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31/01/2011

A Bicha e a Lima

Buscando a Bicha de comer na tenda de um ferreiro, foi topar com uma lima e quis roê-la, mas como os dentes não entravam pelo aço, dava-lhe muitas voltas virando-a de todas as bandas. Enfadada a Lima de andar aos tombos, lhe disse:
- Que fazes, parva? Não sabes que sou de ferro, e lima? Por muito que trabalhes desfarás os dentes; eu com os meus de aço bem temperado, cortarei dentes e qualquer arma a quem chegar, em pouco tempo.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

30/01/2011

A raposa e o bode



A raposa caiu num poço fundo e com as paredes cobertas de limo, e não conseguia sair de lá porque toda vez que tentava subir, escorregava e tornava a descer. Percebendo que precisaria de ajuda para sair dali, ela começou a gritar o mais alto que podia, até que um bode chegou e perguntou o que a raposa fazia lá dentro, e esta, percebendo que estava ali a sua oportunidade de safar-se do buraco, disse com ar misterioso:
- Você está sozinho? Então ouve e fique calado, porque eu não quero que essa notícia se espalhe e todos venham correndo para cá. A água desse poço é tão boa que a gente não se cansa de bebê-la. Entre cá e experimente.
Sem pensar duas vezes o bode pulou dentro do poço e começou a beber a água, até que totalmente farto, olhou em volta procurando uma saída. Nessa hora a raposa lhe disse:
- Isso não é problema. Ponha-se de pé nas patas traseiras; aí eu trepo nas suas costas, me apoio em seus chifres e salto para fora do poço. Depois me debruço na beirada e o puxo para cima.
E assim foi feito, só que ao se ver livre a raposa saiu correndo campo à fora, depois que gritou para o bode:
- Se o seu raciocínio fosse tanto quanto os pêlos que existem em sua barba, você deveria ter verificado como poderia sair do poço, antes de entrar nele.

Moral da história: Antes de alguém se meter em qualquer aventura, deve primeiro verificar se pode sair dela.


Fábulas de Esopo

Compra das luvas

(No Japão há a crença que as raposas e os texugos enganam os humanos. Transformam-se em outras coisas ou outros animais e que sabem fazer magia para transformar coisas, especialmente folhas de árvore, em notas ou moedas. Há muitas histórias antigas relacionadas com raposas e texugos.)


Era uma vez, uma mãe raposa e o seu filho que moravam numa floresta. O Inverno já tinha chegado e fazia muito frio lá.
Uma manhã, quando o raposinho estava quase a sair da toca, de repente caiu gritando e voltou-se para a mãe tapando os olhos com as mãos.
- Mãe, ó minha mãe! Fui espetado nos olhos! Foram picados! Tem alguma coisa nos meus olhos! Tira!Tira!
A mãe do raposinho ficou surpreendida e preocupada, tirou as mãos do filho dos olhos e olhou para eles. Mas, não encontrou nada. Estranhou, saiu da toca e compreendeu o que é que tinha acontecido. Lá fora, havia tanta neve e tão
branquinha! Estava a brilhar aos raios do sol. Como o filho não sabia o que era neve, pensou que os seus olhos tinha sido picados pelo brilho. Mas foi simplesmente a forte luz a refletir na neve. A mãe explicou isto e o filho ficou aliviado.
Começou a brincar com a neve. Esta era macia e semelhante ao algodão. Quando ele corria, os flocos de neve espalharam-se e apareceu um arco-íris. A seguir, ele ouviu atrás um grande barulho "Bbzz..." e de repente ele ficou coberto de tanta neve como
se fosse farinha. Espantado, quase caiu mas fugiu para um lugar afastado.
- O que é isto?
Virou-se para trás mas não encontrou nada. Não sabia que era a neve que tinha caído da árvore. A neve continuava a cair ali. Parecia uma linha de seda branca.
Voltou, então, o raposinho para a toca.
- Ó mãe, as minhas mãos estão frias, muito frias!" - disse o raposinho e mostrou as suas mãos
vermelhas e molhadas à mãe.
- Coitadinho!
A mãe deu-lhe um sopro quente e cobriu-as
ligeiramente com as suas mãos quentes.
- Já te vais sentir bem. Depois de mexer na neve, as mãos ficam frias mas aquecem em pouco tempo. Não te preocupes!! - dizendo isto, pensou que era melhor comprar umas luvas para o filho. Não queria que as mãos dele tivessem frieiras e planeou ir às compras à cidade nessa noite.
A noite chegou e começou a cobrir o campo e a floresta, mas a neve estava tão branca que iluminava a floresta. A mãe e o filho saíram da toca mas ela estava com um bocadinho de receio. O filho escondeu-se debaixo da barriga da mãe e começaram a caminhar para a cidade.
O filho estava com muita curiosidade porque era a primeira vez que saía da floresta. Viram uma luz em frente ao longe.
- Ó mãe, está lá uma estrela! - disse o raposinho.
- Não é uma estrela...
A mãe parou com medo no caminho.
- É a luz da cidade.
Quando a viu, ela lembrou-se de uma má experiência. Há algum tempo atrás, ela tinha ido à cidade com uma amiga. Nesse dia, a amiga tentou roubar um pato de uma casa apesar dos pedidos da raposa para que não o fizesse. Um homem descobriu-as e tentou apanhá-las, gritando. A mãe raposa teve muito medo e decidiu que nunca mais ia à cidade.
- Mãe....? Em que é que estás a pensar? Vamos ali agora! - disse o raposinho debaixo da barriga da mãe.
Mas ela não conseguiu avançar com o medo. Então, decidiu mandar o filho sozinho à cidade.
- Ó amor, dá-me a tua mão - disse a mãe. Em seguida pegou numa mão do raposinho, e ela transformou-a numa mão humana de criança. O raposinho olhou estranhamente para ela, abriu-a, fechou-a e cheirou-a repetidas vezes.
- Ó mãe, é estranho. O que é isto? - e olhou outra vez para ela sob o brilho da neve.
- É uma mão de humano. Ouve, amor. Quando fores à cidade, vais encontrar muitas casas de humanos. Primeiro, procura a loja que tem uma placa com um desenho de chapéu. Bata a porta ligeiramente e diz a palavra de cumprimento "Boa noite.". Então, lá dentro está um humano que vai abrir um bocadinho a
porta. Enfia a tua mão de humano no espaço da porta entreaberta e diz que queres umas luvas que fiquem
bem na tua mão. Compreendeste? Não enfies a outra mão - disse a mãe com a cara séria.
- Porquê, mãe? - perguntou o filho.
- Porque os humanos não vão vender umas luvas quando eles souberem que o cliente é um raposo. Além disso, vão apanhar-te e pôr-te numa jaula. Os humanos são realmente muito perigosos e horríveis -
disse a mãe.
- Ah é?
- Nunca mostres a tua mão de raposo. É esta, olha, é esta mão de humano que tens de mostrar! - disse a
mãe dando-lhe 2 moedas de cobre brancas para a mão humana.
O raposinho começou sozinho a caminhar na neve através do campo para a luz da cidade. Apareceu uma luz, depois duas... três... quatro.... e pouco a pouco a luz aumentou e por fim contou dez.
O raposinho pensou que as luzes vermelhas, azuis e amarelas eram como as estrelas. Entrou na cidade, mas já era noite e todas as lojas já estavam fechadas. Só conseguia ver as luzes das janelas altas que reflectiam na neve. O raposinho procurou a placa com o desenho de um chapéu e caminhou, caminhou, caminhou.
Havia várias placas tal como de uma bicicleta e de óculos. Algumas eram novas e outras antigas. Ele não compreendeu o que significavam estas placas, pois era a primeira vez que ia à cidade.
Finalmente, encontrou uma placa com o desenho de um chapéu. Era uma placa com uma cartola preta e
grande. Estava iluminada com uma luz azul.
O raposinho bateu levemente à porta como a sua mãe já lhe tinha ensinado.
- Boa noite.
Então lá dentro fez-se algum som e alguém abriu um bocadinho a porta. Uma linha de luz espalhou-se na terra, na neve branca. O raposinho ficou surpreendido porque esta luz era radiosa, e enganou-se na mão que devia mostrar. Enfiou a mão contrária na porta.
- Venda-me umas luvas que sejam próprias para esta mão.
O dono da chapelaria ficou surpreendido e duvidou. Era a mão de um raposo. Um raposo estava a pedir-lhe para vender umas luvas? Estará a tentar enganar-me? - pensou o dono.
- Primeiro, pague - disse o dono.
O raposinho deu 2 moedas de cobre.
Depois de as receber, o dono tocou nas moedas verificando o material e pensou que eram moedas
verdadeiras. Tirou umas luvas pequenas de lã do armário e passou-as para a mão do raposinho. Dizendo obrigado, o raposinho retomou o caminho de volta.
"A mãe disse que os humanos eram perigosos e horríveis, mas não são. Ele viu a minha mão e não me fez mal nenhum." - pensou o raposinho. E, por curiosidade, quis ver como era "o humano" pois ele ainda não o tinha visto.
Passou perto de uma janela. Ouviu uma voz de humano. Que bonita, que simpática, que generosa é esta voz!
- Dorme, dorme, na minha mama, Dorme, dorme, nos meus braços...
O raposinho acreditou que esta voz era de uma mãe humana porque a sua mãe também cantava para ele sempre que adormecia...
Depois ouviu uma voz de criança.
- Ó mãe, acho que, esta noite com este frio, os raposinhos na floresta estão a chorar."
Então ouviu a voz da mãe:
- Os raposinhos na floresta também estão na toca a adormecer ouvindo a canção de mãe. Dorme, amor. Quem é que vai adormecer mais rápido? Tu ou o raposinho?"
De repente, o raposinho lembrou-se da sua mãe e correu para a sua casa o mais rapidamente possível.
Tinha muitas saudades da minha mãe. Quero ver a minha mãe!
A mãe do raposinho estava à espera dele, preocupada, tremendo de frio. Quando viu que o seu filho se dirigia a ela, ficou muito alegre e deu-lhe um abraço muito apertado.
A mãe e o filho voltaram para a floresta. A lua já estava iluminando com a sua cor prateada.
- Ó mãe, não tenho medo nenhum dos humanos.
- Sim? Porquê?
- Eu... enganei-me na mão que devia mostrar, mas o dono da chapelaria não me prendeu. E deu-me estas luvas muito confortáveis.
Dizendo isto, bateu palmas com as luvas. A mãe ficou pasmada e falou para os seus botões.
- Afinal os humanos são simpáticos?! Os humanos são bons?!

