Ora, bem. Em tempos que já lá vão, na penumbra do passado, certo rei espanhol, desesperado por não ter descendentes, resolveu confiar os seus desejos ao próprio Céu. E como chegassem até ele notícias de que em Portugal — no sítio de Aldeia Rica, no concelho de Celorico da Beira — existia uma imagem de Nossa Senhora que operava milagres sem fim — o rei e a rainha pediram a Nossa Senhora que lhes fizesse o milagre de terem um filho... E o filho nasceu!
Porém, quis a fatalidade que a pobre criança se aleijasse, tornando-se num menino inválido, o que lançou novas amarguras no coração de seus pais.
A rainha lamentava-se tristemente:
— Meu pobre filho! Meu querido filho! Custa-me tanto vê-lo sofrer assim!
O rei abria os braços, molemente, num gesto de desânimo.
— Que mais podemos nós fazer?... Já chamámos todos os sábios... Já tentámos tudo... tudo!
Foi a vez de a rainha ter um breve assomo de energia:
— Tudo, não! Escutais bem o que eu digo? Tudo, ainda não!... Resta-nos ir pedir à Virgem, que no-lo deu... que o salve também!
E tamanha era a fé da sua expressão, tão vivo o fogo do seu olhar, que o rei se quedou, surpreendido e dominado, diante dela.
— Pois é possível?... Vós ainda acreditais noutro milagre?...
Ela ergueu o olhar para o alto e disse, como se falasse para o próprio Céu:
— E porque não? Só a Fé nos pode salvar, meu Rei e Senhor!
Ele voltou ao seu passeio agitado.
— Talvez… talvez a razão esteja convosco... Mas é muito perigoso expor assim a criança por esses caminhos... A tal Aldeia Rica de que nos falaram fica tão longe daqui!...
De novo estacou. Desalentado. Acabrunhado.
— Não considerais uma temeridade? Que terrível será, se sofrermos essa última desilusão!
A rainha, porém, insistiu:
— Por mim, farei a viagem toda, sem medo de sentir qualquer cansaço...
O seu olhar iluminou-se ao dizer:
— Essa Virgem é a mais milagrosa de todas de que tenho ouvido falar...
Com um gesto, indicou ao rei que se sentasse junto dela.
— Sabeis como apareceu?
E como o rei aquiescesse ao convite, ela continuou, num crescendo de entusiasmo:
— Eu vos conto... Um pastor passava por ali, um dia, com seu rebanho de vacas, quando uma das vacas caiu à água... Tresloucado, o homem correu atrás do animal e ficou em perigo de vida... Foi então que pediu a Nossa Senhora que lhe valesse... E assim aconteceu, na verdade... Por milagre divino, salvaram-se o pastor e a vaca... E a notícia do prodígio espalhou-se por muitas léguas em redor, de tal modo que o povo ergueu nesse mesmo local uma capelinha a Nossa Senhora...
O rei escutava-a em silêncio. Ainda trémula, ainda emocionada, a rainha ajuntou, como quem reza uma prece:
— Ah, se Ela quiser... se Nossa Senhora quiser... o nosso filhinho também se há-de salvar!
O rei tornou a erguer-se, pensativo.
— O que me dizeis, senhora, é realmente extraordinário... E há uma força íntima nas vossas palavras… um ardor no vosso olhar... que me fazem crer em tudo o que dizeis!
Depois de hesitar um momento, voltou a ser o monarca das grandes decisões.
— Pronto, Senhora. Faça-se a vossa vontade. Iremos em romagem, com o nosso filhinho, a Nossa Senhora dos Milagres!
Imediatamente el-rei deu ordens para a partida. Iriam apenas ele, a rainha, o pequeno príncipe e um grupo de cavaleiros fiéis e corajosos.
Porém, apesar de todo o segredo, o povo soube do caso e veio para a rua, silencioso e triste, desejar igualmente boa sorte ao principezinho e a seus pais, que assim partiram, entre lágrimas e bênçãos, a caminho da terra portuguesa...
Todavia, a fatalidade parecia persegui-los passo a passo. Quando já faltavam poucas léguas para chegarem à Aldeia Rica, o alarme soou imprevisto e fatal, espalhando a dor e o pânico.
