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24/03/2008

A História de Kafur, o Negro

Irmãos, minha história começa quando eu tinha oito anos, pois já então era um mentiroso consumado. Nunca contei mais de uma mentira por ano, mas era uma mentira de tamanho brilho que meu dono, que era mercador de escravos, costumava cair no chão quando a ouvia. Finalmente, não podendo mais aguentar comigo, mandou oferecer-me à venda nestes termos: "Quem quer comprar um negro com um defeito?" Um comerciante perguntou qual era o defeito. Disseram-lhe que eu mentia uma vez por ano. Comprou-me, defeito e tudo, por seiscentos dirhams. Meu novo amo vestiu-me com roupa que me caía muito bem, e vivi com ele pelo restante daquele ano. O ano novo chegou com promessas de colheitas abundantes nos campos e nas hortas, e os comerciantes festejaram-no e prestaram homenagens uns aos outros nos jardins fora da cidade. Quando chegou a vez de meu amo, este mandou preparar abundantes comidas e bebidas e ofereceu aos amigos na sua casa de campo uma festa sumptuosa que duraria da manhã à noite. Mas aconteceu que ele esquecera algo em sua residência. Mandou-me, pois, montar uma mula e voltar à cidade. Devia pedir o objecto esquecido a minha ama e levá-lo de volta o mais rapidamente possível. Ao aproximar-me da casa, comecei a lamentar-me em alta voz e derramar abundantes lágrimas. Os vizinhos acorreram. As mulheres apareceram às janelas, acompanhadas pelas filhas. Todos me perguntavam o que tinha acontecido. Respondi através dos gemidos: "Meu amo estava no jardim com seus convidados quando uma muralha caiu sobre ele e o esmagou. Pulei sobre minha mula e vim avisar a família." Ouvindo essa notícia, minha ama e suas filhas entraram em pranto, rasgaram os vestidos, bateram no rosto. E minha ama, querendo exibir a aflição conforme as tradições, pôs-se a destruir a casa, quebrando armários, portas e outros móveis e jogando na rua o que não conseguia quebrar. Manchou e sujou as paredes e pediu-me para ajudá-la nessa demolição generalizada.
Não me fiz de rogado. Comecei imediatamente a destruir os objectos mais pesados. Quebrei também a louça, queimei as camas, os tapetes, as cortinas, as almofadas. Depois, passei ao tecto e às paredes até que toda a casa virou uma só ruína. Durante esse tempo, não parava de chorar e gemer: "Meu amo! Oh, meu Amo!
Minha ama e suas filhas saíram à rua com os rostos descobertos e o cabelo desarrumado. Pediram-me para guiá-las ao lugar onde meu amo estava enterrado sob a muralha. Andei na frente delas, lamentando: "Meu amo! Oh, meu amo!" Breve, uma multidão juntou-se a nós. E alguém aconselhou à minha ama a comunicar o acidade ao uáli. Deixei-os dirigirem-se à residência do uáli e corri até o jardim onde estava meu amo; cobri meu cabelo com poeira, bati no rosto e aproximei-me do jardim gritando:"Minha ama! Oh, minha ama! Minhas pequenas amas! Meus pobres pequenos amos!" Pulei no meio dos convivas numa manifestação extravagante de aflição, gemendo: "Oh, quem me ajudará? Que mulher será jamais tão boa quanto minha pobre ama! Naturalmente, meu amo mudou de cor e perguntou-me o que acontecera. "Meu amo, respondi, quando cheguei em casa, vi que ela havia caído sobre tua mulher e teus filhos."
- Mas a minha mulher se salvou, não?
- Que pena, não, respondi. Ninguém escapou. Tua filha mais velha foi a primeira a morrer.
- E minha filha menor?
- Morta, morta!
- E meus dois filhos varões?
- Morreram. Morreram todos.
- E meu camelo?
- Morreu também. Oh, meu amo, ninguém escapou. As paredes da casa e as paredes do estábulo caíram juntas e esmagaram a todos, até os cabritos, os cachorros, as galinhas e os pássaros. Ninguém escapou. Oh, meu amo, o senhor não tem mais nem casa nem família.
A luz virou escuridão nos olhos de meu amo. Rasgou a roupa, arrancou a barba, bateu nas faces até que sangraram, gritando: “Meus filhos! Minha mulher!"
Os convivas cercaram-no, procurando fortalecê-lo. E todos se reuniram e se dirigiram para o local da tragédia quando viram ao longe uma multidão aproximar-se. Quando os dois grupos se encontraram, a primeira pessoa com quem meu amo cruzou foi a própria mulher. Ao constatar que estava cercada por todos os seus filhos, pôs-se a rir como um louco. Seus familiares jogaram-se por sua vez nos seus braços, gritando: "Meu marido, meu pai, graças a Deus estás salvo. Como conseguiste escapar da muralha que desabou sobre ti?" Gritava ele por sua vez: "Estais todos salvos, meus queridos. Como conseguistes vos salvar quando a casa desabou sobre vós?" Não demoraram uns e outros a dar-se conta de que tinham sido trágica e cinicamente enganados pelas minhas mentiras. Meu amo lançou-se sobre mim, berrando: "Escravo miserável, imundo, negro azarento, filho de uma prostituta e de um milhar de cachorros, amaldiçoado filho de uma raça maldita. Por que nos mergulhaste a todos nessa terrível aflição? Por Alá, vou separar tua pele de tua carne e tua carne de teus ossos." Respondi sem medo: "Desafio-te a fazer-me o menor mal. Compraste-me com meu defeito na presença de testemunhas. Foste especificamente avisado de que meu defeito era dizer uma mentira por ano." Quando chegamos a casa e ele a viu em ruínas, tendo a mulher lhe contado com algum exagero que tudo fora obra minha, ficou mais furioso ainda. "Bastardo, filho de uma cachorra," gritou e levou-me ao uáli. Lá deram-me inumeráveis chicotadas até que perdi os sentidos. Enquanto estava inconsciente, chamaram um barbeiro que me castrou completamente. Acordei um eunuco de verdade, e ouvi meu amo dizer: "Destruíste coisas que me eram muito caras, e eu destruí coisas que te eram muito caras." Depois, levou-me ao mercado e vendeu-me por um preço superior ao que tinha pago por mim porque eu já era um eunuco. Continuei a causar danos com minhas mentiras anuais. Mas sinto-me bastante enfraquecido desde que perdi meus testículos.