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14/03/2008

Adultério com os olhos


Quando as três irmãs estavam brincando com o carregador (história do Carregador e as jovens mulheres), bateram à porta. A irmã mais nova foi abrir e voltou, dizendo: "Completou-se nossa alegria esta noite, pois encontrei à porta três estrangeiros semi-anões do tipo Saaluks tendo cabeça pequena e pescoço fino. Os três têm a barba raspada e bigodes compridos e são zarolhos do olho esquerdo, e cada um apresenta um aspecto mais divertido que o outro. Pediram-me asilo. Se os deixarmos entrar, vamos nos divertir gostosamente às suas custas”.As duas outras irmãs concordaram e os três Saaluks foram admitidos. Após cumprimentar a todos, animaram-se de repente e tomaram parte na festa, tocando alaúde, tamborim e flauta, dançando e cantando. Depois, cada um deles contou sua história. A do segundo Saaluk é a mais divertida. Disse: Em verdade, eu não nasci zarolho, e a história que vou contar é tão assombrosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, serviria de lição a todo homem circunspecto. Embora esteja hoje mal vestido e de aparência comum, eu sou um rei, filho de rei, um homem educado acima do normal. Li o Alcorão e os livros dos mestres e aprendi as ciências e os segredos dos astros. Minha fama espalhou-se a tal ponto que, um dia, o rei da Índia solicitou a meu pai que me deixasse visitá-lo. Meu pai consentiu e mandou preparar seis navios para acompanhar-me, enchendo-os dos presentes mais preciosos. Após navegar trinta dias, chegamos a terra firme, carregamos os dez cavalos e dez camelos que estavam conosco com os presentes destinados ao rei da Índia e iniciamos a marcha. Mas logo fomos assaltados por um bando de sessenta árabes do deserto, os quais mataram meus escravos, apoderaram-se de meus cavalos e ameaçaram matar-me também. Fugi e me refugiei numa gruta encontrada por acaso. No dia seguinte, sai de meu esconderijo e pus-me a caminhar até que cheguei a uma grande e bela cidade que a primavera cobria de rosas. Estava errando pelas ruas quando passei pela porta de um alfaiate que cosia na sua loja. Cumprimentei-o, e ele me cumprimentou, e sentimos uma mútua simpatia ligar-nos. Convidou-me a entrar, e vendo-me pálido e exausto ofereceu-me o que comer e beber e perguntou-me de onde vinha. Contei-lhe minha história. - Meu simpático amigo, disse-me, não contes tua história a ninguém por aqui, pois o rei desta terra é inimigo de teu pai por causa de uma antiga desavença, e espera uma oportunidade para vingar-se dele. Quanto a teu saber, de nada te pode servir neste ambiente onde ninguém se interessa por cultura ou sequer sabe ler. Resigna-te, aceita minha hospitalidade, descansa três dias, depois apanha um machado e vai cortar lenha na floresta até que Alá te abra uma porta melhor. Segui as sugestões de meu novo amigo. Após descansar, comprei um machado e, todos os dias, acompanhava os outros lenhadores. Cortava lenha que carregava sobre a cabeça e vendia nas ruas por meio dinar. Um dia, enquanto cavava a terra em volta das raízes de uma árvore, meu machado ficou preso no anel de uma placa de cobre. Levantei a placa e descobri uma escada. Desci pela escada e, ao fundo, deparei com uma porta. Abri-a e achei-me na sala de um magní6co palácio. E lá encontrei uma jovem mais bela que todas as pérolas. Minha fadiga desapareceu por magia, ajoelhei-me diante dela e adorei-a. Olhou para mim e perguntou: "És um homem ou um gênio?" Respondi: "Sou um homem”.- Como então pudeste chegar a este lugar onde vivo há mais de vinte anos sem ter visto um filho de Adão? Respondi: "Princesa, foi Alá que me conduziu até aqui para me compensar de minhas privações e sofrimentos”.E contei-lhe minha história. Chorou e contou-me a sua: "Sou a filha do rei Ifitamous, da Índia. Meu pai casou-me com meu primo, mas na própria noite do casamento, e antes que minha virgindade fosse tomada, o Afrit Jurgis me raptou e trouxe-me para este palácio, que encheu com tudo que se possa desejar em iguarias, bebidas, vestidos e móveis. Desde então, vem passar uma noite comigo de dez em dez dias. Se precisar dele antes da noite marcada, basta-me esfregar essa inscrição que vês ali na parede. E ele logo aparece. A última vez que veio foi há quatro dias. Faltam seis dias para a sua próxima visita. Poderás ficar comigo até lá e ir embora antes de sua chegada. Pois ele é de um ciúme perigoso." E cantou para mim na mais melodiosa das vozes: Se soubéssemos de tua vinda, teríamos espalhado nosso coração como um tapete para teus pés. Depois, passamos uma noite mais cheia de prazeres que as noites prometidas aos fiéis no Paraíso. Perguntei-lhe: "Não me deixarás levar-te deste subterrâneo e livrar-te do gênio?" Respondeu: "O pobre Afrit tem apenas uma noite e tu tens nove. Satisfaze-te assim”.Eu, entretanto, na minha paixão e estupidez, quebrei a inscrição mágica deixada pelo Afrit, supondo que o impediria assim de voltar àquela morada. Mas ele logo apareceu, um gigante capaz de derrubar sozinho um exército inteiro. Fugi pela escada, mas, na minha agitação, esqueci minhas sandálias e meu machado.
