28/04/2011
O homem e a sua imagem
Um homem singular nos fumos da vaidade,
Tinha-se para si na conta de gentil;
No espelho a que se vê sempre acha falsidade,
E vivia feliz nessa ilusão pueril.
Para o curar do achaque, a sorte, que é cruenta,
Aos olhos lhe apresenta
Por toda a parte os tais conselheiros das damas:
Espelhos nos salões, nas lojas, nas batotas,
Nos bolsos dos janotas,
Têm-nos criados e amas.
O que lembra ao Narciso? Ele vai-se ocultar
Desesperado, então, num ignoto lugar
Sem de espelhos querer entrar noutra aventura.
Nesse local, porém, corria a linfa pura
De aprazível regato,
Que reflecte fiel o grotesco retrato,
O qual julga inda assim ser fantasia vã.
Tenta à pressa fugir por não ver essa imagem,
E da linda paragem
Partiu com certo afã.
Percebe-se o meu fito.
Aludo a toda a gente; o caso acha-se a esmo,
Cada qual o que é seu crê ser o mais bonito,
Nossa alma é este tal vaidoso de si mesmo.
Os espelhos sem conta eis as tolices do homem,
Dos defeitos nos dão legítima pintura;
E pela linfa pura
Das Máximas o livro é bem que todos tomem.
Tradução de Teófilo Braga
Um sonho do Joca
Quando eu vi, na televisão, a estátua de D. Pedro IV, a cavalo numa bicicleta, e, depois das vistas sobre o Porto, passaram ao Mosteiro da Batalha, para mostrarem a estátua de D. Nuno Álvares Pereira, também montado noutra bicicleta, embora mais antiga, eu percebi que estava a sonhar.
Nesse sonho, eu apagava o televisor e descia à rua, a caminho da Praça da Figueira, em Lisboa. Lá estava o rei D. João I, todo ancho, em cima de uma bicicleta da mesma marca da do Condestável D. Nuno.
Seguindo pela Baixa fora, com um trânsito de ciclistas que não se faz ideia, ia ter ao Terreiro do Paço. No meio da praça, o rei D. José de bronze olhava o Tejo, sobre uma bicicleta, com a roda da frente no ar. Devia estar a fazer uma pirueta, em cima do pedestal, para chamar a atenção.
Seria difícil repararem nele, com tantas bicicletas paradas e empilhadas, à roda da estátua. Em vez de um parque de estacionamento de automóveis, o Terreiro do Paço tinha-se transformado num parque de estacionamento de bicicletas. Pequena diferença, afinal.
Onde se estranhava mais a diferença era no movimento do Tejo. Dantes, os cacilheiros atravessavam-no de lado a lado. Agora, no meu sonho, grandes ?gaivotas" de pedais, com dezenas de passageiros pedalantes, andavam de cá para lá, de lá para cá.
- Estou com umas dores na barriga das pernas que mal me tenho em pé - queixava-se uma senhora, ao desembarcar de um dos tais cacilheiros de pedais. - É que há uns que pedalam e outros que fazem de conta...
Os comboios partiam ao sinal de uma pistola de fulminantes, empunhada pelo chefe da estação. Cada passageiro, no seu respectivo lugar, punha-se então a pedalar com toda a força, como se estivesse numa corrida de bicicletas. Mas, neste caso, chegaram todos à meta ao mesmo tempo.
- Ainda há lugares? - perguntou um passageiro, na paragem seguinte.
- Se não vier muito carregado e se for enérgico de perna, pode entrar para o pelotão - respondia-lhe um senhor magrinho, montado num dos lugares-bicicleta.
E já com o comboio a deslizar sobre os carris, este senhor contava para os companheiros de viagem:
- Na semana passada, fui a Leiria, mas caí na asneira de entrar num comboio quase vazio. Demorei três dias a chegar.
- Estes comboios estão cada vez piores - comentaram em volta.
- Eu cá não me queixo - continuou o senhor magrinho. - A paisagem ao longo da linha é muito bonita e eu emagreci quinze quilos.
Via-se.
- Fiz esta viagem por recomendação do médico. Eu estava um bocado gordo. Mas acho que exagerei.
Os restantes passageiros também acharam, enquanto, suando, pedalavam juntos, a caminho de Sintra.
O país de Norte a Sul era uma permanente volta a Portugal em bicicleta. Auto-estradas, estradas, ruas, pontes, caminhos, cheios de ciclistas pedalando...
Uma bicicleta por cada português. Ou mais. Assim que uma criança deixava de andar de gatas, passava a andar de triciclo. Algumas, só depois é que aprendiam a andar em cima dos seus próprios pés.
Nunca vi tantas bicicletas juntas como no meu sonho.
Mal acordei, fui logo contá-lo aos meus pais, que estavam a tomar o pequeno-almoço. Um sonho tão lindo tinha de ser partilhado.
O meu pai, depois de me ouvir, poisou a chávena de café e olhou para mim, muito sério.
- Queres, então, que eu te compre uma bicicleta, para as próximas férias, é? - perguntou ele sorrindo.
Como é que o meu pai tinha adivinhado este meu secreto desejo, nunca revelado a ninguém?
Nesse sonho, eu apagava o televisor e descia à rua, a caminho da Praça da Figueira, em Lisboa. Lá estava o rei D. João I, todo ancho, em cima de uma bicicleta da mesma marca da do Condestável D. Nuno.
Seguindo pela Baixa fora, com um trânsito de ciclistas que não se faz ideia, ia ter ao Terreiro do Paço. No meio da praça, o rei D. José de bronze olhava o Tejo, sobre uma bicicleta, com a roda da frente no ar. Devia estar a fazer uma pirueta, em cima do pedestal, para chamar a atenção.
Seria difícil repararem nele, com tantas bicicletas paradas e empilhadas, à roda da estátua. Em vez de um parque de estacionamento de automóveis, o Terreiro do Paço tinha-se transformado num parque de estacionamento de bicicletas. Pequena diferença, afinal.
Onde se estranhava mais a diferença era no movimento do Tejo. Dantes, os cacilheiros atravessavam-no de lado a lado. Agora, no meu sonho, grandes ?gaivotas" de pedais, com dezenas de passageiros pedalantes, andavam de cá para lá, de lá para cá.
- Estou com umas dores na barriga das pernas que mal me tenho em pé - queixava-se uma senhora, ao desembarcar de um dos tais cacilheiros de pedais. - É que há uns que pedalam e outros que fazem de conta...
Os comboios partiam ao sinal de uma pistola de fulminantes, empunhada pelo chefe da estação. Cada passageiro, no seu respectivo lugar, punha-se então a pedalar com toda a força, como se estivesse numa corrida de bicicletas. Mas, neste caso, chegaram todos à meta ao mesmo tempo.
- Ainda há lugares? - perguntou um passageiro, na paragem seguinte.
- Se não vier muito carregado e se for enérgico de perna, pode entrar para o pelotão - respondia-lhe um senhor magrinho, montado num dos lugares-bicicleta.
E já com o comboio a deslizar sobre os carris, este senhor contava para os companheiros de viagem:
- Na semana passada, fui a Leiria, mas caí na asneira de entrar num comboio quase vazio. Demorei três dias a chegar.
- Estes comboios estão cada vez piores - comentaram em volta.
- Eu cá não me queixo - continuou o senhor magrinho. - A paisagem ao longo da linha é muito bonita e eu emagreci quinze quilos.
Via-se.
- Fiz esta viagem por recomendação do médico. Eu estava um bocado gordo. Mas acho que exagerei.
Os restantes passageiros também acharam, enquanto, suando, pedalavam juntos, a caminho de Sintra.
O país de Norte a Sul era uma permanente volta a Portugal em bicicleta. Auto-estradas, estradas, ruas, pontes, caminhos, cheios de ciclistas pedalando...
Uma bicicleta por cada português. Ou mais. Assim que uma criança deixava de andar de gatas, passava a andar de triciclo. Algumas, só depois é que aprendiam a andar em cima dos seus próprios pés.
Nunca vi tantas bicicletas juntas como no meu sonho.
Mal acordei, fui logo contá-lo aos meus pais, que estavam a tomar o pequeno-almoço. Um sonho tão lindo tinha de ser partilhado.
O meu pai, depois de me ouvir, poisou a chávena de café e olhou para mim, muito sério.
- Queres, então, que eu te compre uma bicicleta, para as próximas férias, é? - perguntou ele sorrindo.
Como é que o meu pai tinha adivinhado este meu secreto desejo, nunca revelado a ninguém?
António Torrado
26/04/2011
O filho do vento
Quando Brahma, o deus criador, descansava, derramou uma lágrima sobre o chão de ouro do monte Meru e assim nasceu o primeiro macaco.
Um dia, ao contemplar seu reflexo no lago e pensando se tratar de um inimigo, o maçado se atirou nas águas, mergulhou até o fundo mas não encontrou ninguém. Ao sair, havia se transformado numa fêmea.
O grande Indra se apaixonou por aquela linda macaca e dessa união nasceu Vali. Surya, o Sol, também se enamorou dela e desse encontro nasceu Sugriva.
Numa ocasião em que a mãe banhava os filhotes no lago, ficou toda respingada da água que os macaquinhos lhe atiravam e, nesse momento, percebeu que havia voltado a ser macho. Levou, então, os filhos até Brahma e este deu a Vali uma cidade da qual ele se tornou rei. Mas nada deu a Sugriva.
O primeiro macaco foi morar no céu e lá de cima viu que Vali parecia ter o domínio de tudo. Então pediu a Vayu, o deus do vento, que gerasse um filho macaco, a fim de que se fosse o fiel amigo de Sugriva.
Um dia, quando soprava no alto de uma montanha, o deus do vento encontrou uma bela macaca sonhadora que passeava distraída. Vayu se uniu a ela e nasceu Hanuman, cujo nome significa “o que tem mandíbulas fortes”.
Porém, a macaca abandonou o filhote na entrada de uma caverna e foi embora.
Sozinho e com fome, Hanuman se pós a correr atrás do sol para devorá-lo. Isso provocou a raiva de Rahu, a cabeça sem corpo, engolidora do sol e provocadora dos eclipses.
Rahu reclamou com Indra e ele, montando em seu elefante Airavata, derrubou Hanuman com um raio. Na queda, o macaco quebrou a mandíbula.
Vayu tomou o filho ferido nos braços e tal foi sua tristeza que se recolheu no interior de uma caverna, recusando-se a ventar. De repente, desapareceram as dez formas de vento e o mundo parou de respirar.
Os deuses apavorados com o perigo que ameaçava toda a criação, imploraram o perdão de Vayu e ofereceram a Hanuman o dom da imortalidade, a coragem total e o poder da cura.
Um dia, ao contemplar seu reflexo no lago e pensando se tratar de um inimigo, o maçado se atirou nas águas, mergulhou até o fundo mas não encontrou ninguém. Ao sair, havia se transformado numa fêmea.
O grande Indra se apaixonou por aquela linda macaca e dessa união nasceu Vali. Surya, o Sol, também se enamorou dela e desse encontro nasceu Sugriva.
Numa ocasião em que a mãe banhava os filhotes no lago, ficou toda respingada da água que os macaquinhos lhe atiravam e, nesse momento, percebeu que havia voltado a ser macho. Levou, então, os filhos até Brahma e este deu a Vali uma cidade da qual ele se tornou rei. Mas nada deu a Sugriva.
O primeiro macaco foi morar no céu e lá de cima viu que Vali parecia ter o domínio de tudo. Então pediu a Vayu, o deus do vento, que gerasse um filho macaco, a fim de que se fosse o fiel amigo de Sugriva.
Um dia, quando soprava no alto de uma montanha, o deus do vento encontrou uma bela macaca sonhadora que passeava distraída. Vayu se uniu a ela e nasceu Hanuman, cujo nome significa “o que tem mandíbulas fortes”.
Porém, a macaca abandonou o filhote na entrada de uma caverna e foi embora.
Sozinho e com fome, Hanuman se pós a correr atrás do sol para devorá-lo. Isso provocou a raiva de Rahu, a cabeça sem corpo, engolidora do sol e provocadora dos eclipses.
Rahu reclamou com Indra e ele, montando em seu elefante Airavata, derrubou Hanuman com um raio. Na queda, o macaco quebrou a mandíbula.
Vayu tomou o filho ferido nos braços e tal foi sua tristeza que se recolheu no interior de uma caverna, recusando-se a ventar. De repente, desapareceram as dez formas de vento e o mundo parou de respirar.
Os deuses apavorados com o perigo que ameaçava toda a criação, imploraram o perdão de Vayu e ofereceram a Hanuman o dom da imortalidade, a coragem total e o poder da cura.
24/04/2011
O desaparecimento de Mjollnir
Thor, deus do trovão e filho de Odin, despertou, certa manhã, com uma estranha sensação: a de que lhe faltava algo muito importante.
