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02/09/2008

O Anjo

DE cada vez que morre uma criança, vem um anjo a terra, toma o menino em seus braços, estende as suas grandes asas brancas e voa por todos os lugares que a criança amou durante sua vida.
Então, o anjo colhe um punhado de flores que leva à presença de Deus, para que ali vivam mais viçosas do que na terra. O bom Deus aperta as flores contra o peito, porém beija aquelas que prefere entre todas.
Esse beijo lhes dá voz e palavras e assim elas podem tomar parte nos hinos de louvor eterno ao Criador.
Isso foi o que contou um anjo, ao levar para o céu um menino morto e este ouvia como se fosse um sonho; depois voaram por cima daqueles lugares em que o pequeno costumava brincar e assim visitaram vários jardins cheios de flores.
– Quais as que levaremos para plantar no céu? – perguntou o garoto.
À curta distância havia uma bela roseira, mas certa mão malvada quebrava o caule e seus ramos pendiam quase murchos.
– Pobre roseira! – exclamou o menino –Vamos levá-la, para que floresça no jardim de Deus.
O anjo apanhou a roseira e beijou o menino por ter tido tão bela ideia. O pequeno abriu os olhos. Também escolheram algumas flores magníficas, sem se esquecerem as desprezadas maravilhas e as pequenas margaridinhas.
– Agora já temos muitas flores – disse o menino.
O anjo concordou inclinando a cabeça, mas ainda não levantou voo em direção ao tesouro céu. Era noite e esta estava muito aprazível e tranquila.
Ficaram na grande cidade e voaram por cima de uma rua estreita, cheia de palha e de lixo. Era fim de mês e havia várias mudanças na rua, de maneira que esta estava cheia de coisas velhas, inúteis e sujas.
No meio do lixo, o anjo descobriu um vaso quebrado e alguns torrões de terra presos pelas raízes de uma flor silvestre, grande e amarela. Não servia para nada e por isso tinha sido jogada à rua.
– Levaremos também esta flor – disse o anjo. – já lhe explicarei o motivo durante o voo.
Realmente, enquanto voava, o anjo disse:
– Nesta rua estreita, num dos sótãos mais escuros, vivia um menino pobre o doente. Desde pequenino que não abandonara o leito. Quando melhorava, só podia passear um pouco pelo aposento, apoiando-se nas muletas. Nada mais. Durante os dias de verão o sol iluminava o quarto da frente por espaço de meia hora mais ou menos. O menino ia sentar-se ao sol para aquecer-se e olhava para o sangue de seus dedos fracos e transparentes, que levava à frente dos olhos. Em tais ocasiões diziam dele: “Hoje ele, saiu”.
Tudo o que sabia dos bosques em seu primeiro frescor da primavera devia aos ramos de faia que lhe levava um menino vizinho. Levantava-os sobre a cabeça e sonhava estar sentado ao pé da faia, onde brilhava o sol e cantavam os pássaros.
Certo dia o vizinho levou-lhe também algumas flores silvestres e, entre elas, havia por acaso, uma com raízes. Plantou-a num vaso e -la colocar na janela, perto de sua cama.
Uma mão carinhosa cuidou da planta, que cresceu, deitou novos ramos e durante alguns anos deu lindas flores. Para o menino doente aquele era um formoso jardim e o maior tesouro da terra.
Regava e cuidava dela. Cresceu em seus sonhos, floresceu até o dia em que o Pai Celestial o chamou para si.
Regava e cuidava da planta, fazia o possível para que recebesse a maior quantidade de sol possível, tanto quanto este chegava até a pequena janela.
Cresceu em seus sonhos, floresceu para ele e para ele também espalhava seu aroma e alegrava seus olhos. E com o rosto virado para ela morreu, quando o Pai Celestial o chamou para si.
Agora, faz um ano que tem um lugar na presença de Deus e durante esse tempo a flor foi esquecida na janela, onde murchou, e, ao levarem a mudança, foi jogada ao monte de lixo da rua. E é essa flor que estamos levando incorporada ao nosso ramo, porque ela proporcionou mais alegrias do que a flor mais preciosa do jardim da rainha.
– Como sabe de tudo isso? – perguntou o menino nos carinhosos braços do anjo.
– Porque era eu o menino doente, que andava de muletas. E pode estar certo de que conheço muito bem a minha flor.
O menino abriu muito os olhos, fitou o formoso e feliz rosto do anjo e naquele instante chegaram ao céu, onde tudo era alegria e felicidade.
O Pai Celestial apertou o menino morto contra o peito e logo o recém-chegado recebeu um par de asas como o outro anjo, de modo que ambos puderam voar de mãos dadas.
E Deus apertou as flores contra o coração, beijando a pobre flor silvestre emurchecida, a qual recebeu o dom da voz e da palavra, e assim pôde unir-se ao coro de anjos que rodeava o Senhor.
Alguns estavam muito perto, outros em círculos distantes, que se estendiam até o Infinito; mas todos eram igualmente felizes.
Todos entoavam a alegre canção, grandes e pequenos, o menino bom e a pobre flor silvestre, que tinha sido arrancada do monte de lixo de uma das ruas mais estreitas e sinuosas daquela cidade.

Hans Christian Andersen