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29/11/2009

Lenda do Túmulo dos Dois Irmãos


Era linda, a rapariga, olhos de moura encantada, que não fugira às hostes do rei conquistador e ali ficara, a enfeitiçar os jovens que por ela se perdiam por amores. E a jovem leviana, cortejada pelos mocetões valentes do lugar, para todos tinha um sorriso e uma esperança. Dois irmãos disputavam os seus favores e a sua predilecção, desconhecendo ambos que o mesmo sentimento os animava. Certa noite que a lua caprichava em cobrir aquela terra com um lençol de luz e cantavam as cigarras nos valados, encontraram-se os dois irmãos sobre a janela da mulher que amavam. Investiram, e só quando o ferro fratricida prostrava um contendor para sempre o outro reconheceu que assassinara o seu próprio irmão a quem muito queria. Ali mesmo se deu à morte, dizendo o povo que num túmulo de uma zona nobre da região se encontram agora sepultados os dois irmãos unidos na morte que o amor lhes dera.

Lenda árabe

Uma lenda oriental sobre a reacção aos actos dos outros.

Diz uma linda lenda árabe que dois amigos viajavam pelo deserto e em determinado ponto da viagem discutiram. O outro, ofendido, sem nada a dizer, escreveu na areia:
Hoje, o meu melhor amigo bateu-me no rosto.

Seguiram e chegaram a um oásis onde resolveram banhar-se. O que havia sido esbofeteado começou a afogar-se sendo salvo pelo amigo. Ao recuperar pegou um estilete e escreveu numa pedra:
Hoje, o meu melhor amigo salvou-me a vida.

Intrigado, o amigo perguntou:
Porque é que quando te bati, escreveste na areia e agora escreveste na pedra? Sorrindo, o outro amigo respondeu: "Quando um grande amigo nos ofende, devemos escrever na areia onde o vento do esquecimento e do perdão se encarregam de apagar; porém quando nos faz algo grandioso, deveremos gravar na pedra da memória do coração onde vento nenhum do mundo poderá apagar".



O deserto, o sol e o vento



No princípio, era o Deserto; e o Sol amava-o, ternamente, todo o dia. No princípio, o Deserto era liso, todo aberto à luz do Sol, que o abraçava, estreitamente, todo o dia. O Deserto era quente e brilhante e vivia numa passividade feliz – quieto e silencioso.
De noite, o Sol queria o Mar, e o Deserto dormia sozinho, na escuridão. Mas guardava o calor que o Sol lhe dera. E vivia quieto e silencioso, numa passividade feliz.
O Vento chegou de noite, quando o Deserto dormia.
Olhou o Grande Deserto solitário. Soprou-lhe devagarinho, num beijo de aragem...e o Deserto sentiu um arrepio e acordou. O Vento soprou com mais força e o Deserto estremeceu.
- Gostas de mim? – perguntou o Vento.
- Sinto uma alegria nova – respondeu o Deserto.
- É a alegria do movimento. Queres que te dê toda a força do meu sopro?
- Sim – gritou o Deserto – Quero!
Então, o Vento abraçou o Deserto com violência. E toda a noite se ouviu a música forte e harmoniosa que, juntos, cantavam num bailado.
Quando o sol, de manhãzinha, voltou, abriu muito os olhos e empalideceu. Alguém passara a noite com o Deserto: em vez de areal sem forma, que se deixava doirar passivamente, era um Deserto novo, de dunas altas, belas e orgulhosas que recusavam ao sol uma das faces.
- Quem te abraçou, Deserto? – perguntou o Sol.
- O Vento! – respondeu.
- Não te bastava a minha luz e o meu calor?
- Nunca me deste vida.
- A tua vida é sombra?
- A minha vida, Sol, recebi-a do Vento. A minha vida é areia em movimento e o som que dela se desprende eu guardo em mim.
- O movimento é dor; o som é queixa.
- Aceito a dor que é a vida; e cantarei, no braço do Vento, a dor e a alegria de criar, com ele, as minhas dunas.


Lenda de Angola




lenda de Vangghi




Vangghi viveu na dinastia dos Tsin, na montanha Kuchau, e entregava-se feliz e ditoso à agricultura.
Era raro o dia em que não ia ao bosque apanhar lenha, mas, certa tarde, surpreendido por forte tempestade, foi obrigado a meter-se numa caverna. Ali encontrou vários homens de muita idade e longa barba que jogavam o xadrez.
Não resistiu à tentação e resolveu tomar parte do jogo. Em dado momento, um dos velhos de barba branca meteu-lhe um caroço de tâmara na boca, pedindo-lhe que o engolisse.
Adormeceu pesadamente e, quando o acordaram, resolveu pôr-se a caminho de casa. Mas qual não foi o espanto de Vangghi quando não encontrou a casa nem a família e lhe disseram que muitos séculos tinham passado.