"Que vazio é este, que tanto me angustia?", perguntava-se o deus desde o instante em que abrira os olhos.
Esta desagradável sensação prolongou-se pelo resto da manhã até que o deus finalmente, deu-se conta do que era, quando encontrou um bilhete justo no lugar onde costumava guardar seu martelo Miollnir.
"Caro Thor: caso deseje retomar a posse de seu poderoso martelo, favor entrar em contato comigo, pois eu o escondi sob as profundezas da terra, em um local ignorado. Estou aberto a toda negociação. Assinado:
Thryn, da maravilhosa raça dos Gigantes."
- Loki! Loki! - bradou Thor, exigindo a presença do trapaceiro deus.
Em instantes, o deus de longos cabelos lisos e escarlates estava à sua frente.
- O que houve, poderoso Thor? - disse Lotei, assustado.
- Aquele maldito Thryn furtou meu martelo! - disse Thor, quase possesso. - Quero que vá, imediatamente, até ele para saber quais são os termos da sua proposta para efetuar a devolução de Mjollnir. Você é descendente daquela raça maldita e saberá engambelá-lo melhor do que eu. Caso contrário, eu mesmo irei até onde este verme se esconde e o esmagarei!
Antes de partir, Loki foi até Freya, a deusa do amor, para lhe pedir um favor.
- O que quer aqui a esta hora? - disse ela, mal-humorada e com cara de sono, pois acordava sempre muito tarde.
- Preciso que você me empreste o seu casaco de pele de falcão para cumprir uma importante missão para Thor - disse Loki.
- Aonde vai?
- Houve um terrível furto!
- Furto...? Que furto?
- O gigante Thryn furtou o martelo de Thor!
- Que horror! - disse a deusa, tornando-se rubra. Depois, indicando o local onde guardava seu casaco, completou: - Vamos, pegue-o e trate logo de recuperar a arma do pobre Thor!
Freya sabia muito bem que, sem seu martelo, Thor não poderia defender Asgard de um eventual ataque dos gigantes, seus tradicionais inimigos.
Loki envergou o casaco e se metamorfoseou, logo, em um elegante falcão de penas rubras como o fogo. Assim travestido, percorreu as amplidões que levavam à morada dos gigantes, em Jotunheim. Após circular por vários locais, acabou por descobrir a caverna
onde se escondia o temível Thryn. Em instantes, pousou na entrada do gélido covil e disse com a voz mais nobre possível:
- Ó Magnânimo Thryn, vim buscar o martelo do Magnífico Thor!
- Entre logo, miserável Loki - disse uma voz algo displicente.
A caverna era toda decorada por dourados e polidos escudos, que reflectiam as luzes das tochas, a tal ponto que quase se cegava lá dentro.
- Nossa, quanta luz!... - exclamou Loki, pondo a mão sobre os olhos.
- É que sou meio míope e gosto de tudo às claras - disse o gigante, refestelado em seu esplêndido trono.
- Se gosta de tudo às claras, diga-me, logo, onde está Miollnir e retornarei para Asgard com os seus melhores votos.
- Você retornará para Asgard - disse o gigante, ajeitando melhor o fantástico traseiro sobre a almofada de veludo escarlate -, mas é para me trazei- a adorável Freya em paga do brinquedinho de Thor, que, certamente, levará de volta depois.
Mas, Loki não seria Loki, se ousasse sair da presença do gigante sem lhe dar uma resposta à altura.
- Perdão, poderoso gigante - disse ele, com o ar tão sereno quanto possível -, mas jamais poderá usar o martelo sem as luvas de ferro de Thor.
- Nem eu, nem ele - respondeu, secamente, o gigante. - Não me obrigue, agora, a repetir tudo o que já lhe disse.
Loki retornou rapidamente e logo estava em Asgard diante dos deuses. Depois de comunicar os termos da exigência de Thryn, Loki teve de escutar os gritos furiosos da deusa do amor (ou seja, do sexo), que em hipótese alguma admitia a idéia de ir se juntar ao asqueroso gigante. Thor, a seu turno, também não admitia perder a mais bela das deusas, enquanto que Odin, o deus supremo, bateu no chão diversas vezes com sua lança Gungnir, soltando várias imprecações contra o pérfido. Assim, estiveram por um bom tempo, até que Loki teve uma idéia que julgou excelente.
- Eis o que faremos - disse ele, tomando a palavra. - Thor e eu iremos até a morada do gigante travestidos de mulher; ele, de Freya, e eu, de sua escrava.
- Está louco? - disse Thor, brandindo seu punho na direção de Loki. - O que dirá de mim aquela raça degenerada dos gigantes, quando descobrirem que ando por aí vestido de mulher?
- Dirão, poderoso Thor, que você é um deus muito inteligente e que recuperou seu martelo após haver engambelado todos eles! - disse Loki, recorrendo ao eficientíssimo recurso do apelo à vaidade.
O deus do trovão ainda relutou um pouco, mas não descobrindo outro recurso,acabou por ceder.
- Deixe-me ver seus vestidos - disse o deus à Freya, meio desenxabido.
Depois de ele e Loki terem passado em revista o infinito guarda-roupa da deusa da fertilidade, acabaram por escolher duas peças menos chamativas. Em seguida, tiveram seus rostos pintados por uma pesada maquiagem para ocultar a sombra que suas barbas raspadas haviam deixado.
- Vamos de uma vez! - disse Thor, que decidiu sair durante a noite em sua carruagem puxada por duas cabras, para não chamar muito a atenção.
Aquela foi uma viagem muito constrangedora. Um silêncio desconfortável acompanhou-os durante toda a viagem até que, finalmente, chegaram aos domínios do gigante Thryn.
- Oh, Freya adorável! - exclamou o gigante, que não era lá muito bom das vistas - Você veio, então! E esta donzelinha encantadora, quem é?
Loki baixou os olhos, como uma boa serva.
- É minha escrava - disse Thor, dando um tapa na cabeça de Loki. - É meio fraca dos miolos. Mas, falemos de nós, audaz gigante!
- Oh, sim, falaremos muito de nós! - disse Thryn, levando Thor e Loki para seus amplos salões.
Ali, um magnífico banquete de núpcias estava preparado para recepcionar aquela que imaginavam ser a deusa do amor e sua bela escravinha. Os dois foram logo instalados à mesa, cercados de gigantes de colossal estatura e de suas respectivas esposas. Thor e Loki foram servidos regiamente: o deus do trovão, que trazia uma fome tremenda da viagem, não se fez de rogado e se serviu à vontade. Pilhas de carne foram tragadas por ele junto com oito salmões recheados de pequenas carpas e quatro barris inteiros de hidromel, além de uma quantidade fantástica de doces, o que encheu de assombro o seu "noivo".
- Nossa, Freya, não sabia que tinha tanto apetite! - disse Thryn, boquiaberto.
- Permita-me, poderoso Thryn, explicar-lhe o motivo - disse Loki, disfarçado de escravinha. - É que a deusa esteve tão ansiosa estes dias que antecederam à nossa viagem, que não teve ânimo para pôr nada entre os dentes antes de estar ao seu lado.
Thryn deu um largo sorriso de satisfação que lhe arreganhou os dentes.
- Muito bom escutar estas coisas! - disse o gigante, deliciado com aquelas palavras.
- Muito bom mesmo, assim vale a pena...!
Empolgado por aquela declaração indirecta de amor, o gigante aproximou seus lábios de Thor e tentou roubar-lhe um beijo. A "deusa", entretanto, lançou-lhe um olhar tão furioso, que as carnes do gigante tremeram por cima dos ossos.
- Não é nada, não se assuste! - disse Loki ao ouvido de Thryn. - É apenas o nervosismo que antecede o grande momento...
O "grande momento"! Esta expressão trouxe à imaginação do gigante um mundo de fantasias tão sublimes que, entusiasmando-se, chamou logo um criado.
- Traga, imediatamente, o martelo! - disse ele.
Um lacaio trouxe o magnífico Mjollnir. Os olhos de Thor faiscaram, enquanto ele remexia as suas saias em busca de sua luva de ferro.
- Coloquem-no entre os joelhos de Freya! - ordenou Thryn, incontinenti. - Assim, estará simbolizada a devolução e o nosso casamento!
Um dos lacaios aproximou-se, reverentemente, e colocou Miollnir entre os joelhos da falsa Freya.
E, aqui, começou o massacre. Tão logo Thor teve ao seu alcance a sua devastadora arma, retirou de dentro das saias a sua mão enluvada e tomou do martelo. Com a outra mão ergueu a mesa e a lançou de encontro à parede com pratos, talheres, sopeiras douradas e tudo o mais.
Um alarido de medo escapou da garganta dos gigantes, quando Thor, desvencilhando-se das suas dominadas roupas, partiu para cima dos seus adversários,eliminando, em primeiro lugar, o seu noivo com uma poderosa martelada no crânio. Logo em seguida, arrasou com tudo, de tal forma, que nem as gigantas ou os lacaios escaparam de sua fúria. Terminado o massacre, subiu de novo no seu carro, junto com Loki, e retornaram ambos para Asgard, levando consigo o martelo e sua honra restaurada.
"Que vazio é este, que tanto me angustia?", perguntava-se o deus desde o instante em que abrira os olhos.
Esta desagradável sensação prolongou-se pelo resto da manhã até que o deus finalmente, deu-se conta do que era, quando encontrou um bilhete justo no lugar onde costumava guardar seu martelo Miollnir.
"Caro Thor: caso deseje retomar a posse de seu poderoso martelo, favor entrar em contato comigo, pois eu o escondi sob as profundezas da terra, em um local ignorado. Estou aberto a toda negociação. Assinado:
Thryn, da maravilhosa raça dos Gigantes."
- Loki! Loki! - bradou Thor, exigindo a presença do trapaceiro deus.
Em instantes, o deus de longos cabelos lisos e escarlates estava à sua frente.
- O que houve, poderoso Thor? - disse Lotei, assustado.
- Aquele maldito Thryn furtou meu martelo! - disse Thor, quase possesso. - Quero que vá, imediatamente, até ele para saber quais são os termos da sua proposta para efetuar a devolução de Mjollnir. Você é descendente daquela raça maldita e saberá engambelá-lo melhor do que eu. Caso contrário, eu mesmo irei até onde este verme se esconde e o esmagarei!
Antes de partir, Loki foi até Freya, a deusa do amor, para lhe pedir um favor.
- O que quer aqui a esta hora? - disse ela, mal-humorada e com cara de sono, pois acordava sempre muito tarde.
- Preciso que você me empreste o seu casaco de pele de falcão para cumprir uma importante missão para Thor - disse Loki.
- Aonde vai?
- Houve um terrível furto!
- Furto...? Que furto?
- O gigante Thryn furtou o martelo de Thor!
- Que horror! - disse a deusa, tornando-se rubra. Depois, indicando o local onde guardava seu casaco, completou: - Vamos, pegue-o e trate logo de recuperar a arma do pobre Thor!
Freya sabia muito bem que, sem seu martelo, Thor não poderia defender Asgard de um eventual ataque dos gigantes, seus tradicionais inimigos.
Loki envergou o casaco e se metamorfoseou, logo, em um elegante falcão de penas rubras como o fogo. Assim travestido, percorreu as amplidões que levavam à morada dos gigantes, em Jotunheim. Após circular por vários locais, acabou por descobrir a caverna
onde se escondia o temível Thryn. Em instantes, pousou na entrada do gélido covil e disse com a voz mais nobre possível:
- Ó Magnânimo Thryn, vim buscar o martelo do Magnífico Thor!
- Entre logo, miserável Loki - disse uma voz algo displicente.
A caverna era toda decorada por dourados e polidos escudos, que reflectiam as luzes das tochas, a tal ponto que quase se cegava lá dentro.
- Nossa, quanta luz!... - exclamou Loki, pondo a mão sobre os olhos.
- É que sou meio míope e gosto de tudo às claras - disse o gigante, refestelado em seu esplêndido trono.
- Se gosta de tudo às claras, diga-me, logo, onde está Miollnir e retornarei para Asgard com os seus melhores votos.
- Você retornará para Asgard - disse o gigante, ajeitando melhor o fantástico traseiro sobre a almofada de veludo escarlate -, mas é para me trazei- a adorável Freya em paga do brinquedinho de Thor, que, certamente, levará de volta depois.
Mas, Loki não seria Loki, se ousasse sair da presença do gigante sem lhe dar uma resposta à altura.
- Perdão, poderoso gigante - disse ele, com o ar tão sereno quanto possível -, mas jamais poderá usar o martelo sem as luvas de ferro de Thor.
- Nem eu, nem ele - respondeu, secamente, o gigante. - Não me obrigue, agora, a repetir tudo o que já lhe disse.
