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05/06/2010

Um simples caderno?



As rodas giravam mas enterravam-se cada vez mais fundo na areia, e o carro não saía do sítio. O motor acelerou e acabou por parar de vez.
A pele muito escura de Mumo brilhava com o suor. Saímos do carro. Os pés enterraram-se até aos tornozelos na areia escaldante. Todas as tentativas para empurrar o carro eram inúteis.
— A que distância estamos do Centro das Missões? — perguntou Willi.
— Dois quilómetros, talvez três — respondeu Mumo.
— Foi sorte o carro não se ter avariado há duas horas atrás — pensou Willi em voz alta. — Eu vou buscar ajuda. Em que direcção fica o Centro?
Mumo estendeu o braço numa direcção qualquer.
Eu só via areia até perder de vista, e alguns espinheiros.
— É melhor irem os dois — disse eu. Tinha muito medo que Willi se perdesse naquela imensidão de areia.
— Queres ficar a guardar o carro sozinha? — perguntou Mumo num tom duvidoso.
— Guardar de quem? — perguntei-lhe a rir. Quem iria assaltar um carro em pleno deserto do Koroli?
— Há muitas pessoas, muitas tribos diferentes, todas muito pobres aqui, em North Horr — disse Mumo com ar sério.
Sentei-me na areia e encostei-me contra a porta do carro. Pelo menos assim estava um pouco mais protegida do vento quente que me fustigava o braço com minúsculos grãos de areia cortantes. Com os olhos, seguia os dois, que, afundados na areia e curvados para se protegerem do vento, se iam afastando, cada vez mais pequenos, até acabarem por se diluir no calor tremeluzente.
Antes que tivesse tempo de me assustar com a solidão daquele ermo, os dois pontos distantes tornaram a aumentar de tamanho. Os homens já estariam de volta? Mas afinal não eram dois, não! Três, quatro, cinco pontos foram crescendo na minha direcção. A ajuda que procurávamos estaria afinal tão perto?
Levantei-me. Os olhos ardiam-me por causa da areia, do vento e do sol incandescente. Seria alguma assombração?
Os pontos transformaram-se em formas, e as formas, em crianças a correr. Crianças que corriam na minha direcção e cada vez em maior número!
Em pouco tempo vi-me rodeada por um bando de crianças nuas, semi-nuas, embrulhadas em trapos, crianças grandes e pequenas. Algumas traziam bebés às costas, outras arrastavam crianças mais pequenas pela mão. Todas de olhos encovados e corpos famintos. Nenhuma se acercou mais de cinco metros.
Fixavam-me, espantadas e de boca aberta, sem um único sorriso para a curiosa aparição que eu devia ser para elas.
Mulheres adultas, com os panos das suas vestimentas ondulando ao vento, aproximavam-se, mais lentas do que as crianças. Também elas eram magras, algumas velhas, outras novas, mulheres grávidas, mulheres com bebés ao peito e de todos os tons de pele, desde castanho “café com leite” até preto escuro. Ficaram em silêncio atrás das crianças e olhavam-me também fixamente.
“Mas que rico encontro!”, pensei eu.
Encostei-me ao jipe. A chapa quente do carro queimava-me a pele através da camisa. E assim ficámos a olhar fixamente uns para os outros, calados e imóveis: mulher branca olha para pretos e pretos olham para mulher branca.
— Olá! — disse eu, quando não aguentei mais.
Ninguém respondeu. Ninguém se mexeu um milímetro sequer, ou mostrou uma cara simpática.
A ideia de que os dois homens poderiam demorar horas até regressarem com ajuda encheu-me de medo. Será que tinha de ficar horas a olhar para os nativos e a ser observada fixamente por eles? Não ia aguentar.
Fiz uma nova tentativa. Com cuidado, acocorei-me, como os africanos fazem. Os meus olhos estavam agora ao nível dos das crianças que se encontravam mais perto de mim. Comecei a cantar: “Todos os patinhos sabem bem nadar…” procurando olhá-las nos olhos.
De repente, as mulheres recuaram. Ocorreu-me a ideia absurda de que teriam pensado que eu queria enfeitiçar as crianças. Mas um dos meninos aproximou-se e estendeu o bracinho magro na minha direcção. Eu segurei-o, com cuidado, e comecei a contar os dedos: “Este é o mindinho…” A criança recolheu o braço, assustada.
