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28/07/2011

Lenda dos Sete Ais



A lenda que vou contar é um tanto estranha, na verdade. Mas justifica — segundo a tradição — o nome de um lindíssimo local do concelho da nossa famosa Sintra. Desta vez, porém, não foi nenhum velho nem velhinha quem me contou a Lenda de Seteais, mas sim uma jovem de alma sonhadora que vive sempre debruçada sobre as histórias românticas do nosso País. Histórias que ela escuta em noites de Inverno, junto à lareira, contadas por seus avós…

Quando D. Afonso Henriques, ajudado por uma esquadra estrangeira, conquistou Lisboa aos Mouros em 25 de Outubro de 1147, o castelo de Sintra rendeu-se sem resistência, apenas sob a condição dos mouros seus moradores se poderem estabelecer em terras vizinhas, o que lhes foi outorgado.
Entre os cavaleiros mais chegados ao rei, estava o jovem D. Mendo de Paiva, um dos designados pelo monarca para ocupar o castelo. D. Mendo foi o primeiro a subir a serra de Xentra. Chegado ao alto, parou um instante. A azáfama era enorme. Fazia-se a retirada. Chocavam-se os homens e as mulheres, em vozearia. Os mouros mais destacados utilizavam uma saída secreta, que D. Mendo não tardou a descobrir — no momento preciso em que uma jovem moura ia a sair por ela, acompanhada da sua velha aia. Ao vê-lo, a fugitiva afligiu-se, pois esperava poder escapar aos olhares dos vencedores. Com o nervosismo da surpresa, gritou. Zuleima, a sua velha aia, ficou ainda mais aflita. E indagou, com o medo estampado no rosto:
— Anasir! Por que gritaste?
Ela respondeu, mal refeita ainda do susto:
— Não pude conter este meu ai.
D. Mendo sorriu. E perguntou, cavalheiresco:
— Senhora, causo-vos assim tanto medo?
A jovem moura tapou o rosto com os véus e respondeu:
— Sois cristão, e não estava preparada para encontrar-vos.
Ele barrou-lhe a passagem. Sorria sempre. E perguntou:
— Por que escondeis tão grande beleza sob esses véus?
A resposta foi pronta:
— Porque não deveis conhecer o meu rosto!
Sorriu mais ainda o fidalgo cristão.
— Mas o destino quis que vos visse! Todavia… talvez tivesse sido melhor não vos ter encontrado!
Foi a velha aia quem perguntou:
— Porquê, senhor? Não ides permitir que partamos? Temos licença de sair em liberdade. O que pretendeis são os nossos bens e as nossas terras, não é assim? Pois aí fica tudo! Posso partir?
D. Mendo respirou fundo, e quase maliciosamente retorquiu:
— Sim, podes partir. Deixa-me tudo... sem esquecer a tua querida ama!
Aflita, Anasir soltou novo grito de susto, embora desta vez mais abafado. Mas logo Zuleima lhe pegou nas mãos, presa de novo pavor.
— Anasir, minha querida ama! Já é o segundo ai num tão curto espaço de tempo! Evitai essa exclamação, peço-vos!
D. Mendo olhou a velha aia com surpresa. Não menos surpreendida, a jovem moura repreendeu a sua companheira.
— Não te compreendo, Zuleima. No momento em que o inimigo te propõe deixares-me abandonada, só te preocupas com a minha pobre exclamação de repulsa e tristeza?
Zuleima mostrou-se ainda mais aflita. Tentou justificar-se:
— Querida Anasir! Vós não podeis entender-me porque ignorais a razão do que me atormenta. Mas confiai em mim. Sabeis que vos amo e que por vós daria a vida. Não solteis mais nenhum ai! Quanto ao cavaleiro cristão, vai agora ouvir-me.
D. Mendo apressou-se.
— Pois falai, velha Zuleima! É este o teu nome, não é verdade?
Veio seca, a resposta.
— É. Bem o entendeste, na boca da minha ama.
— Fala, então!
— Pois bem! Ouvide. Vou sair deste castelo, mas levando comigo a jovem princesa, que me foi confiada pela mãe, à hora da morte. Estava também a cargo do governador deste castelo; mas o medo falou nele mais alto que o dever. E partiu com a família pela passagem secreta. Agora, Anasir só tem o carinho desta humilde serva!
D. Mendo perguntou:
— É tudo quanto tens para dizer-me?
— Assim o creio, pois vamos sair e espero não tornar a encontrar-vos.
D. Mendo replicou:
— Pois vou fazer segunda proposta. Ficarás acompanhando a tua querida menina. Mas apressa-te a seguir-me. Não quero que te vejam!
Anasir interrompeu-o.
— Senhor! Tratais-nos como despojos de guerra! Não fazemos parte das alfaias que ficam neste castelo!
D. Mendo olhou fundo nos olhos negros da jovem moura. Adoçou a voz.
— Anasir! Seria difícil explicar-vos agora porque não consentirei em deixar-vos. Mas tentarei quanto me for possível para vos fazer feliz!
— Agora tomais-vos misterioso?...
— Vereis que não existem mistérios. Há apenas necessidade de partir, e já!
Zuleima atalhou:
— Oiço ruído! Parece um exército!
— São os meus homens que chegam. Não há tempo a perder! Se vos vêem...
Passos apressados soaram perto. Anasir assustou-se e gritou. Mas já D. Mendo lhe tapava a boca com a mão:
— Senhora! É preciso que vos leve daqui sem que vos vejam!
Porém, mais pálida ainda, Zuleima apontava a sua jovem ama quase sem poder falar. Anasir indagou:
— Que estais vendo?
Ela esclareceu:
— Não vejo: ouvi! Ouvi o vosso terceiro ai num espaço de tempo tão curto!
— E que tem isso, Zuleima?
Como se estivesse vendo um fantasma, a velha aia exclamou:
— É o destino a marcar-nos com o fogo da sua destruição! E porquê? Porquê?...
Alteava já a voz, indiferente ao que pudesse surgir depois. Apontou o cavaleiro D. Mendo.
— Fostes vós, cristão, que nos trouxestes a desgraça! Fostes vós!
Vendo-a tão desesperada, Anasir tentou acalmá-la.
— Zuleima! Que se passa?
Esta respondeu no mesmo tom de amargura:
— Prometei-me! Prometei-me, Anasir, que não soltareis mais nenhum ai! Fazei essa graça à vossa humilde serva!
Anasir olhava-a, perplexa. D. Mendo também. Por fim, a princesa moura acalmou-a.
— Se isso te dá alívio, prometo-te, Zuleima, que farei o possível para não pronunciar mais nenhum ai. É isso o que pretendes?
— Sim, minha querida ama!
Soaram vozes muito perto. Eram os cristãos que chegavam junto ao corredor que dava para a parte sul da serra. D. Mendo tomou Anasir por um braço e segredou-lhe, quase:
— Vinde comigo! Quero isolar-vos dos que estão a chegar. Tenho aqui perto um grande terreiro e uma pequena casa. A paisagem é maravilhosa. Sabeis montar?
Ela respondeu:
— Sei. Dai-nos um só cavalo. Isso nos bastará. Eu levarei Zuleima.
D. Mendo meneou a cabeça.
— Perdoai-me, mas a experiência tornou-me desconfiado. Vós ireis no meu cavalo e Zuleima montará outro.
— Ela monta mal, senhor!
— A distância é curta. Além disso, não tendes por onde escolher.
— E se eu recusar?
O olhar de Anasir era um desafio. D. Mendo cobrou energia, e declarou:
— Se recusardes... levar-vos-ei à força e separar-vos-ei de Zuleima!
Resoluto, pegou-lhe com certa violência num pulso. Ela gritou:
— Ai!
Zuleima agarrou-lhe os vestidos. Nasceram lágrimas nos seus olhos.
— Senhora, senhora!... Havíeis prometido!... E afinal...
Anasir respirou fundo. Parecia confusa.
— Tens razão. Mas não compreendo...
As vozes dos cristãos estavam mais perto ainda. D. Mendo impôs-se.
— Partamos!
E em breves instantes o cavaleiro cristão ajudava Zuleima a montar num cavalo, e colocava Anasir no seu, dirigindo-se para a casinha do terreiro...

