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28/09/2011

Lenda dos Estremoços




O sol, um sol quente, abrasador, caía implacável sobre o carro onde viajava um homem, uma mulher e uma criança. Este grupo vinha de longe, dos contrafortes da serra. Ódios políticos tinham atirado esta família para a estrada sem fim. O calor apertava. A sede torturava-os. O pó punha-lhes a boca gretada e a língua áspera. Precisavam descansar, fugir ao sol dessa planície imensa que ficava para além do rio Tejo.
De súbito apareceu uma sombra larga, acolhedora, como um oásis no deserto. O homem refreou o andamento dos cavalos que puxavam a carruagem. Gritou contente para a mulher:
— Olha que árvore! Que bela! Que majestosa!
A mulher concordou:
— É das mais belas que tenho visto!
Curiosa, a pequenita filha do casal perguntou logo:
— Mãezinha, como se chama esta árvore?
Foi o pai quem respondeu:
— Creio que é um tremoceiro! Não tem, aparentemente, grande importância… Mas a verdade é que oferece uma sombra bem acolhedora!
A criança olhou os pais. E arriscou:
— E se ficássemos aqui? Já estou tão cansada… e com tanto calor…
O homem sorriu:
— Tens razão, minha filha! Vamos ficar por aqui… Pelo menos estaremos ànossa vontade, livres de inimigos e de más vizinhanças… Vamos! É necessário levantarmos a nossa tenda de campanha, antes que anoiteça.
A pequenita pulou imediatamente para o solo. Na sua imaginação aquela sombra era o Paraíso…
— Eu também quero ajudar! Vai ser tão bom… Não teremos que voltar a andar de carro por estes caminhos com tanto sol e tanta poeira!...
O homem desceu também, acariciou a cabeça da filha e olhou em redor. Lentamente. Atentamente.
— Isto é grande! Mas não vejo ninguém... Tanto melhor!
E, na manhã seguinte, quando o Sol veio dar os bons dias ao tremoceiro, encontrou erguida uma barraca de campanha, como que a proclamar a independência dos foragidos naquela terra de liberdade...
Porém, uma visita inesperada surgiu também, aos primeiros clarões do Sol. Era um velho forte e autoritário, arrimado a um grosso bordão. Havia cólera na sua voz ao interpelar os recém-chegados:
— Com que direito entrastes nos meus domínios?
O outro homem sentiu-se ofendido com aquele tom e indagou com altivez:
— E quem sois vós para me fazerdes semelhante pergunta?
O velho bateu com o bordão na terra:
— Sou o dono de tudo isto... de todo este plaino... Do tremoceiro, que plantei por minhas mãos... das árvores que há em redor...
— E nós somos viandantes... ou para melhor dizer: perseguidos injustamente por delitos que não cometemos...
O velho resmungou, num ar de suspeita:
— Talvez assassinos… ou ladrões...
Desta vez, com grande espanto do próprio velho, foi a criança quem o interrompeu, numa vozita indignada:
— Senhor! Estais a insultar meus pais e eu não poderei admitir-vos...
O senhor daquela terra sorriu, irónico, mas a sua voz perdeu o tom colérico:
— O quê? A formiga já tem catarro? Era o que faltava… uma fedelha a atravessar-se no meu caminho!
O viandante curvou-se:
— É uma criança que fala pela voz da verdade! Não tendes o direito de insultar-nos!
Então, a cólera voltou a apossar-se do velho. A sua expressão tornou-se dura:
— Fora daqui! Ouvis bem? Fora daqui! Não vos quero ver mais nos meus domínios!... Saireis a bem... ou à força!
Altivo, o homem que viera de longe retorquiu:
— Pois já que nos ameaçais... dir-vos-ei que só à força sairemos... se tiverdes poder para isso!
O grosso bordão do velho bateu com mais vigor ainda na terra.
— Já que assim o quereis... assim o tereis! Os meus homens não tardarão a expulsar-vos!
E, ditas estas palavras, ele voltou costas, meteu-se na velha carroça que o esperava — e abalou...

Mas, pouco tempo depois, voltou com muitos homens armados. A família que viera de longe e acampara ali para encontrar paz e descanso recolheu apressadamente à sua carruagem. A vida estava em perigo e era necessário, mais uma vez, defendê-la.
Com voz cansada e triste, a pobre mãe murmurou numa queixa:
— Meu Deus! Porque somos tão perseguidos? Não fizemos mal algum e todos nos odeiam! Porquê, meu Deus?... Porquê?
Mas já o marido lhe recomendava, enérgico:
— Defende tu aí essa entrada... Eu ficarei aqui a aguentá-los! Não se dirá que um fidalgo como eu se rendeu pela força...
Um grito abafado veio cortar-lhe o pensamento. Ele olhou a mulher que mostrava uma expressão apavorada.
— A nossa filha?.. A nossa filha onde está, que não a vejo?
Ele inquietou-se:
— Mas... vi-a há pouco, junto de ti!
— Sim… enquanto estávamos descansando... Mas agora... Agora não sei dela!...
O homem rangeu os dentes:
— Ah, miseráveis! Se derramam uma gota de sangue que seja da minha filha, hão-de pagar-mo bem caro!