Loki retornou rapidamente e logo estava em Asgard diante dos deuses. Depois de comunicar os termos da exigência de Thryn, Loki teve de escutar os gritos furiosos da deusa do amor (ou seja, do sexo), que em hipótese alguma admitia a idéia de ir se juntar ao asqueroso gigante. Thor, a seu turno, também não admitia perder a mais bela das deusas, enquanto que Odin, o deus supremo, bateu no chão diversas vezes com sua lança Gungnir, soltando várias imprecações contra o pérfido. Assim, estiveram por um bom tempo, até que Loki teve uma idéia que julgou excelente.
- Eis o que faremos - disse ele, tomando a palavra. - Thor e eu iremos até a morada do gigante travestidos de mulher; ele, de Freya, e eu, de sua escrava.
- Está louco? - disse Thor, brandindo seu punho na direção de Loki. - O que dirá de mim aquela raça degenerada dos gigantes, quando descobrirem que ando por aí vestido de mulher?
- Dirão, poderoso Thor, que você é um deus muito inteligente e que recuperou seu martelo após haver engambelado todos eles! - disse Loki, recorrendo ao eficientíssimo recurso do apelo à vaidade.
O deus do trovão ainda relutou um pouco, mas não descobrindo outro recurso,acabou por ceder.
- Deixe-me ver seus vestidos - disse o deus à Freya, meio desenxabido.
Depois de ele e Loki terem passado em revista o infinito guarda-roupa da deusa da fertilidade, acabaram por escolher duas peças menos chamativas. Em seguida, tiveram seus rostos pintados por uma pesada maquiagem para ocultar a sombra que suas barbas raspadas haviam deixado.
- Vamos de uma vez! - disse Thor, que decidiu sair durante a noite em sua carruagem puxada por duas cabras, para não chamar muito a atenção.
Aquela foi uma viagem muito constrangedora. Um silêncio desconfortável acompanhou-os durante toda a viagem até que, finalmente, chegaram aos domínios do gigante Thryn.
- Oh, Freya adorável! - exclamou o gigante, que não era lá muito bom das vistas - Você veio, então! E esta donzelinha encantadora, quem é?
Loki baixou os olhos, como uma boa serva.
- É minha escrava - disse Thor, dando um tapa na cabeça de Loki. - É meio fraca dos miolos. Mas, falemos de nós, audaz gigante!
- Oh, sim, falaremos muito de nós! - disse Thryn, levando Thor e Loki para seus amplos salões.
Ali, um magnífico banquete de núpcias estava preparado para recepcionar aquela que imaginavam ser a deusa do amor e sua bela escravinha. Os dois foram logo instalados à mesa, cercados de gigantes de colossal estatura e de suas respectivas esposas. Thor e Loki foram servidos regiamente: o deus do trovão, que trazia uma fome tremenda da viagem, não se fez de rogado e se serviu à vontade. Pilhas de carne foram tragadas por ele junto com oito salmões recheados de pequenas carpas e quatro barris inteiros de hidromel, além de uma quantidade fantástica de doces, o que encheu de assombro o seu "noivo".
- Nossa, Freya, não sabia que tinha tanto apetite! - disse Thryn, boquiaberto.
- Permita-me, poderoso Thryn, explicar-lhe o motivo - disse Loki, disfarçado de escravinha. - É que a deusa esteve tão ansiosa estes dias que antecederam à nossa viagem, que não teve ânimo para pôr nada entre os dentes antes de estar ao seu lado.
Thryn deu um largo sorriso de satisfação que lhe arreganhou os dentes.
- Muito bom escutar estas coisas! - disse o gigante, deliciado com aquelas palavras.
- Muito bom mesmo, assim vale a pena...!
Empolgado por aquela declaração indirecta de amor, o gigante aproximou seus lábios de Thor e tentou roubar-lhe um beijo. A "deusa", entretanto, lançou-lhe um olhar tão furioso, que as carnes do gigante tremeram por cima dos ossos.
- Não é nada, não se assuste! - disse Loki ao ouvido de Thryn. - É apenas o nervosismo que antecede o grande momento...
O "grande momento"! Esta expressão trouxe à imaginação do gigante um mundo de fantasias tão sublimes que, entusiasmando-se, chamou logo um criado.
- Traga, imediatamente, o martelo! - disse ele.
Um lacaio trouxe o magnífico Mjollnir. Os olhos de Thor faiscaram, enquanto ele remexia as suas saias em busca de sua luva de ferro.
- Coloquem-no entre os joelhos de Freya! - ordenou Thryn, incontinenti. - Assim, estará simbolizada a devolução e o nosso casamento!
Um dos lacaios aproximou-se, reverentemente, e colocou Miollnir entre os joelhos da falsa Freya.
E, aqui, começou o massacre. Tão logo Thor teve ao seu alcance a sua devastadora arma, retirou de dentro das saias a sua mão enluvada e tomou do martelo. Com a outra mão ergueu a mesa e a lançou de encontro à parede com pratos, talheres, sopeiras douradas e tudo o mais.
Um alarido de medo escapou da garganta dos gigantes, quando Thor, desvencilhando-se das suas dominadas roupas, partiu para cima dos seus adversários,eliminando, em primeiro lugar, o seu noivo com uma poderosa martelada no crânio. Logo em seguida, arrasou com tudo, de tal forma, que nem as gigantas ou os lacaios escaparam de sua fúria. Terminado o massacre, subiu de novo no seu carro, junto com Loki, e retornaram ambos para Asgard, levando consigo o martelo e sua honra restaurada.
O burro vestido com pele de leão
Quebrando a peia,
Fofo sendeiro
Fugiu ao dono,
Que era moleiro;
Dentro de um bosque,
O fanfarrão
Achou a pele
De alto leão.
Em toda a parte
Dela vestido
Por leão fero
Era temido;
Homens e brutos
O respeitavam,
Fugiam logo
Que o divisavam.
Mas das orelhas
Uma pontinha
De fora ao burro
Ficado tinha;
Foi vista acaso
Pelo moleiro,
Que julgou logo
Ser o sendeiro.
Indo-lhe ao lombo
Com um cajado,
Puniu o arrojo
Do mascarado;
Do tolo rindo,
Despiu-lhe a pele,
Pôs-lhe uma albarda
E montou nele.
Tal entre os homens
Mil se conhecem,
Os quais são uns,
E outros parecem.
Despem-lhe a pele
Que os faz troantes,
Ficam sendeiros
Como eram dantes.
Tradução de Curvo Semedo
22/04/2011
Lenda do Folar da Páscoa
A lenda do folar da Páscoa é tão antiga que se desconhece a sua data de origem. Reza a lenda que, numa aldeia portuguesa, vivia uma jovem chamada Mariana que tinha como único desejo na vida o de casar cedo. Tanto rezou a Santa Catarina que a sua vontade se realizou e logo lhe surgiram dois pretendentes: um fidalgo rico e um lavrador pobre, ambos jovens e belos. A jovem voltou a pedir ajuda a Santa Catarina para fazer a escolha certa. Enquanto estava concentrada na sua oração, bateu à porta Amaro, o lavrador pobre, a pedir-lhe uma resposta e marcando-lhe como data limite o Domingo de Ramos. Passado pouco tempo, naquele mesmo dia, apareceu o fidalgo a pedir-lhe também uma decisão. Mariana não sabia o que fazer.
Chegado o Domingo de Ramos, uma vizinha foi muito aflita avisar Mariana que o fidalgo e o lavrador se tinham encontrado a caminho da sua casa e que, naquele momento, travavam uma luta de morte. Mariana correu até ao lugar onde os dois se defrontavam e foi então que, depois de pedir ajuda a Santa Catarina, Mariana soltou o nome de Amaro, o lavrador pobre.
Na véspera do Domingo de Páscoa, Mariana andava atormentada, porque lhe tinham dito que o fidalgo apareceria no dia do casamento para matar Amaro. Mariana rezou a Santa Catarina e a imagem da Santa, ao que parece, sorriu-lhe. No dia seguinte, Mariana foi pôr flores no altar da Santa e, quando chegou a casa, verificou que, em cima da mesa, estava um grande bolo com ovos inteiros, rodeado de flores, as mesmas que Mariana tinha posto no altar. Correu para casa de Amaro, mas encontrou-o no caminho e este contou-lhe que também tinha recebido um bolo semelhante. Pensando ter sido ideia do fidalgo, dirigiram-se a sua casa para lhe agradecer, mas este também tinha recebido o mesmo tipo de bolo. Mariana ficou convencida de que tudo tinha sido obra de Santa Catarina.
Inicialmente chamado de folore , o bolo veio, com o tempo, a ficar conhecido como folar e tornou-se numa tradição que celebra a amizade e a reconciliação. Durante as festividades cristãs da Páscoa, o afilhado costumam levar, no Domingo de Ramos, um ramo de violetas à madrinha de baptismo e esta, no Domingo de Páscoa, oferece-lhe em retribuição um folar.
Chegado o Domingo de Ramos, uma vizinha foi muito aflita avisar Mariana que o fidalgo e o lavrador se tinham encontrado a caminho da sua casa e que, naquele momento, travavam uma luta de morte. Mariana correu até ao lugar onde os dois se defrontavam e foi então que, depois de pedir ajuda a Santa Catarina, Mariana soltou o nome de Amaro, o lavrador pobre.
Na véspera do Domingo de Páscoa, Mariana andava atormentada, porque lhe tinham dito que o fidalgo apareceria no dia do casamento para matar Amaro. Mariana rezou a Santa Catarina e a imagem da Santa, ao que parece, sorriu-lhe. No dia seguinte, Mariana foi pôr flores no altar da Santa e, quando chegou a casa, verificou que, em cima da mesa, estava um grande bolo com ovos inteiros, rodeado de flores, as mesmas que Mariana tinha posto no altar. Correu para casa de Amaro, mas encontrou-o no caminho e este contou-lhe que também tinha recebido um bolo semelhante. Pensando ter sido ideia do fidalgo, dirigiram-se a sua casa para lhe agradecer, mas este também tinha recebido o mesmo tipo de bolo. Mariana ficou convencida de que tudo tinha sido obra de Santa Catarina.
Inicialmente chamado de folore , o bolo veio, com o tempo, a ficar conhecido como folar e tornou-se numa tradição que celebra a amizade e a reconciliação. Durante as festividades cristãs da Páscoa, o afilhado costumam levar, no Domingo de Ramos, um ramo de violetas à madrinha de baptismo e esta, no Domingo de Páscoa, oferece-lhe em retribuição um folar.
18/04/2011
A Lebre e o Cão de Caça
Um cão de caça espantou uma lebre para fora de sua toca, mas depois de longa perseguição, ele parou a caçada.
Um pastor de cabras vendo-o parar, ridicularizou-o dizendo:
- Aquele pequeno animal é melhor corredor que você.
O cão de caça, respondeu:
- Você não vê a diferença entre nós: eu estava correndo apenas por um jantar, mas ele, por sua vida.
Um pastor de cabras vendo-o parar, ridicularizou-o dizendo:
- Aquele pequeno animal é melhor corredor que você.
O cão de caça, respondeu:
- Você não vê a diferença entre nós: eu estava correndo apenas por um jantar, mas ele, por sua vida.
Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)
(Século VI a.c.)
17/04/2011
O rato modesto e o pardal optimista
Era uma vez um rato que todos os dias ia comer a um restaurante. Bom. Onde ele comia era no contentor do lixo do restaurante, o que não é bem a mesma coisa...
Quem também lá aparecia quase sempre, à cata de acepipes, era um pardal saltitante e optimista.
Às vezes, um homem, pobre e velho, também se abastecia no caixote, à procura de folhas de couve e cascas de fruta, para alimentar dois coelhos de estimação, que não eram esquisitos de boca.
Assim que o homem chegava, o pardal voava e o rato fugia, mas não voavam nem fugiam para muito longe, porque o caixote, ao fim e ao cabo, chegava para todos.
E a história podia ficar por aqui, se nós não soubéssemos que o restaurante teve de fechar, por falta de clientes. Não os do contentor, já se vê...
- A casa vai mudar de ramo - informou o pardal, que sabia sempre as últimas.
- ?Mudar de ramo"? Então as lojas também voam de árvore em árvore? - perguntou o rato, que sabia muito pouco.
- Não me faça rir, senhor rato - e o pardal riu-se. - Mudar de ramo quer dizer mudar de actividade. Em vez de um restaurante, vão lá pôr uma loja de ferragens.
- Talvez também tenha um bom contentor - lembrou o rato.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - Na loja de ferragens há martelos, serras, pregos, parafusos, chaves, fechaduras e... armadilhas para pardais e ratoeiras para ratos...
- Que horror! - arrepiou-se o rato. - Assim vamos morrer de fome.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - Eu não conto morrer de fome.
- Então o que é que vai fazer?
- Também vou mudar de ramo, isto é, vou voar para outra árvore, que fique perto de outro restaurante. Quem nos pode dar uma ajuda é esse homem que aí vem, à procura de folhas e de cascas.
- O quê? Ele tem um restaurante? - estranhou o rato.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - O que ele tem é muita prática de contentores. Se formos atrás dele, havemos de encontrar um que nos agrade.