Lenda do Japão

O lobo e o cão



Certo dia, um Lobo só pele e osso encontrou um cão gordo, forte e com o pêlo muito lustroso. Via-se bem que não passava fome. O Lobo, admirado, quis saber onde é que ele conseguia obter tanta comida.
- Se me seguires, ficarás tão forte como eu - respondeu o cão. - O homem dar-te-á restos saborosos.
- Mas o que preciso de fazer em troca? - quis saber o Lobo.
- Muito pouco, na verdade - respondeu o Cão. - Uivar aos intrusos, agradar ao dono e adular os seus amigos. Só por isto receberás carne e outras iguarias muito bem cozinhadas. De vez em quando, receberás também festas no dorso.
O Lobo ficou encantado com a ideia e meteram-se ambos ao caminho. A dada altura, o Lobo reparou que o cão tinha o pescoço esfolado.
- O que tens no pescoço? - perguntou.
- Nada de grave. É da argola com que me prendem - explicou o Cão.
- Preso? Então não podes correr quando queres? - exclamou o Lobo. - Esse é um preço demasiado elevado: não troco a minha liberdade por toda a comida do mundo.
Dito isto, desatou a correr o mais depressa que pode para bem longe dali.

Moral da história:
A tua liberdade não tem preço.


Fábulas de La Fontaine

29/01/2011

A águia e o besouro



Fugindo da águia que tentava capturá-la, a lebre escondeu-se na casa do besouro, e este, percebendo que a rapineira ia acabar derrubando a sua moradia, chegou à porta e lhe disse:
- Poderosa águia, eu sei que lhe será muito fácil apoderar-se da lebre que está em minha casa, mas não se esqueça de que ela é minha hóspede, e por isso lhe peço que respeite as leis da hospitalidade.
Mas a águia ignorou o pedido do besouro, e afastando-o com as asas, agarrou a pobre lebre com suas garras e voltou satisfeita para o ninho. Enfurecido, o besouro voou até lá, e aproveitando a ausência da dona da casa furou a casca dos ovos que encontrou. Quando a ave retornou e descobriu o que tinha sido feito, lamentou-se de-sesperada, e essa sua dor durou meses. No ano seguinte, ainda sem ter esquecido o que acontecera, ela mudou seu ninho para um lugar mais alto, mas mesmo assim o besouro foi lá e novamente furou todos os ovos. Dessa vez a mãe frustrada recorreu ao deus dos ares, pedindo-lhe justiça, tendo este aconselhado que ela depositasse os ovos da postura seguinte em uma dobra do seu manto real, onde eles ficariam a salvo. Isso foi feito, mas aí o besouro simplesmente sacudiu o manto e com isso os ovos caíram ao chão e romperam a casca.
Desesperada, a águia ameaçou abandonar a corte, e o rei dos ares então inti-mou o besouro a comparecer diante do tribunal. Lá, ele contou o caso desde o início, e o rei, lhe dando razão, tentou sem sucesso reconciliar as duas partes. Daí que para acomodar a situação o soberano decidiu mudar a época em que a águia põe seus ovos, fazendo-a coincidir com a estação em que o besouro se enfia terra à dentro para resguardar-se dos rigores do inverno.

Moral da história: Para a justiça não basta punir. O mais importante é acabar com o problema.