Entretanto, indiferente ao perigo, a criança tinha atravessado por entre os homens armados e avançara, devagar, como um pequeno gato, ao encontro do velho chefe. Quando este a viu perguntou, espantado:
— Tu? Aqui? Como ousaste?
A pequenina sorriu com candura:
— Com a ajuda de Deus, meu senhor... Preciso falar-vos!
— Falar comigo?
Havia desconfiança na voz do velho.
— Ah! Não será uma armadilha?
A rapariguinha abriu os olhos num espanto. Num espanto e num sorriso.
— Armadilha? Oh... Não! Não poderia fazer-vos mal... Sou tão pequena ainda...
O velho pareceu cair em si. Franziu as espessas sobrancelhas esbranquiçadas e a sua voz soou melhor aos ouvidos da menina:
— Perdoa-me! Tens razão! Portei-me agora com insensatez. Diz lá o que pretendes...
Ela mostrou-se alegre.
— Sabei, senhor… que estive a pensar numa coisa!...
— Tu... a pensar? E que foi?
— Ora... Pensei que em volta duma árvore tão bonita como aquele tremoceiro podia construir-se uma povoação também bonita e grande... capaz de causar inveja às outras povoações...
Foi a vez do velho sorrir à criança.
— Não é mal pensado! Mas como havemos de a construir?
— Com boa amizade e paz.
O velho repetiu as mesmas palavras. Pensativo. Como num eco do seu próprio pensamento.
— Com boa amizade e paz…
Então a pequenita prosseguiu com entusiasmo, vendo que a luta se mantinha suspensa, esperando ordem de ataque.
— Sabei que o meu pai é um grande construtor. A minha mãe ajuda-o em tudo… Se o senhor quisesse… eles poderiam construir aqui uma cidade, dirigindo e aproveitando o trabalho dos seus homens…
O velho olhava-a espantado. Meneava a cabeça como que duvidoso do que ouvia.
— Ora esta! Uma catraia como tu... com uma ideia tão grande! Donde te veio semelhante pensamento?
Ela sorriu, ingénua.
— Foi Deus Nosso Senhor quem mo deu!
Houve um momento de silêncio, em que o olhar do velho ficou a perder-se no vasto horizonte. Depois, tomado de súbita energia, gritou para os seus homens:
— Basta! Pensei melhor e não atacaremos… Podem retirar-se. Daqui em diante, todos seremos bons amigos e companheiros!
E nesse mesmo dia, com grande jubilo do casal foragido — que voltara a ter junto de si a filhinha adorada mas ignorava ainda tudo quanto se havia passado — o velho chefe procurou o marido e a mulher. Porém desta vez chegou sorrindo:
— Venho em missão de paz e amizade!
A mulher respondeu-lhe, já com voz serena:
— Sede bem-vindo, senhor!
Afável também, o homem que viera de longe quis demonstrar o seu desejo de confraternização.
— Tomai um pouco de sombra do tremoceiro!
O velho acrescentou intencionalmente
— Do «nosso» tremoceiro — quereis dizer!
— Como?
— De hoje em diante, o tremoceiro pertencerá a todos nós... Sei que sois um grande construtor e vós, senhora, extraordinária ajudante...
O homem interrompeu-o, perplexo:
— O quê?... Decerto estais enganado, senhor! Fui, sou e serei unicamente um fidalgo... E esta é a minha esposa, à face de Deus e dos homens!
— Mas... a vossa filha disse-me...
Houve um leve sorriso nas expressões do casal.
— Compreendo agora, senhor! A nossa filha tem uma imaginação prodigiosa e vós… acreditastes...
O velho olhou a criança. Ela encolheu-se um pouco, entre envergonhada e receosa...
— Uma fedelha destas a enganar um velho como eu! Mal posso acreditar...
Mas a sua voz tinha um tom bonacheirão. Cheirava a simpatia. E a pequena ladina pareceu ficar logo mais à vontade. Segurou carinhosamente nas mãos do velho e falou devagar, espiando as reacções dele:
— Oh, meu Senhor... eu não vos enganei... Reparai no que vos disse: Com o auxilio de todos, poderemos construir uma grande povoação à volta do tremoceiro... Pois não é verdade?
O velho voltou a sorrir.
— Tens razão... O que é preciso é haver boa amizade e paz!
E sublinhou, puxando-a para si com ternura:
— Hoje mesmo começaremos todos a construir a nossa terra!

