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12/05/2009

Sétima Noite

E QUANDO FOI NA SÉTIMA NOITE
Ela disse:

Contaram-me, Rei, que quando os peixes começaram a falar, a jovem revirou a frigideira com sua vareta, saiu por onde havia entrado e a parede da cozinha se fechou. O vizir levantou-se e disse: “Aí está uma história que não poderei esconder do rei!” Depois, foi ter com o rei e lhe contou o que se passara. O rei lhe disse: “Preciso ver isso com meus próprios olhos!” E mandou procurar o pescador e ordenou-lhe que voltasse com quatro peixes iguais, dando-lhe para isso três dias de prazo. Mas o pescador depressa voltou ao lago e trouxe imediatamente os peixes. O rei deu-lhe quatrocentos dinares e voltando-se para o vizir, falou: “Prepara tu mesmo, diante de mim, esses peixes.” E o vizir disse: “Eu ouço e obedeço.” Então fez trazer a frigideira e se pôs a fritá-los. De repente, a parede da cozinha se abriu e dela surgiu um negro que parecia um búfalo, ou um dos gigantes da tribo de Had. E ele trazia na mão um ramo verde de árvore. E disse, com voz distinta e terrível: “Peixes, peixes, continuais mantendo sua promessa?” E os peixes levantaram a cabeça, de dentro da frigideira, e disseram: “Sim, certamente!” E, em coro, declamaram esses versos:


“Se cuidas de recuar,
Recuaremos também!
Se mantens tua promessa,
A nossa já se mantém!
Mas se nos queres burlar,
Havemos de gritar tanto
Que tu te decidirás!

Depois o negro aproximou-se da frigideira e revirou-a. Os peixes queimaram-se e ele saiu por onde havia entrado. Quando desapareceu, o rei disse: “Eis uma história sobre a qual não podemos silenciar! Aliás, não há dúvida que esses peixes devem ter uma história estranha!” Ordenou, então, que fizesse vir o pescador, perguntando-lhe: “De onde vêm esses peixes?” Ele respondeu: “De um lago situado entre quatro colinas, atrás da montanha que domina a tua cidade!” E o rei se voltou para o pescador e perguntou-lhe: “Quantos dias leva para chegar até lá?” Ele respondeu: “Senhor, basta apenas meia hora.” E o sultão ficou surpreso, ordenando aos guardas que seguissem imediatamente o pescador. O pescador, muito contrariado, se pôs a maldizer o génio. E o rei, e todos, partiram e subiram a montanha. O sultão e os soldados se espantaram com aquela extensão deserta situada entre quatro montanhas, e com aquele lago onde nadavam os peixes coloridos. O rei parou e perguntou aos que o acompanhavam: “Algum de vocês já tinha visto este lugar?” Todos responderam: “Não!” E o rei disse: “Por Alá! Não voltarei à cidade sem conhecer a verdade sobre este lago e seus peixes!” E ordenou aos soldados que cercassem a montanha, e os soldados o fizeram. Então o rei chamou o seu vizir.
Ora, esse vizir era um homem sábio, versado em todas as ciências. Quando se apresentou diante do rei, este lhe disse: “Tenho a intenção de fazer uma coisa e antes vou te dizer o que; veio-me a ideia de me isolar esta noite, e de procurar sozinho a solução do mistério deste lado e seus peixes. Tu, pois, ficará à porta da minha tenda e dirás aos emires, vizires e aos camareiros que estou indisposto e que não quero ver ninguém. E não contarás a ninguém minha intenção.” Dessa forma, o vizir não podia desobedecer. Então o rei disfarçou-se, cingiu a espada e se esgueirou para longe de seus acompanhantes, sem ser visto. Depois do que se pôs a caminhar pelo deserto, o que fez até a manhã do dia seguinte. Eis que viu, à distância, uma mancha; regozijou-se, dizendo: “É provável que ali eu encontre alguém que me explique a historia dos peixes!” Ao se aproximar, viu que era um palácio inteiramente de ferro, cuja porta tinha um batente aberto e outro fechado. Bateu à porta, mas não ouvindo resposta, bateu uma segunda e uma terceira vez; continuando a não ouvir resposta, bateu uma quarta fez, com muita força, mas ainda assim ninguém lhe respondeu. Então ele disse para si: “Este palácio está deserto.” Tomando coragem, entrou pela porte, chegando a um corredor. Ali, disse, em voz alta: “Senhores do palácio, sou um estrangeiro, um viajante dos caminhos e peço provisões para viagem!” Repetiu duas vezes o pedido. Não ouvindo qualquer resposta, respirou fundo e penetrou pelo corredor até o meio do palácio. Nada. Vazio. Viu, no entanto, que o palácio estava ricamente coberto de tapetes, e que no meio do pátio interno havia uma piscina, sobre a qual se erguiam quatro leões, que deixavam correr água de suas bocas, sobre pérolas e pedrarias belíssimas. Em volta, numerosos pássaros que não podiam voar para fora em virtude de uma rede que se estendia sobre o edifício. E o rei maravilhou-se com tudo aquilo, mas se afligiu por não encontrar ninguém que contasse a respeito do segredo dos peixes. Sentou-se na porta, pensando. De repente, ouviu um lamento muito fraco, que vinha de um coração abatido e triste.
Quando o rei ouviu os lamentos, levantou-se e se dirigiu para o lado de onde eles vinham. Encontrou uma porta separada do cómodo anterior por uma cortina. Levantou aquela cortina e, numa grande sala, viu um rapaz jovem, sentado sobre uma cama, da cintura para baixo coberto por uma colcha ricamente bordada.
Vendo-o, o rei ficou feliz e lhe disse: “A paz esteja contigo.” E o jovem continuou sentado, vestido com uma roupa de seda e ouro. “Ó senhor, desculpe-me por não me levantar!” Mas o rei disse: “Jovem, esclarece-me sobre a história do lado e dos peixes, assim como sobre este palácio e sobre a causa de tuas lágrimas!” A essas palavras, o jovem chorou ainda mais, deixando que as lágrimas corressem pelas faces. O rei, espantado, falou: “Ó jovem, o que te faz chorar?” E o jovem respondeu: “Como posso deixar de chorar quando estou reduzido a isto?” E o jovem estendeu a mão para as barras da colcha que o cobria e levantou-a. E então o rei viu que toda a metade inferior do jovem era de mármore, e a outra metade, do umbigo à cabeça, era de homem. E o jovem disse ao rei: “Sabe, ó senhor, que a história dos peixes é coisa estranha, que, se fosse escrita com a agulha sobre o canto interior do olho, para ser vista por todos, seria uma lição para o observador atento!”
E contou sua história:

HISTÓRIA DO JOVEM ENCANTADO E DOS PEIXES

“Senhor, saiba que meu pai era o rei desta cidade. Seu nome era Mahmud, e ele era senhor das Ilhas Negras e daquelas quatro montanhas. Meu pai reinou por setenta anos, depois do que se extinguiu, na misericórdia do Retribuidor. Depois de sua morte, recebi o sultanato, e me casei com a filha de meu tio. Ela me amava de uma forma tão poderosa que se por acaso eu me ausentasse, ela não comia nem bebia enquanto não me tornava a ver. E ficou sob minha protecção durante cinco anos, até que um dia foi ao hammam, depois de ter ordenado ao cozinheiro que nos preparasse iguarias para o jantar. E eu entrei no palácio e adormeci no lugar onde costumava dormir, e ordenei a duas escravas que me abanassem com seus leques. Mas fui sendo tomado pela insónia, pensando na ausência de minha esposa, e o sono não vinha. Então ouvi a escrava que estava atrás de minha cabeça dizer à que estava a meus pés: “Massuda, como nosso senhor é afligido por uma juventude infeliz! E que lástima é para ele ter uma esposa como nossa senhora, essa pérfida, essa criminosa!” E a outra respondeu: “Que Alá amaldiçoe as mulheres adúlteras! Por que aquela filha adulterina poderia ter alguém melhor do que nosso senhor, ela que passa suas noites em leitos variados?” E outra respondeu: “Verdadeiramente, nosso senhor deve ser bem despreocupado para não se dar conta dos actos daquela mulher!” E a outra: “Mas que estás supondo? Nosso senhor pode, acaso, saber o que ela faz? Ou tu estás pensando que ela o deixa agir com toda a liberdade? Fica então sabendo que aquela pérfida mistura sempre alguma coisa na taça em que nosso senhor bebe, antes de adormecer; coloca bânj (narcótico) na taça e ele tomba adormecido. Nesse estado, não pode saber o que se passa, nem onde ela vai, nem o que ela faz. Ora, depois de lhe fazer beber a dormideira, ela se veste e sai, deixando-o só, e ausenta-se até a aurora. Quando volta, queima-lhe sob o nariz umas coisas de cheirar, e ele então acorda.
Quando ouvi, meu senhor, as palavras das escravas, a luz se transformou a meus olhos em trevas. Custava-me ver a aproximação da noite para estar novamente com a filha do meu tio. Ela voltou, finalmente, do hammam. Então, estendemos a toalha e comemos durante uma hora. Depois do que, pedi o vinho que eu bebia todas as noites antes de dormir, e ela me estendeu a taça. Mas tive o cuidado de não beber; fingi levar a taça aos lábios como de costume, e derramei o líquido pela abertura da gola de meus trajos, e na mesma hora, no mesmo instante, estendi-me no leito e fingi dormir. E ela então disse: “Dorme! E jamais possas acordar! No que se refere a mim, por Alá, detesto-te, e detesto até tua imagem: e minha alma está mais que farta do teu convívio!” Depois, levantou-se, vestiu linda roupa, perfumou-se, cingiu uma espada, abriu a porta do palácio e saiu. Então me levantei e segui-a até que ela tivesse saído do palácio. E ela atravessou todos os sus da cidade e chegou enfim às portas dela. Então, dirigiu-se às portas numa língua estranha, que eu não compreendi, e os ferrolhos tombaram e as portas se abriram. Ela saiu. Segui-a sem que ela percebesse, até que chegou às colinas formadas pelo amontoado dos resíduos e a uma fortaleza coberta com uma cúpula e construída de barro