Assim fizeram. Um pelo ar e o outro pelo chão, seguiram disfarçadamente o homem. E muito se admiraram que a cidade fosse tão grande, os contentores tão abundantes e os restaurantes em tão grande número.
- E não vão todos, de um dia para o outro, transformar-se em lojas de ferragens? - perguntava o ingénuo do rato.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - Até que o meu amigo se veja obrigado a comer limalha de ferro e rolos de arame, ainda há-de saborear muita paparoca gostosa. Não pense em desgraças e aproveite o que há, enquanto há.
Este pardal era, realmente, um optimista.
Quem também lá aparecia quase sempre, à cata de acepipes, era um pardal saltitante e optimista.
Às vezes, um homem, pobre e velho, também se abastecia no caixote, à procura de folhas de couve e cascas de fruta, para alimentar dois coelhos de estimação, que não eram esquisitos de boca.
Assim que o homem chegava, o pardal voava e o rato fugia, mas não voavam nem fugiam para muito longe, porque o caixote, ao fim e ao cabo, chegava para todos.
E a história podia ficar por aqui, se nós não soubéssemos que o restaurante teve de fechar, por falta de clientes. Não os do contentor, já se vê...
- A casa vai mudar de ramo - informou o pardal, que sabia sempre as últimas.
- ?Mudar de ramo"? Então as lojas também voam de árvore em árvore? - perguntou o rato, que sabia muito pouco.
- Não me faça rir, senhor rato - e o pardal riu-se. - Mudar de ramo quer dizer mudar de actividade. Em vez de um restaurante, vão lá pôr uma loja de ferragens.
- Talvez também tenha um bom contentor - lembrou o rato.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - Na loja de ferragens há martelos, serras, pregos, parafusos, chaves, fechaduras e... armadilhas para pardais e ratoeiras para ratos...
- Que horror! - arrepiou-se o rato. - Assim vamos morrer de fome.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - Eu não conto morrer de fome.
- Então o que é que vai fazer?
- Também vou mudar de ramo, isto é, vou voar para outra árvore, que fique perto de outro restaurante. Quem nos pode dar uma ajuda é esse homem que aí vem, à procura de folhas e de cascas.
- O quê? Ele tem um restaurante? - estranhou o rato.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - O que ele tem é muita prática de contentores. Se formos atrás dele, havemos de encontrar um que nos agrade.
Assim fizeram. Um pelo ar e o outro pelo chão, seguiram disfarçadamente o homem. E muito se admiraram que a cidade fosse tão grande, os contentores tão abundantes e os restaurantes em tão grande número.
- E não vão todos, de um dia para o outro, transformar-se em lojas de ferragens? - perguntava o ingénuo do rato.
- Não me faça rir - e o pardal riu-se. - Até que o meu amigo se veja obrigado a comer limalha de ferro e rolos de arame, ainda há-de saborear muita paparoca gostosa. Não pense em desgraças e aproveite o que há, enquanto há.
Este pardal era, realmente, um optimista.
António Torrado
A história que é toda mentiras
Certa noite, tomado de insónia, o califa Harun Ar-Rachid mandou chamar o poeta Abu-Nauas e disse-lhe:
- Ó Abu-Nauas, estou agitado e oprimido. A única coisa capaz de me divertir seria ouvir uma história tecida de mentiras da primeira à última palavra. Se puderes improvisar essa história, recompensar-te-ei generosamente; mas se puseres nela um grão de verdade sequer, juro que farei com que a tua cabeça se separe do teu corpo.
Este estranho pedido fez o pobre Abu-Nauas sentir-se bem indisposto, especialmente na região do seu pescoço. Mas ninguém escapa à vontade de um califa. O poeta pediu vinho, bebeu e começou a falar: "Sabei, ó Comandante dos Fiéis, que quando meu pai nasceu, minha avó entregou-me a criança e me pediu que a distraísse. Levei meu pai no ombro e saí para a rua. Mas meu pai chorava, e chorava, e chorava; e nada conseguia acalmá-lo até que viu um cesto de ovos à porta de uma quitanda; então, sossegou de repente e, indicando o cesto, disse: "Quero um desses!" Comprei-lhe um ovo, e ele ficou radiante. Quando voltamos para casa, deixou cair o ovo. O ovo quebrou-se, e dele saiu um pinto. E o pinto começou logo a crescer. Cresceu tanto que se tornou igual a um camelo. Não podeis imaginar, ó Comandante dos Fiéis, a quantidade de alimentos que esse pinto devorava. Meu avô come-çava a se preocupar quando uma boa ideia assomou-lhe à mente. Disse-me ele: "Meu filho, por que não levas esse galo pela manhã à floresta e o carregas de lenha para o fogão? Assim o fiz; mas no dia seguinte, a ave amanheceu doente, com um ferimento nas costas. E imaginai a nossa surpresa quando deste ferimento vimos surgir, todo verde, um broto de nogueira. Dentro de pouco tempo, o broto tornou se uma nogueira gigante, com doze ramos tão grandes e tão esparsos que não era possível ouvir-se de um ramo para outro. Quando chegou a época de colher as nozes, doze homens foram encarregados de proceder à colheita. E quando acabaram, meu avô mandou-me ver se não tinham esquecido algumas frutas entre a folhagem. Examinei a árvore e descobri, apenas, uma noz, na ponta de um ramo. Apanhei o que me pareceu ser uma pedrinha e atirei-a de encontro à noz. A noz caiu. Mas, para meu deslumbramento, o que julgara ser uma pedra, era, na verdade, um torrão de lama seca que começou a se estender numa gigantesca planície até cobrir todos os ramos da nogueira. Naturalmente, meu avô ficou encantado de ver tantas terras adiciona-das às propriedades que já possuía. Mandamos construir escadas e subir o gado para culti-var a nova terra; e tão vasta era ela que precisamos de doze bois trabalhando um mês inteiro para lavrá-la. Quando o solo ficou pronto, perguntamos a alguns lavradores qual seria a plantação mais indicada. Todos aconselharam o sésamo. Semeamos a área de sementes de sésamo. E mal tínhamos acabado de plantar, eis que vieram outros lavradores e perguntaram o que havíamos semeado. Quando respondemos: "Sésamo," puseram-se a rir, dizendo: "Sésamo! Onde se viu plantar sésamo em terra virgem? Deveriam ter plantado melancia, que é a melhor planta para o solo virgem." Meu avô olhou para mim com tristeza e mandou-me apanhar todas as sementes de sésamo que tínhamos semeado na imensa planície. Obedeci e apanhei todas as sementes sem um murmúrio sequer. Quando tinha reunido todas elas, meu avô contou-as e achou que faltava uma, e mandou-me procurá-la. Busquei-a por toda parte, mas não houve meio de encontrá-la. À tardinha, porém, quando voltava para casa desesperado, vi uma formiga arrastando a semente perdida. "Não me escaparás," gritei-lhe, e tentei apoderar-me do sésamo, puxando-o para meu lado; mas a formiga não o largava e o puxava também. Nenhum de nós se dava por vencido até que, por fim, o sésamo partiu-se em dois e, por Alá, um rio de óleo de sésamo espalhou-se entre a formiga e eu. Sem exagero, ó Comandante dos Fiéis, era um rio tão largo e profundo quanto o próprio Tigre. Então, plantamos novamente a terra, desta vez com sementes de melancia. E quando as melancias amadureceram, fui encarregado de vigiá-las. Certo dia de calor, quis comer uma melancia. Passei a vista por todo o campo e escolhi a maior de todas. Depois, saquei da minha adaga e tentei abrir a melancia. Mas a minha adaga entrou na fruta e desapareceu. Não podia eu segui-la, dentro da melancia, e deixar minhas plantações sem vigia. E não queria perder meu facão. Pensei e pensei e então tive uma ideia luminosa: decidi cortar a minha cabeça, com a minha espada, e pô-la por cima da torre de vigia. Assim ficava livre para ir procurar a minha adaga. Sem hesitar, pus meu plano em execução. Quando entrei na melancia, achei-me dentro de uma cidade. Tudo nela era-me novo e desconhecido. As ruas estavam cheias de gente. Todavia, olhando com atenção, verifiquei que todos aqueles homens eram, como eu próprio, sem cabeça, embora parecessem acertar o caminho sem dificuldade. Comecei a andar e, logo depois, dei com uma multidão reunida em volta de um pregoeiro que perguntava em alta voz: "Quem perdeu uma cabeça?" Quando me aproximei, vi que se tratava da minha cabeça. Gritei-lhe: "Essa é a minha cabeça." Mas outros reclamavam a mesma cabeça. Então o pregoeiro gritou: "Lançarei esta cabeça ao ar e, no pescoço onde ela cair, ficará." A cabeça subiu no ar e, quando desceu, veio directamente para o meu pescoço. Olhei em volta de mim e, pela vida do meu senhor, não havia nem cidade, nem campo de melancia, nem nogueira, nem galo do tamanho de um camelo; nem pai recém-nascido, nem nada de todas as coisas que lhe contei, ó Príncipe dos Fiéis!" Harun Ar-Rachid ficou de tal maneira satisfeito que desatou a rir. E acrescentou: "Não é sem razão que te chamam o príncipe dos poetas. Nunca ouvi história tecida de tantas mentiras. E embora pusesses nela alguma verdade lá pelo fim, fizeste-o com tanta habilidade que não te pedirei conta disto e te compensarei conforme mereces." E Harun Ar-Rachid premiou Abu-Nauas com um rico traje de seda e um saco cheiro de ouro.
- Ó Abu-Nauas, estou agitado e oprimido. A única coisa capaz de me divertir seria ouvir uma história tecida de mentiras da primeira à última palavra. Se puderes improvisar essa história, recompensar-te-ei generosamente; mas se puseres nela um grão de verdade sequer, juro que farei com que a tua cabeça se separe do teu corpo.
Este estranho pedido fez o pobre Abu-Nauas sentir-se bem indisposto, especialmente na região do seu pescoço. Mas ninguém escapa à vontade de um califa. O poeta pediu vinho, bebeu e começou a falar: "Sabei, ó Comandante dos Fiéis, que quando meu pai nasceu, minha avó entregou-me a criança e me pediu que a distraísse. Levei meu pai no ombro e saí para a rua. Mas meu pai chorava, e chorava, e chorava; e nada conseguia acalmá-lo até que viu um cesto de ovos à porta de uma quitanda; então, sossegou de repente e, indicando o cesto, disse: "Quero um desses!" Comprei-lhe um ovo, e ele ficou radiante. Quando voltamos para casa, deixou cair o ovo. O ovo quebrou-se, e dele saiu um pinto. E o pinto começou logo a crescer. Cresceu tanto que se tornou igual a um camelo. Não podeis imaginar, ó Comandante dos Fiéis, a quantidade de alimentos que esse pinto devorava. Meu avô come-çava a se preocupar quando uma boa ideia assomou-lhe à mente. Disse-me ele: "Meu filho, por que não levas esse galo pela manhã à floresta e o carregas de lenha para o fogão? Assim o fiz; mas no dia seguinte, a ave amanheceu doente, com um ferimento nas costas. E imaginai a nossa surpresa quando deste ferimento vimos surgir, todo verde, um broto de nogueira. Dentro de pouco tempo, o broto tornou se uma nogueira gigante, com doze ramos tão grandes e tão esparsos que não era possível ouvir-se de um ramo para outro. Quando chegou a época de colher as nozes, doze homens foram encarregados de proceder à colheita. E quando acabaram, meu avô mandou-me ver se não tinham esquecido algumas frutas entre a folhagem. Examinei a árvore e descobri, apenas, uma noz, na ponta de um ramo. Apanhei o que me pareceu ser uma pedrinha e atirei-a de encontro à noz. A noz caiu. Mas, para meu deslumbramento, o que julgara ser uma pedra, era, na verdade, um torrão de lama seca que começou a se estender numa gigantesca planície até cobrir todos os ramos da nogueira. Naturalmente, meu avô ficou encantado de ver tantas terras adiciona-das às propriedades que já possuía. Mandamos construir escadas e subir o gado para culti-var a nova terra; e tão vasta era ela que precisamos de doze bois trabalhando um mês inteiro para lavrá-la. Quando o solo ficou pronto, perguntamos a alguns lavradores qual seria a plantação mais indicada. Todos aconselharam o sésamo. Semeamos a área de sementes de sésamo. E mal tínhamos acabado de plantar, eis que vieram outros lavradores e perguntaram o que havíamos semeado. Quando respondemos: "Sésamo," puseram-se a rir, dizendo: "Sésamo! Onde se viu plantar sésamo em terra virgem? Deveriam ter plantado melancia, que é a melhor planta para o solo virgem." Meu avô olhou para mim com tristeza e mandou-me apanhar todas as sementes de sésamo que tínhamos semeado na imensa planície. Obedeci e apanhei todas as sementes sem um murmúrio sequer. Quando tinha reunido todas elas, meu avô contou-as e achou que faltava uma, e mandou-me procurá-la. Busquei-a por toda parte, mas não houve meio de encontrá-la. À tardinha, porém, quando voltava para casa desesperado, vi uma formiga arrastando a semente perdida. "Não me escaparás," gritei-lhe, e tentei apoderar-me do sésamo, puxando-o para meu lado; mas a formiga não o largava e o puxava também. Nenhum de nós se dava por vencido até que, por fim, o sésamo partiu-se em dois e, por Alá, um rio de óleo de sésamo espalhou-se entre a formiga e eu. Sem exagero, ó Comandante dos Fiéis, era um rio tão largo e profundo quanto o próprio Tigre. Então, plantamos novamente a terra, desta vez com sementes de melancia. E quando as melancias amadureceram, fui encarregado de vigiá-las. Certo dia de calor, quis comer uma melancia. Passei a vista por todo o campo e escolhi a maior de todas. Depois, saquei da minha adaga e tentei abrir a melancia. Mas a minha adaga entrou na fruta e desapareceu. Não podia eu segui-la, dentro da melancia, e deixar minhas plantações sem vigia. E não queria perder meu facão. Pensei e pensei e então tive uma ideia luminosa: decidi cortar a minha cabeça, com a minha espada, e pô-la por cima da torre de vigia. Assim ficava livre para ir procurar a minha adaga. Sem hesitar, pus meu plano em execução. Quando entrei na melancia, achei-me dentro de uma cidade. Tudo nela era-me novo e desconhecido. As ruas estavam cheias de gente. Todavia, olhando com atenção, verifiquei que todos aqueles homens eram, como eu próprio, sem cabeça, embora parecessem acertar o caminho sem dificuldade. Comecei a andar e, logo depois, dei com uma multidão reunida em volta de um pregoeiro que perguntava em alta voz: "Quem perdeu uma cabeça?" Quando me aproximei, vi que se tratava da minha cabeça. Gritei-lhe: "Essa é a minha cabeça." Mas outros reclamavam a mesma cabeça. Então o pregoeiro gritou: "Lançarei esta cabeça ao ar e, no pescoço onde ela cair, ficará." A cabeça subiu no ar e, quando desceu, veio directamente para o meu pescoço. Olhei em volta de mim e, pela vida do meu senhor, não havia nem cidade, nem campo de melancia, nem nogueira, nem galo do tamanho de um camelo; nem pai recém-nascido, nem nada de todas as coisas que lhe contei, ó Príncipe dos Fiéis!" Harun Ar-Rachid ficou de tal maneira satisfeito que desatou a rir. E acrescentou: "Não é sem razão que te chamam o príncipe dos poetas. Nunca ouvi história tecida de tantas mentiras. E embora pusesses nela alguma verdade lá pelo fim, fizeste-o com tanta habilidade que não te pedirei conta disto e te compensarei conforme mereces." E Harun Ar-Rachid premiou Abu-Nauas com um rico traje de seda e um saco cheiro de ouro.