Dentro em breve, o sonho da rapariguita começou a transformar-se em realidade. Com a ajuda de todos, trabalhando esforçadamente de sol a sol, a povoação ia criando as suas primeiras casas e a sua primeira rua.
Agora, sim, graças à esperteza e à iniciativa da filhinha, o casal foragido sentiu que conquistara de novo a felicidade.
E a estimular ainda mais os infatigáveis obreiros da nova povoação, o velho chefe voltou alvoroçado duma das suas viagens habituais.
— Escutai, amigos! Escutai! Boa nova para todos nós! El-rei D. Afonso III acedeu a dar foral à nossa terra!
Foi uma alegria. Houve abraços e beijos. Vivas e palmas. Dançou-se e cantou-se, como se todos fossem irmãos.
Depois, o velho chefe reuniu-os de novo e falou solenemente:
— Temos de dar um nome à nossa terra... Um nome bonito, sonante, que fique para a posteridade... Qual deve ser esse nome?
As opiniões começaram logo a dividir-se. Cada um dava a sua ideia. E a ideia de cada um era sempre melhor do que as ideias dos outros... Depressa se estabeleceu a barafunda, até que o velho chefe, com a sua autoridade incontestada, resolveu intervir:
— Calai-vos! Assim nada conseguiremos. A mim, parece-me que só há aqui uma pessoa capaz de nos indicar um nome bonito... Sabeis a quem me refiro, com certeza. A ela devemos a ideia feliz da fundação da nossa terra. Pois que nos dê também um nome para ela.
Todos se voltaram para a rapariguita. De acordo. Esperando. Um pouco intimidada por tão grave responsabilidade, mas sempre sorrindo, como fazia nas ocasiões de perigo, a menina avançou por entre os homens e as mulheres que a olhavam ansiosamente e falou. Falou sem tremer a voz. Falou como se estivesse a repetir uma lição já decorada:
— Bem... Se desejam que seja eu a dar o nome à nossa terra... parece-me que o melhor é pôr-lhe um nome que lembre aquela árvore a que devemos tão boa sombra... Foi a única que sempre aqui nos acompanhou, tal como o Sol e como a Lua... Eu acho portanto que a nossa terra se deve chamar Estremoços!
Houve um momento de pasmo. E de silêncio. A rapariguita falara tão bem, tão bem, que estavam todos maravilhados.
E foi afinal o velho chefe quem tomou a palavra em nome de todos:
— Muito bem!... A garota falou como uma pequena sábia... Na verdade, devemos dar à nossa terra o nome do fruto abençoado que tanto nos ajudou. Os estremoços foram o pão nosso de cada dia... Pois também nós seremos sempre leais aos bons estremoços!
E a terra ficou a chamar-se Estremoços — ou, melhor ainda, a Terra dos Estremoços, como então se designavam em linguagem popular os tremoços de hoje... E o seu brasão inicial compôs-se precisamente de um tremoceiro, tendo por cima o escudete das quinas e em redor o Sol e a Lua... a perpetuar assim pelos séculos fora as palavras daquela garota de imaginação prodigiosa que falara, de facto, como uma menina sábia...
Depois, com o correr dos tempos, tudo se foi alterando... O nome dos estremoços passou a ser apenas tremoços... E a Terra dos Estremoços (ou de Estremoços, como a designaram mais tarde), acabou por se transformar na cidade de Estremoz, que se ergue hoje, altaneira, em pleno distrito de Évora, como uma sentinela do Alentejo.


Gentil Marques
Estremoz

24/09/2011

O lobo e o grou



Vendo-se o lobo engasgado
C’um osso, e muito oprimido,
Para o tirar, aos mais brutos
Foi cometendo partido.
Persuadido o grou co’as juras,
O dilatado pescoço
Pela goela do lobo
Meteu, e tirou-lhe o osso.
Pedindo-lhe o prémio: «Ingrato –
Disse – que te hei-de pagar?
Não te basta de meus dentes
Salvo o pescoço tirar?»


Tradução de Malhão

18/09/2011

O nó da garganta

Existe na garganta uma cartilagem muito desenvolvida e que constitui o chamado nó da garganta. Este nó, segundo a lenda, apareceu no homem, exactamente no momento em que Adão comeu o fruto proibido por Deus no Paraíso terreal. Quis arrepender-se do acto de desobediência ao preceito divino, mas já tarde. Então formou-se na garganta o nó, mas já o fruto descia ao estômago.
Esta crença popular é confirmada pelo facto daquela cartilagem só aparecer na garganta do sexo forte.