Lenda de Macau




O Brâmane que ficou branco em sua cama




Em certa cidade morava um brâmane chamado Svabacripana, dono de um grande pote. Recebendo generosas esmolas, pôde encher aquela vasilha com farinha. Pendurou-a, então, acima de sua cama, e gostava de ficar deitado, contemplando sua fortuna e sonhando com uma porção de coisas. Uma noite, já deitado, o brâmane começou a pensar:
- Já tenho o pote cheio de farinha. Se viesse uma carestia, eu conseguiria por ele cem moedas de prata, com as quais poderia comprar um par de boas cabras. Como as cabras têm filhotes de seis em seis meses, quase sempre, em pouco tempo estaria formado um grande rebanho. Vendendo as cabras, poderia comprar muitas vacas; com as vacas, compraria búfalas; com as búfalas, compraria éguas. As éguas teriam muitos cavalos, que eu venderia, tendo um bom lucro em ouro. Com o ouro, construiria uma casa de quatro salas . Então, sem dúvida alguma, algum brâmane virá oferecer-me a filha em casamento, e eu aceitarei, se for bonita e rica, está claro. Do casamento terei um filho, ao qual darei o nome de Somazarman. Quando ele estiver em condições de saltar sobre meus joelhos, virá ter comigo, aproximando-se dos cascos dos cavalos. Então, zangado, direi à minha esposa:
- Segura esse menino.
Ela, que estará ocupada nos afazeres da casa, não me ouvirá. Então, eu me levantarei e lhe darei um pontapé!
Tão mergulhado estava o brâmane em seus pensamentos, que, desses, sem o perceber, passou à acção, de forma que, ao erguer a perna para o imaginário pontapé, partiu o pote, recebendo em plena face toda a farinha.

Quem concebe um projecto irrealizável e impossível, pode ficar em branco em sua cama, como aconteceu ao pai imaginoso do inexistente Somazarman.

O Pestim



Dantes os ciganos viviam todos no Egipto. É lá a nossa terra, é de lá que viemos há séculos de anos. Todos os ciganos são filhos dum homem do Egipto e de uma indiana. Desse casamento nasceu a raça cigana.
Um dia, lá no Egipto, andava um molhe de ciganos nas caravanas, de terra em terra. Os tempos eram muito mais antigos, mas a vida dos ciganos era a mesma, andar de um lado pró outro a penar. Nesse dia que eu estava a falar apareceu no acampamento um senhor, uma senhora, um bebezinho e um burro.
Pediram se podiam ir na caravana, os ciganos reuniram-se e depois foram no acordo.
Andaram, andaram de terra em terra.
Às vezes, os ciganitos, a brincar, guerreavam com o menino e partiam-lhe a cabeça. O menino começava a chorar, aparecia a senhora e dizia:
- Deixa, não faz mal que já passou.
Passava-lhe a mão na cabeça e sarava logo. Mas os ciganos nem reparavam nisso, não viam que a ferida estava a escorrer sangue e que parava logo. Acho que nas antiguidades não se notava isso, pelo menos é o que se diz.
Outras vezes, era o senhor que ia deitar palha ao burrinho e, quando virava costas, os ciganos tiravam a palha e iam pô-la aos burros deles. Mas, no outro lugar, tornava a aparecer palha, e cada vez mais. Os ciganos ficavam muito admirados.
Foi quando souberam que aquelas pessoas eram S. José, Nossa Senhora o Menino Jesus e o burrinho que sempre os acompanhou nas andanças.
Era a altura em que eles andavam fugidos do rei pra não morrerem e acharam que o sítio mais seguro era andarem no meio dos ciganos. Ninguém ia lá procurá-los. E é verdade, quando um cigano quer esconder alguém, não há polícia que descubra.
Foi assim que eles se safaram, graças aos ciganos. A nossa senhora gostava muito deles. Até há ciganos que dizem que a Nossa Senhora é cigana, mas isso já não sei. Ela ensinou-lhes muita coisa, e o pestim, bolo que só nos os ciganos fazemos e só pelo Natal, foi receita dada pela Virgem.



A sereia da Ponta Ruiva



Lá pelo século dezasseis, um dia, um pescador de uma povoação do norte da Ilha das Flores andava na costa a apanhar peixe, como era seu costume. Começou a ouvir uma voz muito bonita de mulher a cantar por perto, mas numa língua que não conhecia. Ficou a cismar que por ali havia uma sereia. Logo espalhou pelo povoado a novidade e, pela maneira que falava da sereia, todos ficaram a pensar que ela encantava os homens.
O pescador não pensava noutra coisa e, logo que pôde, poucos dias mais tarde, voltou à pesca, sonhando com a ideia de que havia de ver a sereia.
Tinha acabado de lançar o anzol ao mar, quando começou a ouvir o canto que tanto o perturbava. Recolheu logo a linha e pôs-se a escutar com muito cuidado e a seguir o som. Por fim, encontrou a dona de tão melodiosa voz. Não era uma sereia, como ele pensava, mas uma linda rapariga de olhos azuis, pele clara e sardenta e cabelos ruivos. Muito assustada, ao começo, nada disse, mas por fim o pescador ficou a saber a sua história. Era irlandesa e tinha-se escapado de um navio pirata, atirando-se ao mar quando tinha visto terra próximo.
O pescador ficou ainda mais encantado e, depois de conquistar a confiança da rapariga, voltou para casa, trazendo consigo a mulher mais bela que alguma vez a gente do lugar tinha visto.
Algum tempo mais tarde, o pescador casou com a “sereia” e deles nasceram muitos filhos, todos de olhos azuis e ruivos como a jovem irlandesa.
Assim, aquele lugar da Ilha das Flores se passou a chamar, por causa da cor dos cabelos de muitos dos seus habitantes, Ponta Ruiva, e ainda hoje ali há muitas pessoas de pele clara, sardentas e de cabelos ruivos, como a jovem irlandesa que um dia ali apareceu.


