, e tu ganharás o dobro de teu investimento”.Abu-Kassim comprou os vidros por sessenta dinares. Foi em seguida ao mercado de perfumes, e outro corretor lhe disse: "Ó Abu-Kassim, chegou-nos hoje de Tassibina um negociante com um carregamento de água de rosas da melhor qualidade! O negociante precisa prosseguir logo sua viagem, e podes, por isso, comprar-lhe a mercadoria por um preço muito barato; compra-a. Eu a revenderei para ti dentro em pouco, e tu ganharás o dobro de teu investimento”.Abu-Kassim comprou a água de rosas por sessenta dinares, colocou-a nos frascos dourados e levou-os para casa e os arrumou sobre uma prateleira. Depois, foi aos banhos públicos. Enquanto se banhava, um de seus amigos o interpelou: "Ó Abu-Kassim, gostaria de ver-te mudar essas botas; elas já estão feias demais, e tu és um homem de posses pela graça de Deus”."Tens razão”, retrucou Abu-Kassim, "seguirei teu conselho”.Quando saiu do banho para vestir-se, viu junto de suas botas um par de sandálias novas. Pensou que fosse o seu amigo que lhas havia ofertado; calçou-as e dirigiu-se para casa. Ora, as sandálias novas pertenciam ao cádi, que estava tomando banho naquele mesmo local. Quando saiu, procurou suas sandálias e não as encontrou. "Meus amigos”,perguntou ele,"aquele que levou minhas sandálias não deixou nada no seu , lugar?" Procuraram e só encontraram as botas de Abu-Kassim, que todo mundo reconheceu, pois eram famosas. O cádi mandou os seus homens revistarem a casa de Abu-Kassim. As sandálias estavam, de fato, lá. O cádi ordenou a Abu-Kassim comparecer à sua presença, confiscou-lhe as sandálias e fê-lo flagelar, multar e encarcerar. Abu-Kassim saiu da cadeia cheio de cólera contra suas botas. Levou-as e atirou-as ao rio Tigre. Elas afundaram. Mas um pescador, tendo atirado sua rede à procura de peixes, recolheu as botas. Reconheceu-as e pensou: "Abu-Kassim deve tê-las perdido no Tigre." Levou-as para a casa de Abu-Kassim; não o encontrou; mas viu uma janela aberta e jogou as botas para dentro da casa. As botas caíram sobre a prateleira onde estavam os frascos com a água de rosas. A prateleira desmontou-se; os vidros caíram no chão e se quebraram; toda a água de rosas se perdeu. Ao voltar, Abu-Kassim compreendeu o que se passara e começou a se lamentar e desesperar: "Ó desgraça! Estas malditas botas me arruinaram!" Então, foi de noite abrir um buraco para enterrá-las e livrar-se delas. Mas os vizinhos, ouvindo o ruído da escavação, pensaram que alguém estivesse procurando demolir a sua casa. Queixaram-se ao governador, que mandou prender Abu-Kassim e o repreendeu: "Como te permites cavar junto ao muro de teus vizinhos?" Então, aprisionou-o e só o soltou depois de Ihe ser cobrada uma multa. Abu-Kassim saiu da cadeia mais furioso ainda contra as suas
botas. Levou-as e atirou-as nas privadas do caravançarai. Mas as botas entupiram os esgotos; as imundícies transbordaram; o povo protestou contra o mau cheiro. Procuraram a causa e acharam as botas; examinaram-nas: eram as botas de Abu-Kassim! Levaram-nas ao governador e relataram-lhe o ocorrido. O Governador mandou vir Abu-Kassim, censurou-o severamente, encarcerou-o e obrigou-o a pagar o conserto dos esgotos e outra soma igual a título de multa. Abu-Kassim saiu da prisão com as botas e, na sua ira, jurou nunca mais se separar delas. Lavou-as e pô-las a secar no terraço de sua casa. Um cão as viu e, tomando-as por uma carniça, pegou-as. Mas enquanto pulava para outro terraço, as botas lhe escaparam e caíram sobre um homem, ferindo-o gravemente. Examinaram as botas e reconheceram-nas. O caso foi levado ao juiz, que condenou Abu-Kassim a indenizar o homem, de todas as despesas requeridas pelo seu tratamento. Assim, Abu-Kassim gastou o último dinar que possuía. Apanhou então as botas e levou-as ao cádi e disse-Ihe: "Solicito de Vossa Excelência que redija um ato de separação solene entre minhas botas e eu, que proclame que nada mais temos um com o outro, que nenhum de nós é responsável pelo outro e que eu não poderei ser culpado pelo que minhas botas venham a fazer”.E contou ao cádi tudo que lhe sucedera por causa dessas botas. O cádi soltou boas gargalhadas e deu um presente a Abu-Kassim antes de despedi-lo.







O grão de mostarda e o fermento



O reino dos céus é semelhante a um grão de mostarda, que um homem tomou e lançou no seu campo.
Esse grão é, na verdade, a menor de todas as sementes, mas depois de crescida é a maior das hortaliças, e se faz árvore, de tal modo que as aves vêm fazer ninho em seus ramos.
O reino dos céus é semelhante ao fermento, que uma mulher tomou e escondeu em três me­didas de farinha, até que ficasse levedada toda a massa.


Parábolas de Jesus
Mat. 13:31-33

Lenda do penedo dos ovos (pedra amarela)

Existe, no meio da serra de Sintra um penedo elevado a prumo, caprichosamente, pela Natureza, ou produzidos pelas convulsões vulcânicas do terreno em tempos ignotos, anda ligada à seguinte lenda:

Dizia-se em tempos que por baixo de tal pedra havia um tesouro escondido (um tesouro encantado) que pertenceria a quem fosse capaz de derrubar o penedo , atirando-lhe com ovos.
Uma velha meteu então na cabeça que esse tesouro havia de lhe pertencer. Para tal, a velha começou a juntar tantos ovos quantos podia. Quando achou que já tinha uma boa provisão, deu início à sua ingénua tarefa. Carregou, pouco a pouco, todos os ovos para as imediações do penedo, e meteu mãos à obra. Um a um, dois a dois, e com quanta força dispunha, ia arremessando os ovos contra o penedo. Quando já não lhe restava nenhum, terrível decepção! O penedo continuava erecto e firme, lavado com ovos!
E foi assim que, em vez de cair por terra, o penedo, pondo a descoberto o maravilhoso tesouro, caíram por terra desfeitos todos os sonhos e todas as esperanças da pobre velha! E ainda hoje, o povo sempre propenso ao maravilhoso, julga ver nos musgos amarelados que cobrem o penedo, as gemas dos ovos que a velha contra ele arremessou.

O menino e o mestre-escola


Tenho em vista zurzir na minha história
Todo o pedante, autor de vão discurso,
Que ralhando, não vale a quem se afoga,
A míngua de recurso.

Rapaz travesso, doidejando às soltas,
Perto da margem de empolado rio
Tais cabriolas fez que, ao fim de contas,
Dentro d'água caiu.

Quis o céu que no sítio do sinistro
Vegetasse, a propósito, um salgueiro,
A que, abaixo de Deus, salvar a vida
Deveu o calaceiro.

Passava por ali um mestre-escola;
E o rapaz a gritar: "Senhor, socorro!
Acudi-me, por Deus, que o ramo estala,
E, em se quebrando, eu morro".

Ouvindo este clamor, o pedagogo,
Sem notar ser imprópria a ocasião,
Dirige ao pobre, prestes a afogar-se,
Este longo sermão:

"Vede a que ponto chega a travessura!
Vão lá matar-se por traquinas tais!
Como é difícil tomar conta deles!
Oh! Desgraçados pais!

Quanto à família e os mestres envergonham!
Que sustos causam! Que profunda mágoa!"
Tendo assim esgotado o palanfrório,
Tira o menino d'água.

Gente, em que não pensais, aqui se abrange;
Pedantes, tagarelas e censores,
Entram no quadro, que esboçado fica
Com verdadeiras cores.

Faz grande turma cada classe dessas,
— Raça, da Providência abençoada,
Que em tudo busca exercitar, sem peias,
Sua língua afiada. —

Mas ouve, amigo meu: Se em transes luto
Vem primeiro livrar-me do embrechado;
Deita arenga depois e a gosto exaure
O teu palavreado.

Barão de Paranapiacaba (Trad.)