Silves

17/09/2011

Por bem



Uma galinha, um pato, um cão e um burro iam a fugir por uma estrada fora. Corta-lhes a correria um polícia:
- Alto lá, seus fugitivos. Para irem com essa pressa, alguma maroteira fizeram.
Eles protestaram que não, mas o polícia, desconfiado, quis saber pormenores. Então, a galinha explicou:
- Eu ia a fugir, porque ontem ouvi que iam fazer canja, lá em casa.
Ao que o pato acrescentou:
- E depois da canja, pato com arroz...
O cão explicou:
- O meu dono ia mandar-me para o canil.
- E o meu dizia que eu estava velho e ia mandar-me abater - disse o burro.
- Mas comigo ainda podes - disse o polícia, saltando-lhe para os costados.
Presa a cada mão, trazia o pato e a galinha. Salvara-se o cão, que o polícia não teve maneira de prender.
- Toca a andar para a esquadra - comandou o polícia. - Vai tudo preso.
O burro, habituado a obedecer, obedeceu. Mas o cão, que se safara, é que não se conformou. Deu uma valente mordidela numa das patas do burro, que escoiceou. O polícia caiu ao chão e largou a galinha mais o pato.
Correram os bichos. Mal refeito da queda, o polícia não teve forças para persegui-los.
- Desculpa a dentada - disse o cão ao burro, quando se viram a salvo. - Mas foi por bem.
- Não tem importância - respondeu o burro, a mostrar os grandes dentes, num riso de felicidade. - Há coisas que ardem, mas curam.


António Torrado

O Leão, a Raposa e o Rato


Era um dia de Verão, o Sol ia alto no horizonte e o Leão dormia calmamente a sua sesta. Nisto, um Rato trepou para cima dele e desatou a correr. O Leão acordou sobressaltado e pôs-se às voltas sobre si mesmo, à procura do Rato. A Raposa, que o observava, criticou-o dizendo:
- Que grande Leão, cheio de medo de um Rato...
- Não é do Rato que tenho medo - respondeu-lhe o Leão. - Estou admirado com o seu à vontade e com a sua coragem.

Moral da história:
Nunca subestimes o valor dos outros.


Fábula de Esopo

15/09/2011

A Raposa que perdeu a cauda



Uma Raposa foi apanhada numa armadilha. Conseguiu escapar, mas ficou sem a cauda porque a armadilha a cortou.
Sentindo-se envergonhada e ridícula, pensou convencer as outras raposas a cortarem também as suas.
Reuniu um bom número de amigas e explicou-lhes que, sem cauda, não só ficariam muito mais bonitas, mas também se livrariam de um peso inútil.
Ouvindo isto, uma das raposas interrompeu-a e perguntou-lhe:
- Se não tivesses perdido a tua cauda, também nos aconselharias a cortar as nossas?

Moral da história:
Tem cuidado com quem te dá conselhos tendo em vista os seus próprios interesses.


Fábula de Esopo

13/09/2011

O Urso e os dois viajantes



Certo dia, dois homens viajavam juntos quando um Urso se atravessou no seu caminho. Um deles subiu a uma árvore e escondeu-se nos seus ramos. O outro, percebendo que ia ser atacado a qualquer momento, deitou-se no chão.
Quando o Urso o começou a cheirar, o homem susteve a respiração fingindo-se morto. Ao fim de algum tempo, o Urso foi-se embora.
Certificando-se que o Urso não voltava, o outro viajante desceu da árvore e, com ar brincalhão, perguntou ao amigo:
- Afinal o que é que o Urso te segredou ao ouvido?
- Deu-me este conselho: «Nunca viajes com um companheiro que te abandone perante o perigo» - respondeu-lhe o amigo.

Moral da história:
Os amigos conhecem-se nos momentos difíceis.


Fábula de Esopo


12/09/2011

A Leoa e a Raposa




A leoa, reprovada pela raposa por ter um só filhote ao invés de muitos, respondeu:
- Sim, mas um leão.

Moral da Estória:
A fábula mostra que a excelência não está na quantidade, mas na qualidade.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

A Formiga


Diz uma lenda que a formiga atual era em outros tempos um homem que, consagrado aos trabalhos de agricultura, não se contentava com o produto de seu próprio esforço, senão que olhava com inveja o produto alheio e roubava os frutos de seus vizinhos.
Indignado Zeus pela avareza deste homem, transformou-o em formiga.
Porém ainda que tenha mudado de forma, não mudou seu caráter, pois até hoje percorre os campos e recolhe o trigo e a cevada alheios e os guarda para seu uso.