(tradução brasileira)
16/04/2011
O astrónomo
Um astrónomo gostava de fazer passeios noturnos para olhar as estrelas. Certa vez ia tão distraído que caiu num poço. Enquanto tentava sair, seus gritos de socorro atraíram a atenção de um homem que passava. Ao ser informado do que havia acontecido, o homem riu e disse:
- Meu bom amigo, tanto o senhor se esforçou para olhar o céu que não lembrou de olhar o que tem debaixo dos pés!
Moral: É fácil deixar de ver o óbvio.
- Meu bom amigo, tanto o senhor se esforçou para olhar o céu que não lembrou de olhar o que tem debaixo dos pés!
Moral: É fácil deixar de ver o óbvio.
Fábulas de Esopo
14/04/2011
O Rapaz e o Espelho
Certo dia, um rapaz desiludido resolveu seguir o exemplo dos "contos da infância". Colocou-se frente ao seu espelho e perguntou:
- Querido espelho, olhe para mim e me diga: Existe alguém mais infeliz do que eu?
- Com certeza, respondeu o espelho, existe alguém mais triste que tu neste momento. E este alguém sou eu.
O rapaz olhou espantado. Não esperasse que um espelho falasse, e ainda contra ele. Mas o espelho prosseguiu:
- Tu não imaginas a dor que eu sinto ao ver, no meu reflexo, uma pessoa que deixou seus problemas tomarem conta de sua vida, que não tem mais vontade de lutar e principalmente que não consegue ver dentro de si as suas qualidades suas capacidades, seu talento. Queria que estivesse no meu lugar pra ver.
- Tu és uma pessoa tão inteligente, que fala para todos que tem um Deus, e tantas vezes falou do amor de Deus, agora se mostra tão derrotado. Deus é tão pequeno assim em tua vida para que tu te sintas tão inferior assim?
- É pena que tu não vejas através de mim toda a tua facilidade em lidar com as pessoas, o quanto é expressiva a tua voz e tua palavra, quanto teu coração é forte, e o quanto as pessoas te amam. Olhe para ti! Levanta essa cabeça, pois dificuldades todos temos, assim como todos guardam dentro de si algo especial para dar, a capacidade de tornar a própria vida prazerosa.
Quantas são as pessoas que gostariam de ser como tu és: saudável, inteligente e com toda a vida pela frente! e no entanto, muitas delas são felizes e agradecem à Deus pelas suas vidas!
Fez uma pausa e continuou desabafando:
- Use a tua sensibilidade - ela é essencial para a vida. Motive-se: ao acordar pela manhã, pense algo do tipo: "hoje meu dia será produtivo, alegre e cheio de vida, pois tenho Deus comigo." . Faça isso com amor no coração e concentre em teus objetivos. De hoje em diante, quero ver outra imagem refletida em mim. Uma imagem de alegria interior.
***
A vida é tão curta. Não percas tempo com os momentos ruins. Faça deles experiências positivas para continuar tua vida. Ser feliz depende de uma vida em comunhão com Deus e em harmonia contigo mesmo. O que vem depois disso, são apenas resultados.
Tua postura diante da vida determina o rumo a tomar.
12/04/2011
O asno e a sua sombra
Um viajante alugou um Burro de carga que o conduziria a uma distante localidade. Estando o dia muito quente, e o sol brilhando com toda sua força, o viajante resolveu parar para um descanso, e procurou abrigo sob a sombra do animal.
Mas, como só havia lugar para uma pessoa debaixo do animal, e como tanto o viajante quanto o dono do Asno reinvidicavam para si aquele espaço, uma violenta discussão surgiu entre os dois. E cada um se achava no direito de tê-lo.
O dono defendia que ele alugara apenas o asno e não a sua sombra. O viajante entendia que ele ao alugar o animal, tinha direito a ambos, animal e sombra.
A disputa passou de palavras para agressões, e enquanto ambos brigavam ferozmente, o Asno fugiu em disparada para longe.
Moral da História:
Numa discussão em torno do detalhe, frequentemente nos desviamos do principal assunto.
Mas, como só havia lugar para uma pessoa debaixo do animal, e como tanto o viajante quanto o dono do Asno reinvidicavam para si aquele espaço, uma violenta discussão surgiu entre os dois. E cada um se achava no direito de tê-lo.
O dono defendia que ele alugara apenas o asno e não a sua sombra. O viajante entendia que ele ao alugar o animal, tinha direito a ambos, animal e sombra.
A disputa passou de palavras para agressões, e enquanto ambos brigavam ferozmente, o Asno fugiu em disparada para longe.
Moral da História:
Numa discussão em torno do detalhe, frequentemente nos desviamos do principal assunto.
Fábulas de Esopo
A Cabra e o Cabreiro
Chamava um cabreiro a suas cabras para levá-las ao estábulo.
Uma delas, ao passar por um rico pasto se deteve, e o cabreiro lhe jogou uma pedra, porém com tão má sorte que lhe quebrou um chifre. Então o cabreiro lhe suplicou que não contasse ao patrão, ao que a cabra respondeu:
- Quisera eu ficar calada, mas não poderia! Bem claro está à vista meu chifre quebrado.
Moral da Estória:
Nunca negues o que bem se vê.
Uma delas, ao passar por um rico pasto se deteve, e o cabreiro lhe jogou uma pedra, porém com tão má sorte que lhe quebrou um chifre. Então o cabreiro lhe suplicou que não contasse ao patrão, ao que a cabra respondeu:
- Quisera eu ficar calada, mas não poderia! Bem claro está à vista meu chifre quebrado.
Moral da Estória:
Nunca negues o que bem se vê.
Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)
(Século VI a.c.)
11/04/2011
O urso e as abelhas
Um urso topou com uma arvore caída que servia de depósito de mel para um enxame de abelhas. Começou a farejar o tronco quando uma das abelhas do enxame voltou do campo de trevos. Adivinhando o que ele queria, deu uma picada daquelas no urso e depois desapareceu no buraco do tronco. O urso ficou louco de raiva e se pôs a arranhar o tronco com as garras na esperança de destruir o ninho. A única coisa que conseguiu foi fazer o enxame inteiro sair atrás dele. O urso fugiu a toda a velocidade e só se salvou porque mergulhou de cabeça num lago.
Moral: Mais vale suportar um só ferimento em silêncio
que perder o controle e acabar todo machucado.
Moral: Mais vale suportar um só ferimento em silêncio
que perder o controle e acabar todo machucado.
Fábulas de Esopo
08/04/2011
Más combinações
O macaco fez-se amigo do cágado e propôs-lhe:
- Todos os bons amigos se visitam. Um dia tu convidas-me para ir a tua casa e ofereces-me de jantar e, no dia seguinte, eu convido-te para vires a minha casa e retribuo-te o jantar. E assim por diante... Concordas?
O cágado concordou. Preparou um excelente banquete e ofereceu-o ao macaco que se empanturrou até não poder mais.
- Amanhã dou-te eu de jantar - disse o macaco macacão, arrotando um grande arroto, lá bem do fundo do estômago repleto.
Quando o cágado entrou em casa do macaco, a refeição estava pronta a servir, mas numa mesa muito alta a que só o macaco chegava.
- Serve-te à tua vontade - disse-lhe ele.
O cágado pôs-se em bicos de pés. Nem conseguia ver a comida com que o macaco se alambazava. Mas como tinha muito bom feitio não disse nada. Nem comeu.
- Amanhã é a tua vez de me receberes - lembrou o macaco.
Novo banquete preparado pelo cágado. Nova barrigada do macaco.
No dia seguinte, em casa do macaco, o jantar servido na mesa muito alta voltou a deixar o cágado com a barriga a dar horas. Aquilo parecia de propósito. E era.
O bom do cágado, embora delicado e discreto, achou que ali havia abuso. E havia.
- Amanhã tenho uma surpresa para ti - disse o cágado ao macaco. - Vou servir-te o jantar ao ar livre. Tudo comidinha fresca...
O macaco, grande glutão, arregalou os olhos de contente. Aquele contrato estava a sair-lhe de feição.
Mas, no dia seguinte, quando viu os vários pratos de que se compunha o banquete cada um em cima de um pedregulho ou ilhota do lago, que servira de piscina ao cágado, o macaco desanimou.
- Como é que eu lhes chego? - perguntou, desconsolado, o macaco.
- Nada como eu. A água está óptima - respondeu-lhe o cágado, a rir-se baixinho.
Ora, como se sabe, os macacos detestam a água...
E assim se desfez a combinação entre o macaco e o cágado. Também se não perdeu grande coisa.
- Todos os bons amigos se visitam. Um dia tu convidas-me para ir a tua casa e ofereces-me de jantar e, no dia seguinte, eu convido-te para vires a minha casa e retribuo-te o jantar. E assim por diante... Concordas?
O cágado concordou. Preparou um excelente banquete e ofereceu-o ao macaco que se empanturrou até não poder mais.
- Amanhã dou-te eu de jantar - disse o macaco macacão, arrotando um grande arroto, lá bem do fundo do estômago repleto.
Quando o cágado entrou em casa do macaco, a refeição estava pronta a servir, mas numa mesa muito alta a que só o macaco chegava.
- Serve-te à tua vontade - disse-lhe ele.
O cágado pôs-se em bicos de pés. Nem conseguia ver a comida com que o macaco se alambazava. Mas como tinha muito bom feitio não disse nada. Nem comeu.
- Amanhã é a tua vez de me receberes - lembrou o macaco.
Novo banquete preparado pelo cágado. Nova barrigada do macaco.
No dia seguinte, em casa do macaco, o jantar servido na mesa muito alta voltou a deixar o cágado com a barriga a dar horas. Aquilo parecia de propósito. E era.
O bom do cágado, embora delicado e discreto, achou que ali havia abuso. E havia.
- Amanhã tenho uma surpresa para ti - disse o cágado ao macaco. - Vou servir-te o jantar ao ar livre. Tudo comidinha fresca...