24/02/2008

O Último Combate





Na terra, a luta não havia terminado. Para se tornar definitivamente o soberano dos deuses e dos homens, Zeus ainda precisava combater um temível demónio, Tífon, que era o filho mais moço de Gaia.
Quando esse ser monstruoso se aproximava, todo mundo fugia, e os próprios deuses receavam enfrentá-lo. Sua força inesgotável, sua estatura descomunal e sua feiúra superavam as de todos os outros filhos de Gaia. Na extremidade de seus braços imensos, agitavam-se cabeças de dragão com língua preta. Cada uma delas soltava centelhas de fogo pelos olhos e gritos de animal selvagem.
Zeus as ouviu gemer, berrar e rugir uma após a outra. Preparou-se para a luta e empunhou suas armas. O choque foi terrível: a terra tremeu, o céu ficou em brasa, e o mar se ergueu num vagalhão fervente. Dentre os dentes dos dragões jorravam chamas que os relâmpagos de Zeus desviavam. De repente, juntando todas as suas forças, Zeus lançou um dardo1 poderoso, feito de seu raio, que inflamou de uma só vez as múltiplas cabeças de dragão. O monstro se consumiu num fogaréu gigantesco, queimando toda a vegetação em torno. Então, finalmente vitorioso, o senhor supremo do trovão o precipitou no fundo do Tártaro. Agora Zeus podia reinar. Voltou à sua morada no cume do monte Olimpo. Encoberto por nuvens espessas, o palácio do soberano dos céus ali se erguia, majestoso. Os deuses costumavam se encontrar no salão de mármore para alegres banquetes, em que se deleitavam com néctar e ambrósia. Eles gostavam das festas, e volta e meia suas risadas e cantos ressoavam no Olimpo. Sentado num trono de ouro e marfim, Zeus dominava os deuses e o mundo em baixo.
Com seu raio, podia agitar o céu e, com um meneio da cabeça, sacudir a terra. Todos temiam seu poder, mas respeitavam sua justiça.
Essa vitória assinalou o início de uma nova era, em que nasceram os Mortais.2 Os da época de Crono eram diferentes.

Contos e Lendas da Mitologia Grega


1 Espécie de lança, que se atira com a mão ou com a ajuda de uma arma.
2 Os homens são chamados desse modo em oposição aos deuses, que são imortais.

20/02/2008

O aprendiz de mago


Um homem de grandes artes tinha na sua companhia um sobrinho, que lhe guardava a casa quando precisava sair. De uma vez deu-lhe duas chaves, e disse:
- Estas chaves são daquelas duas portas; não mas abras por cousa nenhuma do mundo, senão morres.
O rapaz, assim que se viu só, não se lembrou mais da ameaça e abriu uma das portas. Apenas viu um campo escuro e um lobo que vinha correndo para arremeter contra ele. Fechou a porta a toda a pressa passado de medo. Daí a pouco chegou o Mago:
- Desgraçado! Para que me abriste aquela porta, tendo-te avisado que perderias a vida?
O rapaz tais choros fez que o Mago lhe perdoou. De outra vez saiu o tio e fez-lhe a mesma recomendação. Não ia muito longe, quando o sobrinho deu volta à chave da outra porta, e apenas viu uma campina com um cavalo branco a pastar. Nisto lembrou-se da ameaça do tio e já o sentindo subir pela escada, começou a gritar:
- Ai que agora é que estou perdido!
O cavalo branco falou-lhe:
- Apanha desse chão um ramo, uma pedra e um punhado de areia, e monta já quanto antes em mim.
Palavras não eram ditas, o Mago abriu a porta da casa: o rapaz salta para cima do cavalo branco e grita:
- Foge! Que aí chega o meu tio para me matar.
O cavalo branco correu pelos ares fora; mas indo lá muito longe, o rapaz torna a gritar:
- Corre! Que meu tio já me apanha para me matar.
O cavalo branco correu mais, e quando o Mago estava quase a apanhá-los, disse para o rapaz:
- Deita fora o ramo.
Fez-se logo ali uma floresta muito fechada, e, enquanto o Mago abria caminho por ela, puseram-se muito longe. Ainda o rapaz tornou outra vez a gritar:
- Corre! Que já aí está meu tio, que me vai matar.
Disse o cavalo branco:
- Bota fora a pedra.
Logo ali se levantou uma grande serra cheia de penedias, que o Mago teve de subir, enquanto eles avançavam caminho. Mais adiante, grita o rapaz:
- Corre, que meu tio agarra-nos.
-Pois atira ao vento o punhado de areia, disse-lhe o cavalo branco.
Apareceu logo ali um mar sem fim, que o Mago não pôde atravessar. Foram dar a uma terra onde se estavam fazendo muitos prantos. O cavalo branco ali largou o rapaz e disse-lhe que quando se visse em grandes trabalhos por ele chamasse mas que nunca dissesse como viera ter ali. O rapaz foi andando e perguntou por quem eram aqueles grandes prantos.
- É porque a filha do rei foi roubada por um gigante que vive em uma ilha aonde ninguém pode chegar.
-Pois eu sou capaz de ir lá.
Foram dizê-lo ao rei; o rei obrigou-o com pena de morte a cumprir o que dissera. O rapaz valeu-se do cavalo branco, e conseguiu ir à ilha trazendo de lá a princesa, porque apanhara o gigante dormindo.
A princesa assim que chegou ao palácio não parava de chorar. Perguntou-lhe o rei:
- Porque choras tanto, minha filha?
- Choro porque perdi o meu anel que me tinha dado a fada minha madrinha e, enquanto o não tornar a achar, estou sujeita a ser roubada outra vez ou ficar para sempre encantada.
O rei mandou lançar o pregão em como dava a mão da princesa a quem achasse o anel que ela tinha perdido. O rapaz chamou o cavalo branco, que lhe trouxe do fundo do mar o anel, mas o rei não lhe queria já dar a mão da princesa; porém ela é que declarou que casaria com o jovem para que dissessem sempre: Palavra de rei não torna atrás.


Recolha de Teófilo Braga


O Sol e as Rãs

Antonio Pitanga (trad.)


Nas bodas de um tirano, o povo em regozijo
Afogava em prazer suas apreensões;
Somente Esopo achava haver pouco juízo
Nos que assim se entregavam a tantas expansões

O sol pensou, diz ele, outrora em se casar,
E a nova foram dar
Às filhas das lagoas;
E tanto isso aterrou-as
Que, em uníssono coro, se puseram a lamentar
"O que será de nós se filhos chega a ter?

Se havendo um sol somente é duro de sofrer
Com uma meia dúzia o mar tem de secar
E os habitantes seus serão sacrificados
Adeus, juncos e banhados!
"Nossa raça destemida
Ver-se-á só reduzida
A triste água do Estige
Pra tão fraco animal,
Essas rãs, a meu ver, pensavam menos mal.





17/02/2008

O cão e o seu reflexo no rio



Era uma vez um cão que encontrou um osso. Abocanhou-o e correu para casa para o saborear com calma. Pelo caminho, teve que passar por cima de uma tábua que unia as duas margens de um riacho.

Nisto, olhou para baixo e viu o seu reflexo na água. Pensando que era outro cão com um osso, resolveu roubar-lho. Para o assustar, abriu a boca e arreganhou-lhe os dentes. Ao fazê-lo, o osso caiu na água e foi arrastado pela corrente.

Moral da história:
Contenta-te com o que tens e não cobices o que pertence aos outros.

16/02/2008

O Caçador

O caçador foi à caça,
À caça, com soía
Os cães já leva cansados,
O falcão perdido havia.
Andando se lhe fez noite
Por uma mata sombria,
Arrimou-se a uma azinheira,
A mais alta que ali via.
Foi a levantar os olhos,
Viu coisa de maravilha:
No mais alto da ramada
Uma donzela tão linda!
Dos cabelos da cabeça
A mesma árvore vestia,
Da luz dos olhos tão viva
Todo o bosque se alumia.
Ali falou a donzela,
Já vereis o que dizia:
– «Não te assustes, cavaleiro,
Não tenhas tamanha frima.
Sou filha de um rei c’roado,
De uma bendita rainha.
Sete fadas me fadaram
Nos braços de mi’madrinha,
Que estivesse aqui sete anos,
Sete anos e mais um dia;
Hoje se acabam nos anos,
Amanhã se conta o dia;
Leva-me, por Deus to peço,
Leva em tua companhia.»
– «Espera-me aqui, donzela,
Té amanhã, que é o dia;
Que eu vou tomar conselho,
Conselho com minha tia.»
Responde agora a donzela,
– «Oh, mal haja o cavaleiro,
Que não teve cortesia:
Deixa a menina no souto
Sem lhe fazer companhia!»