Lenda da ilha das Flores (Açores)

O bis-bis



O bis-bis é um dos pássaros mais pequeninos que existem na Madeira.
Uma vez, depois de uma chuvada, uma dessas avezinhas, não tendo que comer, pensou descer às hortaliças, onde se fartaria à vontade…
Por onde ia passando, nada lhe agradava, até que deu com um grande faval.
- Ó minhas queridas e ricas favas! Parece que estais mesmo à minha espera – dizia a avezinha toda alegre.
E ainda não acabava de as gabar, já estava a comer, tal era a vontade e sofreguidão que trazia:
- Tudo, tudo para mim; e ainda é pouco – pensava lá consigo.
Mas passados alguns momentos, já não podia comer mais, apesar das voltas que dava ao papo, que estava muito pesado…
Talvez por se encontrar bem disposta, a ave descansou entre o faval, aproveitando um raio de sol, que lhe chegava e aquecia agradavelmente…
Por se sentir bem, dizia consigo:
- Agora não tenho medo de nada, desafio qualquer bicharoco…
Mas nisto, caiu uma folha de faveira. O pequeno animal assustado, exclamou, julgando ser alguém:
- Senhor, não mate o bis-bis, porque está farto de favas e não sabe o que diz…

Conto tradicional da ilha da Madeira


Dinorah

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Dinorah, filha de Agar, era uma das mais belas mouras de todo o Algarve muçulmano. Vivia num belíssimo palácio de mil colunas finas de mármore rosa e ventanas de filigrana de madeira, rodeada de coxins de seda coloridas e macias como o roçar de asas de pomba. Jardins de maravilha, onde bailavam exóticas danças flores de todo o mundo, haviam sido plantados para encantar os seus olhos negros. Riachos transparentes saltitavam de calhau em calhau num rumorejar de música constante.
E, contudo, Dinorah chorava. Era como se uma tristeza infinda, inexplicável, se tivesse instalado no seu coração. E Dinorah chorava por estar encerrada por detrás da filigrana das ventanas, por ter de sentir beleza no esquadriado dos seus lindíssimos jardins. Dinorah chorava afinal aquela sua solidão irremissível, chorava-se coração para amar sem ter a quem amar. Por isso os seus olhos negros, negros como um céu onde a lua nunca passeou o luar, eram tristes.
Numa tarde de Primavera, começavam as amendoeiras a florir, estava Dinorah no seu balcão, passeando os olhos tristes e negros pelo desabrochar da natureza, quando passou um trovador que ao ver tanta melancolia lhe perguntou cantando como a poderia alegrar. E Dinorah respondeu:
- Ah, trovador, trovador!...Se me pudesses ajudar, dá-me um véu para noivar…
Ouvindo estas palavras partiu o cavaleiro a galope, ficou Dinorah a chorar.
Mas mouro com cristão não deve falar e a Alá não agradou este breve instante. Por isso decidiu, logo ali, aqueles dois castigar.
Chegou a noite de mansinho e cobriu com o seu manto da cor dos olhos de Dinorah todas as coisas da terra. A essa mesma hora, uma voz dulcíssima, cheia de uma ternura nunca ouvida, soou ao som de um alaúde, cantando trovas velhinhas. E nessa noite Dinorah dormiu tranquila e em paz porque sabia já não estar só.
Ao acordar, pela manhã, os olhos negros da moura brilhavam finalmente como se nessa noite a lua tivesse, pela primeira vez, deixado o luar encantar a sua visão. E quando chegou à janela viu acenar-lhe o braço incansável do trovador da noite e tudo, tudo à volta deles eram pétalas brancas de noivar.
Estendeu, também ela, o braço para num aceno agradecer mas, neste gesto, viu-se transformar em fonte e o seu trovador mudar-se em lago. Desde então andam juntos a correr para o mar e todos os anos, pela Primavera, Alá manda-lhes as flores de amendoeira para que possam noivar.

28/11/2009

A haste da cruz



Conta-nos uma lenda de antanho que, a um homem que deveria fazer grande jornada, deram a carregar pesada cruz, dizendo-lhe que ela o levaria à salvação.

Tendo feito pequena parte do trajeto, vencido e desanimado pelo cansaço, deliberou ele cortar um pedaço da longa haste de sua carga.

Mais aliviado, pôs-se de novo a caminho, e jornadeou até o ponto em que a estrada subia por uma encosta longa e pedregosa. Ali sentiu mais o peso da cruz. Doíam-lhe os ombros, tinha as pernas trôpegas, arfava e suava. Na irreflexão da impaciência, pôs o seu fardo no chão, e outra vez o mutilou.

Partiu. Alcançou o sopé do outeiro, e se viu às margens de um rio sem ponte. Só então observou que outros viajantes ali chegados levavam também pesadas cruzes de longas hastes.

Mas estes, mais resistentes e tolerantes, conservaram suas cruzes intactas. Estenderam as cruzes de margem a margem, e fazendo-as de pontilhões, atingiram o lado oposto, e lá se foram.