O macaco, grande glutão, arregalou os olhos de contente. Aquele contrato estava a sair-lhe de feição.
Mas, no dia seguinte, quando viu os vários pratos de que se compunha o banquete cada um em cima de um pedregulho ou ilhota do lago, que servira de piscina ao cágado, o macaco desanimou.
- Como é que eu lhes chego? - perguntou, desconsolado, o macaco.
- Nada como eu. A água está óptima - respondeu-lhe o cágado, a rir-se baixinho.
Ora, como se sabe, os macacos detestam a água...
E assim se desfez a combinação entre o macaco e o cágado. Também se não perdeu grande coisa.
07/04/2011
O Jovem Mestre de Confúcio
Confúcio estava muito cansado de ler e decidiu descansar um pouco. Mas o que fazer? Mesmo quando descansava, ele queria fazer alguma coisa. Resolveu então sair num carro de búfalo para ir até o Monte Jing. Enquanto os búfalos negros avançavam pela estrada, ele admirava a primavera que tinha chegado. E pouco depois, ele avistou a montanha, com um colar de neblina. Confúcio ficou muito contente. Ele tinha certeza de que do alto poderia avistar todo a planície, até se perder de vista, com a crista das colinas perfiladas mais adiante, uma depois da outra, até o horizonte.
Estava tão distraído que nem percebeu um menino fazendo barro com um balde de água, para erguer uma muralha de brinquedo no meio da estrada. Confúcio achou muito estranho, pois não tinha passado por nenhuma casa por perto. Mas não se importou. A casa onde o menino morava podia estar entre as árvores. Ele ergueu o braço e deu um grito para que os búfalos avançassem, achando que o som de sua voz serviria também para alertar o menino, pois, afinal de contas, o meio da estrada não é o melhor lugar para se brincar.
O menino que construía a miniatura da muralha virou a cabeça, avistou os búfalos puxando a carroça e depois o condutor. Em seguida, pegou mais um pouco de barro e completou a edificação, sentando-se atrás dela, como se assim estivesse protegido. Confúcio ficou bravo:
- Ei, não vê que estou passando? Sai do caminho, quero chegar logo ao Monte Jing
O menino caiu na risada:
- É o carro de búfalo que tem de contornar a muralha. Onde já se viu uma muralha sair do lugar para dar passagem a um carro de búfalo, de boi ou outro qualquer!
Ouvindo isso, Confúcio teve duas reações. A primeira, de raiva. Que falta de respeito com os mais velhos! E também de admiração: o menino tinha dado uma boa resposta. Então contornou a muralha - para isso teve de entrar no mato - e parou ao lado do menino. Perguntou quantos anos ele tinha:
-Sete – foi a resposta.
- Só sete? Apesar de sete, me deu há pouco uma boa resposta. Qual é o seu nome?
- Não tenho nome nenhum.
Confúcio olhou bem para o menino e pensou, ele é inteligente, mas agora vai se ver comigo. Pensou isso porque Confúcio gostava também de brincar, só que com palavras e idéias. E queria saber até onde uma criança de sete anos conseguiria acompanhá-lo nesse jogo.
- Sem Nome, me diz uma coisa: conhece montanha sem pedra? Pé sem dedo? Céu sem passarinho? Água sem peixe? Porta que não fecha? Égua sem potrinho? E fogo sem fumaça, conhece? Conhece homem sem mulher? Mulher sem marido? Macho sem fêmea? Árvore sem galho? Cidade sem governo? Gente sem nome?
Ele disse, bem devagar, como se mastigasse as palavras. O menino ergueu a cabeça e respondeu, bem devagar, como se cuspisse a resposta:
- Uma montanha de terra não tem pedras. Pé-de-mesa não tem dedo. No céu da boca pássaro não voa. A água do poço é sem peixe. Porta sem batente não fecha e um cavalo de madeira não dá cria. Além disso, fogo-fátuo não solta fumaça. Imortal não tem mulher. Fada não tem marido. Solteiro vive sem mulher. Árvore seca não dá galhos. Uma cidade abandonada não tem prefeito. E menino, como eu, não tem nome.
Confúcio engoliu em seco. O menino tinha resposta para tudo:
- Você tem resposta para tudo. Vamos sair juntos pelo mundo, para que ele seja em tudo igual?
- O mundo não pode ser igualado. No alto, erguem-se as montanhas, embaixo, correm os rios e estende-se o mar. De um lado, uns governam, mas do outro, estão os governados. Por isso o mundo não pode ser igualado. Poderia ser mais igual, isso, sim!
- Se nós dois aplanássemos as montanhas, teria terra e rocha para encher o mar e os rios. Nós poderíamos também expulsar os que têm tudo e libertar os escravos. Nesse caso, o mundo seria igualizado.
- Se aplanássemos as montanhas, onde os animais se refugiariam? Se enchêssemos o mar e os rios, onde nadariam os peixes? E se expulsássemos os que têm tudo, quem iria lhe dar emprego? E se todos os escravos fossem libertados, por que continuariam a lhe pedir conselhos?
- Certo, certo – exclamou Confúcio – você consegue responder as questões mais complicadas, mas duvido de que seja capaz de responder as mais simples. O que é esquerda e direita?
- O Leste e o Oeste – respondeu o menino*.
- O que é interior e o que é exterior?
- O Sul e o Norte – respondeu ele.
- Quem é o pai, a mãe, o marido e a esposa?
- O céu é o pai, a terra, a mãe, sol é o marido, a lua, esposa – disse o menino.
- De onde vêm as nuvens e a neblina?
Ele tinha a resposta na ponta da língua:
- As nuvens são vapores de água que subem da terra e que voltam para a terra na gota de chuva, e a neblina sobe da terra, mas tem preguiça de chover.
- Quando o galo vira faisão? – perguntou Confúcio.
- Quando ele chega perto do brejo e da montanha.
- E quando o cão vira raposa?
- Quando ele chega perto das colinas e montes.
- Bom! – disse Confúcio - você não perde uma! Mas será que um menino de sete anos pode adivinhar isso aqui: a mulher está mais perto de seu marido que uma mãe de seu filho?
O menino riu novamente, como se achasse a pergunta muito fácil:
- A mãe está mais perto de seu filho que uma mulher, de seu marido.
- Ah, essa, não! – disse Confúcio – É o contrário. A mulher está mais perto de seu marido do que uma mãe de seu filho. E quer saber por quê? Porque durante sua vida a mulher e seu marido dormem juntos, na mesma cama, e cada um tem um travesseiro ao lado do outro. E quando morrem, estão lado a lado, nos seus túmulos.
- Quem perdeu foi o senhor - disse o menino – porque o que eu disse é certo, pois é o contrário do contrário: a mãe está mais perto de seu filho que uma mulher, de seu marido. E provo o que estou dizendo: a mãe é para o filho o que as raízes são para as árvores. Uma mulher é para o seu marido o que as rodas são para o carro. Quando a mãe morre, o filho é órfão para sempre. Que nem a árvore ao morrer: secam seus galhos e suas folhas. Mas se uma mulher morre, seu marido pode se casar com outra mulher e recuperar a alegria. Do mesmo jeito, um carro, quando perde as rodas, pode conseguir outras novas. Ou então, todo o carro pode ser novo. O senhor me desculpe, mas só um louco diria que uma mulher está mais perto de seu marido do que de seu filho.
Dessa vez, Confúcio pareceu confuso. O menino aproveitou a oportunidade e interrogou o mestre:
- Respondi todas as suas perguntas, agora, peço que responda as minhas. Como os gansos e os patos conseguem nadar? Como os grous e os gansos selvagens conseguem gritar? Como os pinheiros e os ciprestes conseguem ficar sempre verdes, tanto no verão como no inverno?
Confúcio respirou fundo. As perguntas eram fáceis. Superfáceis.
- Porque eles têm as patas espalmadas.
O menino balançou a cabeça:
- Não é uma boa razão. Primeiro, pata não pode ser espalmada, porque palma existe é na mão. E as tartarugas também nadam, e não têm as patas "espalmadas".
Pego de surpresa, Confúcio disse:
- Pois é... - mas se recuperou logo, passando para a pergunta seguinte: - Como têm um pescoço comprido, os grous e os gansos selvagens podem gritar.
O menino sacudiu a cabeça:
- Também não é uma boa resposta. As rãs também gritam e elas não têm pescoço comprido.
De novo Confúcio ficou mudo. E depois conseguiu dizer:
- Pois é... - e passou para a última pergunta – como têm um cerne duro, os pinheiros e os ciprestes ficam sempre verdes, tanto no verão como no inverno.
Mais uma vez o menino sacudiu a cabeça:
- O senhor nunca dá a boa razão ou a boa resposta: o bambu também fica sempre verde, no inverno e no verão, e ele nem cerne tem, pois é oco por dentro.
Confúcio, cada vez mais confuso, calou-se, enquanto o menino fazia as últimas perguntas que tinha para fazer:
- Quantas estrelas tem no céu?
Confúcio pareceu fugir da pergunta:
- Estamos falando da terra e não do céu.
- Certo, não vamos falar do céu. Quantas casas existem sobre a terra?
Confúcio ficou nervoso:
- Melhor não falar nem do céu nem da terra. Vamos falar das coisas que estão diante dos olhos.
O menino riu novamente:
- Ah, certo – disse – vamos falar das coisas que estão diante de nossos olhos: quantos pelos o senhor tem nas sobrancelhas?
Confúcio pareceu cansado e suspirou:
- Desisto, eu não consigo ganhar, nem fazendo perguntas, nem respondendo as que me faz. Acho agora que temos de temer uma criança. Você quer seu meu mestre?
O menino continuou a brincar em silêncio na estrada e não respondeu.
Estava tão distraído que nem percebeu um menino fazendo barro com um balde de água, para erguer uma muralha de brinquedo no meio da estrada. Confúcio achou muito estranho, pois não tinha passado por nenhuma casa por perto. Mas não se importou. A casa onde o menino morava podia estar entre as árvores. Ele ergueu o braço e deu um grito para que os búfalos avançassem, achando que o som de sua voz serviria também para alertar o menino, pois, afinal de contas, o meio da estrada não é o melhor lugar para se brincar.
O menino que construía a miniatura da muralha virou a cabeça, avistou os búfalos puxando a carroça e depois o condutor. Em seguida, pegou mais um pouco de barro e completou a edificação, sentando-se atrás dela, como se assim estivesse protegido. Confúcio ficou bravo:
- Ei, não vê que estou passando? Sai do caminho, quero chegar logo ao Monte Jing
O menino caiu na risada:
- É o carro de búfalo que tem de contornar a muralha. Onde já se viu uma muralha sair do lugar para dar passagem a um carro de búfalo, de boi ou outro qualquer!
Ouvindo isso, Confúcio teve duas reações. A primeira, de raiva. Que falta de respeito com os mais velhos! E também de admiração: o menino tinha dado uma boa resposta. Então contornou a muralha - para isso teve de entrar no mato - e parou ao lado do menino. Perguntou quantos anos ele tinha:
-Sete – foi a resposta.
- Só sete? Apesar de sete, me deu há pouco uma boa resposta. Qual é o seu nome?
- Não tenho nome nenhum.
Confúcio olhou bem para o menino e pensou, ele é inteligente, mas agora vai se ver comigo. Pensou isso porque Confúcio gostava também de brincar, só que com palavras e idéias. E queria saber até onde uma criança de sete anos conseguiria acompanhá-lo nesse jogo.
- Sem Nome, me diz uma coisa: conhece montanha sem pedra? Pé sem dedo? Céu sem passarinho? Água sem peixe? Porta que não fecha? Égua sem potrinho? E fogo sem fumaça, conhece? Conhece homem sem mulher? Mulher sem marido? Macho sem fêmea? Árvore sem galho? Cidade sem governo? Gente sem nome?
Ele disse, bem devagar, como se mastigasse as palavras. O menino ergueu a cabeça e respondeu, bem devagar, como se cuspisse a resposta:
- Uma montanha de terra não tem pedras. Pé-de-mesa não tem dedo. No céu da boca pássaro não voa. A água do poço é sem peixe. Porta sem batente não fecha e um cavalo de madeira não dá cria. Além disso, fogo-fátuo não solta fumaça. Imortal não tem mulher. Fada não tem marido. Solteiro vive sem mulher. Árvore seca não dá galhos. Uma cidade abandonada não tem prefeito. E menino, como eu, não tem nome.
Confúcio engoliu em seco. O menino tinha resposta para tudo:
- Você tem resposta para tudo. Vamos sair juntos pelo mundo, para que ele seja em tudo igual?
- O mundo não pode ser igualado. No alto, erguem-se as montanhas, embaixo, correm os rios e estende-se o mar. De um lado, uns governam, mas do outro, estão os governados. Por isso o mundo não pode ser igualado. Poderia ser mais igual, isso, sim!
