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30/07/2010

O Alimento do Paraíso

Certo dia, Yunus, filho de Adão, resolveu não só colocar a vida na balança do destino, mas também investigar a razão e os meios com que o sustento é dado ao homem.
- Eu sou um homem - ele se disse. - Como tal, todos os dias sou aquinhoado com uma parcela dos bens deste mundo. Essa porção me chega às mãos graças a meu próprio esforço, aliado aos esforços de outros. Simplificando esse processo, encontrarei os meios pelos quais o sustento é proporcionado ao gênero humano, e aprenderei algo acerca do "como" e do "porquê". Para essa busca, adotarei a via religiosa, que exorta o homem a confiar no Deus Todo-Poderoso para conseguir seu sustento. Em vez de viver num mundo de confusão, onde o alimento diário e outros bens nos chegam aparentemente através da vida em sociedade, me entregarei ao amparo do Poder que rege todas as coisas. O mendigo depende de intermediários: homens e mulheres caridosos que obedecem a seus impulsos e lhe dão comida ou dinheiro por terem sido ensinados a agir assim. Não aceitarei tal contribuição indireta.
Assim monologando, ele dirigiu-se ao campo, pronto a entregar-se ao amparo de forças invisíveis, com a mesma resolução com que até então aceitara seu sustento de forças visíveis, quando era professor numa escola.
Acabou por adormecer, convicto de que Alá cuidaria plenamente de seus interesses, do mesmo modo como pássaros e animais são providos de sustento em seus respectivos reinos.
Ao amanhecer, o coro dos pássaros o despertou, e o filho de Adão permaneceu quieto, de início, à espera de que seu sustento aparecesse. Apesar de confiar na força invisível, e de estar seguro de que seria capaz de entendê-la quando começasse a agir na esfera espiritual por ele adotada, logo percebeu que o pensamento especulativo por si só não lhe seria de grande valia naquele terreno estranho.
Estendido na margem do rio, passou o dia inteiro observando a natureza, perscrutando as silhuetas dos peixes na água, fazendo suas orações De vez em quando, escoltados por servos em trajes vistosos e montados em cavalos de bela estampa, que faziam tilintar sinetas colocadas nos arneses assegurando o direito imperioso de passagem, atravessavam por ali homens ricos e poderosos, que se limitavam a gritar uma saudação à vista de seu venerável turbante. Grupos de peregrinos paravam e se punham a mastigar pão e queijo secos, o que servia apenas para avivar seu apetite por uma refeição, a mais modesta que fosse.
- apenas uma prova, e logo logo tudo estará bem - murmurou Yunus enquanto iniciava sua quinta oração daquele dia, mergulhando então na contemplação do modo como lhe fora ensinado por um dervixe de grandes feitos perceptivos.
Outra noite se foi.
Cinco horas após o amanhecer do segundo dia, quando Yunus estava sentado olhando fixamente os raios de sol refletidos no poderoso Tigre, viu algo flutuando entre os caniços. Era um pacote envolto em folhas e atado com fibras de palmeira. Yunus, o filho de Adão, penetrou no rio e recolheu a inusitada carga.
O pacote pesava perto de trezentas e cinqüenta gramas. Mal desamarrou-o, as narinas de Yunus foram impregnadas por um delicioso aroma. Era o possuidor agora de uma porção de halwa de Bagdá. Este halwa, composto de uma pasta de amêndoas, água de rosas, mel, avelãs e outros valiosos elementos, era apreciado pelo seu gosto e tido como um alimento tonificante. As belas mulheres do harém o adoravam por seu sabor e os guerreiros o levavam em suas campanhas devido ao seu poder alimentício. Era utilizado no tratamento de centenas de males.
- Minha crença está justificada! - exclamou então Yunus. - E resta apenas a verificação: se uma porção igual de halwa, ou seu equivalente, me chegar às mãos vinda das águas diariamente ou a outros intervalos, eu conhecerei os meios ordenados pela providência para meu sustento, e terei somente que usar minha inteligência para investigar sua origem.