Fábulas de Esopo

O rato do campo e da cidade



O Rato do Campo convidou o seu amigo da cidade para gozar durante alguns dias os bons ares do campo. O Rato da Cidade aceitou.
Quando estavam a esgravatar a terra à procura de comida, o Rato da Cidade disse ao amigo:
- Vives uma vida cheia de dificuldades e de trabalhos. Eu, na minha casa, vivo na abundância e estou rodeado de conforto e de luxo. Se quiseres vir comigo, partilho contigo tudo isso.
O Rato do Campo ficou maravilhado com a ideia e aceitou. Quando chegaram, o Rato da Cidade pôs à frente do amigo muitas iguarias:
pão, feijões, figos secos, mel, uvas e um grande bocado de queijo que retirou de um cesto.
- Realmente tens razão! - Exclamou o Rato do Campo, encantado com tanta comida obtida sem trabalho. - Julgava que a minha vida no campo era boa, mas agora vejo que, afinal, vivo na penúria.


Fábulas de La Fontaine



28/01/2011

Ele há cada nome

Há nomes que nem inventados. Mas são verdadeiros. Eu garanto, porque os colecciono e cato, um a um, pelas listas telefónicas do país.
A família Barriga, por exemplo, tão velha como Portugal. Já no tempo do nosso primeiro rei, o bravo D. Afonso Henriques, vivia, na província da Beira, um Martim de Barriga.
Que ninguém se admire. Se há tantos Costas, porque é que não há-de haver alguns Barrigas?
A família cresceu, espalhou-se e chegou aos nossos dias. Conheci, há tempos, uma senhora, descendente do remoto beirão Martim de Barriga. Chama-se Maria das Dores, mais precisamente Maria das Dores de Barriga, o que talvez lhe cause alguma indisposição.
E o caso do Dr. Pedro Branco que se casou com uma senhora de apelido Feijão e tiveram um filho Feijão Branco?
Mais ou menos semelhante, e também verdadeiro, foi o caso ou casamento que uniu D. Maria José Coelho com o Engenheiro Manuel da Silva Guisado. O filho do casal chama-se Abel Coelho Guisado e não se importa.
Nem tem nada com que importar-se, porque, verdade verdadinha, há nomes muito mais esquisitos.
Contou-me a minha avó que um casal já com muitos filhos foi brindado com mais uma criança, um perfeito rapazinho que havia de se chamar...
- André - disse o pai.
- João - disse a mãe.
- Fernando - disse um avô.
- Camilo - disse o outro avô.
- Manuel João - disse uma avó.
- João Manuel - disse a outra avó.
Não se entenderam. Quando, na cerimónia do baptizado, foi preciso assentar o nome do bebé no livro dos registos, ainda a família não tinha chegado a uma decisão. Até que a mãe, para safar a encrenca, ditou ao sacristão, que estava de pena suspensa sobre o livro dos registos:
- Olhe, senhor sacristão, o nome do meu filho fica João, até ver.
E o obediente sacristão escreveu assim o nome do rapaz: ?João Até Ver Martins".
Mas, para o resto da vida, ficou só conhecido pelo João Até Ver.
- Pouco importa - concluía a minha avó, que esta história me contou. - O que vale é que cada um seja conhecido pelo que de bom fizer. Se for pelo que de mal fizer, então, sim, já terá razão para envergonhar-se do nome.
Grandes verdades ensinava a minha avó, de nome Olívia Torrado, que, todos concordarão, não é um nome assim muito vulgar...



Há nomes que nem inventados. Mas são verdadeiros. Eu garanto, porque os colecciono e cato, um a um, pelas listas telefónicas do país.
A família Barriga, por exemplo, tão velha como Portugal. Já no tempo do nosso primeiro rei, o bravo D. Afonso Henriques, vivia, na província da Beira, um Martim de Barriga.
Que ninguém se admire. Se há tantos Costas, porque é que não há-de haver alguns Barrigas?
A família cresceu, espalhou-se e chegou aos nossos dias. Conheci, há tempos, uma senhora, descendente do remoto beirão Martim de Barriga. Chama-se Maria das Dores, mais precisamente Maria das Dores de Barriga, o que talvez lhe cause alguma indisposição.
E o caso do Dr. Pedro Branco que se casou com uma senhora de apelido Feijão e tiveram um filho Feijão Branco?
Mais ou menos semelhante, e também verdadeiro, foi o caso ou casamento que uniu D. Maria José Coelho com o Engenheiro Manuel da Silva Guisado. O filho do casal chama-se Abel Coelho Guisado e não se importa.
Nem tem nada com que importar-se, porque, verdade verdadinha, há nomes muito mais esquisitos.
Contou-me a minha avó que um casal já com muitos filhos foi brindado com mais uma criança, um perfeito rapazinho que havia de se chamar...
- André - disse o pai.
- João - disse a mãe.
- Fernando - disse um avô.
- Camilo - disse o outro avô.
- Manuel João - disse uma avó.
- João Manuel - disse a outra avó.
Não se entenderam. Quando, na cerimónia do baptizado, foi preciso assentar o nome do bebé no livro dos registos, ainda a família não tinha chegado a uma decisão. Até que a mãe, para safar a encrenca, ditou ao sacristão, que estava de pena suspensa sobre o livro dos registos:
- Olhe, senhor sacristão, o nome do meu filho fica João, até ver.
E o obediente sacristão escreveu assim o nome do rapaz: ?João Até Ver Martins".
Mas, para o resto da vida, ficou só conhecido pelo João Até Ver.
- Pouco importa - concluía a minha avó, que esta história me contou. - O que vale é que cada um seja conhecido pelo que de bom fizer. Se for pelo que de mal fizer, então, sim, já terá razão para envergonhar-se do nome.
Grandes verdades ensinava a minha avó, de nome Olívia Torrado, que, todos concordarão, não é um nome assim muito vulgar...

António Torrado


26/01/2011

Kumbh Mela

O Khumb Mela se baseia numa lenda na qual deuses (Devas) e demónios (Asuras) entraram em guerra por causa de um pote (Kalasha) que continha o néctar da imortalidade (Amrit). O néctar da imortalidade encontrava-se no fundo do oceano e só poderia ser encontrado se este fosse totalmente revirado. Assim, deuses e demónios fizeram um pacto para unir forças e revirar todo o fundo do oceano.

Ao revirar o oceano, diversas coisas emergiram do fundo e o que caísse do lado dos deuses ficaria com os deuses e o que caísse ao lado dos demónios ficaria com os demónios. Ao final, depois de muito revirar o oceano, finalmente emergiu o pote com o néctar da imortalidade, que caiu ao lado dos deuses. Porém, os demónios descumpriram o pacto e tomaram o pote para si. Com isso, começou uma feroz batalha que durou 12 dias e 12 noites. Durante a batalha, quatro gotas deste néctar caíram nas cidades de Haridwar, Prayag, Ujjain e Nasik, onde o Khumba Mela acontece sucessivamente a cada três anos. Finalmente, os deuses venceram a batalha, beberam o amrit e alcançaram a imortalidade.

Metaforicamente, diz-se que o oceano é a nossa mente e o néctar é a paz mental. Na busca por esse néctar (paz mental), revira-se o oceano (mente) e do fundo dele muitas coisas boas e ruins irão emergir. Ao final, com o desapego de todas as sensações boas, ruins ou neutras que surgem do oceano de nossa mente, finalmente encontramos a paz mental ou imortalidade. Metaforicamente, é o Kumbh Mela.