O que encurtara a haste de sua cruz viu, desde logo, que ela não lhe poderia prestar o mesmo auxílio. Tentando meter-se pelo rio a dentro, desapareceu, levado pelos redemoinhos da correnteza.

É límpida a lição da fábula. Todos os que vivemos a cortar, com golpes arbitrários, em nossos deveres e obrigações para com Deus, podemos levar, por algum tempo, vida mundanamente fácil, mas sempre enganosa. O dia chegará em que seremos vítimas das mutilações feitas na haste da nossa cruz.


26/11/2009

Estabelecimento de uma tradição

Havia uma vez uma cidade formada por duas ruas paralelas. Um dervixe passou de uma rua para a outra, e assim que alcançou-a, as pessoas notaram que havia lágrimas nos olhos dele.
- Morreu alguém na outra rua! - gritou um homem e logo as crianças da vizinhança fizeram coro a essa exclamação.
Mas o que acontecera fora algo muito diferente. O dervixe estivera descascando cebolas. Em poucos segundos o eco do grito já alcançara a primeira das duas ruas. E os adultos de ambas se preocuparam e ficaram tão assustados que não se animaram a investigar devidamente as causas daquela agitação. Um homem sensato e sábio tentou chamar à razão as pessoas das duas ruas, indagando-lhes por que não se comunicavam para apurar o acontecido. Muito confusos para apreender o sentido daquelas palavras, alguns disseram:
- Pelo que entendemos há uma epidemia muito séria na outra rua.
Esse boato também se propagou como um incêndio incontrolável, levando a população daquela rua a pensar que a outra estava destinada a morrer. Quando foi possível restabelecer certa ordem, ambas as comunidades só pensaram numa saída: emigrarem para salvar-se. E foi assim que, de repente, as duas ruas ficaram vazias de seus habitantes. Ainda hoje, vários séculos passados, a cidade permanece deserta, e não muito distante dali há duas aldeias. Cada uma possui sua própria tradição, sendo que ambas estabeleceram a partir de um povoado construído por pessoas fugidas de uma cidade condenada por um mal desconhecido, em tempos remotos.

23/11/2009

Autobiografia de um coco

Nasci na copa de uma árvore robusta, que nascera num solo arenoso, numa longa faixa da costa. Lá do alto, como de uma atalaia, desfrutava de uma vista fantástica de tudo aquilo que me rodeava.
Era muito feliz e sentia-me orgulhoso de ser coco. Pensava que meu pai era maravilhoso, até que, ouvi alguns transeuntes dizerem mal dele e de toda a família. Se bem me recordo, um deles disse:
- Que calor este. Se ao menos este maldito coqueiro nos desse alguma sombra. Não posso, com os coqueiros. Tão rugosos, tão feios e disformes! Sem folhas nem flores e sem qualquer cheiro!'
Isso fez com que me sentisse tão desgraçado que algo mudou bem dentro de mim. Como é que não tudo isto antes? Realmente eu era feio, quase disforme. Sentia-me envergonhado. Eu decidi que nunca mais deixaria fosse quem fosse ver a minha fealdade interior...
Comecei a construir ao redor de mim uma casca muito densa, dura e peluda, para proteger o meu interior dos olhares indiscretos. Além disso, nem dentro de mim havia algo de bom. Se alguém me tivesse visto por dentro, desprezar-me-ia e recusar-me-ia ainda mais. Por isso teci ao redor de mim uma capa de matéria áspera, peluda de cor parda, desagradável ao tato, para que ninguém se atrevesse a tocar-me. Mesmo não gostava que me tocassem nem acariciassem.
Ao cabo de algumas semanas, em que estive deprimido, meditando sobre minha desgraça e quase sem falar com meus irmãos e irmãs, fui, de repente, surpreendido por um impetuoso temporal. Todos éramos sacudidos violentamente. Horrorizado, agarrei-me ao meu pai, pois temia ser arrancado da árvore.
Tudo inútil, porém. Perdi o controle e senti que era atirado com veemência lá para baixo, caindo no escuro e no vazio. Fiquei aturdido ao bater no chão, magoado e dolorido com a pancada. Só e cheio de medo, pensei que a única coisa que me esperava era aguardar a morte. Sem dúvida que soara a minha hora... pensei quando um grupo daqueles odiosos transeuntes se aproximou de mim.
Mas que agradável surpresa foi para mim ouvir um deles dizer:
- Olha que coco tão bonito! Realmente tivemos sorte!'
Não queria crer no que ouvira. Senti que pegavam em mim e me agitavam junto ao ouvido de um jovem. O nariz dele começou a cheirar-me e os seus lábios murmuravam, dirigindo-se diretamente a mim:
- Que coco tão fresco, doce e saboroso tu deves ser! Alegro-me deveras ter te encontrado.'
O que?! Eu, fresco e doce?! Tinha de haver algum erro. Certamente que eu não passava de uma coisa estúpida, disforme, feia e insípida, que se contentava que a deixassem em paz.
O rapaz começou a tirar, com cuidado, os pelos ásperos e pardos, que eu fizera crescer à volta de mim para me proteger. Fê-lo com grande delicadeza como se não quisesse magoar-me. Pela primeira vez em muitos meses voltei-me a sentir feliz. E nem me dei conta de que o rapaz pegava numa grande pedra e começava a bater-me com muita força. Ia-me golpeando cada vez com mais força e energia. Gritando de dor, quis perguntar-lhe que procurava e pedir que parasse. Ela devia saber que dentro de mim apenas há fealdade. Que esperava encontrar debaixo da minha casca insensível e dura?
Uns segundos mais tarde, ouviu-se um forte estalido. Senti que me partiam em dois. Das minhas feridas começou a ressumar um suco. E, com surpresa minha, o rapaz e os amigos iam-no bebendo. Com os seus gestos de satisfação queria dizer que lhe estava a saber bem. Todos falavam da frescura e da doçura do meu suco.
A minha maior surpresa foi quando, depois de separarem as duas partes de minha casca, arrancaram algo do meu interior. Algo de imaculado. O meu interior era belo. E era evidente que o comiam com gosto.
- Afinal, as pessoas gostam de mim!', exclamei comovido.
- Não sou feio nem inútil. Rogo-lhes, por favor: comam-me! Comam-me todos! Que satisfação dar tanto prazer a pessoas que fizeram com que, finalmente, acreditasse em mim mesmo!