Moral da Estória:
Ainda que aos malvados se lhes castigue severamente, dificilmente mudarão sua natureza.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

10/09/2011

O castelo de areia



Era uma praia muito carregada de gente. Toldos e barracas de lona tapavam a vista do mar. Chapéus-de-sol, em cacho, uns sobre os outros, tapavam a vista do céu.
Para que um banhista, mesmo magrinho, conseguisse estender a toalha de banho sobre a areia, tinha de pedir ?Com licença, com licença" aos vizinhos, para que se chegassem um pouco mais para o lado. Então, toda a praia se movia, à esquerda e à direita, como uma onda e as pessoas, sucessivamente, diziam ?Com licença, com licença", a pedirem espaço ao vizinho do lado, até nos dois extremos da praia os últimos banhistas gritarem: ?Não apertem mais!" E estes últimos banhistas acabavam por ter de ficar em pé, de encontro à muralha.
- Quero fazer um castelo de areia - disse o menino, que tinha trazido para a praia um balde novo e uma pá e um ancinho.
- Só quando o teu pai for tomar banho - disse a mãe.
- Para que lado é que é a água? - perguntou o pai.
- Acho que é para ali - apontou a mãe. - Foi donde veio ainda agora aquele senhor, que está a limpar-se.
O pai, para ter a certeza, foi perguntar ao tal senhor:
- O mar estava bom?
- Não sei - respondeu o senhor, que esfregava furiosamente a cabeça com uma toalha. - Não encontrei mar nenhum. Para me refrescar, tive de ir tomar duche a um balneário.
- Se fosse a ti não saía de ao pé de nós - disse a mãe do menino. - Vais e, depois nunca mais nos encontras, no meio de tanta gente.
- Então quando é que eu faço o castelo de areia? - perguntou o menino, já amuado.
- Descansa que eu vou já tomar banho - disse o pai. - Para voltar, oriento-me pela cor do nosso chapéu-de-sol.
- Há milhares de chapéus-de-sol iguais - disse a mãe, mas o marido dela e pai do menino já ia longe.
Ia, todo satisfeito, a caminho do mar, embora só muito mais tarde viesse a descobrir, quando chegou à estrada, que se tinha enganado.
O menino pôs-se a construir o castelo de areia, cheio de entusiasmo. Depois de ter erguido o torreão e a primeira cintura de ameias, lembrou-se de pedir à mãe:
- Quero um gelado.
A mãe escusou-se, explicando-lhe que se ela fosse procurar a barraca dos gelados, ia ser muito difícil depois dar de novo com o sítio onde estavam.
Mas o menino insistiu tanto, que ela acedeu.
No bocado de areia deixado livre pela mãe, o menino acrescentou ao castelo uma segunda cintura de muralhas e um fosso todo à volta. Estava um trabalho perfeito e já com uma certa dimensão.
Passou que tempos.
- Estou cheio de fome - gritou o menino, sem tirar os olhos da sua construção, que já tinha preenchido todo o espaço disponível.
Um par de namorados, que estava estendido ao lado, condoeu-se daquele menino, que se perdera dos pais, e foi procurar o cabo-do-mar, para dar-lhe conta da ocorrência. Os namorados partiram de mão dada, tendo a mãe da rapariga recomendado que não se demorassem.
Pois sim. A verdade é que se demoraram, tanto que a mãe da rapariga, muito enervada, resolveu ir à cata deles, pela praia fora.
A obra crescia a olhos vistos. Era um imponente amuralhado com várias cercas e fossas, torres anexas e trincheiras defensivas, esculpidas com primor pelos dedos hábeis do menino, esquecido de tudo o mais à sua volta.
Preenchia uma importante extensão de terreno, que até parecia impossível que, no aperto de tanta gente, ainda houvesse um quadrado de areia disponível para um menino brincar tão à vontade.
Declinava o sol, quando o pai regressou, tiritando. Logo a seguir apareceu a mãe, com um gelado todo derretido. Abraçaram-se, como se já tivessem perdido a esperança de voltarem a encontrar-se.
- Este dia correu muito mal - concordaram os pais.
Só o menino não era da mesma opinião.