E nos três dias seguintes, exatamente à mesma hora, um pacote de halwa veio trazido pelas águas até às mãos de Yunus.
Essa ocorrência, concluiu Yunus, era uma descoberta de suma magnitude. E ele podia resumi-la na seguinte fórmula:
"Simplifica sua situação e a Natureza continuará operando aproximadamente do mesmo modo." Eis uma descoberta que, por si só, quase o levou a compartilhá-la com o mundo. Pois não é comum dizer-se: "Quando tiveres conhecimentos poderás ensina?" Mas logo se compenetrou de que não lograra um conhecimento; somente experimentara. Obviamente, o próximo passo seria rastrear o curso da halwa, rio acima, até chegar à sua fonte. Aí então poderia entender não apenas sua origem, mas também os meios pelos quais aquela porção era separada para seu uso específico.
Durante vários dias, Yunus seguiu o curso do rio. Cada dia, com a mesma regularidade, porém cada vez mais cedo, o halwa aparecia, e ele o comia.
Em dado momento, Yunus notou que o rio, em sua parte superior, em vez de estreitar-se como seria de esperar, se alargava bastante. Em meio a uma ampla extensão de água havia uma ilha fértil. E sobre esta ilha via-se, por sua vez, um grande e magnífico castelo. Dali se origina o alimento paradisíaco, foi a dedução de Yunus.
Enquanto conjeturava sobre o próximo passo a dar, Yunus viu à sua frente um alto e desalinhado dervixe, com os cabelos emaranhados de um eremita e um manto de remendos multicores.
- Paz, Baba, Pai - disse então Yunus.
- Ishk Hu! - gritou o ermitão. - O que faz aqui?
- Estou empreendendo uma sagrada busca - explicou o filho de Adão - e devo, com esse objetivo, alcançar aquele castelo. Será que não tem uma idéia de como poderei conseguir o que pretendo?
- Como parece não saber nada sobre o castelo, apesar de ter especial interesse nele - respondeu o ermitão - eu vou lhe dar os esclarecimentos necessários. Em primeiro lugar, a filha
de um rei vive ali, prisioneira e em exílio, atendida, é verdade, por muitos e magníficos servidores, mas presa de qualquer forma. Escapar dali é muito difícil, pois o homem que a raptou e a aprisionou por não querer desposá-lo ergueu barreiras incrivelmente poderosas, invisíveis ao olho humano. Você terá que superá-las para entrar no castelo e alcançar seu objetivo.
- Como pode ajudar-me?
- Estou prestes a iniciar uma viagem especial de devoção. Mas lhe darei uma palavra e exercício, o Wazija, que, se você for digno, trará em seu auxílio os poderes invisíveis dos benévolos Gênios, as criaturas de fogo, as únicas capazes de combater as forças mágicas que mantêm o castelo inexpugnável. Que a paz recaia sobre você.
E assim dizendo, o eremita se afastou, depois de repetir estranhos sons e movimentos, com uma desenvoltura e habilidade realmente notáveis num homem de sua venerável aparência.
Yunus sentou-se à margem do rio e durante três dias ficou orando seu Wazif a e aguardando a aparição do halwa. Então, num fim de tarde, quando o sol iluminava ainda a torre mais alta do castelo, ele teve uma estranha visão.
Ali, resplandecente, numa visão de celestial beleza, surgira uma jovem que só podia ser a princesa. Ela se deteve um instante contemplando o sol que se despedia, e depois deixou cair sobre as ondas que golpeavam as rochas do castelo, longe dela, um pacote de halwa. Ali, pois, estava a origem imediata da graça que ele, Yunus, recebia.
- Eis a fonte do Alimento do Paraíso! - exclamou Yunus. Agora estava nos próprios umbrais da verdade. Cedo ou tarde o Líder dos Gênios, a quem estava apelando por intermédio do Wazifa, chegaria e o habilitaria a alcançar o castelo, a princesa e a verdade.