24/01/2011

A Criação

Primeiro, havia o Caos, que era o Nada do Mundo, e isto era tudo quanto nele havia. Nem Céu, nem Mar, nem Terra - nada disto havia. Apenas três reinos coexistiam: o Ginnungagap (o Grande Vazio), abismo primitivo e vazio, situado entre Musspell (o Reino do Fogo) e Niflheim (a Terra da Neblina), terra da escuridão e das névoas geladas.
Durante muitas eras, assim foi, até que as névoas começaram a subir lentamente das profundezas do Niflheim e formaram no medonho abismo de Ginnungagap um gigantesco bloco de gelo.
Das alturas abominavelmente tórridas do Musspell, desceu um ar quente e este encontro do calor que descia com o frio que subia de Niflheim começou a provocar o derretimento do imenso bloco de gelo. Após mais alguns milhares de eras - pois que o tempo, então, não se media pelos brevíssimos anos de nossos afobados calendários - o gelo foi derretendo e pingando e deixando entrever, sob a outrora gelada e espessa capa branca, a forma de um gigante.
Ymir era o seu nome - e por ser uma criatura primitiva, dotada apenas de instintos, o maniqueísmo batizou-a logo de má. Ymir dormiu durante todas estas eras, enquanto o gelo que o recobria ia derretendo mansamente, gota à gota, até que, sob o efeito do calor escaldante de Musspell, que não cessava jamais de descer das alturas, eis que ele começou a suar. O suor que lhe escorria copiosamente do corpo uniu-se, assim, à água do gelo, que brotava de seus poderosos membros - e este suor vivificante deu origem aos primeiros seres vivos. Debaixo de seu braço surgiu um casal de gigantes e da união de suas pernas veio ao mundo outro ser da mesma espécie, chamado Thrudgelmir. Estes três gigantes foram as primeiras criaturas, que surgiram de Ymir; mais tarde, Thrudgelmir geraria Bergelmir, que daria origem à toda a descendência dos gigantes.Entretanto, do gelo derretido também surgira, além das monstruosidades já citadas,uma prosaica vaca de nome Audhumla, de cujas tetas prodigiosas manavam quatro rios, que alimentavam o gigante Ymir. Audhumla nutria-se do gelo salgado, que lambia continuamente da superfície, e, deste gelo, surgiu ao primeiro dia o cabelo de um ser; no segundo, a sua cabeça; e, finalmente, no terceiro, o corpo inteiro. Esta criatura egressa do gelo chamou-se Buri e foi a progenitora dos deuses. Seu primeiro filho chamou-se Bor,e, desde que pai e filho se reconheceram, começaram a combater os gigantes, que nutriam por eles um ódio e um ciúme incontroláveis.
Esta foi a primeira guerra de que o universo teve notícia e incontáveis eras sucederam-se sem que ninguém adquirisse a supremacia. Finalmente, Bor casou-se com a giganta Bestla e, desta união, surgiram três notáveis deuses: Wotan (também chamado Odin), Vili e Ve. Dos três, o mais importante é Wotan, que um dia chegará a ser o maior de todos os deuses. E, porque assim será, um dia, ele próprio disse a seus irmãos:
- Unamo-nos a Bor e destruamos Ymir, o perverso pai dos gigantes!
Os quatro juntos derrotaram, então, o poderoso gigante, e com sua morte, acabou também a quase totalidade dos demais de sua espécie, afogada no sangue de Ymir. Um casal, entretanto, escapou do massacre: Bergelmir e sua companheira, que construíram um barco feito de um tronco escavado e foram se refugiar em Jotunheim, a terra dos Gigantes, onde geraram muitos outros. Desde então, a inimizade estabeleceu-se,definitivamente, entre deuses e gigantes, cada qual vivendo livremente em seu território, mas sempre alerta contra o inimigo.
Dos restos do cadáver do gigantesco Ymir, Wotan e seus irmãos moldaram a Midgard (Terra-Média): de sua carne, foi feita a terra; enquanto que, de seus ossos e seus dentes, fizeram-se as pedras e as montanhas. O sangue abundante de Ymir correu por toda a terra e deu origem ao grande rio que cerca o universo.
- Ponhamos, agora, a caveira de Ymir no céu - disse Wotan a seus irmãos, após haverem completado a primeira tarefa.
Wotan fez com que quatro anões mantivessem a caveira suspensa nos céus, cada qual colocado num dos pontos cardeais. Em seguida, das faíscas do fogo de Musspell,brotaram o sol, a lua e as estrelas; enquanto que, do cérebro do gigante, foram engendradas as nuvens, que recobrem todo o céu.
Entretanto, após terem remexido a carne do gigante, com a qual moldaram a terra,os três deuses descobriram nela um grande ninho de vermes. Wotan, penalizado destas criaturas, decidiu dar-lhes, então, uma outra morada, que não, o Midgard. Os seres subumanos, que pareciam um pouco mais turbulentos que os outros, foram chamados de Anões e receberam como morada as profundezas sombrias da terra (Svartalfheim).
Os demais, que pareciam ter um modo mais nobre de proceder, foram chamados de Elfos e receberam como morada as regiões amenas do Alfheim.
Completada a criação de Midgard, caminhavam, um dia, Wotan e seus irmãos sobre a terra para ver se tudo estava perfeito, quando encontraram dois grandes pedaços de troncos caídos ao solo, próximos ao oceano. Wotan esteve observando-os longo tempo, até que, afinal, teve outra grande idéia:
- Irmãos, façamos de um destes troncos um homem e do outro, uma mulher! E assim se fez: ele foi chamado de Ask (Freixo) e ela, de Embla (Olmo). Wotan lhes deu a vida e o alento;
Vili, a inteligência e os sentimentos; e Ve, os sentidos da visão e da audição. Este foi o primeiro casal, que andou sobre a terra e originou todas as raças humanas que habitariam por sucessivas eras a Terra-Média.
Depois que Midgard e os homens estavam feitos, Wotan decidiu que era preciso que os deuses tivessem também uma morada exclusiva para si:
- Façamos Asgard e que lá seja o lar dos deuses! - exclamou ele, que, como se vê, era um deus de energia e vontade inesgotáveis.
Este reino estava situado acima da elevada planície de Idawold, que flutuava muito acima da terra, impedindo que os mortais o observassem. Além disso, um rio cujas águas nunca congelavam - o Iffing - separava a planície do restante do universo. Mas, Wotan, sábio e poderoso como era, entendeu que não seria bom se jamais existisse um elo de ligação entre deuses e mortais. Por isso, determinou que fosse construída a ponte Bifrost (a ponte do Arco-íris), feita da água, do logo e do mar.
Heimdall, um estranho deus nascido ao mesmo tempo de nove gigantas, ficaria encarregado, desde então, de vigiá-la
noite e dia para que os mortais não a atravessassem livremente no rumo de Asgard. Para isso, ele portava unia grande trompa, que fazia soar todas as vezes que os deuses cruzavam a ponte.
A morada dos deuses possuía várias residências, as quais foram sendo ocupadas pelos deuses à medida que iam surgindo. O palácio de Wotan, o mais importante de todos, era chamado de Gladsheim. Ali, o deus supremo linha instalado o seu trono mágico, Hlidskialf, de onde podia observar tudo o que se passava nos Nove Mundos e receber de seus dois corvos, Hugin (Pensamento) e Muniu (Memória), as informações trazidas das mais remotas regiões do universo.
Entretanto, se na mais alta das regiões estava situado o paraíso daquele soberbo universo, nas profundezas da terra, muito abaixo de Midgard, estava o Niflheim, o horrível e gelado reino dos mortos. Lá pontificava a sinistra deusa ú, filha de Loki, que se regozija Com a fome, a velhice e a doença, e que tem i lado a serpente Nidhogg. Esta se alimenta dos cadáveres dos mortos e se dedica a roer continuamente uma das raízes da grande árvore Yggdrasil, um freixo gigantesco que se eleva por cima do mundo e deita suas raízes nos diversos reinos, entre os quais, o próprio Asgard. Ao alto da copa frondosa desta imensa árvore, sobrevoa uma gigantesca águia, que vive em guerra aberta contra a serpente Nidhogg. Um pequeno esquilo - Ratatosk -, que passa a vida a correr desde o alto da Árvore da Vida até as profundezas onde está a terrível serpente, é o leva-traz dos insultos que estas duas criaturas se comprazem em trocar sem jamais esgotar seu infinito estoque de injúrias.
Nesta árvore fundamental, diz a lenda que o próprio Wotan esteve pendurado durante nove longas noites, com uma lança atravessada ao peito, para que pudesse aprender o significado oculto das Runas, o alfabeto nórdico, que rege e governa a vida dos deuses e dos homens. Quando seu martírio terminou, Wotan havia se tornado, definitivamente, o mais poderoso e sábio dos deuses, tendo o poder de curar doenças e de derrotar os inimigos com sua poderosa lança, Gungnir - ao mesmo tempo, sua mais poderosa arma e local de registro de todos os seus acordos.
Yggdrasil é o centro do mundo, e, enquanto suas raízes continuarem a suportar o peso de seu prodigioso tronco e de seus ramos infinitos, o mundo estará firme e a vida será soberana, sob os auspícios de Wotan, senhor dos deuses.