- Se nós dois aplanássemos as montanhas, teria terra e rocha para encher o mar e os rios. Nós poderíamos também expulsar os que têm tudo e libertar os escravos. Nesse caso, o mundo seria igualizado.
- Se aplanássemos as montanhas, onde os animais se refugiariam? Se enchêssemos o mar e os rios, onde nadariam os peixes? E se expulsássemos os que têm tudo, quem iria lhe dar emprego? E se todos os escravos fossem libertados, por que continuariam a lhe pedir conselhos?
- Certo, certo – exclamou Confúcio – você consegue responder as questões mais complicadas, mas duvido de que seja capaz de responder as mais simples. O que é esquerda e direita?
- O Leste e o Oeste – respondeu o menino*.
- O que é interior e o que é exterior?
- O Sul e o Norte – respondeu ele.
- Quem é o pai, a mãe, o marido e a esposa?
- O céu é o pai, a terra, a mãe, sol é o marido, a lua, esposa – disse o menino.
- De onde vêm as nuvens e a neblina?
Ele tinha a resposta na ponta da língua:
- As nuvens são vapores de água que subem da terra e que voltam para a terra na gota de chuva, e a neblina sobe da terra, mas tem preguiça de chover.
- Quando o galo vira faisão? – perguntou Confúcio.
- Quando ele chega perto do brejo e da montanha.
- E quando o cão vira raposa?
- Quando ele chega perto das colinas e montes.
- Bom! – disse Confúcio - você não perde uma! Mas será que um menino de sete anos pode adivinhar isso aqui: a mulher está mais perto de seu marido que uma mãe de seu filho?
O menino riu novamente, como se achasse a pergunta muito fácil:
- A mãe está mais perto de seu filho que uma mulher, de seu marido.
- Ah, essa, não! – disse Confúcio – É o contrário. A mulher está mais perto de seu marido do que uma mãe de seu filho. E quer saber por quê? Porque durante sua vida a mulher e seu marido dormem juntos, na mesma cama, e cada um tem um travesseiro ao lado do outro. E quando morrem, estão lado a lado, nos seus túmulos.
- Quem perdeu foi o senhor - disse o menino – porque o que eu disse é certo, pois é o contrário do contrário: a mãe está mais perto de seu filho que uma mulher, de seu marido. E provo o que estou dizendo: a mãe é para o filho o que as raízes são para as árvores. Uma mulher é para o seu marido o que as rodas são para o carro. Quando a mãe morre, o filho é órfão para sempre. Que nem a árvore ao morrer: secam seus galhos e suas folhas. Mas se uma mulher morre, seu marido pode se casar com outra mulher e recuperar a alegria. Do mesmo jeito, um carro, quando perde as rodas, pode conseguir outras novas. Ou então, todo o carro pode ser novo. O senhor me desculpe, mas só um louco diria que uma mulher está mais perto de seu marido do que de seu filho.
Dessa vez, Confúcio pareceu confuso. O menino aproveitou a oportunidade e interrogou o mestre:
- Respondi todas as suas perguntas, agora, peço que responda as minhas. Como os gansos e os patos conseguem nadar? Como os grous e os gansos selvagens conseguem gritar? Como os pinheiros e os ciprestes conseguem ficar sempre verdes, tanto no verão como no inverno?
Confúcio respirou fundo. As perguntas eram fáceis. Superfáceis.
- Porque eles têm as patas espalmadas.
O menino balançou a cabeça:
- Não é uma boa razão. Primeiro, pata não pode ser espalmada, porque palma existe é na mão. E as tartarugas também nadam, e não têm as patas "espalmadas".
Pego de surpresa, Confúcio disse:
- Pois é... - mas se recuperou logo, passando para a pergunta seguinte: - Como têm um pescoço comprido, os grous e os gansos selvagens podem gritar.
O menino sacudiu a cabeça:
- Também não é uma boa resposta. As rãs também gritam e elas não têm pescoço comprido.
De novo Confúcio ficou mudo. E depois conseguiu dizer:
- Pois é... - e passou para a última pergunta – como têm um cerne duro, os pinheiros e os ciprestes ficam sempre verdes, tanto no verão como no inverno.
Mais uma vez o menino sacudiu a cabeça:
- O senhor nunca dá a boa razão ou a boa resposta: o bambu também fica sempre verde, no inverno e no verão, e ele nem cerne tem, pois é oco por dentro.
Confúcio, cada vez mais confuso, calou-se, enquanto o menino fazia as últimas perguntas que tinha para fazer:
- Quantas estrelas tem no céu?
Confúcio pareceu fugir da pergunta:
- Estamos falando da terra e não do céu.
- Certo, não vamos falar do céu. Quantas casas existem sobre a terra?
Confúcio ficou nervoso:
- Melhor não falar nem do céu nem da terra. Vamos falar das coisas que estão diante dos olhos.
O menino riu novamente:
- Ah, certo – disse – vamos falar das coisas que estão diante de nossos olhos: quantos pelos o senhor tem nas sobrancelhas?
Confúcio pareceu cansado e suspirou:
- Desisto, eu não consigo ganhar, nem fazendo perguntas, nem respondendo as que me faz. Acho agora que temos de temer uma criança. Você quer seu meu mestre?
O menino continuou a brincar em silêncio na estrada e não respondeu.
Lenda do Vale da Morte
A Lenda na História é tão impressionante e viva como a luz da Lua espelhada no mar. Quem a contempla admira-se e deixa-se arrastar pelo seu misterioso encanto. Mas quem consegue separá-la? Podia o mar secar-se, mas a luz prateada ficaria ainda a atestar a sua encantada presença. Por isso o povo admira e espeita a Lenda. Por vezes, a sua ingenuidade toca as raias do impossível. Mas assim mesmo o povo a recebe e guarda como espelho fiel das suas gratas tradições.
O ano de 1090, na nossa Península, assinalou várias lutas entre mouros e cristãos. Todavia, a lenda que evocamos incide apenas numa batalha travada, por essa época, nas terras de além-Tejo, junto à antiga povoação de Pombal.
Iusufe, a quem os mouros da província pediram socorro, veio com o seu exército disposto a vencer. Encorajados com esta poderosa presença, a luta começou mais dura, embatendo sem cessar a espada do cristão contra o alfange do muçulmano.
A tarde chegara no auge da contenda, mostrando-se assustada com a sorte dos cristãos. O número destes era indiscutivelmente menor. O seu ímpeto era, contudo, violento. Combatia-se à espada, porque as lanças já estavam quebradas e postas de parte, por inúteis. Jaziam no chão milhares de cadáveres, de ambos os lados. Gemiam os feridos, sem que fosse possível arranjar tempo para os recolher. Para longe haviam fugido os velhos, as mulheres e as crianças, numa correria sem norte, levando no cérebro a repercussão dos gritos da batalha. Mas o número venceu como força viva. Entusiasmados com a vitória, os muçulmanos perseguiram os poucos fugitivos, saquearam a pequena povoação e deitaram fogo ao arraial dos que combatiam sob a bandeira de Cristo. Depois, soltando gritos de entusiasmo, embora com bastantes baixas, os homens de Maomé abandonaram o campo que os corvos já sobrevoavam, embriagados com o cheiro do sangue de que a terra estava empapada. Era pois esse hálito da terra, pestilento, que subia no ar, dando-se à tarde de sol claro, que não alcançava coragem para se finar de horror…
Os gritos da moirama morreram ao longe. Indicando o caminho que haviam levado, apenas as nuvens de pó que as patas dos cavalos levantavam do chão na sua corrida entusiasmada. Foi então que uma jovem de expressão aflita, o rosto lavado em lágrimas, se esgueirou por detrás de um arbusto onde as chamas do fogo ateado pelos mouros não haviam tocado. Como louca, correu para o campo onde os corpos jaziam destroçados e quase putrefactos. Olhava-os um a um, quando eles tinham a cabeça ligada aos ombros, pois não raro se viam cabeças sem corpos e corpos sem cabeças. Tremendo de pavor, com uma das mãos sobre a boca, a sufocar gritos de pesadelo e a impedir a entrada franca desse ar impuro, a jovem dir-se-ia um fantasma, se não fosse o seu choro impressionante. Aqui e além ouviam-se gemidos. Logo a jovem corria certificar-se donde eles surgiam. Por fim, exausta, sentou-se no chão, cobrindo o rosto com as mãos.
Então, nesse inferno, alguém de súbito chamou o seu nome, ao longe:
— Teresa!... Teresa!... Que fazes aí? Foge, que te matas!
Ela olhou na direcção em que a chamavam. Olhou com medo. Mas então o seu choro tornou-se um grito:
— Afonso! Afonso! Viste o Gonçalo?
— Não! Vai-te para onde foram as outras mulheres! Isto aqui não serve já para nimguém!
Ela correu para o homem que surgia a atestar que ainda havia sobreviventes. Ele foi ao seu encontro.
— Teresa, não sejas louca! Vai-te embora!
— Para onde?
— Para junto dos teus!
— Meus pais morreram dentro de casa…
Um choro convulso cortou-lhe a frase na garganta.
— Acalma-te!
— Quero procurar o Gonçalo!
— Aqui? Mas se isto é um inferno!
— Ainda estão alguns vivos! É preciso salvá-los! E quem sabe se o Gonçalo…
Afonso mordeu os lábios.
— Tens razão. Perdoa a minha cobardia. Precisamos salvar os que puderem resistir ainda. Mas só nós dois somos poucos!
— Eu sei. Mas outros virão depois, agora que esses malvados partiram…
Afonso olhou a jovem bem de frente.
— Teresa... Não contes muito com os outros. Eles sabem que os outros partiram, mas não ignoram também que a peste ficou... E não sei qual desses inimigos será pior...
Teresa agarrou um dos braços de Afonso.
— Eu ficarei! Quero encontrar o meu marido. Tenho um mês de casada. Um mês!... E não posso acreditar que estou já viúva...
— Sê razoável, Teresa! Aqui só encontrarás morte!
Resoluta, a rapariga largou o braço do companheiro.
— Pois se tens medo, vai-te! Eu o procurarei sozinha! E aqueles que, feridos, puderem seguir-me, eu os levarei comigo!
Afonso olhou-a com admiração profunda. Não estando louca, aquela jovem teria de ser sublime. Respirou o melhor que pôde e baixou os olhos, vencido.
— Teresa, sabes o que acabava de fazer quando te vi?
— Não.
— Enterrava meu pai e minha mãe! Descobri-os quando tentava sair deste caos. Voltei para trás... e aqui estou. A tarefa será dura, mas talvez proveitosa. Coragem, Teresa! Prepara-te para enfrentares o próprio inferno!
Quando o Sol se despediu atrás do monte, disse adeus baixinho a essa jovem de alma forte que continuava na lúgubre pesquisa, separando os feridos dos mortos, tropeçando em cadáveres, já no princípio de decomposição, olhos já habituados a contemplarem aquela tragédia. Mas a noite tomava o lugar do dia e Afonso compreendeu que era impossível continuarem ali, nesse vale da morte. Então foi ter com a sua companheira de infância.
— Teresa... vamos levar para junto daqueles arbustos os feridos que se podem ainda arrastar. A noite não tarda e nós estamos cansados. Logo que o sol rompa voltaremos aqui.
Teresa olhou-o em silêncio. Depois contemplou o campo juncado de corpos, amortalhados pela penumbra envolvente. E decidiu-se.
— Tens razão. Descansaremos umas horas. E que Deus permita que, esse tempo, eu não venha a lamentá-lo como perdido!
E quem pudesse de longe espreitar esse campo de tormenta ao lusco-fusco, teria descoberto duas sombras que agiam como fantasmas, levando um após outro os feridos que gemiam as suas dores.
Mais cedo um pouco do que no dia anterior, o Sol despontou, como pressuroso de vir ajudar quem tanto necessitava dele. Mas encontrou já Nesa e Afonso caminhando na busca dos feridos e no enterramento de uns mortos. De súbito, Teresa deu um grito:
— Afonso! Encontrei-o!
Afonso correu para a sua beira.
— Espera, Teresa, não lhe toques! Eu o livrarei desses corpos que estão sobre ele!
Um gemido fez-se ouvir. Teresa gritou:
— Gonçalo ainda vive! Salva-o, Afonso, salva-o!
Afonso retirou-o com jeito e ambos saíram para fora do campo. Deitaram-no no chão. O ferido tornou a gemer. Teresa aproximou o rosto daquele rosto quase irreconhecível. E pediu baixinho:
— Gonçalo! Desperta! Sou eu... a tua Teresa!
Gonçalo abriu os olhos e respirou a custo. Ela tornou com maior veemência:
— Gonçalo! Estou aqui... junto de ti!
O rapaz olhou-a, mas no seu olhar baço não havia vislumbre de entendimento.
Ela abafou um grito:
— Não me reconheceu!
Vendo-a esmorecer, Afonso tentou encorajá-la.