Lenda do Trágico Juramento



Esta lenda leva-nos a Viana do Castelo, e mais precisamente a uma casa apalaçada da Rua da Bandeira. Foi isto em tempos que já lá vão, quando nessa casa vivia uma formosíssima donzela chamada Brites Quesado. Não existia entre Douro e Minho quem a igualasse em beleza e fidalguia. As propostas de casamento vinham de todos os cantos do Reino e mesmo de além fronteiras. Todavia, entre tantos pretendentes, D. Brites distinguiu Lopo da Rocha, moço esbelto de elevada estirpe e belos sentimentos, mas que não gozava da simpatia dos pais da donzela. Estes empenhavam-se, por seu turno, em desposá-la com seu primo João de Alvim.
Tanto D. Lopo como D. João amavam sinceramente a jovem D. Brites, e sofriam com receio do futuro.
Certa tarde, estava ela a bordar no varandim cuja escada dava para o pátio. O seu pensamento andava distante do bordado. De súbito, uma voz máscula soou mesmo a seu lado. Ela teve um gritinho e exclamou:
— Assustastes-me, senhor meu primo!
— Lamento profundamente. Daria metade dos meus troféus para vos dar apenas alegrias.
A jovem sorriu. Um sorriso enigmático. Tão enigmático como a sua frase:
— Senhor D. João... está na vossa mão, creio, cumprir esse desejo...
D. João de Alvim tomou-se circunspecto.
— Senhora minha prima! Se basta a minha presença para vos assustar... como ousarei esperar de vós a felicidade?
Voltou a jovem a sorrir. Murmurou como se fosse para si mesma:
— Felicidade! Ninguém ainda a viu… mas existe, pois que alguns a sentem!
— Por exemplo, vós, não é verdade?
Abriu-se mais o sorriso de D. Brites. Adoçou-se a sua expressão.
— Na verdade, não devo queixar-me da minha sorte.
Tornou-se subitamente dura a expressão de D. João de Alvim. A sua voz tomou reflexos de ironia.
— Não deveis queixar-vos, principalmente desde ontem ao pôr do Sol!
D. Brites mostrou-se surpreendida.
— Que quereis dizer, senhor?
Ele tornou:
— Ontem... ao pôr do Sol... vi e ouvi, senhora minha prima!
Ela tentou gracejar.
— Creio que continuais a ver e ouvir...
D. João enervou-se.
— Mas vi o que não queria e ouvi o suficiente para ficar com a alma em noite escura.
— Sim? E o que ouvistes?
— Lopo da Rocha, que vos surpreendeu neste mesmo lugar sem que vos assustasses.
D. Brites ficou subitamente séria. Olhou o primo de frente, interrogando-o com dignidade ofendida:
— Desde quando o senhor meu primo aprendeu a escutar às portas?
Sem se mostrar ofendido, D. João de Alvim replicou:
— Desde que os meus olhos tiveram a desgraça de pousar nos vossos!
A jovem não mostrou surpresa por essa afirmação. Perguntou, altiva:
— E que pretendeis de mim?
D. João tornou, também numa atitude de dignidade:
— Senhora, sou vosso primo! E vossos pais dão-me a honra de me confiarem o seu maior tesouro...
D. Brites interrompeu-o:
— Porém... o tesouro de que falais já não lhes pertence inteiramente. Dei o meu coração!
O fidalgo enervou-se. Alteou a voz.
— Persistis nessa loucura?
Serenamente, a jovem declarou:
— Se loucura é amar um moço fidalgo que por sua grandeza de alma sonha conquistar o meu coração, declaro-vos que amo essa loucura!
D. João empalideceu. Inclinou-se numa vénia para esconder todo o desespero que o dominava e declarou convicto:
— Pois bem, senhora! Retiro-me por agora... mas não desistirei! D. Brites estendeu-lhe a mão que ele mal tocou.
— D. João! Quero recordar-vos que sou das que têm um só parecer. E um único amor! Retirai-vos, pois, na certeza de que amarei apenas a D. Lopo!
Levantou-se e, com uma vénia, entrou no salão onde o crepúsculo marcara audiência.
D. João de Alvim, pálido, trémulo de desespero, ficou ainda algum tempo no varandim. Depois, afastou-se a passos largos.