22/01/2011

A Águia e a Flecha





Voava uma águia nas alturas quando foi atingida por uma flecha e caiu ao chão, mortalmente ferida.
Em seus últimos momentos, a águia reparou que a flecha que a havia ferido trazia penas em uma das extremidades.
- Triste o nosso fim - lamentou a águia - que damos ao inimigo as armas para nossa própria destruição.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

19/01/2011

A sapa casada



Um lavrador possuía três filhos. As pragas haviam destruído suas plantações e dizimado seus bois e cavalos. Quase não existia, em casa, o que comer. Diante disso, o filho mais velho disse ao pai:
— Meu pai, já estou homem feito. Não posso continuar aqui. Preciso ganhar a minha vida. Por isso, vou correr mundo à procura de trabalho. Hei de voltar rico.
O lavrador deu-lhe a bênção, e o rapaz partiu. Depois de viajar por diversos países e de sofrer muitas dificuldades, parou numa cidade onde se casou. Mas continuou pobre.
Passado algum tempo, o segundo filho do lavrador resolveu seguir o exemplo do mais velho. Pediu dinheiro ao pai e saiu a correr mundo. Depois de passar muitas privações, parou numa cidade onde se casou. Não conseguiu ficar rico.
Anos depois, o filho mais novo do lavrador, vendo que os irmãos não voltavam, resolveu sair à sua procura. Desejava também arranjar algum emprego rendoso. O lavrador ficou muito triste porque era viúvo, e o rapaz era a única companhia que êle tinha na velhice. Mas deu a bênção ao moço e, com lágrimas nos olhos, deixou-o partir.
Após visitar muitas cidades sem encontrar os irmãos nem conseguir emprego, o rapaz parou à beira de uma lagoa para descansar. Era ao cair da tarde. De repente, ouviu uma voz deliciosa entoando uma linda canção.
O moço ficou encantado com a beleza e a doçura da voz. Debalde procurou a moça que cantava. Tão entusiasmado ficou com aquela voz maravilhosa que exclamou:
— Eu me casaria com a dona dessa voz, mesmo que fosse uma sapa desta lagoa!
Mal tinha acabado de proferir estas palavras, o rapaz viu, com espanto, uma sapa enorme e feia saltar da lagoa e dizer para ele:
— Sou eu a dona da voz maravilhosa! Se o senhor é um homem honrado, tem de cumprir sua palavra e casar-se comigo!
Passado o espanto, o rapaz viu que realmente tinha o dever de se casar com a sapa. Disse-lhe, então, que estava pronto para o casamento. A sapa ordenou, pois, ao rapaz que entrasse na lagoa e mergulhasse sem receio, nas suas águas.
O moço assim fez e viu-se, subitamente, num palácio deslumbrante, construído debaixo da lagoa. Estava tudo preparado para o casamento. Mas todos os habitantes do palácio, inclusive o padre, o sacristão, as testemunhas, os criados, os guardas eram sapos que coaxavam sem cessar.
Depois da cerimônia, o casal ficou residindo no palácio, onde havia todo o conforto. Todos os dias, havia banquetes, festas, concertos, peças de teatro, mas tudo feito, cantado e representado pelos sapos. A princípio, o rapaz achou tudo aquilo muito desagradável. Mas, com o correr do tempo, acostumou-se ao reino dos sapos, embora tivesse sempre saudades dos irmãos e do seu velho pai.
Aproximava-se, porém, o aniversário do lavrador. Havia muito tempo que essa data era festajada pelos parentes que, todos os anos, se reuniam em sua casa, para cumprimentar seu pai. Mas como poderia — pensava o rapaz — chegar em casa, casado com uma sapa ? Certamente, seria ridicularizado pelos irmãos e pelos outros parentes. Que fazer?
Resolveu dizer à sapa que precisava comparecer ao aniversário do seu pai. A esposa achou que êle fazia muito bem e começou a bordar uns lenços de seda para o sogro.
Afinal, chegou o dia da visita ao pai. Acompanhado da sapa, o rapaz tomou o caminho de sua casa. Quando o lavrador soube que o filho tinha casado com uma sapa, ficou muito triste. Mas não pôde deixar de admirar os lenços lindíssimos que a nora lhe ofereceu.
Na hora do jantar, o rapaz ficou indignado com as risa-das e indiretas dos irmãos e das cunhadas. Mas ficou calado. Deu o braço à esposa e caminhou para a mesa, sem se importar com o riso dos parentes e vizinhos.
Quando os dois esposos sentaram à mesa, aconteceu um fato inesperado. A sapa, de repente, transformou-se numa jovem lindíssima, ricamente vestida. O espanto foi geral.
A sapa era uma princesa. Anos atrás, havia sido encantada por uma feiticeira que tinha inveja de sua beleza. Somente poderia voltar à forma humana se encontrasse uni rapaz que a desposasse. Assim, a feiticeira pensava que a moça jamais seria desencantada.
O rapaz ficou radiante de alegria. Seus irmãos e cunhadas arrependeram-se do que haviam feito. E o velho lavrador não cabia em si de tanta satisfação.
No lugar onde se achava a lagoa, surgiu um lindo palácio, servido por criados e soldados que haviam sido encantados pela feiticeira.
O rapaz perdoou aos irmãos e, juntamente com a esposa e seu velho pai, foi residir no belo palácio, onde viveu, muito feliz, o resto de sua existência.

