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27/02/2009

Helena

- «Ai! que saudades me apertam
Pela casa de meu pai!
Também me apertam as dores,
E minha mãe sem chegar!»
- «Se as saudades te apertam,
Bem nas podes ir matar;
As dores não serão muitas,
Toma o caminho - e andar!»
- «E à noite meu marido,
Quem lhe dará de cear?»
- «Da caça que ele trouver,
Eu lha farei amanhar.
Do meu pão e do meu vinho
O que ele quiser tomar.»

- «Onde está mi’ esposa Helena
Que me não dá cear?»
- «Tua esposa Helena, filho,
Foi-se para não tornar.
Que ia para sua casa,
Que nos não pode aturar.
Chamou-me a mim perra velha,
A ti filho de mãe tal.»
- «O meu cavalo andaluz
Já e já mo vão selar.
Essa mulher, por Deus juro
Que ela mas tem de pagar.»

- «As boas novas, meu genro,
Que tenho para vos dar!
Filho barão, e tão lindo,
Um anjo de pôr no altar!»
- «Novas me dão, boas novas;
Más as trago eu para dar:
Que a mãe que o pariu
Não é que o há-de criar.

Ergue-te daí Helena,
Que me tens de acompanhar.»
- «Paridinha de uma hora,
Onde a quereis levar?»
- «Para perto, e bom caminho;
Não tem muito que penar,
Que o meu cavalo andaluz
Anda mais do que o luar.»
- «Ande ele, que não ande,
Onde a quereis levar?»
- «Cal’-se daí minha mãe,
Já se havia de calar;
Que a mulher que é bem casada,
O marido há-de mandar.
Que me dêem a minha cinta,
Para eu me conchegar,
E esse meu gibão forrado
Para melhor me abafar.
E agora dêem-me o meu filho,
Que o quero abraçar.
Ai! destes beijos, meu filho,
Se te saberás lembrar?
Lembrai-lho vós, minha mãe,
Quando ele souber falar.»
- «Que dizes, filha, que dizes?»
- «Minha mãe, isto é folgar;
Que é tão perto e bom caminho
Para onde temos de andar;
E o cavalo andaluz,
Anda mais do que o luar.»

O cavalo era andaluz
Andava mais que o luar;
O caminho era de pedras,
Ele ia a tropeçar.
Vão andando, vão andando
Sem um nem outro falar,
Ela já tem as mãos frias,
O corpo está-lhe a inchar;
Chegando ao alto da serra
Deu um ai, quis desmaiar.
- «Que ais são esses, Helena?
Porque estás a suspirar?»
- «É que se me acaba a vida,
- É que me estou a finar:
Paridinha de uma hora,
Sinto-me em sangue alagar.»

Já se não tem a cavalo,
Ali a foi apear:
Era a agonia da morte
Que já lhe estava a apertar.
- «A quem deixas o teu oiro
Que t’o hajam de estimar?»
- «Deixo-o a minhas irmãs,
Se tu lh’o quiseres dar.»
- «A quem deixas essa cruz
E as pedras do teu colar?»
- «A cruz, deixo-a a minha mãe
Que por mim lhe há-de rezar.
As pedras não as quer ela,
E bem nas podes guardar:
Se a outra as deres, marido,
Melhor lh’as deixes lograr.»
- «Tua fazenda a quem deixas,
Que ta saibam granjear?»
- Deixo-ta a ti, marido;
Que ta deixe Deus gozar!»
- «A quem deixas o teu filho
Que to hajam de criar?»
- «A tua mãe - que Deus queira
Amor lhe venha a ganhar!»
- «Não o deixes a essa perra,
Que é capaz de to matar.
Ai! deixa-o antes à tua,
Que bem no há-de criar.
Com lágrimas de seus olhos
Bem no ela há-de lavar;
Toucas de sua cabeça28
Tirará para o pensar.»

De ouvir aquelas palavras
A pobre quis-se animar;
Mas a voz que vem do peito
A boca não pode achar.
Inda lhe disse c’os olhos
Que lhe estava a perdoar.
- «Não me perdoes, Helena,
Que Deus não te há-de escutar.
Ai! as penas do inferno,
Já as eu começo a penar,
Que vejo subir ao céu
O meu anjo tutelar.
Mal hajam línguas traidoras
E ouvidos que lhe eu fui dar!
Que por amor das más línguas
Meu anjo vim a matar!
Sete anos e mais um dia
Me irei a peregrinar,
À porta santa de Roma
Me quero ir ajoelhar;
E aqui um santo convento
Fundarei neste lugar,
Com sete missas por dia
Cada uma em seu altar;
Que digam todos que o virem:
«Aqui foi seu mal pecar,
E aqui fez penitência
Para Deus lhe perdoar.»

Romanceiro, Almeida Garrett