Lenda de Geraldo Geraldes «o Sem-Pavor»



Tudo começou no ano de 1166, no tempo em que Évora era ainda a Yeborath árabe, para grande desgosto de D. Afonso Henriques . Este ambicionava a sua posse, já que a cidade era um importante ponto estratégico na época da reconquista de Portugal aos Mouros. Geraldo Geraldes, um homem de origem nobre que vivia à margem da lei, era chefe de um bando de bandidos que habitavam num pequeno castelo nos arredores de Yeborath. Conhecido também pelo Sem Pavor, Geraldo Geraldes decidiu conquistar Évora para resgatar a sua honra e o perdão para os seus homens. Disfarçado de trovador rondou a cidade e traçou a sua estratégia de ataque à torre principal do castelo que era vigiada por um velho mouro e pela sua filha. Numa noite, o Sem Pavor subiu sozinho à torre e matou os dois mouros, apoderando-se em silêncio da chave das portas da cidade. Mobilizou os seus homens e atacou a cidade adormecida numa noite sem lua que, surpreendida, sucumbiu ao poder cristão. No dia seguinte, D. Afonso Henriques recebeu surpreendido a grande novidade e tão feliz ficou que devolveu a Geraldo Geraldes as chaves da cidade, bem como a espada que ganhara, nomeando-o alcaide perpétuo de Évora. Ainda hoje, a cidade ostenta no brasão do claustro da Sé, a figura heróica de Geraldo Geraldes e as duas cabeças dos mouros decepadas, para além de lhe dedicar a praça mais emblemática de Évora.




22/11/2009

O cavalo e o lobo



Na linda estação das flores,
Às horas do meio-dia:
Brioso, esperto cavalo
A verde relva pascia.

Dum bosque vizinho um lobo
Botando-lhe o luzio, diz:
"Quem te comer essas carnes
É por extremo feliz!

Ah! Que se foras carneiro,
Ou mesmo burro, ou vitela,
Já marchando me andarias
Pelo estreito da goela;

Mas és um castelo! E assaz
Temo a tua artilharia!
Vou bloquear-te, e do engano
Fazer fogo à bateria".

Então do bosque saindo
Em passo lento e miúdo,
De largo diz ao cavalo:
"Camarada, eu te saúdo;

Respeita em mim um Galeno,
Que passa a vida a curar,
Que das ervas as virtudes
Sabe aos morbos aplicar;

Aposto que tens moléstias,
E porque na cura erraram,
Tomar ares para o campo.
Como é uso, te mandaram.

Se quiseres que eu te cure,
Ficarás são como um pero;
Grátis, que bem entendido,
Paga de amigos não quero".

O cavalo conhecendo
A malícia do impostor,
Diz-lhe: "O céu lhe pague o bem
Que me faz, senhor doutor;

É verdade que eu padeço.
Há nove dias ou dez.
Um tumor e uma ferida.
Tudo nas unhas dos pés".

"— Bem que essa doença toque
À cirurgia somente, —
Diz o lobo, — eu nesse ramo
Sou um prático eminente!"

Torna-lhe o fingido enfermo:
"Pois então, senhor doutor,
Chegue-se a mim, que eu me volto,
Venha apalpar-me o tumor".

"Pois não, filho! Diz-lhe o lobo".
E a fim de o filar se chega;
Mas, de repente, o cavalo
Dois grandes coices lhe prega:

Acerta-lhe pela frente,
Faz-lhe o focinho num bolo;
E o lobo exclama: "É bem feito!
Quem me manda a mim ser tolo?"

Mete pernas como pode,
Dizendo um tanto enfadado:
"Como a breca as arma! — fui
Buscar lã; vim tosquiado!

De carniceiro a ervanário
Quis passar sem que estudasse;
Levei da toleima o prêmio:
Cada qual para o que nasce!"


Curvo Semedo (Trad.)