- De quem são esse machado e essas sandálias, ó traidora infame? perguntou o Afrit. - Nunca reparei neles, respondeu a jovem. Talvez os tenhas trazido, agarrados a tuas vestes, sem o perceber. - Tu te tornas ainda mais culpada, acrescentando a mentira à traição, bradou o Afrit. E pondo-a toda nua, crucificou-a entre quatro estacas e começou a bater nela. Não podendo agüentar vê-la maltratada assim, saí pela abertura e recoloquei a tampa no lugar. Mal tinha chegado à casa do alfaiate, chamaram-me da rua, dizendo que um mouro achara meu machado e minhas sandálias e queria mos devolver. O Afrit tinha, com efeito, apanhado minhas coisas e interrogado todos os lenhadores até descobrir que eram minhas. Arrastou-me e levou-me de volta ao palácio da moça, e disse-lhe: "Eis teu amante, desavergonhada rameira." Ela negou conhecer-me. "Neste caso, corta-lhe a cabeça com esta espada," ordenou o gênio. Mas ela parou diante de mim e largou a espada sem força para me matar. - É tua vez, disse-me o gênio. Corta-lhe a cabeça. Olhei para ela e olhou para mim. - Cometeste adultério com os olhos, gritou o Afrit, e cortou-lhe os pés e os braços e, depois, a cabeça. Quanto a ti, disse-me, como não tenho provas de que cometeste adultério com ela, não te matarei; mas, para que não penses que me enganaste, vou te enfeitiçar. Que preferes ser: um asno, um cachorro, uma mula, um corvo ou um macaco? Escolhe rapidamente. Comecei a suplicar-lhe, mas ele me apanhou, subiu comigo ao espaço até que vi a Terra do tamanho de uma bola de gude; depois, depositou-me no cume de uma montanha, feito macaco, um macaco de horrível aspecto. E sumiu. Vivi lá meses. Desci mais tarde pouco a pouco até a costa. O capitão de um navio mandou apanhar-me para levar-me de presente à filha de seu rei. Assim que ela olhou para mim, cobriu a face e disse ao pai: "Este não é um macaco. É um príncipe, filho do rei Ifitamous. Foi enfeitiçado pelo Afrit Jurgis. E ele não é apenas um homem, é um homem culto, sábio, educado”.- Confirmas o que minha filha disse de ti? Perguntou o rei, olhando-me fixamente. Abanei a cabeça e comecei a chorar. Voltando-se para a filha, o rei perguntou-lhe como sabia dessas coisas. Respondeu: "Lembras-te da velha que me servia de babá quando era menina? Foi ela que me ensinou a magia. Depois, aperfeiçoei-me, estudando centenas de livros e códigos secretos. Hoje, sou capaz de remover este palácio com seus fundamentos e mesmo esta cidade inteira para o outro lado do monte Ka£" - Então, em nome de Alá, exclamou o rei, liberta este jovem para que faça dele meu vizir. A moça pegou uma faca que tinha palavras hebraicas gravadas num lado, fez com ela um círculo no ar e pronunciou palavras mágicas; e, de repente, o próprio Afrit Jurgis surgiu no meio da sala, com olhos feito tições, e disse à 6lha do rei: "Ó pérfida, não concordamos que nenhum de nós contrariaria o outro? Bem mereces a sorte que te espera”.E, de súbito, o Afrit transformou-se num leão e precipitou-se sobre a rapariga para devorá-la. Ela, porém, com uma velocidade de raio, arrancou um fio de seu cabelo, transformou-o numa espada e com ela cortou o leão em dois. Mas a cabeça do leão transformou-se num escorpião gigante, e a moça reagiu, transformando-se numa serpente. Ambos travaram uma luta feroz. Em seguida, o escorpião transformou-se num abutre e a serpente em águia. Depois, o abutre transformou-se num gato e a águia num lobo. Finalmente, a moça virou uma tocha enorme e queimou o terrível Afrit.
A princesa aspergiu-me então com água mágica, repetindo: "Em nome de Alá Todo-Poderoso, volta à tua primeira forma!" Foi assim que me tornei de novo um ser humano, mas tendo um olho só. Em seguida, a moça orou ao fogo, e chispas negras emanaram do corpo queimado e invadiram-lhe o peito e o rosto, enquanto repetia: "Juro que não há Deus senão Alá e que Maomé é o mensageiro de Alá." De repente, vimo-la pegar fogo e ser reduzida em pouco tempo a um monte de cinzas ao lado das cinzas do Afrit. Chorando e lamentando a perda da filha, disse-me o rei: "Jovem, antes de tua chegada, todos aqui vivíamos na felicidade. Agora, por tua causa, perdi minha 6lha que valia mais que cem homens. Pudéssemos nunca ter visto teu rosto de mau augúrio. Sai deste país. O que já nos aconteceu por tua causa basta!" Saí satisfeito, apesar de ter perdido um de meus olhos, pois dizia a mim mesmo: `Antes a perda de um olho do que a de minha cabeça." Disfarcei-me em Saaluk para poder viajar em segurança. Percorri vários países e, finalmente cheguei a Bagdad.