Começava o Sol a descer, quando D. Mendo acabou de instalar na casa a princesa moura e a velha aia.
Anasir olhou em volta. Sentou-se comodamente. Sorriu. Zuleima investigava o brilho do olhar da sua jovem ama. Declarou, confusa:
— Não vos entendo.
Ela olhou-a.
— De que te admiras?
Respeitosa, embora deixando transparecer na inflexão das suas palavras um pouco de censura, Zuleima elucidou:
— Senhora, somos mouras... Vós sois princesa. Perdemos uma guerra. E vós, mais do que isso: perdestes Aben-Abed!
Ela voltou a sorrir.
— Sim, Zuleima, perdemos uma guerra. Agora é necessário encontrar a paz. Quanto a Aben-Abed... creio que não o perdi: foi ele que me perdeu...
— Que dizeis?
Anasir olhou D. Mendo, que a escutava em silêncio. E perguntou:
— Senhor!... Já alguma vez amastes?
Ele respondeu, convicto:
— Até hoje, não!
Ela continuou:
— Pois bem: se de hoje em diante amásseis, seríeis capaz de deixar ao abandono a escolhida do vosso coração, só porque o inimigo estava perto e era necessário fugir?
D. Mendo aproximou-se. Pegou numa das mãos da princesa moura e levou-a aos lábios, dizendo:
— Senhora, a resposta trouxeste-a convosco. Não parti sem vos trazer, Anasir!
Ela baixou os olhos. Destapou o seu lindo rosto.
— D. Mendo... Gosto desta casinha! Creio que ficarei aqui até o desejardes.
Ele apertou entre as suas mãos possantes as mãos delicadas da jovem moura e afirmou, com toda a força do seu coração:
— Querida Anasir! Prometo que sereis feliz!