Transtornado e violento, o rei fez sinal de que todos estacassem.
— Parem! Parem! Meu filho já não dá acordo de si... Está morto! Está morto, o meu filho!
Soluçando, perdida, a pobre mãe mais parecia mísera mulher do que poderosa rainha.
— Meu filho, meu querido menino!... Agora que faltava tão pouco... que estávamos quase a chegar!...
Batendo forte no peito, el-rei clamava, num desespero:
— Fui eu que tive a culpa... toda a culpa!... Sim… para que acedi eu aos vossos desejos?... Bem devia ter calculado que esta viagem podia matá-lo!
Sempre chorando, a rainha implorava:
— Oh, minha Nossa Senhora, porque consentistes nisto? Porquê, Senhora?... E eu que vos pedi com tanta fé, com tanta...
Mais não disse, pois as lágrimas lhe embargaram a voz. O rei resolveu então terminar de vez com tão triste provação.
— De nada vos servem as lágrimas, Senhora. Resta-nos enterrá-lo aqui mesmo.
Inesperadamente, essa frase deu novo impulso de coragem à pobre mãe amargurada.
— Não, isso nunca! Não consinto! Não posso consentir!
A sua excitação era tal que o monarca quedou perplexo.
— Que dizeis, Senhora?
Chamando a si todos os débeis laivos de coragem que lhe restavam, a rainha conseguiu dizer lentamente:
— Perdoai-me... mas na verdade não posso, não quero consentir que o nosso filho seja enterrado aqui, neste ermo...
Juntou as mãos em súplica, e acrescentou, novamente trémula e desfeita em lágrimas:
— Permiti, Senhor meu rei e meu esposo, que, apesar de tudo, eu leve o nosso filho aos pés da Virgem Santa... De qualquer modo, cumpriremos a nossa promessa!
Por instantes, de espantado que ficou, o monarca deu ares de recusar terminantemente tal pedido. Mas, por fim, como quem se abandona aos caprichos do destino, aquiesceu.
— Farei o que entenderdes, Senhora!... Já nada mais quero resolver. Depois de tudo isto, a fé morreu em mim... morreu com ele!... Prossigamos viagem, como desejais... E quanto mais depressa acabarmos, melhor!
Voltando-se para o resto da caravana comandou num berro.
— Vamos! A caminho!
Ao cabo de uma jornada angustiante, chegaram finalmente à pequena capela erguida pela fé do povo.
Logo a rainha desceu, levando nos braços o filhinho morto. E avançando devagar, quanto as forças lho permitiam, para a capela, clamava em voz mal segura e entrecortada pelo choro:
— Virgem dos Milagres... Aqui vos trago o meu filho, já sem vida, cuja esperança de salvação eu depositara em Vós, Senhora! Tinha tanta esperança que o salvásseis... e ele morreu pelo caminho… não aguentou a viagem... E eu aqui Vos deixo, Senhora, o meu querido menino... Fazei dele o que quiserdes... Dele e de nós, que somos Vossos escravos!
Depositou o corpo do jovem príncipe junto do altar da Virgem e ajoelhou, entregando-se ao lenitivo da oração...
Entretanto, o rei e os seus cavaleiros tinham-se afastado. Agora o rei, como dissera, não queria acreditar mais em milagres. Preferia dedicar-se à caça, para passar o tempo. A certa altura vieram dizer-lhe que um dos caçadores, transgredindo a lei, se atrevera a soltar um açor.
O rei imediatamente aproveitou o pretexto para fazer explodir todo o rancor armazenado em si.
— Pois esse miserável não sabe que os açores são aves sagradas para mim?... As mais belas aves do mundo!... Ele pagará o seu crime, e sem demora!
Cruzou os braços e ordenou com voz dura:
— Trazei-o à minha presença, e ele ficará a saber de uma vez para sempre que as minhas ordens não podem ser contrariadas!
Daí a pouco, o prevaricador estava diante do seu rei.
— Ah, foste tu... foste tu que tiveste o atrevimento de soltar um açor?
O homem suportou estoicamente o olhar raivoso do monarca, fez um gesto inútil para se libertar dos que o prendiam e disse devagar, em voz forte e calma:
— Sim, fui eu. E só tenho pena de não ter conseguido soltar também os outros açores!
