I
Verdes parras tem a vinha,
Ricas uvas nela achei,
Tem maduras, tão coradas...
Estão dizendo «comei!»
«Quero saber quem nas guarda;
Ide, mordomo, e sabei.»
Disse o rei ao seu mordomo.
Mas porque o dizia o rei?
Porque viu naquele monte
- E como ele o viu não sei –
Essa dona emparedada,
Não se sabe pó que lei,
Que por seu mal é condessa,
Condessa de Valderei:
Antes ser pobre e vilão,
Antes pela minha fei! 17
*
Verdes parras tem a vinha:
Uvas que lhe vira el-rei
Tão maduras, tão coradas,
Estão dizendo “comei!”
II
Veio o mordomo do monte:
- Boas novas, senhor rei!
A vinha anda bem guardada,
Mas eu sempre lá entrei.
«O dono foi-se a outras terras,
Quando voltará não sei;
A porta é velha, e a porteira
Com chave de ouro a tentei.
«Serve a chave à maravilha,
Tudo por fim ajustei:
Esta noite, à meia – noite,
Convosco à vindima irei.»
- «Valeis um reino, mordomo,
Grandes mercês vos farei :
Esta noite, à meia – noite,
Ricas uvas comerei.»
*
A vinha tem parras verdes,
Madura a uva lhe achei;
E tão madura, tão bela,
Que está dizendo «comei!»
III
Ao pino da meia – noite
Foi mordomo e foi o rei:
Doblas que deram à velha,
Um conto que nem eu sei.
- «Mordomo ficai à porta,
À porta que eu entrarei;
Não me saltem cães na vinha
Enquanto eu vindimarei.»
A porteira o que lhe importa
É o dá – me que te darei...
No camarim da condessa
Veis agora entrar o rei.
Levava um candil aceso;
Era de prata, sabei:
Não há senão prata e oiro
Na casa de Valderei .
*
Da vinha as parras são verdes,
As uvas maduras sei,
São tão coradas, tão belas ...
Delas – quando comerei!
IV
No camarim da condessa
Tudo andava à mesma lei,
Era o céu daquele anjo:
Que mais vos diga não sei.
Ricas sedas de Milão,
Toalhas de Courtenei...
Tremia o rei – se era susto,
Se era de gosto não sei.
Cortinas de seda verde
Vai ergo não erguerei...
Tal clarão lhe deu na vista,
Como não caiu não sei.
Era uma tal formosura...
Ora que mais vos direi ?
Outro primor como aquele
Não vistes nem eu verei.
*
Verdes parras tem a vinha,
Ricas uvas lhe avistei,
Tão formosas, tão maduras,
Estão dizendo «comei»!
V
Dormia tão descansada
Como eu no céu dormirei
Quando for tão inocente ...
Jesus ! se eu lá chegarei !
De joelhos toda a noite
Ali fica o bom do rei,
Pasmado a olhar para ela
Sem bulir nem mão nem pei. 18
E dizia : _ “Senhor Deus”!
Perdoai-me o que já pequei,
Mas este anjo de inocência
Não seu eu que ofenderei.”
*
Tem verdes parras a vinha;
Lindas uvas que eu lhe achei,
Tenho medo que me travem...
Delas, ai! não comerei.
VI
Já vinha arraiando o dia,
E ele, como vos contei,
Ouve apitar o mordomo ...
- «Jesus, Senhor, me valei!»
Era o sinal ajustado
- Vindo o conde, apitarei –
Deixou cair as cortinas
Dizendo: - «Não vindimei!»
*
Lindas parras tem a vinha,
Belas uvas nela achei;
Mas doeu- me a consciência,
Das uvas não comerei.
VII
Deita a correr com tal pressa
Que voava o bom do rei:
«Ai que perdi um chapim...»
- «Tomai, que um meu vos darei.
«Mas nem um instante mais,
Que o conde já avistei;
Descendo daquela altura;
Se nos colherá não sei...»
Era o medo do mordomo:
Outro era o medo do rei.
Qual deles tinha razão
Agora vo–lo direi.
*
Parras verdes viu na vinha,
Uvas maduras de lei;
Foi travo da consciência,
Diz: - «Delas não comerei.»
VIII
Chega o conde à sua torre
O conde de Valderei.
Topou num chapim bordado ...
Como ficou não direi.
Vai –se ao quarto da condessa:
«Morrerá, mata-la-ei.»
Viu – a dormir tão serena:
- «Jesus! Não sei que farei.»
Corre a casa ao derredor:
- «Deus me tenha em sua lei,
Que ou esta mulher é bruxa
Ou eu c’o chapim sonhei!
«O chapim aqui o tenho,
O chapim bem no topei...
Mas que durma assim tão manso
Quem tal fez, não no crerei.»
Entrou a cismar naquilo:
- «Valha –me Deus! Que farei?
Por menos fica doido;
E eu como o não ficarei?»
*
Minha vinha tão guardada!
Uvas que nela deixei
Não é fruta que se conte ...
Da que me falta não sei.
IX
Foi-se fechar no mais alto
Da torre de Valderei:
- «Não quero comer do pão,
Nem do vinho beberei;
«Minhas barbas e cabelos
Também mais os não farei,
Que esta verdade não saiba
Daqui me não tirarei.»
Verdes parras dessa vinha,
Uvas que eu não comerei,
Ficai-vos secas embora,
Que eu já’gora – morrerei.
X
Por três dias e três noites
Que se guarda aquela lei;
Clama a triste da condessa:
- «Ao seu mal que lhe farei?»
De quem foi ela valer –se ?
Agora vo –lo deirei.
Foi lastimar –se a inocente ...
Onde iria? _ ao próprio rei.
- «Ide, condessa, ide embora,
Que eu remédio lhe darei;
O segredo do seu mal
Sei –o eu... Se o saberei?
«Palavra de cavaleiro
Em lealdade vos darei,
Que ou ele há de ser o que era,
Ou eu, quem sou, não serei.»
*
As verdes parras da vinha,
As uvas que eu cobicei,
Elas a travar –me n’alma ...
E mais delas não provei!
XI
Fora dali a condessa,
Não tardou em ir o rei:
- «Quero ouvir o que eles dizem,
A esta porta escutarei.»
Ouvi uma voz celeste
Como tal nunca ouvirei,
Cantando em doce toada
Este triste virelei:
- Já fui vinha bem cuidada,
Bem querida, bem tratada:
Como eu medrei!
Ora não sou nem serei:
O porquê não se
Nem no saberei!”
Com as lágrimas nos olhos
Foi dali o bom do rei:
- «Oiçamos agora o outro,
E o que sabe, saberei!»
- «Minha vinha tão guardada!
Quando nela entrei
Rastos do ladrão achei;
Se me ele roubou não sei:
Como o saberei?»
Era o conde a lastimar–se.
Sorrindo dizia o rei
(Se era de si ou do conde
Que ele se ria não sei):
- «Eu fui que na vinha entrei,
Rastos de ladrão deixei,
Parras verdes levantei,
Uvas belas
Nelas – vi:
E assim Deus me salve a mi
Como delas
Não comi!»
XII
A porta tinha uma fresta:
Tirou o chapim do pei,
Atirou –lho para dentro,
Disse –lhe : «Vede e sabei.»
Do mais que ali sucedeu
Para que vos contarei?
O conde soube a verdade,
E o rei soube – ser rei.
*
Verdes parras tem a vinha,
Ricas uvas lá deixei:
Quem ma guardou foi o medo ...
De Deus e da sua lei.
Romanceiro, Almeida Garrett