Ela ficou no seu ramo,
Ele foi-se a ter coa tia...
Já voltava o cavaleiro
Apenas que rompe o dia,
Corre por toda essa mata,
A enzina não descobria.
Vai correndo e vai chamando
Donzela não respondia:
Deitou os olhos ao longe,
Viu tanta cavalaria,
De senhores e fidalgos
Muito grande tropelia.
Levavam-na linda infanta,
Que era já contado o dia.
O triste do cavaleiro
Por morto no chão caía;
Mas já tornava aos sentidos
E a mão à espada metia:
– «Oh, quem perdeu o que eu perco
Grande penar merecia!
Justiça faço em mim mesmo
E aqui me acabo coa vida.»

Romanceiro, Almeida Garrett



O combate de Zeus e a divisão do mundo





O menino foi criado às escondidas numa gruta da ilha de Creta. Réia teve a ideia de confiar sua educação aos Curretes, demónios que tinham o costume de dançar batendo as armas umas contra as outras. De fato, Réia, preocupada em proteger o filho, contava com o barulho do bronze para encobrir o choro do bebê. Cercado pelas ninfas do lugar, o menino cresceu alimentado com o leite da cabra Amaltéia e com o mel que as abelhas do monte Ida forneciam. Essa infância secreta transcorreu harmoniosamente, sem que Crono descobrisse a existência de seu sexto filho.
Já crescido, Zeus sonhava em destronar o pai, mas não conseguiria fazer isso sozinho. Teve então a ideia de lhe dar uma bebida que o obrigasse a vomitar os filhos que engolira. O efeito foi fulminante. Libertados seus irmãos, Zeus pôde se lançar com eles num duro combate contra Crono e os Titãs.
Após dez anos de luta, a guerra ainda continuava. Gaia decidiu ajudar Zeus e seu grupo, revelando-lhe o conteúdo de uma velha profecia: "Você não poderá nunca vencer a exército de seu pai sem o auxílio dos Ciclopes e dos outros gigantes. Desça, pois, às profundezas do Tártaro, onde estão encerrados. Liberte-os, e eles lhe darão o trovão, o relâmpago e o raio!".
Zeus seguiu esse conselho e, com a ajuda dos Ciclopes, dos Cem-Braços e dos Gigantes, conseguiu derrotar o pai.
Como tinha vencido graças a seus irmãos Hades e Posêidon, Zeus partilhou com eles o domínio do mundo.
O universo se dividia em três regiões: o céu estrelado e a terra eram a primeira; o oceano, que rodeava a terra, a segunda, e, por fim, vinham as partes subterrâneas. A sorte destinou a cada um seu reino. Zeus recebeu a parte luminosa e terrestre. Suas armas simbolizavam as forças celestes. Coube a Hades a parte subterrânea, para onde vão os mortos: foi reinar no Inferno,1 sobre o povo das Sombras. Posêidon, enfim, fixou seu poder sobre todos os elementos líquidos, os mares e os rios que percorrem a terra.

Contos e lendas da Mitologia Grega


1 O Inferno representa o conjunto do mundo subterrâneo, e não apenas o lugar em que os condenados pagam por seus erros.



15/02/2008

Princesinha

HOUVE uma vez um príncipe que queria casar-se, como é natural, com uma princesa, mas era preciso que fosse realmente uma verdadeira princesa. Com este propósito, o príncipe viajou pelo mundo inteiro, com o desejo de encontrar a prometida de seus sonhos, porém, embora visitasse muitas princesas, quando se inteirava a respeito de cada uma delas, sempre havia um ou outro inconveniente que o impedia de noivar.
Nesse tempo havia no mundo muito mais princesas do que hoje, todavia, quando se investigava se eram verdadeiras princesas, sempre existia uma certa dificuldade em prová-lo; e, em muitos casos, descobria-se algum detalhe nada agradável. Finalmente, aborrecido com a inutilidade de seus esforços, o príncipe empreendeu o regresso ao seu palácio.
Passou-se algum tempo e o príncipe continuava solteiro.
Uma noite desencadeou-se uma terrível tempestade; o dilúvio era espantoso, relampejando sem cessar. Em suma, era uma noite má, como existem poucas.
Quando a tormenta estava no auge, alguém bateu na porta do palácio e o velho Rei, em pessoa, apressou-se a abrir.
Lá fora estava uma princesa, embora em situação lamentável, por causa da chuva e do vento. A água caía a jorros pelos cabelos e pelo vestido, tinha os pés encharcados de água recolhida por seus sapatos, mas garantiu ser uma verdadeira princesa.
“Logo veremos se isso é verdade”, pensou a Rainha, embora não revelasse a ninguém seu pensamento, guardando para si as dúvidas que sentia.
Dirigiu-se para o dormitório destinado aos hóspedes, tirou toda a roupa de cama e pós uma ervilha sobre uma das tábuas de madeira; colocou por cima vinte colchões e outros tantos cobertores de plumas. Ali deveria dormir a princesa.
Chegando a manhã seguinte, perguntaram-lhe se dormira bem.
– Passei uma noite péssima – replicou a jovem. – Mal consegui fechar os olhos. Deus é que sabe o que havia na cama. Tive a sensação de estar deitada sobre um objecto muito duro, tanto assim que estou com o corpo todo dolorido. Foi terrível!
Então, tanto os reis como o príncipe compreenderam que ela devia ser uma verdadeira princesa, pois que fora capaz de sentir a ervilha através dos vinte colchões e dos vinte cobertores de plumas. Somente uma verdadeira princesa poderia ter uma pele tão delicada.
E assim, o príncipe a tomou por esposa, porque estava certo de ter encontrado uma verdadeira princesa. Quanto à ervilha, foi depositada num museu, onde pode ser vista até hoje, se ninguém tiver tido a tentação de roubá-la, o que acreditamos não ter sucedido.
E esta, sim, é uma estória verdadeira.


Hans Christian Andersen





14/02/2008

João e o pé de feijão





Há muitos e muitos anos existiu uma viú­va que tinha um filho chamado João.
João e a mãe eram muito pobres e, para se manterem, contavam apenas com uma vaca, cujo leite vendiam na cidade.
Um dia, porém, a vaca parou subitamen­te de dar leite, e a pobre mulher, tendo per­dido assim a fonte de seu sustento, ficou preocupada e sem saber o que fazer.
João, de sua parte, começou a procurar um emprego, com o qual pudesse ajudar a mãe. Mas os dias foram passando sem que ele arranjasse coisa alguma para fazer. As­sim, a única solução que encontraram foi vender a vaca, pois o dinheiro daria pelo me­nos para viverem por algum tempo.
João logo se ofereceu para ir vender o animal na cidade, mas a mãe, achando que ele não saberia negociar, a princípio não con­sentiu. Entretanto, porque ela própria pode­ria sair de casa naquele dia, não teve outro remédio senão concordar com a idéia. Amar­rou então uma corda no pescoço da vaca, para que João não a perdesse e, depois de dar muitos conselhos ao filho, deixou-o partir.
E lá se foi João, com destino à cidade.
Quando estava no meio do caminho, en­controu um vendedor ambulante que o cum­primentou muito simpático e perguntou-lhe aonde estava indo com a vaca.
Assim que João contou que estava indo vendê-la na cidade, o homem tirou do bolso um punhado de feijões, muito bonitos e de co­res e formatos variados, e mostrou-os ao me­nino, dizendo que eles eram encantados.
João ficou deslumbrado com a beleza dos grãos e, ao ouvir as palavras do vendedor, seus olhos brilharam de alegria. Morrendo de vontade de possuir os feijões encantados, perguntou ao homem se ele não gostaria de trocá-los pela vaca.
O vendedor concordou prontamente com a troca. E, horas depois, João chegava em casa muito satisfeito, achando que havia feito um excelente negócio.
A mãe o recebeu muito contente, mas, quando o menino lhe mostrou o que havia conseguido em troca do animal, ficou furiosa e disse:
— Como, meu filho?! Você teve coragem de trocar a única coisa que possuíamos por uma porcaria duns grãos de feijão?
E, quanto mais pensava na situação difí­cil em que ela e o filho estavam agora, mais nervosa ficava. Até que, num acesso de rai­va, jogou os feijões pela janela, gritando:
— Veja, seu tolo! Veja para o que ser­vem seus grãos encantados: para jogar fora!
O pobre menino, desconsolado, ficou olhando para a mãe sem nada conseguir dizer. E, como castigo, naquela noite foi man­dado para a cama sem jantar.
Na manhã seguinte, ao acordar, João ainda estava muito triste e não conseguia es­quecer o acontecimento do dia anterior. Es­tava deitado, tentando encontrar um jeito de remediar o que havia feito, quando notou que havia alguma coisa impedindo o sol de entrar pela janela. Levantou-se para espiar o que era e, espantado, descobriu que os grãos de feijão não só haviam brotado durante a noite, como também haviam crescido assustadora­mente, transformando-se numa planta enor­me, que subia até o céu.
Admirado e feliz, o menino correu até o quintal e, sem pensar duas vezes, começou a subir pelo pé de feijão. Subiu, subiu e subiu; atravessou muitas camadas de nuvens ma­cias como flocos de algodão e, por fim, des­cobriu que a planta terminava num estranho país, onde tudo parecia deserto.
Como queria saber onde estava, João resolveu andar para ver se encontrava alguém por ali. Mas o lugar parecia completa­mente desabitado, pois, mesmo andando ho­ras em seguida, não viu ninguém pelo cami­nho. Porém, quando já estava escurecendo e o seu estômago até doía de fome, João avis­tou um enorme castelo para onde se dirigiu. Encontrou na porta uma mulher que pareceu muito assustada em vê-lo ali.
— O que você está fazendo aqui, menino? — disse ela. — Não sabe que esse castelo per­tence ao meu marido, um gigante muito mau, devorador de carne humana?
Ao ouvir isso, João sentiu as pernas bambearem de medo. Mas, como a mulher lhe dissesse que o gigante estava fora, caçando, e também como a fome e o cansaço não o dei­xassem andar mais, pediu a ela que o abri­gasse e escondesse até o dia seguinte.
Embora fosse casada com um homem tão mau, a esposa do gigante era uma pessoa muito bondosa. Assim, ficou com muita pena do menino e levou-o para dentro do castelo, onde serviu-lhe uma mesa coberta de coisas deliciosas. João, que estava morto de fome, comeu tudo com tanto apetite e gosto que logo se esqueceu do perigo que estava correndo. De repente, porém, ouviu-se um grande barulho na porta, seguido de passos tão pe­sados que o castelo inteiro estremeceu.
— Oh, meu Deus! — disse a mulher, tre­mendo como vara verde. — É o gigante, me­nino ! Ele não pode encontrar você aqui senão vai devorar você e a mim também!
Ao vê-la tão assustada, João ficou para­lisado de medo. Mas a mulher o puxou rapi­damente pela mão, e mal teve tempo de escon­dê-lo dentro do forno, antes que o gigante en­trasse na cozinha, gritando com sua voz de trovão:
— Mulher! Mulher, estou sentindo cheiro de carne humana!