Isso ainda mais enfureceu o rei.
— Estais a ouvi-lo, não é verdade?... Confessa tudo... e confessa até que o seu crime poderia ser maior, se o tivessem deixado!...
Deu um passo em frente, fitando o prisioneiro, sem piedade.
— E porquê?... Porque fizeste tudo isso, miserável?
O outro pareceu não se amedrontar com o tom da pergunta. Pelo contrário, limitou-se a sorrir. A sorrir e a afirmar, como quem presta um esclarecimento:
— Os açores fizeram-se para voar nos céus e não para estar presos!
Uma gargalhada ruim saiu do coração do rei.
— Imbecil! Mil vezes imbecil!... As filosofias não te salvam... Vais pagar com a vida o teu atrevimento!
O prisioneiro voltou a sorrir. Um sorriso sereno, tranquilo, sem espalhafato.
— Como quiseres, rei absoluto e tirano. Mas aquele açor que eu libertei e que vedes agora voando livremente no céu, esse, graças a Deus, não mais o apanharás!
O monarca não podia aguentar aquela imperturbável presença de espírito. Fez um gesto violento e deu a ordem final:
— Levem-no! E comecem já por lhe cortar a mão que deu a liberdade ao açor...
Tudo se preparou rapidamente para cumprir a ordem real. O caçador foi amarrado e somente lhe deixaram livre a mão que iam cortar.
Sem mostrar medo algum, o prisioneiro ergueu os olhos ao Céu.
— Minha Nossa Senhora, que se faça a Vossa Vontade... A vida para nada me serve... E, ao menos, consegui dar liberdade a uma das minhas aves... E quero também pedir-vos, Senhora...
Mas a voz exaltada do rei interrompeu-o, obrigando-o a calar-se.
— Que esperais, idiotas, para cumprir as minhas ordens? Não quero que a rainha assista a esta execução e ela está prestes a terminar as suas orações... Vamos, despachai-vos!... Cortai-lhe a mão!
Nesse mesmo instante, quando o machado já se erguia no espaço, o bonito açor, que voava no alto majestosamente, de súbito renunciou à liberdade e, com grande espanto de todos os presentes, veio pousar suavemente na mão livre do caçador.
Este deu largas à sua alegria enorme.
— Milagre! Milagre! Foi Nossa Senhora que me fez este milagre!
Nesse mesmo momento, a rainha surgiu. Emocionada. Correndo.
— Milagre, Senhor meu rei, grande milagre! Vede com os vossos próprios olhos... Nosso filho está vivo!... Vivo e completamente curado!
E apontando, a tremer, o jovem que se aproximava, balbuciou num fervor de risos e de lágrimas:
— Vede como ele anda!... Vede como ele sorri!...
Num êxtase de fé, a rainha caiu de joelhos, erguendo as mãos e os olhos para o alto.
— Foi um milagre de Nossa Senhora!
Ainda aturdido, o rei limitou-se a baixar a cabeça, como que vergado ao peso de um fardo oculto, e a confessar em voz baixa:
— Tendes razão, Senhora, tendes razão... Milagre maior ainda não vi... Insensato que eu fui em não acreditar!
Caiu também de joelhos ao lado da rainha, clamando para todos os outros:
— Ajoelhai, todos... fazei como eu!... De joelhos, no chão, junto da Rainha, para darmos graças a Nossa Senhora... mil graças por tamanho milagre!
Todos se ajoelharam e se mantiveram em oração muda e sentida. Depois o rei ergueu-se e ordenou, indicando ao caçador prisioneiro:
— Libertem esse homem imediatamente! E dai liberdade também a todos os açores... Os açores fizeram-se para voar nos céus, como ele disse, e muito bem... E fiquem todos a saber que hei-de construir aqui, em vez desta capelinha, como preito de homenagem e gratidão, a igreja de Santa Maria dos Açores!
Segundo tudo parece demonstrar, el-rei cumpriu a sua promessa. E ainda hoje lá está, na antiga Aldeia Rica, aí a uns oito quilómetros de Celorico da Beira, a igreja de Nossa Senhora dos Açores.
