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16/09/2010

Nas asas da borboleta

Chang ergue o pincel de pêlo de coelho e contempla o poema que escreveu sobre a rocha. Sua caligrafia é segura e graciosa. O sol brilha no céu e vai apagando o que foi escrito. Porque Chang escreve na rocha seus poemas com água. E pouco depois de escritos, os versos se apagam.
Chang não escreve para outro público que não seja o céu. As pedras. As águas. As árvores. O vento. Os pássaros. Os peixes. E às vezes, são os próprios poemas que vão se escrevendo, no movimento das cerdas do pincel.
Chang tem agora os olhos fechados. Um raio de luz dança na sua cabeça raspada. Uma borboleta pousa nas dobras de sua roupa. Ele olha as nervuras frágeis das asas coloridas da borboleta. Ele sabe aquelas asas são como um mapa. Se procurar, encontrará nelas o poema perfeito. Ou a verdade que existe nas muitas verdades. Basta ler com cuidado. E Chang sabe que tem pouco tempo.
Chang avista um arado. O mar. Palácios. Ele avança com o olhar pelos desvios traçados nas asas da borboleta. E de repente, Lao.
“Enfim, Lao, nos reencontramos”.
Esse homem, com o rosto impresso nas asas da borboleta, foi outrora um camponês cuja miséria era tão grande que ele não agüentou e um dia enlouqueceu. Despertando de manhã, certa vez, ele convocou todos os seus empregados. Mas Lao nunca tinha tido empregados, nunca tinha sido servido, nem por homem, nem mulher, criança ou cachorro.
Seu filho, contemplando aquela majestade ridícula estampada no seu rosto, compreendeu que Lao não tinha conseguido sair do sonho daquela noite.
Sacudiu-o, sem ternura, mas não conseguiu trazê-lo novamente para o mundo sólido das sólidas coisas do mundo. E Lao então ficou no canto escuro da sua casa miserável, perfumando-se com perfumes imaginários, envolvido pelas mãos delicadas de uma mulher, também imaginária, que o servia.
Depois de sair o sol, ele sentou-se na praça do povoado e convocou seus súbditos. Homens, mulheres e crianças aproximaram-se curiosos, rindo e zombando dele. No meio da multidão, ele sorria, porque os outros rostos também sorriam, certamente de satisfação porque o tinham como senhor, pobre Lao.
Ele iniciou então um baquete imaginário, enquanto as pessoas lhe jogavam tufos de grama, folhas de árvore, cascas frutas, que ele ia comendo devagar, como se fossem finas iguarias. No fim, mandou cumprimentos aos cozinheiros, por tão grande habilidade na cozinha.
As pessoas, cansadas de zombarias, deixaram Lao no meio da praça, arrotando seu banquete imaginário. Assim ele instalou-se numa opulência fictícia e durante um ano viveu uma vida irrazoável, mas feliz.
Foi nessa época que Chang, cansado da vida na cidade, decidiu viver algumas semanas no povoado daquele que, agora, era apenas o “Simples”.
Nessa época Chang era o mais famoso médico do império. Logo que avistou Lao andando alegremente nos labirintos de sua loucura, foi tomado do desejo de exercer sobre ele a arte de seus conhecimentos. Não por generosidade nem pelo gosto do reconhecimento, mas apenas pela íntima e devoradora ambição: vencer o dragão da demência.
Ele então entrou também dentro dos labirintos da demência de Lao, lutando contra as sombras, até que no oitavo dia, conseguiu que Lao acordasse lúcido.
Ele acordou lúcido, sem a capa de protecção de sua demência, e achou seu corpo emaciado, seus olhos vermelhos e reencontrou a miséria. Ele perguntou-se, então, que pecado eu cometi, para voltar assim ao inferno, depois de um ano no paraíso?
Chang respondeu:
“Amigo, teu desespero me deixa alegre porque ele é uma prova de que estás curado. Meu trabalho chegou ao fim. Posso agora me retirar”.
Lao puxou-o pela manga e disse:
“Cínico! Olha bem para minha pele cheia de crostas, veja meu corpo miserável, minhas costelas purulentas, meu rosto amargurado. Como consegues dizer que me devolveste a saúde?”
“É bem verdade”, disse Chang, “que estás magro e mal vestido. Eu te aconselho a vestir alguma roupa de lã e a comer de maneira razoável, pelo menos duas vezes por dia. Se não tens dinheiro para pagar esses remédios elementares, nada posso fazer. Eu cuido da loucura das pessoas e não das loucuras da sociedade”.
Chang foi embora contente. Lao, desesperado, enforcou-se numa das vigas de sua casa.
No dia seguinte, o filho de Lao entrou com um processo contra Chang. Segundo ele, o médico havia envenenado a alma de seu pai e tinha ido embora sem se preocupar com os danos que havia causado.
Os moradores do povoado foram interrogados um por um e pareciam todos de acordo: Chang tinha quebrado a serenidade do Simples. Devia ser punido, portanto. O juiz mandou chamar o médico, que fez sua defesa com simplicidade.
“Meus conhecimentos trazem a cura aos loucos”, disse ele, “e por isso eu faço o bem. Eu apenas trouxe Lao de volta, porque sua felicidade era ilusória”.
“Mas toda felicidade não é ilusória?”, quis saber o juiz. “E tu mesmo, Chang, que precipitaste nas trevas da morte esse camponês miserável, apenas para ter o prazer orgulhoso de despojá-lo de uma ilusão, tu também não mostras que estás louco, agindo assim?”
Chang não respondeu. O Juiz leu a sentença:
“Homem sabido, mas pouco sábio, vais viver solitário a partir de agora. E para não ser tentado a se perder na própria loucura, serás condenado também a quebrar todos os espelhos. Nós esperamos que Lao, o Simples, um dia te perdoe. Vai, e que tua presença não seja uma sombra para o nosso olhar.
Hoje, vinte e sete anos se passaram, talvez mais. Chang não é mais assim, tão sem razão, a ponto de contar os dias, porque todos os dias são iguais uns aos outros, regressando sem cessar por diferentes artifícios, como as estações ou o capricho das nuvens.
Chang deixou de lado a canga de seu orgulho. Ele sabe agora que tudo é ilusão. Ele pega uma das pedras onde havia escrito seus versos e a joga nas águas. O espelho do lago se quebra, mas por um breve instante ele pode nele se contemplar. A borboleta voa e o homem sábio adormece na sombra de um salgueiro agitado pela brisa.