Anasir e Zuleima viviam semicativas na casinha do terreiro, onde D. Mendo as escondera de mouros e cristãos. Amava Anasir e não queria perdê-la. Desejava a sua permanente companhia.
Contudo, temia as censuras do rei. Saía às escondidas, de vez em quando. Mas voltava logo que podia voltar.
Certa tarde, porém, D. Mendo regressou pouco depois de ter saído. Ao vê-lo, Zuleima indagou, curiosa:
— Vós... já de volta?
D. Mendo parecia preocupado.
— Ouve, Zuleima! Descobri que andam a rondar estes sítios. É preciso que a tua ama não saia de casa!
Ela assustou-se.
— A rondar, dizeis? Mas quem? Algum cristão vosso amigo?
Enervado, o cavaleiro declarou:
— São mouros! Mouros meus inimigos! Falaste num tal Aben-Abed. Será ele… ou alguém por ordem dele?
Zuleima abriu os olhos, num espanto.
— Aben-Abed?... Sim, talvez seja ele… ou alguém por ordem dele... Anasir atraiçoou-o… Que Alá nos proteja!
D. Mendo irritou-se:
— Esse tal Aben foi um cobarde! Fugiu, deixando-a entregue ao seu destino! Perdeu o direito ao seu amor. O seu destino, agora — sou eu!
A velha ama estava pálida e atarantada.
— Bem sei. Mas ele... virá matá-la... E eu não quero... não quero!...
— Nem eu! Escuta. Se eles conseguirem levar Anasir, juro-te que arrasarei tudo, compreendes? Não escapará nem um só mouro dos que andam por aí em liberdade!
Zuleima retorquiu, já mais serena:
— Descansai, cavaleiro! Ninguém nos levará daqui! A minha querida menina também vos ama. Se assim não fosse, já se teria suicidado, acreditai!
— Onde está ela, Zuleima?
— Foi descansar. Mas eu vou chamá-la.
— Não! Eu esperarei. Entretanto, esclarece-me um ponto que continua para mim envolto em mistério.
— Que é, senhor?
— Por que te afligiste tanto quando Anasir pronunciou um ai? Se ela gritar com outra exclamação qualquer, tu não te alteras...
Zuleima ficou a olhar por momentos um ponto vago no espaço. Depois voltou a olhar para o rosto de D. Mendo. E falou:
— Senhor! A vós posso contar o que há muito me foi dito. Quando a minha ama nasceu, uma feiticeira disse que Anasir morreria ao pronunciar o sétimo ai.
— E ela nunca pronunciara essa exclamação enquanto pequena?
— Nunca!
— Nem mesmo depois de crescida?
— Nunca, senhor! Compreendeis agora o meu desespero por ouvi-la exclamar quatro ais quase a seguir?
D. Mendo ficou pensativo.
— Zuleima! Por mim... prefiro não acreditar em profecias de feiticeiras.
— Mas eu acredito, senhor!
— De qualquer modo, tentaremos evitar que Anasir volte a proferir tal exclamação — que, por desgraça, é tão vulgar!
— Assim o desejo! Mas estou crente que o destino está contra nós... Nada poderemos fazer.
No limiar da porta que dava para a alcova, Anasir surgiu, sorrindo.
— Que surpresa agradável, meu senhor!
E censurando Zuleima:
— Por que não me chamaste?
— D. Mendo assim o determinou.
Ela tentou ralhar-lhe:
— Ai, meu senhor, por que fizeste isso?
Mas deixou de sorrir vendo a palidez de Zuleima. Voltou-se para o cavaleiro:
— D. Mendo! Achais que Zuleima se assusta com razão quando eu grito: Ai?...
D. Mendo não conseguiu esconder certa apreensão. Zuleima chorava em silêncio.
O cavaleiro falou à sua amada:
— Sabeis decerto que na vossa religião se acredita em vaticínios de feiticeiras.
— Sei.
Propositadamente, D. Mendo mentiu, fingindo acreditar no que lhe dissera Zuleima.
— Pois bem: dizem que os ais vos trazem infelicidade.
Ela sorriu.
— D. Mendo! Não sei porque há-de Zuleima chorar!
Entre lágrimas, Zuleima respondeu:
— Porque vós, senhora, soltastes mais dois ais! São já seis, senhora! Seis!...
Ela olhou-a, perplexa:
— E isso que tem? Desde que os pronuncio é que conheço a felicidade! E a vós a devo, D. Mendo!
O cavaleiro cristão apertou nos braços a jovem moura.
— Querida! Como gostaria de ficar sempre ao pé de vós!
— Por que não ficais?
— Sou obrigado a ausentar-me por algum tempo. O meu senhor, el-rei D. Afonso Henriques, nomeou-me para nova empresa.
O sorriso desapareceu do rosto da jovem moura.
— Ides... combater os mouros?
— Sim.
— E tendes mesmo de obedecer?
— Sou guerreiro, e devo obediência ao meu rei.
— Pois ide! Continuarei a amar-vos, apesar de quanto tenta separar-nos! Quando partis?
— Depois de amanhã.
— Seguireis aquela estrada que se vê além?
— Sim.
— Pois ficarei sentada naquele penedo, a olhá-la, até os meus olhos não poderem distinguir-vos mais!
— Minha doce Anasir! Por que há-de o mundo separar os namorados?
Ela olhou-o através de um véu de lágrimas.
— Porque esta terra é uma terra de mágoa e de dor! Pagamos bem caro cada minuto de felicidade!
Como se a tarde se quisesse associar à súbita tristeza de Anasir, o Sol escondeu-se por detrás da serra, numa pequena nuvem de estranho desenho...