Um, dois e três,
diga-me de uma vez:
onde está esse abelhudo?
Vou comê-lo com ossos e tudo!

Mais que depressa, a mulher explicou que o cheiro de carne era dos franguinhos que ela havia matado para o jantar.

João, que estava espiando por uma frestinha do forno, ficou apavorado só de pensar no que aconteceria se o gigante o encontrasse. Mas a bondosa mulher, que sabia que o ma­rido era muito comilão, apressou-se em ser­vir a comida, antes que ele começasse a pro­curar por todos os cantos da casa até encon­trar o pobre menino.
O gigante sentou-se então à mesa e, para começar a refeição, engoliu uma dúzia de frangos assados, com ossos e tudo. Com os olhos arregalados, João assistiu à mulher tra­zendo para a mesa pratos e mais pratos, que o gigante engolia rapidamente, sem nunca ficar satisfeito.
Quando acabou finalmente sua refeição, o comilão gritou para a mulher:
— Traga-me o dinheiro!
— Está bem! — respondeu ela, saindo da cozinha.
E, logo em seguida, voltava com dois sa­cos cheios de moedas de ouro. Depois de ordenar que a mulher fosse dormir, o gigante colocou os sacos de moedas sobre a mesa e começou a contá-las, enquanto esperava o sono chegar.
Quando se cansou desse divertimento, guardou as moedas de novo nos sacos e de­pois colocou-os no chão, perto de si. Só que, por precaução, amarrou ao pé da mesa um cão de guarda, e depois recostou-se na ca­deira e pôs-se a dormir.
João, que a tudo assistia de seu escon­derijo, esperou que o gigante estivesse dor­mindo profundamente e, quando viu que ele estava roncando como um trovão, saiu de mansinho do forno para roubar o dinheiro. Entretanto, assim que pôs as mãos sobre os sacos de moedas, o cão de guarda começou a latir feito louco e o pobre menino, apavo­rado, julgou-se completamente perdido.
Acontece que o gigante tinha um sono pe­sado demais e os latidos fizeram apenas com que ele se mexesse na cadeira, sem conse­guir acordá-lo.
Mais sossegado, o menino subiu na mesa da cozinha e, depois de pegar um pedação de carne, jogou-o ao cão, que abanou o rabo e ficou em silêncio, deliciando-se com o petisco.
João pôde assim pegar o dinheiro e fugir dali. Correu sem parar até alcançar o pé de feijão, descendo habilmente até chegar ao quintal de casa.
Em seguida, chamou pela mãe e, depois de contar-lhe toda a aventura, entregou-lhe os dois sacos de moedas.
Corri o dinheiro roubado do gigante, João e a mãe passaram a levar uma vida de rei. Nada mais faltava na casa e eles não pre­cisavam mais temer a fome e a necessidade.
Mas o tempo foi passando e os sacos de moedas começaram a ficar vazios. E João pensou, então, em voltar ao castelo do gi­gante, para se apoderar de mais riquezas.
Contou sua vontade à mãe e ela, com medo de que alguma coisa pudesse acontecer-lhe, proibiu-o de ir.
— Já pensou se o gigante agarrar você? — disse ela. — E a mulher dele? Ela certamente o reconhecerá e poderá entregá-lo ao marido!
Percebendo que a mãe não ia mesmo per­mitir, João fingiu aceitar o que ela dizia. Mas, na primeira chance que teve, saiu es­condido e subiu novamente pelo pé de feijão, desta vez muito bem disfarçado para que a mulher do gigante não o reconhecesse.
Chegou assim mais uma vez ao estranho país e, depois de caminhar até o anoitecer, avistou o castelo do gigante, na porta do qual encontrou novamente a boa mulher.
— Menino! — disse ela, sem reconhecer João. — O que você faz aqui? Não sabe que esse castelo é do meu marido, um gigante muito mau, devorador de carne humana?
João fingiu-se muito assustado, e pediu à mulher que o escondesse até o dia seguinte, dizendo que não conseguiria encontrar o ca­minho de casa no escuro.
— Ah, não! — respondeu ela. — De jeito nenhum! Da última vez que fiz isso me ar­rependi amargamente! Já dei abrigo a um menino como você e o mal-agradecido fugiu, levando dois sacos de moedas de ouro do meu marido. Por causa disso, quase fui devorada no lugar do malandrinho! E o gigante, desde então, tem estado com um humor terrível, que eu sou obrigada a suportar!
Mas João sabia ser convincente e pediu tantas vezes que a boa mulher acabou con­cordando em escondê-lo. Assim, levou-o para dentro do castelo e deu-lhe de comer e de beber. E, novamente, mal teve tempo de es­conder João, desta vez dentro de um quarti­nho de despejo, e o gigante já chegava, com seu andar tão pesado que fazia o castelo es­tremecer. Dali a pouco, ele já estava na co­zinha, gritando com voz de trovão:
— Um, dois e três.
Cheiro de gente outra vez! Onde está esse abelhudo? Vou comê-lo com ossos e tudo!
Enquanto dizia isso, o gigante procurava por todos os cantos da casa.
João, que a tudo assistia pela fechadura da porta, ficou morrendo de medo de ser en­contrado. Mas a bondosa mulher mais uma vez convenceu o marido de que não havia ninguém na casa e, enchendo a mesa de co­mida, conseguiu distraí-lo.
Novamente o gigante comeu até se far­tar e depois disse à mulher:
— Mulher, traga-me a galinha!
Ela, como da outra vez, obedeceu às or­dens e saiu da cozinha, para voltar logo de­pois, trazendo uma galinha viva. O gigante colocou a galinha sobre a mesa e, assim que a mulher se retirou, ordenou:
— Bote!
E João viu, espantado, a galinha botar um ovo que não era nem branco e nem igual aos das galinhas comuns, e sim de ouro, ouro puro e maciço!
— Bote outro! — ordenou o gigante.
E a galinha obedeceu. Assim aconteceu sucessivamente, até que a mesa da cozinha ficou repleta de ovos de ouro, bonitos e re­luzentes.
De repente, o gigante se cansou de man­dar a galinha botar os ovos e, debruçando-se sobre a mesa, caiu, logo em seguida, num sono profundo.
Quando ouviu o gigante roncando outra vez como um trovão, João saiu em silêncio de seu esconderijo. E, como desta vez não havia nem o cão de guarda para atrapalhar, foi muito fácil agarrar a galinha e fugir cor­rendo do castelo, até chegar ao pé de feijão.
Logo que entrou em casa, João chamou a mãe e, depois de lhe contar a sua aventura, entregou-lhe a galinha dos ovos de ouro.
Daquele dia em diante, nada mais lhes faltou, pois, sempre que precisavam de algu­ma coisa, bastava ordenar à galinha que bo­tasse um ovo, e ela obedecia prontamente.
Mesmo sendo agora rico e feliz, João voltou a ter vontade de subir outra vez ao castelo do gigante. Mas, sempre que falava nisso, a mãe o repreendia tão severamente, que o menino acabava adiando a viagem, sem entretanto desistir da idéia.