cozido: ela entrou pela porta, e eu subi para o terraço da cúpula e me pus a vigiar lá de cima. E eis que ela entrou no aposentou de um negro. Aquele negro horrível tinha o lábio superior como a tampa de uma marmita e o inferior como a própria marmita; e esses dois lábios pendiam até tão em baixo que poderiam separas as pedras da areia. E ele estava doente e estendido sobre um pouco de palha. Vendo-o, a filha de meu tio beijou a terra diante dele e ele, levantando a cabeça para ela, disse: “A desgraça caia sobre ti! Por que tardaste em vir? Convidei os negros, que se puseram a beber vinhos e se misturaram às suas amantes. Quanto a mim, nada quis beber, por tua causa!” Ela disse: “Meu senhor e querido do meu coração! Não sabes que sou casada com o filho do meu tio? E que detesto até a imagem dele? E que para mim é um horror estar na companhia dele? Aliás, não fosse o receio de que isso viesse a te prejudicar, há muito teria arruinado a cidade, de alto a baixo, e feito que apenas a voz do mocho e do corvo ali fossem ouvidas; e teria transportado as pedras das ruínas para trás do monte Cáucaso!” O negro respondeu: “Mentes, libertina! Ora, eu juro pelas qualidades viris dos negros e pela nossa infinita superioridade de homens em relação aos brancos, que se outra vez te atrasares assim, repudiarei a tua amizade e não porei mais meu corpo sobre o teu! Pérfida traidora! Não estás assim atrasada senão porque foste saciar algures teus desejos de fêmea, ó mais infame das mulheres brancas!” Depois, tomou-a sob seus braços. E aconteceu o que aconteceu.”
Assim narrou o príncipe, dirigindo-se ao rei. E continuou: “Quando ouvi aquela conversa e vi com meus próprios olhos o que se seguiu entre os dois, o mundo se transformou em trevas diante do meu rosto, e eu não soube mais onde estava. Em seguida, a filha de meu tio se pôs a chorar e a se lamentar humildemente nas mãos do negro, e a dizer: “Ó meu amante, ó fruto do meu coração, não me resta senão tu! Se tu me expulsas, então estou desgraçada! Ó querido, luz dos meus olhos!” E ela não cessou de chorar e de implorar para que ele a perdoasse. Aí, ela ficou toda feliz e levantando-se, de pé, sem nada ter sobre o corpo, nem mesmo um calção, toda nua, disse: “Ó meu mestre, tens com que nutrir a tua escrava?” e o negro respondeu: “Levanta a tampa da marmita e ali encontrarás um picadinho feito com ossos de ratos, que tu comerás até moer os ossos; depois apanha a vasilha que ali está e encontrarás buza (bebida fermentada) que beberás. E ela se levantou, e comeu, e bebeu, e lavou as mãos; depois voltou e se deitou com o negro na palha dos juncos; e nua, aconchegou-se contra o negro, naqueles farrapos infectos.
Quando eu vi todas as coisas que a filha do meu tio fazia, não pude mais me conter e desci do alto da cúpula, precipitando-me na sala e arrancando a espada, resolvido a matar os dois infames. Comecei por ferir o negro no pescoço, e pensei que o havia transpassado.”


Nesse momento Sherazade viu aproximar-se a manhã e calou-se, discretamente. E quando surgiu a manhã, o rei entrou na sala de justiça e o Divã esteve abarrotado até o fim do dia. Depois o rei voltou ao seu palácio e Doniazade disse à irmã:
“Continua, te peço, a tua narração!” Ela respondeu: “De todo o coração.”


Quencher of Thirst