Mais sete dias passaram, segundo a lenda. Anasir parecia uma sombra deslizando na pequena casa do terreiro. A saudade pelo jovem cristão punha-lhe na alma o amargo da espera. Entretanto, Zuleima espiava os arredores. Também ela descobrira sombras suspeitas que rondavam a casa. E, de súbito, a algazarra de um grupo de mouros que haviam entrado no terreiro pô-la em louco sobressalto. Zuleima correu a ver de que se tratava. Anasir seguiu-a. Então, entre os mouros um se destacou. Era Aben-Abed. Zuleima gritou-lhe:
— Por que vens agora, se já abandonaste o que era teu?
Aben-Abed olhou-a com rancor.
— O que é meu é sempre meu!
Vendo-o caminhar para Anasir, Zuleima colocou-se na sua frente, e gritou-lhe:
— Vai-te! Afasta-te do nosso caminho e segue o teu! É melhor assim!
Mas Aben-Abed continuou a caminhar direito a ela, vagarosamente.
Pálida de susto, Anasir parecia ter perdido a fala. Zuleima protegia-a com o seu corpo.
Então, Aben-Abed levantou o alfange, e sem mais palavras cortou de um só golpe a cabeça da velha e dedicada aia.
Louca de aflição, Anasir soltou o sétimo ai, que ficou repercutindo no espaço. Vendo o algoz da que fora a sua segunda mãe, a jovem moura gritou-lhe:
— Maldito sejas, Aben-Abed!
A voz, porém, extinguiu-se-lhe na garganta. O mouro ferira-a no peito. E era mortal, a ferida.
No horizonte surgiu uma mancha de fogo. Aben-Abed fugia pela segunda vez, abandonando as suas vítimas. O silêncio voltou a reinar na casinha do terreiro. Um silêncio profundo. Um silêncio de morte.

Quando o jovem D. Mendo regressou e soube da horrível tragédia, ficou louco de dor. Deu ao terreiro que lhe pertencia o nome de Seteais, em memória da jovem moura que ele tanto amava. Ao sair dali, jurou eterna vingança.
E nunca D. Afonso Henriques chegou a compreender a razão porque o seu súbdito D. Mendo de Paiva se tornara, desde a tomada do castelo de Sintra, um dos mais ferozes caçadores de mouros...


Gentil Marques
Sintra