E a perpetuar a história dos três milagres, lá estão igualmente três bonitos painéis que representam «O Aparecimento da Virgem ao Rústico da Vaca», «O Açor Pousado na Mão do Caçador» e «O Filho do Rei, Já Ressuscitado».
Porém, quis a fatalidade que a pobre criança se aleijasse, tornando-se num menino inválido, o que lançou novas amarguras no coração de seus pais.
A rainha lamentava-se tristemente:
— Meu pobre filho! Meu querido filho! Custa-me tanto vê-lo sofrer assim!
O rei abria os braços, molemente, num gesto de desânimo.
— Que mais podemos nós fazer?... Já chamámos todos os sábios... Já tentámos tudo... tudo!
Foi a vez de a rainha ter um breve assomo de energia:
— Tudo, não! Escutais bem o que eu digo? Tudo, ainda não!... Resta-nos ir pedir à Virgem, que no-lo deu... que o salve também!
E tamanha era a fé da sua expressão, tão vivo o fogo do seu olhar, que o rei se quedou, surpreendido e dominado, diante dela.
— Pois é possível?... Vós ainda acreditais noutro milagre?...
Ela ergueu o olhar para o alto e disse, como se falasse para o próprio Céu:
— E porque não? Só a Fé nos pode salvar, meu Rei e Senhor!
Ele voltou ao seu passeio agitado.
— Talvez… talvez a razão esteja convosco... Mas é muito perigoso expor assim a criança por esses caminhos... A tal Aldeia Rica de que nos falaram fica tão longe daqui!...
De novo estacou. Desalentado. Acabrunhado.
— Não considerais uma temeridade? Que terrível será, se sofrermos essa última desilusão!
A rainha, porém, insistiu:
— Por mim, farei a viagem toda, sem medo de sentir qualquer cansaço...
O seu olhar iluminou-se ao dizer:
— Essa Virgem é a mais milagrosa de todas de que tenho ouvido falar...
Com um gesto, indicou ao rei que se sentasse junto dela.
— Sabeis como apareceu?
E como o rei aquiescesse ao convite, ela continuou, num crescendo de entusiasmo:
— Eu vos conto... Um pastor passava por ali, um dia, com seu rebanho de vacas, quando uma das vacas caiu à água... Tresloucado, o homem correu atrás do animal e ficou em perigo de vida... Foi então que pediu a Nossa Senhora que lhe valesse... E assim aconteceu, na verdade... Por milagre divino, salvaram-se o pastor e a vaca... E a notícia do prodígio espalhou-se por muitas léguas em redor, de tal modo que o povo ergueu nesse mesmo local uma capelinha a Nossa Senhora...
O rei escutava-a em silêncio. Ainda trémula, ainda emocionada, a rainha ajuntou, como quem reza uma prece:
— Ah, se Ela quiser... se Nossa Senhora quiser... o nosso filhinho também se há-de salvar!
O rei tornou a erguer-se, pensativo.
— O que me dizeis, senhora, é realmente extraordinário... E há uma força íntima nas vossas palavras… um ardor no vosso olhar... que me fazem crer em tudo o que dizeis!
Depois de hesitar um momento, voltou a ser o monarca das grandes decisões.
— Pronto, Senhora. Faça-se a vossa vontade. Iremos em romagem, com o nosso filhinho, a Nossa Senhora dos Milagres!
Imediatamente el-rei deu ordens para a partida. Iriam apenas ele, a rainha, o pequeno príncipe e um grupo de cavaleiros fiéis e corajosos.
Porém, apesar de todo o segredo, o povo soube do caso e veio para a rua, silencioso e triste, desejar igualmente boa sorte ao principezinho e a seus pais, que assim partiram, entre lágrimas e bênçãos, a caminho da terra portuguesa...
Todavia, a fatalidade parecia persegui-los passo a passo. Quando já faltavam poucas léguas para chegarem à Aldeia Rica, o alarme soou imprevisto e fatal, espalhando a dor e o pânico.
Transtornado e violento, o rei fez sinal de que todos estacassem.
— Parem! Parem! Meu filho já não dá acordo de si... Está morto! Está morto, o meu filho!
Soluçando, perdida, a pobre mãe mais parecia mísera mulher do que poderosa rainha.