O Leão e os Três Bois


Havia três bois que costumavam pastar sempre juntos. Um Leão emboscou-se na esperança de os caçar, mas estava com receio de os atacar enquanto estivessem unidos.
Usando a sua astúcia, conseguiu que lutassem entre si, separando-os. Então, atacou-os sem medo e devorou-os um a um.

Moral da história:
A união faz a força.


Fábula de Esopo

18/01/2011

A águia e a raposa




Tinha a Águia filhos e para os cevar levou nas unhas dois raposinhos tomados de uma lousa. A mãe, que o soube, lhe foi rogar que desse seus filhos. Mas a Águia lá do alto zombou dos rogos e disse que não deixaria de lhos comer. A raposa magoada começou logo a cercar a árvore, onde a Águia tinha seu ninho de muitas palhas, tojos, paus secos e acendalhas de tal maneira, que pondo-lhe o fogo, fez uma fogueira muito grande. Viu-se a Águia atribulada do fumo, e labareda, e do receio que ardesse a árvore toda, lançou-lhe os filhos sem lhe tocar, e quase ficou chamuscada pela indústria da Raposa.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

17/01/2011

O homem de barbas azuis



Estava um lenhador sentado, junto à margem de um rio, de queixo nos joelhos, muito triste, quando por ele passou um homem de barbas azuis.
Um homem de barbas azuis? Como pode ser isso? Pode, pois.
Nas histórias tudo pode acontecer. Então, era um feiticeiro?
Talvez fosse. Continuam a aparecer nas histórias. Uns de barbas encarnadas, outros de barbas verdes... Este tinha-as azuis, que mal há nisso?
O lenhador nem reparou na cor das barbas do homem. Estava tão desolado, a olhar para o rio, que tudo o mais lhe era indiferente.
- Aconteceu-lhe alguma desgraça? - perguntou o homem de barbas azuis, numa voz que parecia de pessoa bondosa.
- Uma grande desgraça - respondeu o lenhador. - Estava a dormitar, cansado do trabalho, ao fresco da beira-rio, quando o machado me escorregou. Foi para o fundo e eu, que não sei nadar, não tendo machado, fico um inútil.
- Deixe que eu trato disso - tranquilizou-o o homem de barbas azuis, despindo a camisa e as calças e tirando meias e sapatos.
Mergulhou nas águas do rio, que estava limoso e redemoinhento. Um perigo. Voltou ao cimo com um machado de oiro.
- É este? - perguntou.
- Ó meu senhor, esse não é. O meu machado é ferramenta de pobre.
O homem de barbas azuis mergulhou de novo, para logo voltar à superfície, empunhando um machado de prata. Claro que também aquele não era o machado do lenhador.
Ao terceiro mergulho trouxe-lhe o machado perdido.
- E, como és honesto e sincero, levas também os outros machados - disse-lhe o homem de barbas azuis.
Pela primeira vez o lenhador reparou nas barbas do seu benfeitor. Assustou-se, atrapalhou-se e, tartamudeando uns agradecimentos em voz sumida, abalou com os três machados. Entardecia.
Antes de chegar a casa, encontrou um vizinho a quem contou a maravilha, exibindo os machados de oiro e de prata que refulgiam, à luz do sol a despedir-se.
O vizinho, que vinha da lavoura numa carrocita a desfazer-se, nem quis ouvir a história segunda vez. Puxou as rédeas e fez a mula trotar por barrancos, até à beira do rio.
Estava a noite a descer. O vizinho do lenhador, num afogadilho, desatrelou a mula e atirou a carroça com tudo dentro, ribanceira abaixo. O rio engoliu-a num trago.
Depois ainda atirou o relógio, a bolsa com moedas, o colete e a camisa para o meio do rio. E pôs-se a gritar, numa grande choradeira:
- Ai quem me acode, que perdi todos os meus pertences e não sei nadar!
Relanceava os olhos cobiçosos para as moitas que escureciam, à espera do tal bruxo de barbas azuis. De mãos nas cavas, tiritando da friagem da noite, gritou e voltou a gritar:
- Quem me devolve os meus ricos bens, a carroça de prata, com rodas de oiro e a riqueza toda que lá ia dentro, mais a camisa e o colete com botões de oiro e a bolsa cheia de libras, mais o relógio de oiro, ai quem me acode?!
A mula pastava solta, de dente arreganhado para a ervinha tenra. Ou estaria a rir-se?
Mais se ria, à socapa, a Lua, cheia e chapada, no meio da noite.
E o homem, quase nu, numa aflição, cada vez mais a sério:
- Quem me salva? Quem me acode?
Mas ninguém lhe acudiu.