21/11/2009

O Cisne


O cisne arqueou seu pescoço flexível em direcção à água e mirou longamente seu reflexo.
Compreendeu o motivo de seu cansaço e do frio que invadia seu corpo, fazendo-o tremer como se fosse inverno. Soube, com absoluta certeza, que sua hora era chegada, e que devia preparar-se para a morte.
Suas penas ainda eram tão alvas como em seu primeiro dia de vida. As estações do ano e o tempo haviam passado sem deixar marca alguma em sua plumagem branca como a neve. Agora podia partir; sua vida terminaria em plena beleza.
Endireitando seu lindo pescoço, nadou lenta e majestosamente em direcção a um salgueiro sob o qual habituara-se a descansar quando fazia calor. Anoitecia, e o pôr-do-sol coloria de vermelho e roxo as águas do lago.
No grande silêncio que caía em torno o cisne pôs-se a cantar.
Jamais, até então, encontrara tons tão cheios de amor pela natureza, pela beleza do céu, da água e da terra. Sua doce canção atravessou os ares com um leve toque de melancolia até, finalmente, sumir, lenta, muito lentamente, com os últimos rios de luz no horizonte.
- É o cisne - disseram os peixes, os pássaros e todos os animais dos bosques e dos prados.
Profundamente emocionados, disseram:
- O cisne está morrendo.





19/11/2009

Parábolas

Um Mestre Sufi contava sempre uma parábola no final de cada aula, mas os alunos nem sempre entendiam o seu significado.
- Mestre, - perguntou um deles, certo dia - tu contas-nos contos mas nunca nos explicas o que significam.
- As minhas desculpas. - disse o Mestre - Como compensação, deixa-me que te ofereça um belo pêssego.
- Obrigado, Mestre - disse o discípulo, comovido.
- Mais ainda: como prova do meu afecto, queria descascar-te o pêssego. Permites que o faça?
- Sim, muito obrigado. - disse o discípulo.
- E, já que tenho a faca na mão, não gostarias que eu cortasse o pêssego em pedaços, para que te seja mais fácil comê-lo?
- Sim, mas não quero abusar da tua generosidade, Mestre...
- Não é um abuso; sou eu que me estou a oferecer. Quero apenas agradar-te. Permite-me também que mastigue o pêssego antes de to oferecer...
- Não, Mestre! Não gostaria que fizesses isso! - queixou-se o discípulo, surpreendido.
O Mestre fez uma pausa e disse:
- Se vos explicasse o sentido de cada conto, seria como dar-vos de comer fruta mastigada.

16/11/2009

A Truta da Rainha

Vítima de uma intriga, Aragúncia, rainha de Aragão, foi injustamente acusada de favorecer com as suas atenções um jovem cavaleiro da corte. O rei de Aragão achou que esta ofensa só seria resgatada com a morte. Aragúncia decidiu fugir quando teve conhecimento do seu destino fatal e, disfarçando-se de mendiga, saiu do castelo. O rei perseguiu-a e esteve quase a alcançá-la, não fossem os barqueiros do rio Minho a ajudar a rainha a atravessá-lo. Aragúncia recolheu-se numas escarpas negras que formavam uma pequena fortaleza natural junto ao rio. O rei decidiu pôr-lhe cerco e fazer a rainha render-se pela fome e pela sede. Aragúncia não desesperou, quando tinha sede saciava-a numa pequena fonte que brotava das rochas. Passados dias, quando a fome começou a apertar apareceu por cima do penhasco uma águia-real levando nas garras uma truta que deixou cair. Embora atormentada pela fome, Aragúncia embrulhou a truta e mandou-a ao rei para que este se saciasse. Convencido que Deus estava com a rainha, o rei de Aragão levantou o cerco decidindo perdoar-lhe a falta. Aragúncia recusou o perdão por uma falha que não tinha cometido e ficou a viver naquele local austero para sempre.



15/11/2009

Senhor Dongguo e o Lobo



O Pescador e Diabo é um dos contos mais famosos das Mil e uma noites. Existe um conto semelhante antigo na China. Trata-se do conto Senhor Dongguo e o Lobo.

Um letrado a quem todos chamam-no como senhor Dongguo era muito antiquado e costumava atuar agarrado às rotinas escritas nos livros. Um dia, o senhor Dongguo ia buscar um posto de funcionário no País de Zhongshan, levando seu burro que carregava um saco de livros. A meio caminho, um lobo ferido saiu à sua frente rogando: “senhor, os caçadores estão me perseguindo, feriram-me com flechas e querem a minha vida. Permite-me esconder no saco de livros e vou agradecê-lo com ricas retribuições”. O senhor Dongguo, que bem sabia que o lobo era animal vicioso, viu que fora ferido e teve compaixão. Pensou um pouco e disse: “se vou salvá-lo, desagradarei os caçadores. Mas, uma vez que viesse pedir-me o favor, tenho que salvá-lo”. Dito isto, o senhor mandou o lobo encolher-se, atou suas quatro patas e escondeu-o no saco de livros.
Pouco tempo depois, os caçadores chegaram e perguntaram ao senhor Dongguo pelo lobo: “Já viu um lobo passando por aqui?” O senhor Dongguo respondeu: “Não, não vi nenhum lobo. Aqui há muitos caminhos. Ele pode já fugir por outros caminhos”.
Os caçadores acreditaram nas palavras de Dongguo e continuaram a caçar o lobo. O lobo no saco, ouvindo que os caçadores se afastaram, pediu de novo ao senhor Dongguo: “senhor, por favor, deixe-me sair”. O bondoso homem desatou o saco e libertou o lobo. Mas, este, com um uivo, disse: “estou com fome danada da vida. Já me salvou uma vez, que tal me salvará mais uma vez? Deixe-me comê-lo”. E lançou-se ao senhor Dongguo.
O senhor Dongguo, lutando contra o lobo, maldizia sua ingratidão. Neste momento, um agricultor passou por eles com uma enxada aos ombros. O senhor Dongguo contou-lhe o acontecido e pediu-o a julgar o justo e o injusto, enquanto o lobo negou que o letrado o tivesse salvado. O agricultor pensou um pouco e disse: “Não acredito em suas palavras. É impossível que esconda um lobo deste tamanho num pequeno saco de livros. Poderia fazê-lo de novo para que veja a meus próprios olhos”. O lobo concordou e encolheu-se de novo para que o senhor Dongguo o atasse e colocasse no saco de livros. Vendo o lobo no saco, o agricultor bem fechou a boca do saco e disse ao senhor Dongguo: “a natureza de um animal vicioso jamais mudará. Você até tem piedade com ele e é realmente um homem confuso”. Depois de dizer estas palavras, o agricultor brandiu uma enxada e matou o lobo.
O senhor Dongguo entendeu tudo de repente e agradeceu ao agricultor pela salvação.