Tão logo tais pensamentos lhe vieram à mente, viu-se transportado pelos céus ao que lhe pareceu ser um reino etéreo, onde havia casas de surpreendente beleza. Entrou numa delas onde viu uma criatura semelhante a um homem, mas que não era jovem na aparência, ainda que sábio e de idade indefinível.
- Eu - disse a aparição - sou o Líder dos Gênios e o trouxe até aqui em resposta às suas súplicas e por ter feito uso
desses Grandes Nomes que lhe foram ofertados pelo Grande Dervixe. Que posso fazer por você?
- Oh, Todo-poderoso Chefe de todos os Gênios - murmurou Yunus, - sou alguém que busca a verdade, e a resposta que procuro só poderei encontrá-la no castelo encantado, próximo de onde me achava quando invoquei sua presença. Dê-me, eu suplico, o poder de entrar nesse castelo e falar com a princesa ali aprisionada.
- Assim será feito! - exclamou o Líder. - Mas, antes de mais nada, fique prevenido de que um homem recebe uma resposta a suas indagações sempre de acordo com sua capacidade de entender e com seu próprio preparo.
- A verdade é a verdade - disse Yunus, - e eu a terei, não importa qual seja. Conceda-me esta graça.
Logo Yunus era despachado numa forma incorpórea (graças à magia do Gênio), escoltado por um pequeno grupo de Gênios auxiliares, incumbidos pelo seu líder de usar sua especial habilidade para ajudar àquele ser humano em sua busca. Nas mãos Yunus segurava um espelho especial de pedra que, segundo as instruções do Chefe dos Gênios, ele devia fazer incidir sobre o castelo, para poder ver as defesas ocultas.
Por meio de tal espelho, Yunus descobriu que o castelo era protegido por uma fila de gigantes invisíveis e aterradores, que destruiam quem se aproximasse. Os Gênios, muito hábeis nessa tarefa, os afugentaram. O próximo obstáculo era uma espécie de teia ou malha invisível estendida em torno do castelo. Também foi destruída pelos Gênios voadores, dotados de uma habilidade especial para romper a rede. Finalmente havia uma massa quase pétrea, invisível, que preenchia o espaço entre o castelo e a margem do rio. Esta também foi destruída com eficiência pelos talentosos Gênios, que após saudarem Yunus voaram velozes como a luz para seus domínios.
Yunus viu então que uma ponte emergia por si mesma do leito do rio, permitindo-lhe chegar ao castelo sem molhar-se. No portão principal estava um soldado que o levou imediatamente aonde se achava a princesa, que pareceu ainda mais bela do que da primeira vez em que a vira.
- Todos lhe somos gratos por sua ação ao destruir as defesas que tornavam inexpugnável esta prisão - disse a prin-
cesa. - E agora poderei voltar para a companhia do meu pai, mas quero antes recompensá-lo pelos seus grandes esforços. Fale, diga o que deseja, que lhe será dado.
- Pérola incomparável - retrucou Yunus, - só busco e anseio por uma única coisa: a verdade. Por ser dever de todos que a têm ofertá-la aos que dela podem beneficiar-se, eu vos rogo, Alteza, dê-me a verdade que me é tão necessária.
- Diga qual é essa verdade, e até onde seja possível concedê-la lhe será dada.
- Muito bem, Alteza. Como e por ordem de quem, o Alimento do Paraíso, o magnífico halwa que tendes atirado para mim diariamente, é assim providenciado?
- Yunus, filho de Adão, - disse a princesa - o halwa, como você o chama, que lanço à água todos os dias, na realidade é o resíduo dos cosméticos com os quais cuido da minha pele após meu banho diário com leite de jumenta.
- Por fim eu aprendi - disse Yunus - que o entendimento de cada homem está condicionado à sua capacidade de entender. Para vós, trata-se dos restos de seus preparados de beleza. Para mim, é o Alimento do Paraíso.