Passaram-se assim três anos, no final dos quais João tomou uma decisão: ia subir de novo, custasse o que custasse, e não con­taria nada à mãe.
Assim, esperou pacientemente que che­gasse o verão, quando os dias são mais lon­gos e, depois de se disfarçar muito bem, subiu pelo pé de feijão antes que o sol nascesse, para que a mãe não o visse.
Novamente chegou ao castelo numa hora em que o gigante não estava, e mais uma vez não foi reconhecido pela mulher, que voltou a falar-lhe dos perigos que corria estando ali. Só que, desta vez, foi muito mais difícil con­vencê-la a recolher um estranho em seu cas­telo, pois o gigante, depois do último roubo, estava com um humor insuportável e cada dia se tornava mais malvado.
João, porém, sabia que a mulher era muito bondosa e continuou insistindo até que conseguiu convencê-la. Foi então acolhido, e de novo lhe foi servida uma refeição deli­ciosa.
Mas nesse dia o gigante chegou tão re­pentinamente que a mulher só teve tempo de colocar João dentro de um caldeirão, antes que o marido entrasse na cozinha gritando:
— Mulher! Sinto cheiro de carne huma­na!

Um, dois e três,
diga-me de uma vez:
onde está o abelhudo?
Vou comê-lo com ossos e tudo!

E estava tão furioso e desconfiado, que começou a procurar por todos os cantos, sem nem ouvir a esposa chamando-o para o jantar.
Procurou, procurou e procurou até que, finalmente, chegou bem perto do caldeirão onde João estava escondido. Ao ouvir aqueles passos que faziam o chão tremer e aquela voz de trovão gritando furiosamente, o pobre menino achou que estava mesmo perdido. Por sorte, entretanto, o gigante sentiu uma fome repentina e ficou com preguiça de levantar a tampa do caldeirão. Por isso, desistiu de procurar e gritou:
— Mulher! Quero jantar!
Dentro de seu esconderijo, João suspirou aliviado. E ali ficou bem quietinho, esperan­do que o comilão fizesse sua interminável refeição.
Quando, afinal, estava satisfeito, o gi­gante gritou para a mulher:
— Traga-me a harpa de ouro!
E ela, como sempre fazia, obedeceu-lhe prontamente. O gigante esperou que ela se retirasse para dormir, depois colocou o ins­trumento sobre a mesa e ordenou:
— Toque!
No mesmo instante, a harpa de ouro co­meçou a tocar sozinha uma melodia doce e suave, que deixou João maravilhado e que embalou os sonhos do malvado gigante. As­sim, o menino esperou até que ele estivesse roncando bem alto, saiu em silêncio do cal­deirão e correu na direção do valioso instru­mento.
Acontece que a harpa era encantada e, ao sentir que mãos estranhas a tocavam, co­meçou a gritar com uma voz fininha:
— Socorro! Socooorro!
E o gigante, ou porque não estivesse dor­mindo ainda, ou porque gostasse muito da harpa, acabou acordando. Ao ver que estava sendo roubado, levantou-se da cadeira, gri­tando, furioso:
— Ah, seu maldito! Desta vez você me paga! Quando eu o pegar, vou engoli-lo vivo, com ossos e tudo!
Disse isso e veio direto em cima do po­bre João, que, muito assustado, começou a correr até não poder mais. A harpa de ouro, por sua vez, continuava gritando, com sua vozinha fina:
— Socorro, meu senhor! Estão me rou­bando !
E João, ao ouvi-la falar, corria mais ainda, achando que o gigante o estava alcan­çando.
De repente, no entanto, João percebeu que havia já alguns minutos não ouvia mais os urros e o barulho dos passos de seu perse­guidor. Intrigado, virou-se para trás e desco­briu uma coisa que o deixou muito feliz: o gigante, embora fosse grande e forte, já esta­va velho e não conseguia correr muito.
Mesmo assim, ainda havia um longo cami­nho para chegar ao pé de feijão, e por isso o menino agarrou de novo a harpa, que não pa­rava de gritar por socorro, e continuou a correr.
Horas depois, alcançou de novo seu pé de feijão e começou a descer. Quando estava já no meio da haste da imensa planta, porém, João olhou para cima e viu que o gigante, por ser muito pesado, descia numa rapidez incrível. Assim, logo que avistou o quintal de casa, o menino começou a gritar pela mãe:
— Mamãe, mamãe! Traga-me um ma­chado, depressa!
Quando João pôs os pés no chão, a mãe já se preparava para dar os primeiros golpes na planta. Mas a viúva, ao olhar para cima e ver o tamanho do gigante, ficou paralisada de medo.
João estava muito cansado, mas conse­guiu reunir todas as suas forças e, apossando-se do machado, golpeou várias vezes o pé de feijão. Tendo sido cortada a planta, o gi­gante despencou lá do alto, caindo ao chão com um grande estrondo. Era tão pesado que | seu corpo, ao cair, fez uma cratera enorme, que demorou muitos anos para fechar.
Livre do perigo que o ameaçava, João nbraçou a mãe alegremente. E, desde aquele dia, os dois passaram a viver tranquilos.
Tempos depois, quando se tornou um ho­mem forte e bonito, João se casou com uma princesa, com quem viveu feliz por muitos e muitos anos.
Quanto ao pé de feijão, depois de cor­tado, secou completamente e, como não havia mais sementes, nunca mais nasceu outro igual.



13/02/2008

Milagre Autêntico

Um homem apresentou-se a um mestre e lhe disse:
- Meu anterior mestre faleceu. Ele era um homem santo capaz de realizar muitos milagres. Que milagres és tu capaz de realizar?
- Eu quando como, como; quando durmo, durmo - respondeu o mestre.
- Mas isso não é nenhum milagre, eu também como e durmo.
- Não. Quando tu comes, pensas em mil coisas; quando dorme, fantasias e sonhas. Eu somente como e durmo. Isto é um milagre.