— Então, Teresa! É agora, que ele mais precisa de ti, que vais perder toda a coragem?... Vamos! Precisamos sair daqui quanto antes, se quisermos salvar os feridos que nos rodeiam e que arrancaste à morte!
Ela suspirou, como a tomar alento.
— Tens razão! Mas para onde iremos?
— Para qualquer lugar que não seja este!
Teresa olhou o céu, como a pedir inspiração. E quando já baixava os olhos descobriu, de súbito, algo que lhe devolveu a energia perdida.
— Afonso! Repara... além!
— Onde?
— Vês aquela grande vide, no cabeço?
— Vejo.
— Pois é para ali mesmo que iremos com todos os feridos que puderem seguir-nos ou nós possamos levar!
— Para o cabeço da vide?
— Sim! Que tens a opor?
— Nada. Acho bom. Pois partamos e quanto antes deste vale da morte!
Algumas semanas passaram. E de novo o Sol nasceu cobrindo com o seu manto luminoso a terra que namorava. O ar fino rodopiava numa alegre cantilena com as folhas da gigantesca vide, colocada precisamente no cimo do cabeço, pela Mão Divina. Teresa encheu de ar os pulmões. Sorriu. Murmurou com unção:
— Isto dá vida!
— Cuidado, meu amor... Não acalentes demasiadas esperanças... Tenho muitos e profundos golpes...
— Não te deixarei morrer, Gonçalo, já que te arranquei ao vale da morte!
— Onde está Afonso?
— Anda com as outras mulheres que vêm chegando a tratar dos feridos...
— Se eu morrer... ele velará por ti!
Teresa zangou-se.
— Acabou-se a morte, ouviste? Não quero ouvir falar mais nela!
— E as feridas?
— Olha, a velha Ana, que trouxemos do braseiro da sua pobre casa e que está acampada mais além, diz que as duas fontes que se vêem daqui fazem curas maravilhosas.
— Eu sei. Meu pai falava-me delas. São as fontes que os Romanos exploravam com os balneários.
— Pois levar-te-emos aí e nelas hás-de banhar as feridas.
Gonçalo olhou a jovem esposa com todo o carinho da sua alma. Agarrou-lhe com ternura uma das mãos e levou-a aos lábios ainda pálidos pela perda de sangue. E Teresa sorriu, como se já o visse curado!
Mais algum tempo passou. Gonçalo ia agora diariamente banhar-se na água das fontes, seguido pelos outros companheiros de infortúnio. E as feridas iam sarando, os inchaços desaparecendo, as infecções e a febre diminuindo. E em breve se sentiram completamente curados!
A pouco e pouco, novas casinhas começaram a surgir para albergar as famílias que se haviam abrigado no cabeço. A vida recomeçava. Dividiram as terras e dispuseram-se a amanhá-las. Era uma nova povoação que surgia. Uma povoação no Cabeço de Vide, a que a morte levada pelos Mouros dera a vida!
O ano de 1090, na nossa Península, assinalou várias lutas entre mouros e cristãos. Todavia, a lenda que evocamos incide apenas numa batalha travada, por essa época, nas terras de além-Tejo, junto à antiga povoação de Pombal.
Iusufe, a quem os mouros da província pediram socorro, veio com o seu exército disposto a vencer. Encorajados com esta poderosa presença, a luta começou mais dura, embatendo sem cessar a espada do cristão contra o alfange do muçulmano.
A tarde chegara no auge da contenda, mostrando-se assustada com a sorte dos cristãos. O número destes era indiscutivelmente menor. O seu ímpeto era, contudo, violento. Combatia-se à espada, porque as lanças já estavam quebradas e postas de parte, por inúteis. Jaziam no chão milhares de cadáveres, de ambos os lados. Gemiam os feridos, sem que fosse possível arranjar tempo para os recolher. Para longe haviam fugido os velhos, as mulheres e as crianças, numa correria sem norte, levando no cérebro a repercussão dos gritos da batalha. Mas o número venceu como força viva. Entusiasmados com a vitória, os muçulmanos perseguiram os poucos fugitivos, saquearam a pequena povoação e deitaram fogo ao arraial dos que combatiam sob a bandeira de Cristo. Depois, soltando gritos de entusiasmo, embora com bastantes baixas, os homens de Maomé abandonaram o campo que os corvos já sobrevoavam, embriagados com o cheiro do sangue de que a terra estava empapada. Era pois esse hálito da terra, pestilento, que subia no ar, dando-se à tarde de sol claro, que não alcançava coragem para se finar de horror…
Os gritos da moirama morreram ao longe. Indicando o caminho que haviam levado, apenas as nuvens de pó que as patas dos cavalos levantavam do chão na sua corrida entusiasmada. Foi então que uma jovem de expressão aflita, o rosto lavado em lágrimas, se esgueirou por detrás de um arbusto onde as chamas do fogo ateado pelos mouros não haviam tocado. Como louca, correu para o campo onde os corpos jaziam destroçados e quase putrefactos. Olhava-os um a um, quando eles tinham a cabeça ligada aos ombros, pois não raro se viam cabeças sem corpos e corpos sem cabeças. Tremendo de pavor, com uma das mãos sobre a boca, a sufocar gritos de pesadelo e a impedir a entrada franca desse ar impuro, a jovem dir-se-ia um fantasma, se não fosse o seu choro impressionante. Aqui e além ouviam-se gemidos. Logo a jovem corria certificar-se donde eles surgiam. Por fim, exausta, sentou-se no chão, cobrindo o rosto com as mãos.
Então, nesse inferno, alguém de súbito chamou o seu nome, ao longe:
— Teresa!... Teresa!... Que fazes aí? Foge, que te matas!
Ela olhou na direcção em que a chamavam. Olhou com medo. Mas então o seu choro tornou-se um grito:
— Afonso! Afonso! Viste o Gonçalo?
— Não! Vai-te para onde foram as outras mulheres! Isto aqui não serve já para nimguém!
Ela correu para o homem que surgia a atestar que ainda havia sobreviventes. Ele foi ao seu encontro.
— Teresa, não sejas louca! Vai-te embora!
— Para onde?
— Para junto dos teus!
— Meus pais morreram dentro de casa…
Um choro convulso cortou-lhe a frase na garganta.
— Acalma-te!
— Quero procurar o Gonçalo!
— Aqui? Mas se isto é um inferno!
— Ainda estão alguns vivos! É preciso salvá-los! E quem sabe se o Gonçalo…
Afonso mordeu os lábios.
— Tens razão. Perdoa a minha cobardia. Precisamos salvar os que puderem resistir ainda. Mas só nós dois somos poucos!
— Eu sei. Mas outros virão depois, agora que esses malvados partiram…
Afonso olhou a jovem bem de frente.
— Teresa... Não contes muito com os outros. Eles sabem que os outros partiram, mas não ignoram também que a peste ficou... E não sei qual desses inimigos será pior...
Teresa agarrou um dos braços de Afonso.
— Eu ficarei! Quero encontrar o meu marido. Tenho um mês de casada. Um mês!... E não posso acreditar que estou já viúva...
— Sê razoável, Teresa! Aqui só encontrarás morte!
Resoluta, a rapariga largou o braço do companheiro.
— Pois se tens medo, vai-te! Eu o procurarei sozinha! E aqueles que, feridos, puderem seguir-me, eu os levarei comigo!
Afonso olhou-a com admiração profunda. Não estando louca, aquela jovem teria de ser sublime. Respirou o melhor que pôde e baixou os olhos, vencido.
— Teresa, sabes o que acabava de fazer quando te vi?
— Não.
— Enterrava meu pai e minha mãe! Descobri-os quando tentava sair deste caos. Voltei para trás... e aqui estou. A tarefa será dura, mas talvez proveitosa. Coragem, Teresa! Prepara-te para enfrentares o próprio inferno!
Quando o Sol se despediu atrás do monte, disse adeus baixinho a essa jovem de alma forte que continuava na lúgubre pesquisa, separando os feridos dos mortos, tropeçando em cadáveres, já no princípio de decomposição, olhos já habituados a contemplarem aquela tragédia. Mas a noite tomava o lugar do dia e Afonso compreendeu que era impossível continuarem ali, nesse vale da morte. Então foi ter com a sua companheira de infância.
— Teresa... vamos levar para junto daqueles arbustos os feridos que se podem ainda arrastar. A noite não tarda e nós estamos cansados. Logo que o sol rompa voltaremos aqui.
Teresa olhou-o em silêncio. Depois contemplou o campo juncado de corpos, amortalhados pela penumbra envolvente. E decidiu-se.
— Tens razão. Descansaremos umas horas. E que Deus permita que, esse tempo, eu não venha a lamentá-lo como perdido!
E quem pudesse de longe espreitar esse campo de tormenta ao lusco-fusco, teria descoberto duas sombras que agiam como fantasmas, levando um após outro os feridos que gemiam as suas dores.
Mais cedo um pouco do que no dia anterior, o Sol despontou, como pressuroso de vir ajudar quem tanto necessitava dele. Mas encontrou já Nesa e Afonso caminhando na busca dos feridos e no enterramento de uns mortos. De súbito, Teresa deu um grito:
— Afonso! Encontrei-o!
Afonso correu para a sua beira.
— Espera, Teresa, não lhe toques! Eu o livrarei desses corpos que estão sobre ele!
Um gemido fez-se ouvir. Teresa gritou:
— Gonçalo ainda vive! Salva-o, Afonso, salva-o!
Afonso retirou-o com jeito e ambos saíram para fora do campo. Deitaram-no no chão. O ferido tornou a gemer. Teresa aproximou o rosto daquele rosto quase irreconhecível. E pediu baixinho:
— Gonçalo! Desperta! Sou eu... a tua Teresa!
Gonçalo abriu os olhos e respirou a custo. Ela tornou com maior veemência:
— Gonçalo! Estou aqui... junto de ti!
O rapaz olhou-a, mas no seu olhar baço não havia vislumbre de entendimento.
Ela abafou um grito:
— Não me reconheceu!
Vendo-a esmorecer, Afonso tentou encorajá-la.
— Então, Teresa! É agora, que ele mais precisa de ti, que vais perder toda a coragem?... Vamos! Precisamos sair daqui quanto antes, se quisermos salvar os feridos que nos rodeiam e que arrancaste à morte!
Ela suspirou, como a tomar alento.
— Tens razão! Mas para onde iremos?
— Para qualquer lugar que não seja este!
Teresa olhou o céu, como a pedir inspiração. E quando já baixava os olhos descobriu, de súbito, algo que lhe devolveu a energia perdida.
— Afonso! Repara... além!
— Onde?
— Vês aquela grande vide, no cabeço?
— Vejo.
— Pois é para ali mesmo que iremos com todos os feridos que puderem seguir-nos ou nós possamos levar!
— Para o cabeço da vide?
— Sim! Que tens a opor?
— Nada. Acho bom. Pois partamos e quanto antes deste vale da morte!
Algumas semanas passaram. E de novo o Sol nasceu cobrindo com o seu manto luminoso a terra que namorava. O ar fino rodopiava numa alegre cantilena com as folhas da gigantesca vide, colocada precisamente no cimo do cabeço, pela Mão Divina. Teresa encheu de ar os pulmões. Sorriu. Murmurou com unção:
— Isto dá vida!
— Cuidado, meu amor... Não acalentes demasiadas esperanças... Tenho muitos e profundos golpes...
— Não te deixarei morrer, Gonçalo, já que te arranquei ao vale da morte!
— Onde está Afonso?
— Anda com as outras mulheres que vêm chegando a tratar dos feridos...
— Se eu morrer... ele velará por ti!
Teresa zangou-se.
— Acabou-se a morte, ouviste? Não quero ouvir falar mais nela!
— E as feridas?
— Olha, a velha Ana, que trouxemos do braseiro da sua pobre casa e que está acampada mais além, diz que as duas fontes que se vêem daqui fazem curas maravilhosas.
— Eu sei. Meu pai falava-me delas. São as fontes que os Romanos exploravam com os balneários.
— Pois levar-te-emos aí e nelas hás-de banhar as feridas.
Gonçalo olhou a jovem esposa com todo o carinho da sua alma. Agarrou-lhe com ternura uma das mãos e levou-a aos lábios ainda pálidos pela perda de sangue. E Teresa sorriu, como se já o visse curado!
Mais algum tempo passou. Gonçalo ia agora diariamente banhar-se na água das fontes, seguido pelos outros companheiros de infortúnio. E as feridas iam sarando, os inchaços desaparecendo, as infecções e a febre diminuindo. E em breve se sentiram completamente curados!
A pouco e pouco, novas casinhas começaram a surgir para albergar as famílias que se haviam abrigado no cabeço. A vida recomeçava. Dividiram as terras e dispuseram-se a amanhá-las. Era uma nova povoação que surgia. Uma povoação no Cabeço de Vide, a que a morte levada pelos Mouros dera a vida!
Gentil Marques
Fronteira, Portalegre
Fronteira, Portalegre
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