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18/07/2008

O moleiro, o filho e o burro


Sendo a invenção das artes
Direito de morgado,
Foi na vetusta Grécia
O apólogo inventado.

Não se lhe pode a messe
De modo tal ceifar,
Que aos pósteros não reste
Muito que respigar.

Na terra fabulosa
Há regiões desertas,
Onde os poetas fazem
Contínuas descobertas.

Um caso ouvi, que mostra
Engenho de invenção;
Dele a Racan fizera
Malherbe a narração.

Esses rivais de Horácio,
De sua lira herdeiros,
Discípulos de Apolo
E mestres verdadeiros.

A sós, sem testemunhas.
Num sítio se encontraram,
E assim idéias penas,
Um de outro confiaram.


RACAN

"Ó vós, que tantos marcos
Passastes da existência,
Que tendes deste mundo
Tão longa experiência:

Dizei-me que carreira
Eu devo preferir:
Desejo seriamente
Pensar no meu porvir.

Sou vosso conhecido;
Sabeis quem são meus pais,
Se tenho algum talento,
Juízo e cabedais.

Convém que na província
Morada eu vá fixar?
Cargo exercer na corte,
Ou na milícia entrar?

Mescla de amargo e doce
Tem quanto o mundo encerra;
Há no himeneu seus sustos,
Seu júbilo há na guerra.

Se o gosto meu seguisse
Soubera o que escolher.
Mas devo à corte, ao povo
E aos meus satisfazer".


MALHERBE

"Querer que de seus atos
O mundo se contente?!
Antes de responder-vos
Ouvi-me atentamente:

Li algures que um velho moleiro
E seu filho — taludo muchacho —
Certo dia na feira vizinha
Tinham ido vender um seu macho.

Por poupá-lo e por ele bom preço
Alcançar — eis o meio que empregam:
Reunindo-lhe as patas, o ligam,
E num pau, como a lustre, o carregam.

O primeiro que os viu na passagem,
Irrompeu em tremenda risota:
"Oh! Meu Deus! Que visíveis pascácios!
Que basbaques! Que gente idiota!

Onde vai este par de galhetas
Pôr em cena tão parvo entremez?
Nesse grupo o que chamam de burro
Não parece o mais burro dos três".

O Moleiro, que ouvira a chacota,
Conhecendo-se réu de sandice,
Fez que o bruto, liberto das cordas,
Por seus cascos jornada seguisse.

Nosso burro, a quem mais aprazia
Viajar daquela outra maneira,
Ornejou séria queixa a seu dono,
Que foi surdo à asinal choradeira.

Sobe o moço ao costado do macho,
E o moleiro no encalço lhes vai;
Eis um grupo de três mercadores
De repente, ao encontro lhes sai.

Um dos tais, a esbofar-se, gritava
"Isto é carro adiante de bois!
Pois o moço é que vai repimpado.
Indo à pata o mais velho dos dois!

Tens lacaio de barbas de neve!
Eia, desce, rapaz, sem demora!
Deixa o velho montar na alimária;
É servir-lhe de pajem agora".

— Meus senhores, eu vou contentar-vos —
(Dá-se pressa em dizer o velhote).
Desce o filho e cavalga o burrico,
Que despeja o caminho, de trote.

Encontraram parado na estrada
De três moças ulhento farrancho;
Uma diz: "A criança a estrompar-se.
E o barbaças montado, tão ancho!

Bamboleia-se e faz-se bonito,
A pimpar, qual um bispo, o patola!
Quem assim à galhofa se presta
Tem decerto pancada na bola".


MOLEIRO

"Raparigas, deixai-vos de asneiras;
Eu já velho, a chibar de bonito!
Ide embora; não devo aturar-vos.
Nem vos quero servir de palito".

De dar troco a dichotes já farto,
Põe o velho o rapaz à garupa;
Mas debalde; que a pouca distância,
Nova troça com ele se ocupa.


TROÇA

"Esta gente perdeu o miolo!
Pobre burro! Tem sobra de lastro!
Se o perseguem de espora e azorrague,
Dão-lhe cabo do frágil canastro.

Vão causar a este velho servente
Com tal carga mortal pulmoeira.
Dentro em pouco ele estica os jarretes;
Só a pele lhe vendem na feira".


MOLEIRO

"Pretender contentar toda a gente
E decerto chapada toleima;
Mas tentemos o extremo recurso;
Se falhar, não persisto na teima".

Descem ambos. Qual bispo em viagem
Grave marcha o burrico adiante;
Eis, de lado: "Ó que cena gaiata!
(Zombeteiro lhes grita um tunante);

Pois então anda o burro a seu gosto
E o moleiro, pedestre, a escoltá-lo?
Qual se deve cansar? Burro, ou dono?
É melhor nuns bentinhos guardá-lo.

Quem antes rustir os sapatos
E o brutinho poupar. Nicolau,
(Diz a copla) se vai ver Joana,
É montado em seu velho quartau.
Ó que trio de brutos sendeiros!"


MOLEIRO

"Razão tendes, sou burro; estou vendo;
Mas foi bom; pois, de agora em diante,
Só por mim dirigir-me pretendo.

Quer a gente me louve, ou censure,
Quer de minhas ações nada diga,
Hei de sempre entregá-la ao desprezo,
Sem que nunca afligir-me consiga".

Quanto a vós, o Racan, convencei-vos:
Quer sigais as fileiras de Marte,
Quer do príncipe entreis ao serviço.
Quer do Amor arvoreis o estandarte;

Ide, vinde, ou caseis na província;
Alto emprego ou governo ocupeis;
Hão de sempre cortar-vos na pele
Sem que a boca do mundo tapeis.


Barão de Paranapiacaba (Trad.)