António Torrado

O belo adolescente triste



Fica sabendo, ó meu irmão, que eu também sou filho de rei, e minha história é tão incomum que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos serviria de lição a toda pessoa que gosta de se auto aperfeiçoar. Nasci na terra de Kabul onde meu pai, Tigamos, é rei. Ao mesmo tempo poderoso e justo, ele tem sob sua suserania sete reis tributários. Desde a minha infância, meu pai cuidou que fosse instruído nas ciências, nas artes e nos desportos, de maneira que aos quinze anos já era considerado um dos cavalheiros mais finos do reino. Dirigia as caçadas e as corridas, sentado no meu cavalo, mais veloz que um antílope. Certo dia, durante uma caçada, ao crepúsculo, vi a poucos passos uma gazela airosa que, ao me ver, fugiu como uma flecha. Segui-a com meus sete mamelucos até que chegamos a um rio caudaloso onde esperávamos acuá-la e prendê-la. Ela, porém, se jogou no rio e nadou com velocidade até a outra margem. Apeamos sem demora, confiamos nossos cavalos a um dos mamelucos, saltamos num barco de pescar que estava lá e fomos em perseguição à gazela. Mal atingimos o meio do rio, perdemos o comando da embarcação e fomos levados pela correnteza. Passamos assim aquela noite e o dia seguinte, incapazes de controlar a violência da água e do vento, receosos, a cada minuto, de bater contra alguma rocha e morrer afogados. Foi só na manhã do segundo dia que conseguimos desembarcar numa terra coberta de árvores e atravessada por um córrego. Mas um homem refrescava os pés no córrego. Quando nos viu, pulou, e seu corpo dividiu-se em dois na altura da cintura. Somente a metade superior veio a nós. De repente, de todos os cantos do jardim, apareceram outros homens iguais a ele. Jogaram-se sobre três mamelucos e começaram a comê-los vivos. Eu e os três outros pulamos no barco, preferindo ser engolidos pela água do que por aqueles monstros. Dois dias depois, desembarcamos novamente numa terra coberta de árvores frutíferas e flores aromáticas. Percorrendo este novo asilo, chegamos a um palácio vazio, com pavilhões de cristal. Entramos. Na sala principal, havia um trono de ouro. Sentei-me nele. Mas logo ouvimos um barulho parecido com o tumulto do oceano e vimos uma procissão entrar no palácio, composta de emires, vizires e outros notáveis, todos eles macacos. Uns eram anões; outros, gigantes. O vizir, um macaco de estatura enorme, veio até mim, inclinou-se respeitosamente e informou me, numa voz humana, que seu povo me reconhecia como rei e meus três mamelucos como comandantes do exército. Informou-nos também que estavam prestes a atacar seus vizinhos e inimigos, os Ghuls. Não tínhamos escolha. Montamos em três cães enormes que nos trouxeram e encabeçamos a marcha das forças armadas. E chegamos logo à terra dos Ghuls, os seres mais horrendos que já vira. Alguns tinham cabeças de touro e corpos de camelo. Outros eram como hienas. Outros tinham formas tão estranhas que não se assemelhavam a nada que conhecêssemos. Quando os Ghuls nos viram, arremessaram sobre nós uma chuva de pedras, às quais nosso campo respondeu da mesma forma numa batalha terrível. Eu e meus mamelucos usamos nossos arcos e matamos muitos Ghuls, o que nos assegurou a vitória e encantou meus novos vassalos. Incompreensivelmente, esses vassalos me abandonaram após a vitória. E, montado no meu cão, recomecei a errar naquela terra desconhecida. Um dia, cheguei à cidade dos judeus, que viviam lá desde o tempo de Soleiman. Ao entrar, ouvi um pregoeiro gritar: "Quem quiser ganhar mil libras de ouro e uma jovem escrava, trabalhando apenas uma hora, que me siga." Segui-o. Na realidade, era o único a segui-lo. Levou-me a um velho judeu que me recebeu com muita simpatia, deu-me um saco contendo mil peças de ouro e me apresentou a uma jovem de grande beleza. - Fica com ela três dias e três noites, disse-me. Depois, irás fazer o trabalho pelo qual estás sendo pago. A moça era virgem. Passei com ela as únicas horas felizes de minha vida. No terceiro dia, o velho judeu deu-me uma mula e uma faca e disse-me: "Mata esta mula e separa-lhe a pele do corpo." Obedeci. Então, disse-me: "Deita sobre esta pele e junta-a em volta de teu corpo. Um abutre gigante vai levar-te no seu bico até o cume de uma montanha. Deixa-te levar sem esboçar um movimento - senão serás morto na hora."No alto da montanha para onde o abutre me levou, encontrei um palácio sumptuoso e alguém esperando por mim na porta. "Descansa e diverte-te neste palácio, entrando nos aposentos que quiseres com uma única excepção: o aposento que abre com esta chave de ouro," disse-me o homem. E partiu. Passei dias naquele palácio vazio, lutando contra a tentação de abrir a porta proibida. No fim, minha curiosidade prevaleceu. Abri a porta proibida. Havia lá uma piscina e quatro moças nuas tomando banho, como se quatro luas se estivessem refletindo na água. Apaixonei-me por uma delas, denominada Chams, Sol. Esperei até que estivessem todas dentro da piscina e, correndo mais rapidamente que a luz, apanhei a roupa da jovem que amava. Disse-me: "Adolescente bonito, como ousas apoderar-te do que não te pertence?" Respondi: "Minha pomba, sai da água e vem falar comigo." Respondeu com suavidade: "Luz de meus olhos, se fizer o que me pedes, estarei plantando uma faca no meu próprio coração." Assim mesmo, consegui pegá-la e levá-la até o trono de rubi que estava lá. Vendo que não poderia escapar, cedeu a meus desejos e, pondo seus braços em volta de meu pescoço, deu-me beijo por beijo e carinho por carinho, enquanto suas irmãs sorriam para nós e vigiavam para que não fôssemos surpreendidos. Momentos depois, meu velho protetor abriu a porta e entrou. Levantamo-nos em sua homenagem. E ele dirigiu a cada um de nós dois palavras carinhosas e incentivou-nos a nos casar, dizendo a Chams: "Minha filha, este moço que te adora é de ilustre linhagem. Seu pai é um rei. Farás bem em aceitá-lo por esposo e eu persuadirei teu pai, rei Nasr, a abençoar-vos." - Ouço e obedeço, disse a moça. No dia seguinte, apresentou-me ao pai, o rei Nasr, dono dos génios, o qual me abraçou e ordenou grandes festas para celebrar o casamento. Mandou também confeccionar um trono tão vasto que, nos seus degraus, podiam ficar em pé duzentos génios machos e duzentos génios fêmeas. Sabendo que meus pais estavam ansiosos por minha volta, mandou um exército inteiro de génios levantar o trono em que minha mulher e eu estávamos sentados e carregá-lo através do espaço até o palácio de meu pai em Kabul. A viagem, que leva normalmente dois anos, foi feita em dois dias. Meus pais regozijaram-se e celebraram minha volta e meu casamento com festas mais sumptuosas que tudo que tinha sido visto até então. No fim do ano, que passou como uma primavera, minha mulher quis rever seu pai e mãe. Concordei alegremente; mas, para minha infelicidade, foi uma viagem azarenta. Subimos em nosso trono e nossos Afarit carregaram-nos. Viajávamos de dia e descansávamos de noite. Uma noite, Chams quis tomar banho num belo rio onde paramos. Tentei dissuadi-la, mas insistiu. Estava no meio da água com suas escravas como a lua no meio das estrelas quando lançou um grito lancinante e caiu morta. Uma serpente das águas, particularmente venenosa, a mordera no calcanhar. Vendo Chams morta, desmaiei. E fiquei tanto tempo desmaiado que julgaram-me morto. Mas, ai de mim, eu devia sobreviver à minha amada para chorá-la e construir-lhe o túmulo que vês. Quanto a esse segundo túmulo, é o meu próprio. Aqui vivo, chorando e rememorando com nostalgia os anos que passamos juntos enquanto se esgota o tempo insuportável que me separa do dia em que dormirei para sempre ao lado de Chams, longe do reino a que renunciei, longe do deserto deste mundo. Nasceste de barro e viraste homem. E aprendeste a retórica e as ciências. Depois, morreste e voltaste à terra como se tivesses sido sempre barro.