Da última fila, alguém empurrava e furava para passar. Uma menina com cerca de doze anos conseguiu por fim chegar à frente e perguntou-me timidamente, em inglês, se estava a cantar canções infantis. Eu acenei que sim, aliviada, e perguntei se podíamos conversar um pouco em inglês. Ela acenou igualmente. Em seguida virou-se para as mulheres e disse-lhes algo em Suahili que, aos meus ouvidos, soou como se estivesse a acalmá-las.
Isto encorajou-me a fazer-lhe mais perguntas. Se ia à escola das Missões? Acenou que sim, com orgulho. Depois, perguntou-me de onde vinha e pareceu traduzir a minha resposta às mulheres.
O gelo estava quebrado. As mulheres murmuraram alguma coisa e, de repente, vi-me cercada por elas.
— Há muita água no teu país? — quis saber a menina. — E árvores verdes?
Acenei que sim e comecei a falar. Falei das nossas montanhas e dos lagos, das nossas crianças, e de como todas eram obrigadas a ir à escola. A menina traduzia, palavra a palavra, e as crianças e as mães estavam espantadas e incrédulas.
Com os dedos, desenhei na areia montanhas, vacas, árvores, e a forma das nossas casas, mas o vento forte depressa apagava os meus desenhos.
Levantei-me e meti o braço pela janela do carro. Sabia que tinha um caderno e um marcador na minha carteira. Tirei as duas coisas mas tive de as segurar no ar, acima da cabeça. Os africanos, grandes e pequenos tinham-se, entretanto, acercado de tal forma contra mim, que mal me podia mexer.
Depois de ter pedido um pouco de espaço, abri o caderno em cima do capot escaldante do carro. Mais uma vez, desenhei montanhas, lagos, árvores, vacas e casas.
As crianças treparam para cima do carro, empurravam-me, penduravam-se em mim. Todas queriam ver e tocar no papel branco e macio.
Deitada de barriga para baixo no tejadilho do carro, a minha intérprete via tudo do alto, fazia-me perguntas e pedia-me para desenhar as respostas e levantar o caderno, para todos poderem ver aquelas coisas maravilhosas e inacreditáveis.
— És professora? Vens para aqui? Vais ficar aqui, connosco? Trouxeste um caderno desses para cada um de nós?
As perguntas choviam de todos os lados. Envergonhada, tive de responder não a todas.
Um barulho ao longe fez-me erguer a cabeça. Da direcção em que Mumo e Willi haviam desaparecido aproximava-se um jipe. A nossa ajuda estava a chegar.
Dei o caderno à menina, que me olhou radiante com os seus grandes olhos, mas ainda antes de ter podido dizer thank you, cerca de trinta ou quarenta pares de mãos estenderam-se e tentavam apanhá-lo. A preciosidade acabou por ser conquistada por um rapazinho.
Protestei com veemência mas ele não ligou às minhas palavras. Subiu para um monte de areia, chamou as crianças com o braço e com os dedos ágeis tirou os agrafos do caderno.
Como rei que distribuía as riquezas do seu reino, distribuiu ele as folhas brancas e lisas.
Não estava à espera disto. Emudecida, compreendi. Estava a zelar para que todos tivessem uma parte do tesouro. Sorria, orgulhoso, com o marcador enfiado no cabelo encarapinhado.
Como o caderno era grosso, quando o jipe chegou, já quase todas as crianças tinham uma folha na mão.
— Estás bem? — perguntou Willi, preocupado, ao ver-me no meio daquela multidão. Limitei-me a acenar com a cabeça.
Enquanto os homens prendiam o cabo no nosso carro, atei rapidamente o meu lenço à volta da cabeça da minha pequena intérprete.
— Vais voltar? — perguntou-me, no momento em que eu entrava para o carro.
— Vamos tentar — prometi-lhe.
Durante a viagem até North Horr — eram mesmo só dois quilómetros — contei a Willi a minha aventura.
— Nem quero pensar no meu cesto de papéis lá de casa — terminei.
— Vais ver que havemos de arranjar forma de lhes enviar cadernos e lápis. – disse Willi para me consolar.
E assim fizemos.


Brigitte Meissel
Conto Africano

Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
Tradução e adaptação