A Gata Borralheira



Era uma vez um fidalgo que casara em segundas núpcias com a mulher mais arrogante e orgulhosa que alguma vez se viu, mãe de duas filhas como ela e iguais como duas gotas de água. O marido também tinha uma filha, mas esta era doce e boa como a sua mãe, que fora a melhor pessoa do mundo.
Assim que se casaram, a madrasta mostrou logo que era muito má. Não podia suportar as boas qualidades da rapariguinha, pois, ao lado dela, as suas filhas pareciam ainda mais antipáticas. Por isso, começou a obrigá-la a fazer os trabalhos domésticos mais humildes: tratava da cozinha, limpava as escadas, arrumava os quartos da senhora e das suas filhas; dormia no sótão, num colchão de palha, enquanto as irmãs dormiam em quartos bonitos, com espelhos onde se podiam ver da cabeça aos pés. A pobre menina suportava tudo aquilo com paciência e não se queixava ao pai, porque sabia que ele lhe ralharia.
Quando acabava de limpar a casa, a boa rapariga refugiava-se a um canto da lareira e sentava-se nas cinzas. Por isso chamavam-lhe Gata Borralheira. Esta, porém, com os seus pobres vestidinhos, era cem vezes mais bonita do que as suas meias-irmãs que, no entanto, se vestiam como grandes senhoras.
Um dia o filho do rei organizou um baile e convidou todas as pessoas importantes. As duas irmãs foram convidadas, porque eram pessoas distintas no país. Começaram logo a escolher os vestidos e os penteados mais bonitos, cheias de alegria. A Gata Borralheira, coitada, teve que engomar os saiotes e os punhos dos vestidos das irmãs. Em casa só se falava do modo como iriam vestidas na noite da festa.
- Eu - decidiu a mais velha - vou levar o vestido de veludo vermelho com guarnição de renda da Inglaterra.
- Eu - declarou a mais nova - vou vestir o meu vestido do costume mas com o manto de flores de ouro e o colar de diamantes. Ficará um fato invulgar!
Chamaram as melhores cabeleireiras que lhes fizeram duas filas de caracóis. Por fim, chamaram a Gata Borralheira, cujo gosto muito apreciavam, para que desse a sua opinião. Ela deu-lhes óptimos conselhos, além de se oferecer para as ajudar a vestir, o que aceitaram imediatamente. Enquanto as vestia e penteava, as meias-irmãs perguntaram:
- Ó Gata Borralheira, gostavas de ir ao baile?
- Ah, meninas, estão a troçar! Essa festa não é para mim!
- Tens razão! Até dava vontade de rir, ver uma Gata Borralheira como tu num baile!
Qualquer outra rapariga no lugar dela teria feito tudo para as vestir mal, mas como era boa, vestiu-as melhor do que ninguém. As meias-irmãs fizeram dieta, não comeram durante dois e ficarem com cinturas de vespa.
Chegou finalmente o grande dia e as irmãs partiram. A Gata Borralheira seguiu-as com os olhos enquanto pôde e, quando desapareceram, desatou a chorar. A madrinha, que tinha vindo visitá-la, quis saber o que se passava.
- Eu queria... eu queria... - a Gata Borralheira chorava de tal maneira que nem conseguia falar.
A madrinha, que era uma fada, consolou-a:
- Também querias ir ao baile, não é?
- É isso mesmo - suspirou.
- Bem, prometi a mim própria ajudar-te e vou fazer com que vás ao baile - garantiu a madrinha. - Vai à horta e traz-me uma abóbora.
A Gata Borralheira foi a correr buscar a abóbora mais bonita que conseguiu encontrar. A madrinha esvaziou-a muito bem, até ficar só a casca, bateu-lhe com a varinha mágica e, de um momento para o outro, ela transformou-se numa linda carruagem completamente dourada.
A seguir, foi ver a ratoeira onde encontrou seis ratinhos ainda vivos. Pediu à Gata Borralheira que levantasse o ferro que os prendia e mal cada ratinho saía tocava-lhe com a varinha mágica. Imediatamente ele se transformava num belo cavalo. Assim conseguiu seis cavalos magníficos, cinzentos cor de rato. Mas como não soubesse de que havia de fazer o cocheiro, a Gata Borralheira lembrou:
- Vou ver se na outra ratoeira há algum rato, para fazer o cocheiro.
- Está bem - concordou a madrinha. - Vai ver.
Daí a pouco regressou com a ratoeira onde havia três grandes ratos. Dos três, a Fada escolheu o que tinha os bigodes mais compridos e, ao tocar-lhe, transformou-o num belo cocheiro com o bigode mais bonito que alguma vez se viu. Depois, a fada mandou:
- Vai ao jardim. Por trás do regador, encontrarás seis lagartos. Trá-los cá.
A Gata Borralheira obedeceu imediatamente. Trouxe os lagartos que a madrinha logo transformou em seis lacaios de librés magníficas. Estes subiram para a parte de trás da carruagem e ficaram lá, bem direitos como se nunca na vida tivessem feito outra coisa. Por fim, a fada perguntou:
- Aqui tens tudo o que é preciso para ires ao baile. Estás contente?
- Oh sim! Mas como hei-de ir com este vestido tão feio?
Mal a fada lhe tocou com a sua varinha, o pobre vestido transformou-se completamente. A Gata Borralheira tinha agora um vestido de brocado de ouro e prata, todo salpicado de pedras preciosas. Nos pés, um par de maravilhosos sapatinhos de cristal. Assim vestida, subiu para a carruagem.
A madrinha recomendou-lhe então que não voltasse depois da meia-noite, avisando-a de que, se ficasse no baile mais um minuto que fosse, a carruagem transformar-se-ia de novo em abóbora, os cavalos em ratinhos, os lacaios em lagartos e o vestido voltaria a ter o aspecto esfarrapado que ela conhecia.
A Gata Borralheira prometeu à madrinha que sairia do baile antes da meia-noite e partiu toda satisfeita. O filho do rei, a quem fora anunciada a chegada de uma princesa desconhecida, correu a recebê-la, deu-lhe a sua mão para a ajudar a descer da carruagem e conduziu-a à sala. Fez-se um grande silêncio. Todos pararam de dançar. Os violinos deixaram de tocar. Todos ficaram espantados com a grande beleza da menina. Só se ouvia murmurar:
- Oh! Como é linda!
O próprio rei, embora velho, segredou baixinho à rainha que há muitos anos não via mulher tão bonita e graciosa. Nenhuma dama tirava os olhos dela. Observavam atentamente o penteado e o vestido, para o poderem imitar no dia seguinte, mal descobrissem um tecido tão bonito e modista tão habilidosa. O príncipe concedeu-lhe um lugar de honra e convidou-a para dançar. Ela dançou com tanta elegância que deixou todos maravilhados. Foi servido um magnífico refresco, que ele nem sequer provou, de tal modo estava encantado. Foi então que ela foi para junto das meias-irmãs. Falou-lhes com delicadeza e ofereceu-lhes as laranjas e os limões que o príncipe lhe tinha oferecido, o que as encantou, tanto mais que não a reconheceram.
Enquanto conversavam, a Gata Borralheira ouviu o relógio tocar um quarto para a meia-noite. Imediatamente se despediu e partiu, rápida como o vento. Mal chegou a casa, foi ter com a madrinha. Agradeceu-lhe e disse-lhe que gostaria muito de ir à festa do dia seguinte, já que o filho do rei tanto lho tinha pedido.
Enquanto lhe contava os pormenores da festa, as duas irmãs tocaram à porta e a Gata Borralheira foi abrir.
- Vieram tão tarde! - disse ela, esfregando os olhos e espreguiçando-se, como se tivesse acabado de acordar.
Mas na verdade não sentia sono nenhum.
- Se tivesses ido ao baile - disse-lhe uma das irmãs - não te terias aborrecido. Estava lá a princesa mais bonita do mundo. Foi muito delicada connosco e ofereceu-nos laranjas e limões.
A Gata Borralheira não cabia em si de contente. Perguntou o nome da princesa, mas as irmãs não sabiam.
Contaram-lhe, porém, que o filho do rei queria muito saber quem ela era e que, para o saber, daria o que quer que fosse. A Gata Borralheira sorriu e disse:
- Então ela devia realmente ser muito bonita! Meu Deus, que sorte a vossa! Como gostava de a ver! Menina Julieta, empresta-me só por esta vez o seu vestido amarelo, o que usa todos os dias?
- Aquele que eu também quero? - Perguntou Julieta. - Emprestar o meu vestido a uma Gata Borralheira como tu? Só se eu fosse maluca!
A menina já esperava esta resposta e, por isso, ficou contente, pois estaria metida num grande sarilho se a meia-irmã lhe tivesse emprestado o vestido.
Na noite seguinte as duas irmãs foram de novo ao baile. A Gata Borralheira também foi, vestida de forma ainda mais luxuosa do que da primeira vez. O filho do rei não a deixou nem um momento e todo o serão lhe segredou frases apaixonadas e galantes. A menina, que não estava nada aborrecida, esqueceu-se das recomendações da madrinha de tal modo que, quando ouviu a primeira badalada da meia-noite, pensou que ainda fossem onze horas. Mas, ao dar-se conta do que se passava, levantou-se e fugiu, ligeira como um gamo. O príncipe correu atrás dela, mas não a conseguiu apanhar. Ao fugir, a Gata Borralheira perdeu um sapatinho de cristal que ele guardou com o maior carinho.
A Gata Borralheira chegou a casa sem fôlego, sem carruagem, nem lacaios. Trazia o vestido com que costumava andar e, de todo o luxo, apenas lhe restava um dos sapatinhos. Tinha perdido o outro no caminho.
Tentaram saber se os porteiros do palácio real haviam visto sair alguma princesa, mas eles responderam que não saíra ninguém, a não ser uma rapariga tão mal vestida que mais parecia uma camponesa.
Quando as irmãs regressaram do baile, logo a Gata Borralheira lhes perguntou se se tinham divertido e se lá estava também aquela linda senhora. Que sim, mas que fugira no momento em que batia a meia-noite, e tão depressa que deixara cair um dos seus sapatinhos de cristal, o sapatinho mais bonito do mundo. Que o filho do rei o tinha guardado e não fizera outra coisa senão olhar para ele enquanto durou o baile, o que queria dizer que se apaixonara perdidamente pela linda senhora a quem o sapatinho pertencia.
As irmãs diziam a verdade. Com efeito, poucos dias depois, o príncipe mandou proclamar ao som das trombetas que casaria com a menina em cujo pé o sapatinho servisse perfeitamente.
Em primeiro lugar experimentaram as princesas, depois as duquesas e todas as damas da corte, mas em vão. O sapatinho acabou por chegar a casa das duas irmãs, que fizeram o impossível para o calçarem, mas não conseguiram.
A Gata Borralheira, que as observava e que reconhecera o sapatinho, acabou por sugerir:
- Vejamos se me serve a mim!
As irmãs desataram a rir e a fazer pouco dela. O cavalheiro encarregado de experimentar o sapatinho, encantado com a beleza da Gata Borralheira, achou que era justo, uma vez que tinha ordem para que todas as meninas do reino o experimentassem. Deixou-a sentar-se e tentou calçar-lhe o sapatinho. Servia-lhe como uma luva. Grande foi o espanto das irmãs. Porém, maior ficou quando a Gata Borralheira tirou do bolso o outro e o calçou no outro pé.
Nesse momento chegou a madrinha que tocou com a varinha de condão nas roupas da Gata Borralheira, tornando-as mais luxuosas que nunca. Foi então que as irmãs reconheceram nela a linda senhora do baile e, ajoelhando-se aos seus pés, pediram-lhe desculpa pelos maus tratos. A Gata Borralheira mandou-as levantarem-se e abraçou-as. Disse-lhes que lhes perdoava do fundo do coração e pediu-lhes que gostassem sempre dela. Depois, magnificamente vestida, foi levada à presença do príncipe, aos olhos de quem parecia ainda mais bonita, e casaram poucos dias depois.
Como tinha tanto de bondosa como de bonita, convidou as duas meias-irmãs a irem ao palácio e, nesse mesmo dia, casou-as com dois fidalgos.