No Chinês actual, “o senhor Dongguo” e “o lobo de Zhongshan” viraram dois provérbios. O primeiro indica as pessoas que abusam da compaixão e, o último, pessoas ingratas.




A rã no fundo do poço



Segundo um mito chinês, uma rã, que morava num poço abandonado, só podia movimentar-se no limitadíssimo espaço que era o fundo do poço, e consequentemente, o que via não passava de um pequeno pedaço do céu. Nada conhecia lá fora, e nada sabia sobre a existência de um imenso mundo.
Certa vez, uma tartaruga do mar apareceu à beira do poço, e a rã, lá do fundo, apressou-se a vangloriar-se:
- Vê, amiga tartaruga, que linda e confortável residência é a minha! Aqui, eu salto livremente e descanso num buraco da parede do poço quando me apetece. Se quero nadar, a água cobre-me as pernas e chega-me ao queixo. Passeios? Passear aqui nesta terra pantanosa é uma verdadeira delícia! Garanto que tu, minha amiga tartaruga, nunca tiveste uma vida tão feliz como esta! Vem, vem ver o meu paraíso!
Levada pela curiosidade, a tartaruga do mar deu um passo em frente e, mal viu o “paraíso” da rã, recuou, dizendo:
- Sabes uma coisa, minha amiga rã? O mar é tão imenso que tem milhares e milhares de quilómetros de extensão, e milhares e milhares de braças de profundidade... Dez anos de inundações consecutivas não conseguiriam aumentar nem um centímetro o nível das suas águas, e dez anos consecutivos de seca não lograriam baixá-lo. Ali sim, é vida!

12/11/2009

Raposa com prestígio de tigre


Quando uma pessoa, aproveitando-se do poder alheio, trata os outros com arrogância ou os ofende, é censurada por meio do provérbio Raposa com prestígio de tigre.
O provérbio vem de um conto.

Uma vez, uma raposa caiu nas garras dum tigre; mas, espertíssima como era, disse-lhe com toda a transitabilidade:
- O senhor Tigre deve certamente estar ciente de que Deus acaba de me nomear rainha desta floresta, com a missão de governar todos os animais ... E quer o senhor comer-me?! Que ousadia! Quer desrespeitar o Todo-Poderoso?
O tigre não acreditou nessa conversa. Como é que animalzinho tão fraco e tão magro como a raposa poderia ser a rainha da floresta?
Percebendo a hesitação do tigre, disse então a raposa:
- Não acredita? Mas a ignorância não é crime, por isso não vou puni-lo. Esta sua rainha sempre se fez respeitar pela sua generosidade. Vamos fazer o seguinte: vou passar revista aos meus súditos, e o senhor vai seguir-me e observar como eles me temem.
O tigre aceitou a proposta, e lá foram os dois – a raposa à frente, todo arrogante, e o tigre atrás.
Vendo o tigre, os outros animais puseram-se em fuga, foi um “salve-se quem puder”.
Mas o tigre acreditou no poder da raposa, pensando que todos fugiam com medo da “rainha”.
Dessa maneira, conseguiu a raposa salvar-se da morte às garras do tigre.



05/11/2009

Uma Ideia Tonta



Um dia a hiena recebeu convite para dois banquetes que se realizavam à mesma hora em duas povoações muito distantes uma da outra. Em qualquer dos festins era abatido um boi, carne que a hiena é especialmente gulosa.
- Não há dúvida de que tenho de assistir aos dois banquetes, pois não quero desconsiderar os anfitriões. Também as oportunidades de comer carne de boi não são muitas... mas como hei-de fazer, se as festas são em lugares tão distantes um do outro?
A hiena pensou, pensou... e, de repente, bateu com a mão na testa.
- Descobri! Afinal é simples... - disse ela, muito contente com a sua esperteza.
Saiu à pressa de casa. Assim que chegou ao local donde partiam os dois caminhos que levavam aos locais das festas, começou a andar pelo caminho que ficava do lado direito com a perna direita e pelo caminho que ficava do lado esquerdo, com a perna esquerda.
Pensava chegar deste modo a ambas as festas ao mesmo tempo. Mas começou a ficar admirada de lhe custar tanto caminhar dessa maneira. E fez tanto esforço, que se sentiu dividir em duas de alto a baixo.
Coitada, lá a levaram ao médico - que a proibiu, desde logo, de comer carne de boi durante um mês.
É muito tonta a hiena!