— Meu filho, meu querido menino!... Agora que faltava tão pouco... que estávamos quase a chegar!...
Batendo forte no peito, el-rei clamava, num desespero:
— Fui eu que tive a culpa... toda a culpa!... Sim… para que acedi eu aos vossos desejos?... Bem devia ter calculado que esta viagem podia matá-lo!
Sempre chorando, a rainha implorava:
— Oh, minha Nossa Senhora, porque consentistes nisto? Porquê, Senhora?... E eu que vos pedi com tanta fé, com tanta...
Mais não disse, pois as lágrimas lhe embargaram a voz. O rei resolveu então terminar de vez com tão triste provação.
— De nada vos servem as lágrimas, Senhora. Resta-nos enterrá-lo aqui mesmo.
Inesperadamente, essa frase deu novo impulso de coragem à pobre mãe amargurada.
— Não, isso nunca! Não consinto! Não posso consentir!
A sua excitação era tal que o monarca quedou perplexo.
— Que dizeis, Senhora?
Chamando a si todos os débeis laivos de coragem que lhe restavam, a rainha conseguiu dizer lentamente:
— Perdoai-me... mas na verdade não posso, não quero consentir que o nosso filho seja enterrado aqui, neste ermo...
Juntou as mãos em súplica, e acrescentou, novamente trémula e desfeita em lágrimas:
— Permiti, Senhor meu rei e meu esposo, que, apesar de tudo, eu leve o nosso filho aos pés da Virgem Santa... De qualquer modo, cumpriremos a nossa promessa!
Por instantes, de espantado que ficou, o monarca deu ares de recusar terminantemente tal pedido. Mas, por fim, como quem se abandona aos caprichos do destino, aquiesceu.
— Farei o que entenderdes, Senhora!... Já nada mais quero resolver. Depois de tudo isto, a fé morreu em mim... morreu com ele!... Prossigamos viagem, como desejais... E quanto mais depressa acabarmos, melhor!
Voltando-se para o resto da caravana comandou num berro.
— Vamos! A caminho!
Ao cabo de uma jornada angustiante, chegaram finalmente à pequena capela erguida pela fé do povo.
Logo a rainha desceu, levando nos braços o filhinho morto. E avançando devagar, quanto as forças lho permitiam, para a capela, clamava em voz mal segura e entrecortada pelo choro:
— Virgem dos Milagres... Aqui vos trago o meu filho, já sem vida, cuja esperança de salvação eu depositara em Vós, Senhora! Tinha tanta esperança que o salvásseis... e ele morreu pelo caminho… não aguentou a viagem... E eu aqui Vos deixo, Senhora, o meu querido menino... Fazei dele o que quiserdes... Dele e de nós, que somos Vossos escravos!
Depositou o corpo do jovem príncipe junto do altar da Virgem e ajoelhou, entregando-se ao lenitivo da oração...
Entretanto, o rei e os seus cavaleiros tinham-se afastado. Agora o rei, como dissera, não queria acreditar mais em milagres. Preferia dedicar-se à caça, para passar o tempo. A certa altura vieram dizer-lhe que um dos caçadores, transgredindo a lei, se atrevera a soltar um açor.
O rei imediatamente aproveitou o pretexto para fazer explodir todo o rancor armazenado em si.
— Pois esse miserável não sabe que os açores são aves sagradas para mim?... As mais belas aves do mundo!... Ele pagará o seu crime, e sem demora!
Cruzou os braços e ordenou com voz dura:
— Trazei-o à minha presença, e ele ficará a saber de uma vez para sempre que as minhas ordens não podem ser contrariadas!
Daí a pouco, o prevaricador estava diante do seu rei.
— Ah, foste tu... foste tu que tiveste o atrevimento de soltar um açor?
O homem suportou estoicamente o olhar raivoso do monarca, fez um gesto inútil para se libertar dos que o prendiam e disse devagar, em voz forte e calma:
— Sim, fui eu. E só tenho pena de não ter conseguido soltar também os outros açores!
Isso ainda mais enfureceu o rei.
— Estais a ouvi-lo, não é verdade?... Confessa tudo... e confessa até que o seu crime poderia ser maior, se o tivessem deixado!...