12/02/2008

A Figueira

Exortação à Vigilância



Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós: quando virdes todas essas coisas, sabei que está próximo, às portas.
Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isso aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão. Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai.
Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do Homem. Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casaram e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca. E não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do Homem.
Então, dois estarão no campo, um será tomado, e deixado o outro; duas estarão trabalhando num moinho, uma será tomada, e deixada a outra. Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor.
Mas considerai isto: se o pai da família soubesse a que hora viria o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua casa. Por isso, ficai também vós apercebidos; porque, à hora em que não cuidais, o Filho do Homem virá.


Parábolas de Jesus
Evangelho de Mateus cap. 24 vers. 32-44


08/02/2008

O Homem e sua Mulher / O Galo e as 50 Galinhas

Na história intitulada O conselheiro, quando o homem deu uma risada ao ouvir o segundo conselho dado pelo burro ao boi, sua mulher (que não conhecia a linguagem dos animais) ficou perplexa e curiosa e quis saber por que ele riu. O homem não podia revelar que conhecia a linguagem dos animais. Respondeu à mulher que esse riso envolvia um segredo que lhe era proibido divulgar sob pena de morte. - Quero que me contes esse segredo, mesmo que tenhas que morrer insistiu a mulher. Como o homem amava sua mulher e nada lhe recusava, consentiu em revelar-lhe o segredo e perder a vida. Mandou, pois, vir o cádi e as testemunhas para deixar consignadas oficialmente suas últimas vontades. E mandou vir seus parentes e os de sua mulher para despedir-se deles. Todos aconselharam à mulher desistir de seu propósito e não empurrar para o túmulo seu marido e pai de seus filhos. Ela, porém, teimou, repetindo: "Quero conhecer o segredo, mesmo que ele tenha que morrer”.Toda essa movimentação despertou a atenção do cão e dos animais da capoeira. O cão censurou o galo por estar cantando quando o amo deles todos estava para morrer. O galo perguntou: "E por que nosso amo está para morrer?”
O cão contou-lhe a história. Comentou o galo: "Por Alá, nosso amo é muito tolo. Eu tenho cinquenta esposas. Agrado a uma; desagrado a outra; mas não permito nenhuma rebelião entre elas. E ele tem apenas uma esposa e não consegue controlá-la. O que ele deve fazer é apanhar umas varas verdes nas amoreiras e bater nela até que se arrependa e não mais lhe exija nada." O homem ouviu o que o galo disse ao cão, pensou e decidiu seguir o conselho do galo. Cortou umas varas das amoreiras, escondeu-as no quarto do casal e chamou a mulher: "Vem comigo até nossa alcova para que te conte o segredo e me despeça de ti para sempre”.Quando a mulher entrou no quarto, o homem trancou a porta, apanhou as varas e bateu nela até que ficou cega de dor e gritou: ‘ Arrependo-me. " E beijou lhe as mãos e os pés. Em seguida, saíram juntos em paz para iniciar uma nova vida. E os parentes e os vizinhos se regozijaram por eles.





O Conselheiro




Contam que certo lavrador possuía um burro que o repouso engordara e um boi que o trabalho abatera. Um dia, o boi queixou-se ao burro e perguntou-lhe: "Não terás, ó irmão, algum conselho que me salve desta dura labuta?" O burro respondeu: "Finge-te de doente e não comas tua ração. Vendo-te assim, nosso amo não te levará para lavrar o campo e poderás descansar." Dizem que o lavrador entendia a linguagem dos animais e compreendeu o que eles conversaram. Na manhã seguinte, viu que o boi não comera sua ração. Deixou-o e levou o burro em seu lugar. O burro foi obrigado a puxar o arado o dia todo, e quase morreu de cansaço. E lamentou o conselho que dera ao boi. Quando voltou à noite, perguntou-lhe o boi: "Como vais, querido irmão?" Respondeu o burro: "Vou muito bem. Gostei da luz do sol e da alegria dos campos. Mas ouvi algo que me fez estremecer por tua causa. Ouvi nosso amo dizer: `Se o boi continuar doente, deveremos matá-lo para não perdermos sua carne.' Minha opinião é que comas tua ração e voltes para tua tarefa a fim de evitar tamanho infortúnio." O boi concordou e devorou toda a sua ração.O lavrador estava ouvindo, e riu.



Desapego

Um cidadão fez voto de desapego e pobreza. Dispôs de todos os seus bens e propriedades, reservou para si apenas duas tangas, e saiu Índia afora em busca de todos os sábios, medindo na verdade o desapego de cada um. Levava apenas uma tanga no corpo e outra para troca, sempre necessário.
Estava convencido de não encontrar quem ganhasse de si em despojamento, quando soube de um velho guru, bem ao norte, aos pés do Himalaia. Tomando as direcções, parte ao encontro do velho sábio.
Quando lá chegou, tristeza e decepção! Encontrou terras bem cuidadas, um palácio faustoso, muita riqueza, muita pompa. Indignado, procura pelo guru. Um velho servo lhe diz que ele está em uma ala dos magníficos jardins com seus discípulos, estudando desapego. Como era costume da casa Ter gentileza para com os hóspedes, o servo convida o andarilho para o banho, repouso e refeição, antes de se dirigir à presença do sábio.
Achando tudo muito estranho, o desapegado aceita a sugestão. Toma um bom banho, lava sua tanga usada, coloca-a para secar no quarto e sai em busca do guru. Completamente injuriado, queria contestar e desmascarar aquele que julgava um impostor, pois em sua concepção desapego não combinava com posses. Aproxima-se do grupo, que ouve embevecido as palavras do mestre e fica ruminando um ardil para atacar o guru, quando, correndo feito um doido, chega um dos serviçais gritando:
- Mestre, mestre, o palácio está pegando fogo, um incêndio tomou conta de tudo. O senhor está perdendo uma fortuna! O sábio, impassível, continua sua prédica. O desapegado viajante das duas tangas dá um salto e sai em desabalada carreira, gritando:
- Minha tanga, minha tanga, o fogo está destruindo minha tanga...






06/02/2008

Lenda da Serra da Estrela




Era uma vez um pastor que vivia com o seu rebanho numa alta serra do centro de Portugal. Como todos os pastores, fazia da solidão uma amiga. A companhia da natureza e dos animais bastavam-lhe. Há muito tempo que tinha trocado a aldeia pelos altos e grandes prados, onde sempre se tinha sentido melhor. De dia, corria e brincava com os animais e, quando já estava cansado, então via apenas. Observava a vastidão e o colorido de uma paisagem sempre a mudar,
Já lhe conhecia bem as maneiras, os sons e os cheiros. E à noite, recolhido o rebanho ainda lhe sobrava tempo para falar de tudo o que lhe apetecia com a sua grande amiga. Era mesmo grande aquela estrela que se erguia imponente e luminosa bem acima do alto da serra, rodeada por milhares de outras mais pequenas. Era a sua confidente de todas as noites. Ouvia-o sem nunca se aborrecer. E ele voltava sempre à procura daqueles momentos mágicos em que encontrava paz e entusiasmo para recomeçar um novo dia. Certa vez, chegou aos ouvidos do Rei que nas suas terras havia um pastor que falava com as estrelas e logo, por curiosidade ou inveja, o mandou chamar à sua presença, propondo-lhe que trocasse a estrela falante por uma grande riqueza. Afinal de contas, não era qualquer rei que se podia gabar de falar com uma estrela.
O pastor disse-lhe então que não trocaria a sua amiga por riqueza alguma deste mundo. Antes ser pobre e continuar feliz.
Desapontado, mas compreendendo as suas razões, o rei, mandou-o em paz.
Quando chegou à cabana no alto da serra, mal anoiteceu, foi ter com a sua amiga estrela e, dessa vez, foi ela a confessar-lhe os seus receios. Entoando uma doce melodia, disse-lhe que, por momentos, chegou a pensar que ele a tivesse trocado pelo dinheiro do poderoso rei. Foi a vez do pastor a sossegar, dizendo-lhe que a sua amizade era para ele a mais preciosa das coisas e, em alta e profética voz, deu o seu nome àquela que era também a sua serra: Serra da Estrela.
Ainda hoje se diz que na Serra, uma estrela diferente das outras brilha à procura do seu pastor.