Alguns meses passaram. A fidalguinha via muitas vezes o eleito do seu coração. Porém, apenas podia trocar com ele, além de apaixonados olhares, uma ou outra missiva, porque seu primo João de Alviin, com o acordo dos pais de D. Brites, parecia sentinela vigilante.
Chegou o dia dos anos da jovem. No palacete foi oferecida uma linda festa. Vieram fidalgos de todo o reino. Havia música, flores e alegria por toda a parte. E entre os fidalgos convidados, com grande surpresa da jovem fidalga, surgiu também Lopo da Rocha. Era bem visto e estimado entre os maiores e seria notada a sua falta.
D. Lopo estava na festa. Mas D. João e os pais de D. Brites conseguiam tê-la sempre isolada do jovem fidalgo a quem ela tanto queria. Somente já no fim do sarau e nos alvores do dia seguinte D. Lopo da Rocha conseguiu encontrar-se com D. Brites num recanto do salão, junto ao varandim que dava para o pátio. Tomou-lhe uma das mãos, que beijou com ternura. A sua voz soou repassada de emoção:
— Meu amor! Julguei sonhar toda esta noite! Fitai uma vez mais os vossos olhos nos meus! Tal como o nadador que antes de mergulhar enche os pulmões de ar puro, assim eu pretendo armazenar no coração o olhar da mulher a quem tanto amo!
Enleada, D. Brites corou de felicidade.
— Meu bem-amado! Falais com tanto ardor, tanto carinho!... Que mais posso eu dizer-vos do que isto: levais convosco a minha alma inteira! Viva ou morta pertencer-vos-ei para sempre!
— Jurais?
Ela olhou-o perplexa. Como se tivesse pressa da resposta, ele insistiu:
— Jurais que cumprireis o que me dissestes?
Ainda surpreendida pelo tom de voz e pela palidez repentina do rosto do seu bem-amado, ela afirmou:
— Juro, meu amor! Viva ou morta, serei sempre vossa. Seguirei sempre a vossa sorte no mundo e na Eternidade. Porém, dizei-me: porque empalidecestes?
Ele suspirou:
— Senhora! Não sei que estranho pressentimento me assalta! Mas agora estou mais sossegado.
Olhava-a com tanta intensidade que ela baixou o olhar. Mas o jovem insistiu:
— Não… não escondais os vossos olhos bonitos sob as pálpebras! Quero ver o brilho do vosso olhar a projectar-se no meu. Assim… assim mesmo... Levo-vos na alma!... Adeus, meu anjo!... Hei-de amar-vos mesmo para além da minha morte!
Beijou-lhe uma das mãos, mais uma vez, com ternura. Depois saiu do salão, desceu a escadaria que levava ao pátio, e preparava-se para se afastar quando esbarrou com um embuçado. O desconhecido gritou-lhe:
— Cautela, vilão!
Pela voz, D. Lopo reconheceu o embuçado. E sem dar mostras de surpresa ripostou-lhe:
— Enganais-vos, senhor D. João de Alvim! Vilão sois vós, que injuriais quem vos não ofendeu!
D. João descobriu-se. Replicou colérico:
— São vilões os que fazem vilanias requestando fidalgas ricas às escondidas de seus pais!
Cerrando os dentes, D. Lopo perguntou:
— É uma provocação, o que procurais?
— Não! É uma vingança!
E sem dar tempo a que D. Lopo se pusesse em guarda, D. João desferiu uma estocada ao peito do seu rival.
Nesse mesmo instante, D. Brites, que assistira à cena, gritou no auge do desespero:
— Lopo! Defendei-vos, senão morrereis!
Com uma das mãos na espada, outra no peito donde o sangue corria, D. Lopo tentou falar.
— Brites... afastai-vos, meu anjo!
D. João gracejou:
— Na verdade chegais tarde, minha prima, pois já matei o vosso bem-amado!
Num assomo de energia, D. Lopo ergueu a espada. E vibrando um golpe certeiro no rival rouquejou:
— Mais uma vez vos enganastes, senhor D. João! Como vedes, ainda não morri!
Com o supremo esforço que fizera, D. Lopo não resistiu. Caiu prostrado, junto do corpo do seu rival.
D. Brites soltou um grito estridente. Depois, chorando, suplicava, ajoelhada junto de D. Lopo:
— Meu amor! Vivei! Vivei só para mim!
Porém, D. Lopo já não a ouvia neste mundo. Do salão começou a correr gente. Ante o quadro macabro que se lhes oferecia, as senhoras desmaiavam, e os homens rodeavam os cadáveres dos dois jovens fidalgos, tentando levá-los dali. Debruçada sobre um deles, a jovem Brites não consentia que a separassem do seu bem-amado. Gritava, dizia incoerências... Chorava como uma criança, ou ficava-se como fera pronta a saltar sobre o caçador que lhe põe em perigo a cria. Compreenderam então que a jovem fidalga havia enlouquecido. Só com muito esforço conseguiram arrancá-la do pátio. A sua loucura era das que não mais encontram alívio. Desfazia-se em choros, em lamentos, e repetia a jura mil vezes jurada:
— Viva ou morta serei sempre vossa! E seguirei sempre a vossa sorte no mundo e na Eternidade!

Pouco tempo durou a que fora a formosa D. Brites. Morreu cansada de sofrer, de se lamentar... E conta a lenda velhinha que a alma de D. Brites continua a errar por ali, altas horas da noite, naquela casa apalaçada da rua da Bandeira, em Viana do Castelo.