Deu um passo em frente, fitando o prisioneiro, sem piedade.
— E porquê?... Porque fizeste tudo isso, miserável?
O outro pareceu não se amedrontar com o tom da pergunta. Pelo contrário, limitou-se a sorrir. A sorrir e a afirmar, como quem presta um esclarecimento:
— Os açores fizeram-se para voar nos céus e não para estar presos!
Uma gargalhada ruim saiu do coração do rei.
— Imbecil! Mil vezes imbecil!... As filosofias não te salvam... Vais pagar com a vida o teu atrevimento!
O prisioneiro voltou a sorrir. Um sorriso sereno, tranquilo, sem espalhafato.
— Como quiseres, rei absoluto e tirano. Mas aquele açor que eu libertei e que vedes agora voando livremente no céu, esse, graças a Deus, não mais o apanharás!
O monarca não podia aguentar aquela imperturbável presença de espírito. Fez um gesto violento e deu a ordem final:
— Levem-no! E comecem já por lhe cortar a mão que deu a liberdade ao açor...
Tudo se preparou rapidamente para cumprir a ordem real. O caçador foi amarrado e somente lhe deixaram livre a mão que iam cortar.
Sem mostrar medo algum, o prisioneiro ergueu os olhos ao Céu.
— Minha Nossa Senhora, que se faça a Vossa Vontade... A vida para nada me serve... E, ao menos, consegui dar liberdade a uma das minhas aves... E quero também pedir-vos, Senhora...
Mas a voz exaltada do rei interrompeu-o, obrigando-o a calar-se.
— Que esperais, idiotas, para cumprir as minhas ordens? Não quero que a rainha assista a esta execução e ela está prestes a terminar as suas orações... Vamos, despachai-vos!... Cortai-lhe a mão!
Nesse mesmo instante, quando o machado já se erguia no espaço, o bonito açor, que voava no alto majestosamente, de súbito renunciou à liberdade e, com grande espanto de todos os presentes, veio pousar suavemente na mão livre do caçador.
Este deu largas à sua alegria enorme.
— Milagre! Milagre! Foi Nossa Senhora que me fez este milagre!
Nesse mesmo momento, a rainha surgiu. Emocionada. Correndo.
— Milagre, Senhor meu rei, grande milagre! Vede com os vossos próprios olhos... Nosso filho está vivo!... Vivo e completamente curado!
E apontando, a tremer, o jovem que se aproximava, balbuciou num fervor de risos e de lágrimas:
— Vede como ele anda!... Vede como ele sorri!...
Num êxtase de fé, a rainha caiu de joelhos, erguendo as mãos e os olhos para o alto.
— Foi um milagre de Nossa Senhora!
Ainda aturdido, o rei limitou-se a baixar a cabeça, como que vergado ao peso de um fardo oculto, e a confessar em voz baixa:
— Tendes razão, Senhora, tendes razão... Milagre maior ainda não vi... Insensato que eu fui em não acreditar!
Caiu também de joelhos ao lado da rainha, clamando para todos os outros:
— Ajoelhai, todos... fazei como eu!... De joelhos, no chão, junto da Rainha, para darmos graças a Nossa Senhora... mil graças por tamanho milagre!
Todos se ajoelharam e se mantiveram em oração muda e sentida. Depois o rei ergueu-se e ordenou, indicando ao caçador prisioneiro:
— Libertem esse homem imediatamente! E dai liberdade também a todos os açores... Os açores fizeram-se para voar nos céus, como ele disse, e muito bem... E fiquem todos a saber que hei-de construir aqui, em vez desta capelinha, como preito de homenagem e gratidão, a igreja de Santa Maria dos Açores!
Segundo tudo parece demonstrar, el-rei cumpriu a sua promessa. E ainda hoje lá está, na antiga Aldeia Rica, aí a uns oito quilómetros de Celorico da Beira, a igreja de Nossa Senhora dos Açores.
E a perpetuar a história dos três milagres, lá estão igualmente três bonitos painéis que representam «O Aparecimento da Virgem ao Rústico da Vaca», «O Açor Pousado na Mão do Caçador» e «O Filho do Rei, Já Ressuscitado».
Gentil Marques
Celorico da Beira
Celorico da Beira