05/02/2008

Crono


Vencedor de seu pai Urano, Crono se tornou o senhor todo-poderoso do universo. Em vez de beneficiar seus parentes, libertando os irmãos, preferiu reinar sozinho e os deixou encerrados nas profundezas da terra. Sua mãe, furiosa, predisse seu fim:
"Você também, filho meu, será deposto do trono por um dos seus filhos!"
Temendo a realização dessa profecia, Crono fez como o pai: arranjou um jeito de eliminar os filhos que lhe dava sua esposa Réia. Cada vez que nascia um, ele o devorava. Isso ocorreu com cinco recém-nascidos.
A mãe deles, desesperada, foi ver Gaia:
"Querida avó, preciso da sua ajuda. Seu filho faz desaparecer todos os filhos que concebo. Um sexto acaba de nascer. E um menino. Ajude-me a salvá-lo!"
"Você precisa ser mais astuciosa do que ele, minha filha", respondeu-lhe maliciosamente Gaia. "Enrole uma pedra numa coberta e entregue a Crono, no lugar do bebé. Ele nem vai desconfiar e vai engolir a pedra, como engoliu os outros filhos!"
A profecia de Gaia não tardaria a se realizar: o bebê que elas acabavam de salvar era Zeus. O jovem deus logo tomou do pai o poder absoluto sobre o mundo...

Contos e Lendas da Mitologia Grega


04/02/2008

Urano e Gaia




Da união deles nasceram primeiro seis meninos e seis meninas, os Titãs e as Titânides, todos de natureza divina, como seus pais. Eles também tiveram filhos.
Um deles, Hiperíon, uniu-se à sua irmã Téia, que pôs no mundo Hélio, o Sol, e Selene, a Lua, além de Eo, a Aurora. Outro, Jápeto, casou-se com Clímene, uma filha de Oceano. Ela lhe deu quatro filhos, entre eles Prometeu. O mais moço dos Titãs, Crono, logo, logo ia dar o que falar.
A descendência de Urano e Gaia não parou nesses filhos. Conceberam ainda seres monstruosos como os Ciclopes, que só tinham um olho, bem redondo, no meio da testa, e os Cem-Braços, monstros gigantescos e violentos. Os coitados viviam no Tártaro, uma região escondida nas profundezas da terra. Nenhum deles podia ver a luz do dia, porque seu pai os proibia de sair.
Gaia, a mãe, quis libertá-los. Ela apelou para seus primeiros filhos, os Titãs, mas todos se recusaram a ajudá-la, excepto Crono. Os dois arquitectaram juntos um plano que deveria acabar com o poder tirânico de Urano.
Certa noite, guiado pela mãe, Crono entrou no quarto dos pais. Estava muito escuro lá, mas o luar lhe permitiu ver seu pai, que roncava tranqüilo. Com um golpe de foice, cortou-lhe os testículos. Urano, mutilado, berrou de raiva, enquanto Gaia dava gritos de alegria. Esse atentado punha fim a uma autoridade que ela estava cansada de suportar, e a inútil descendência deles parava aí — ou quase... Algumas gotas de sangue da ferida de Urano caíram na terra e a fecundaram, dando origem a demónios, as Erínias,1 a outros monstros, os Gigantes, e às ninfas,2 as Melíades.


Contos e Lendas da Mitologia Grega



1 Divindades infernais. Com seu corpo alado, sua cabeleira de serpentes e munidas de tochas e chicotes, atormentam suas vítimas, levando-as à loucura.
2 Deusas que vivem nos bosques, nas montanhas, nos rios, no mar.


03/02/2008

O vinho de Maomé


Certo dia colocaram vinho, este divino suco da uva, dentro de uma magnífica taça de ouro que estava a mesa de Maomé.
- Oh, que honra! - pensou o vinho - que glória para mim estar à mesa de Maomé!
Porém, subitamente ocorreu-lhe outro pensamento e ele disse consigo mesmo:
- Mas que honra é essa, e que glória? Por que estou tão satisfeito? Nada disso é verdade. Escute, chegou a hora de minha morte. Dentro em breve deixarei minha linda casa, esta magnífica taça de ouro, para entrar na escura caverna do corpo humano.
E uma vez lá dentro, meu suco doce e perfumado será transformado em água.
Oh, céus! - gritou desesperado - façam justiça, vinguem-me por tal ofensa! Não é justo que me desprezem assim! Júpiter, pai Júpiter - orou o vinho - mesmo que esta terra produza as melhores e mais lindas uvas do mundo, fazei com que elas não se transformem em vinho!
Júpiter ouviu a prece do vinho e decidiu atendê-la.
Quando Maomé terminou de beber o conteúdo da taça de ouro, Júpiter fez com que todos os vapores do vinho lhe subissem à cabeça e ele ficou embriagado. E enquanto estava sob o efeito do vinho, Maomé comportou-se como um louco, fazendo bobagens uma atrás da outra. Quando finalmente ficou novamente sóbrio, baixou uma lei proibindo a seus seguidores que tomassem vinho.
Desse dia em diante, a vinha, com suas gostosas frutas, foi deixada em paz.






01/02/2008

A Águia e a Coreixa


A Águia tomou nas unhas um Cágado para cevar-se, e trazendo-o pelo ar, e dando-lhe picadas, não podia matá-lo, porque estava mui recolhido em sua concha. Embravecia-se muito com isso a Águia, sem lhe prestar, quando chega a Coreixa, e diz:
- A caça que tomastes é em extremo boa, mas não podereis gozar dela senão por manha.
Disse a Águia que lhe ensinasse a manha e partiria com ela da caça. A Coreixa o fez dizendo:
- Subi-vos sobre as nuvens, e de lá deixai cair o Cágado sobre alguma laje, quebrará a concha e ficar-nos-á a carne descoberta.
A Águia assim o fez; sucedendo como queriam, comeram ambas da caça.


A raposa e a cegonha



Quis a raposa matreira
Que excede a todas na ronha.
Lá por piques de outro tempo,
Pregar um ópio à cegonha.

Topando-a, lhe diz: "Comadre,
Tenho amanhã belas migas,
E eu nada como com gosto
Sem convidar as amigas.

De lá ir jantar comigo
Quero que tenha a bondade:
Vá em jejum porque pode
Tirar-lhe o almoço a vontade".

Agradeceu-lhe a cegonha
Uma oferenda tão singela,
E contava que teria
Uma grande fartadela.

Ao sítio aprazado foi.
Era meio-dia em ponto.
E com efeito a raposa
Já tinha o banquete pronto.

Espalhadas em um lajedo
Pôs as migas do jantar
E à cegonha diz: "Comadre,
Aqui as tenho a esfriar.

Creio que são muito boas, —
Sansfaçon, — vamos a elas".
Eis logo chupa metade
Nas primeiras lambidelas.

No longo bico a cegonha
Nada podia apanhar;
E a raposa em ar de mofa,
Mamou inteiro o jantar.

Ficando morta de fome,
Não disse nada a cegonha;
Mas logo jurou vingar-se
Daquela pouca vergonha.

A dar-me o gosto amanhã
D'ir também jantar comigo".

A raposa lambisqueira
Na cegonha se fiou,
E ao convite, às horas dadas,
No outro dia não faltou.

Uma botija com papas
Pronta a cegonha lhe tinha;
E diz-lhe: "Sem cerimônia,
A elas, comadre minha".

Já pelo estreito gargalo
Comendo, o bico metia;
E a esperta só lambiscava
O que à cegonha caía.

Ela, depois de estar farta,
Lhe disse: "Prezada amiga,
Demos mil graças ao céu
Por nos encher a barriga".

A raposa conhecendo
A vingança da cegonha,
Safou-se de orelha baixa.
Com mais fome que vergonha.

Enganadores nocivos,
Aprendei esta lição.
Tramas com tramas se pagam.
Que é pena de Talião.

Se quase sempre os que iludem
Sem que os iludam não passam.
Nunca ninguém faça aos outros
O que não quer que lhe façam.

Curvo Semedo (Trad.)