Gentil Marques
Viana do Castelo

08/09/2011

A horta do Esteves



Dois coelhos do mato miravam, a uma respeitável distância, a horta do senhor Esteves.
- Que lindeza de couves! E as alfaces tão apetitosas... - dizia o coelho mais novo.
- Mas não te chegues - aconselhava-o o coelho mais velho. - O Esteves, se te apanha a roer-lhe alguma couve, não te perdoa.
- Uma folha só, que mal faz? - dizia o mais novo.
E ia-se chegando para a horta.
- Eu aviso-te. O Esteves não é para brincadeiras - gritava-lhe, já de longe, o coelho mais velho. - Quando era da tua idade, também me tentei e ainda guardo, de recordação, um chumbo na perna.
Mas o coelho mais novo já não o ouviu.
O mais velho, a internar-se no mato e a ouvir um estampido.
- A espingarda do Esteves - exclamou e fugiu a sete pés, embora não fosse nada com ele.
Não correu muito, porque o chumbinho antigo ainda se fazia sentir. Alapado num brejo, esperou.
O amigo ter-se-ia escapulido? Ou já estaria a ser esfolado, para, daí a pouco, entrar na panela, onde a cebola e o azeite faziam fe, fe, fe, na cantoria do refogado? Vida espinhosa a dos coelhos do mato, sobretudo a dos que não seguem os conselhos dos mais sabedores.
Nisto pensava o coelho velho, quando ouviu um gemido por perto. Era o aventureiro, que até ali se arrastara, a esvair-se em sangue.
- Quando fores da minha idade, também vais ter para contar aos mais novos - dizia-lhe o velho companheiro, enquanto com ervas frescas lhe estancava as feridas.
O coelhinho dava-se ao tratamento e só respondia com um ai, de quando em vez.
- Ao menos diz-me: as alfaces eram tão tenras como parecem? - perguntou o mais velho, a fingir indiferença.
- Mal provei - suspirou o coelhinho
- O que a nós nos vale é que o Esteves continua sem pontaria, senão nem sobrava um coelho que avisasse os mais novos - concluiu o velho coelho e concluiu muito bem.


06/09/2011

Tang, o caçador



Meu primo Zhong Han era juiz no condado de Jin. Nessa época, um tigre tinha matado vários caçadores na região e ninguém conseguia pegá-lo. As pessoas foram então procurar meu tio para que ele contratasse Tang, o caçador, para prender esse tigre, achando que ninguém mais seria capaz de fazer esse serviço.
De acordo com Daí Dongyuan, de Xiuning, a história desses Tang vinha desde a Dinastia Ming, quando existiu um caçador chamado Tang, que foi morto por um tigre logo depois de se casar. Sua mulher, grávida, deu à luz um menino e fez uma promessa:
“Se não conseguir matar tigre, nunca vai ser meu filho e todos os seus filhos e filhos de seus filhos que não conseguirem, também não serão meus descendentes”.
Devido a isso, todos os Tang, do sexo masculino, são especialistas em matar tigres.
Zhong Han sabia disso e enviou então alguém para chamar um Tang, separando uma boa quantia de dinheiro para pagá-lo depois do serviço feito.
Na sua volta, esses homens disseram que eles tinham contratado os melhores dos Tang e que eles chegariam a qualquer momento. Chegaram, mas era um era um velho com a barba e o cabelo brancos, que tossia e fungava a cada instante e um ajudante de 16 anos.
O juiz ficou muito desapontado com o que viu. Mas ordenou que a primeira coisa a ser feita era alimentar esses homens. Percebendo que o juiz parecia desapontado, o velho ajoelhou com um só joelho e disse:
“Estou ouvindo esse tigre por perto, no máximo a 5 li* do povoado. Melhor a gente ir logo. A gente pega o tigre e depois come alguma coisa”.
O juiz mandou então que um de seus homens servisse de guia e eles partiram.
Chegancdo na boca de uma ravina, os homens não seguiram adiante.Maso velho sorriu:
“Comigo aqui, como podem estar com medo?”
Quando eles já tinham quase descido o barranco, o velho olhou para o rapaz e disse:
“Parece que esse tigre está dormindo. Vai lá e dá um jeito dele acordar”.
O rapaz então urrou como um tigre e num instante o tigre veio de entre as árvores na direcção deles e pulou sobre o velho. O velho permaneceu firme, levantando um pequeno machado, de oito cun** de cumprimento e quatro de largura. Quando o tigre estava para esmagá-lo, ele afastou-se de lado, e tigre pulou, caindo no chão todo ensanguentado. As pessoas reuniram-se em volta e descobriram que o tigre tinha sido cortado do queixo até a ponta do rabo, ao tocar no machado.
O juiz então recompensou com generosidade os caçadores Tang, agradecendo-os por sua ajuda.
O velho contou então que que tinha treinado seus braços e olhos por mais de dez anos. Ele conseguia encarar um tigre sem piscar, mesmo quando seus olhos estavam com um cisco. E os seus braços eram tão fortes que mesmo o homem mais forte não conseguia movê-los um centímetro.
Zhuangzi, o antigo filósofo chinês, disse uma vez:
“O que é feito com prática é sempre convincente. Uma pessoa que nasce hábil nunca pode ultrapassar quem pratica constantemente”
Isso deve ser verdade. Um homem chamado Shi Sibiao podia escrever no escuro de uma forma tão perfeita como se estivesse usando uma luz de vela. Eu ouvi falar também de Sua Excelência, Li Wnke (1628-1703), de Jing Hai, que separava 100 pedaços de papel e escrevia um carácter em cada um. Punha todos em pilha contra a luz e os 100 caracteres ficavam exactamente um em cima do outro, formando um único carácter, e isso não é mágica.

*1 li = ½ quilómetro
**1 cun = 3,3 centímetros