Conto moçambicano
"Eu conto, tu contas, ele conta... Estórias africanas",
org. de Aldónio Gomes, 1999


02/11/2009

A Peregrina

Peregrina, a peregrina
Andava a peregrinar
Em cata de um cavaleiro
Que lhe fugiu, mal pesar!
A um castelo torreado
Pela tarde foi parar:
Sinais certos, que trazia
Do castelo, foi achar.
- «Mora aqui o cavaleiro?
Aqui deve de morar.»
Respondera-lhe uma dona
Discreta no seu falar:
- «O cavaleiro está fora,
Mas não deve de tardar.
Se tem pressa a peregrina,
Já lho mandarei chamar.»
Palavras não eram ditas,
O cavaleiro a chegar:
- «Que fazeis porqui, senhora,
Quem vos trouxe a este lugar?»
- «O amor de um cavaleiro
Por aqui me faz andar.
Prometeu de voltar cedo,
Nunca mais o vi tornar.
Deixei meu pai, minha casa,
Corri por terra e por mar
Em busca do cavaleiro,
Sem nunca o poder achar.»
- «Negro fadairo, senhora,
Que tarde vos fez chegar!
Eu de vosso pai fugia
Que me queria matar;
Corri terras, passei mares,
A este castelo vim dar.

Antes que fosse ano e dia
(Vós me fizestes jurar)
Com outra dama ou donzela
Não me havia desposar.
Ano e dia eram passados
Sem de vós ouvir falar,
Co’a dona desse castelo
Eu ontem me fui casar...»
Palavras não eram ditas,
A peregrina a expirar.
- «Ai penas de minha vida,
Ai vida de meu penar!
Que farei desta lindeza
Que em meus braços vem finar?»

Do alto de sua torre
A dama estava a raivar:
- «Leva-la daí, cavaleiro,
E que a deitem ao mar.»
- «Tal não farei eu, senhora,
Que ela é de sangue real...
E amou com tanto extremo
A quem lhe foi desleal.
Oh! quem não se sabe ser firme,
Melhor fora não amar.»
Palavras não eram ditas
O cavaleiro a expirar.
Manda a dona do castelo
Que os vão logo enterrar
Em duas covas bem fundas
Ali junto à beira-mar.
Na campa do cavaleiro
Nasce um triste pinheiral;
E na campa da princesa
Um saudoso canavial.
Manda a dona do castelo
Todas as canas cortar;
Mas as canas das raízes
Tornavam a rebentar:
E à noite a castelhana
As ouvia suspirar.


Romanceiro, Almeida Garrett



01/11/2009

O pote rachado

Aquele homem ganhava a vida a carregar água. Dois potes grandes, pendurados nas pontas de uma vara, que ele apoiava no pescoço. Todos os dia era este o trabalho daquele aguadeiro: carregar os potes de água, do poço até à casa do seu patrão.
Um dos potes tinha uma rachadura, enquanto o outro era perfeito. Quando o aguadeiro chegava a casa do seu patrão, depois de uma longa e penosa viagem, um dos potes estava cheio, enquanto o pote rachado trazia só metade da água. Esta foi a sina que se repetiu ao longo de dois anos... o aguadeiro a entregar um pote e meio de água na casa do seu patrão.
O pote que era perfeito estava orgulhoso da sua façanha. O outro, porém, cada vez vivia mais envergonhado da sua imperfeição, por se sentir incapaz de produzir tanto quanto o outro. Depois de carregar durante dois anos esse sentimento de culpa, o pote rachado desabafou a sua amargura com o aguadeiro, na beira do poço:
Estou envergonhado... e quero pedir desculpas...
Desculpas, porquê? – Perguntou o homem.
Nestes dois anos, apenas consegui chegar ao destino com meia carga de água, pois esta rachadura faz com que ela vaze pelo caminho. Por causa deste meu defeito, tu precisas de fazer mais viagens a carregar água e isso aumenta o teu trabalho...
O homem ficou triste e compadecido daquele velho pote... e disse:
Quando regressarmos a casa, quero que prestes atenção à beira do caminho.
De facto, à medida que iam subindo a montanha, o velho pote rachado foi percebendo uma trilha de flores, exuberantes e belas, na beira do caminho. Achou lindo... pois nunca reparado nelas... mas isso ainda não foi suficiente para o fazer esquecer a sua angústia e, no fim da viagem, novamente pediu desculpas ao aguadeiro pela sua imprestabilidade. E o aguadeiro, paciente, explicou ao pote:
Notaste que ao longo do caminho, havia uma trilha de flores... e essa trilha era apenas do teu lado. De facto, quando eu percebi a tua rachadura, logo nas primeiras viagens, tirei proveito desse teu defeito e resolvi lançar sementes ao longo do caminho. Cada dia, ao passar, a tua rachadura deixava vazar água que regava as plantas. E, durante estes dois anos, eu tive a possibilidade de sentir o perfume das flores e apreciar a sua beleza, enquanto fazia o meu trabalho!