(tradução brasileira)

15/01/2011

O amestrador de tigres

Um dos melhores amestradores da China chamava-se Liang Yang. Ele treinava qualquer tipo de animal, de lobos a tigres, de águias a serpentes. Mas Liang Yang estava envelhecendo e, caso morresse, não haveria ninguém para substituí-lo. O rei Xuan ordenou então que Mao Qiuyuan aprendesse com ele suas habilidades de amestrador.
— Eu não tenho nada para lhe ensinar — disse Liang Yang — Acontece que se você disser isso ao rei, ele vai achar que estou de má vontade.
Mao Qiuyuan escutou em silêncio o que lhe dizia Liang Yang. Começou então a observar como o amestrador entrava na jaula do leão, acariciava sua juba durante algum tempo e saía logo depois. Nesse momento, a pantera negra urrou debaixo de uma figueira. Liang Yang aproximou-se dela, os dois observaram-se durante algum tempo, até que Liang Yang pareceu lembrar-se de que Mao Qiyuan ainda o esperava.
— E então? — Quis saber Mao Qiyuan.
— Eu vou te falar um pouco sobre cuidados que você tem de ter. Alguns animais ficam muito bravos quando são desobedecidos. Cuidado com eles! Um amestrador, por exemplo, não ousa dar ao tigre animais vivos para comer, pois logo eles ficam bravos e impacientes. Não se pode também dar aos tigres um animal inteiro. Os tigres não gostam. Preferem a comida dada aos poucos. Além disso, um amestrador tem de saber quando o animal está faminto e o que pode irritá-lo. Embora tigres e homens sejam de espécies diferentes, os tigres vivem muito bem com seus criadores porque esses amestradores conhecem bem a vontade dos tigres e nunca os desobedecem.
´Eu nunca desobedeci meus tigres, deixando-os furiosos ou agradei-os, com obediência em demasia. Freqüentes alegrias são seguidas de repetidas fúrias e repetidas fúrias de alegrias: nenhuma dessas situações pode ser boa. Sendo assim, fico calmo e tranqüilo e nunca sou obediente ou irritante em excesso. Nos olhos dos animais e dos pássaros, somos da mesma espécie. Eles vivem no meu pátio como se ele fosse deles, nunca sentindo saudade da floresta, do mar, da montanha ou do vale.

O pescador e o peixinho



Uma vez um Pescador, depois de passar o dia todo pescando, pegou, somente, um Peixinho. “Por favor, deixa-me ir, mestre”, disse o peixe. “Sou muito pequeno para tu me comeres, agora. Eu crescerei logo, assim tu poderás fazer uma boa refeição de mim”.
“Não, não, meu peixinho”, disse o Pescador, “Tenho-te, agora. Talvez, mais tarde, quando tu estiveres grande, não conseguirei pegar-te, novamente”.


Moral: Uma pequena coisa nas mãos vale mais a uma possível chance de um dia conseguir algo maior.


Fábulas de Esopo

12/01/2011

A panela de barro e a de cobre



Uma corrente de água levava duas panelas, uma era de cobre, outra de barro, e cada uma ia por sua banda.
Disse a de Cobre à outra: Cada uma de nós só não tem força para fazer resistência à água, mas chega-te a mim, e ambas poderemos resistir-lhe.
Não quero - disse a de barro - nem me vem bem, porque se na água tu me deres uma topada, ou ta der a ti, de qualquer maneira tu ficarás sã, e eu far-me-ei em pedaços.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

08/01/2011

Hóspedes indesejáveis



Depois do almoço, altura de menor movimento na estalagem, o senhor Pestana, protegido pelo balcão da entrada, lia tranquilamente o seu jornal. Às vezes dormitava, o que não era de censurar. Se, nos respectivos quartos, os hóspedes faziam a sua sesta, porque não havia o hospedeiro de fazer o mesmo?
Foi numa ocasião destas que uma vozinha sobre o balcão perguntou:
- Tem quartos livres?
O senhor Pestana levantou os olhos do jornal, mas não viu ninguém. Debruçou-se do balcão e espreitou para o outro lado, não fosse o cliente de baixa estatura. Nem sombra. ?Adormeci, foi o que foi, e já estava a sonhar com mais hóspedes", pensou, resignadamente, o senhor Pestana.
- Afinal, tem ou não tem quartos disponíveis? - voltou a perguntar a vozinha, já com alguma impaciência.
Quem tem voz, tem corpo. Para não prolongar o mistério, vamos já esclarecer que o corpo desta voz tinha o tamanho de uma pulga. Era efectivamente uma pulga a causadora da confusão.
- Pretende um quarto com vista para o lago? - perguntou o senhor Pestana, que não se perturbava por tão pouco.
- A vista é o menos - respondeu a pulga. - Mas queremos sossego.
- Queremos? - estranhou o senhor Pestana. - Quantas são?
- Vinte e cinco, contando comigo. É um grupo de excursionistas.
O senhor Pestana estava desolado. Não tinha quartos que chegassem. Mas não quis perder a oportunidade:
- Se coubessem todas em três quartos...
A pulga aceitou a sugestão. Não tencionavam demorar-se muito. Duas noites, se tanto.
- Também precisamos de instalações para o nosso transporte - lembrou a pulga. - Uma casota chega.
- Casota para a camioneta? - admirou-se o senhor Pestana.
A pulga riu-se. Tinha um riso fininho, irritante esta pulga.
- Nos nossos passeios, deslocamo-nos sempre de cão. Temos um cão privativo e muito felpudo, que nós guiamos para onde queremos.
O senhor Pestana começava a arrepender-se de ter dado hospedagem aquelas pulgas presumidas.
Na manhã seguinte, mais se arrependeu. Vieram ter com ele hóspedes antigos e respeitáveis queixar-se de que tinham dormido mal, assaltados durante a noite por cócegas e picadas esquisitas, inconvenientes. Estão a entender, não é verdade? Efectivamente, algumas excursionistas tinham-se enganado no número do quarto...
O senhor Pestana, muito incomodado, foi ter com a responsável pela excursão:
- Desculpem, mas não podem continuar cá. Está em jogo a reputação da minha estalagem.
As pulgas compreenderam a situação. Pagaram a conta e chamaram o transporte privativo, para mudarem de poiso. Quando foram fazer a contagem, eram vinte e oito.
O senhor Pestana preocupou-se:
- Como apareceram essas três a mais?
- Dizem que são inglesas - esclareceu a pulga chefe. - Parece que as viram num fox-terrier, pêlo de arame, de um ?mister" qualquer. Agora querem acamaradar connosco. Nós não nos importamos.
O senhor Pestana também não se importava. Desde que deixassem a estalagem, era-lhe indiferente, mas pelo sim pelo não, andou a espalhar insecticida por baixo das camas de todos os quartos.

06/01/2011

A Lenda de Ísis e os Escorpiões



Eu sou Ísis, senhora da magia, Senhora dos Sortilégios.
Saí de minha casa, onde meu irmão, Seth, me havia aprisionado, pois Thot me havia chamado. Thot, o duplamente grande, Thot, o senhor da justiça e da verdade na terra e nos céus. Ele me disse, quando o encontrei:
- Venha, ó Ísis, agora é bom escutar: pois há vida para o homem que se deixa guiar pelos sábios conselhos de outrem. Esconde-se tu e teu filho porque ele {Hórus} pode chegar até nossa esfera de poder. Seus membros vão crescer, e também a força dele se fará poderosa, e ele com altivez virá a ascender ao Trono de seu pai, a quem vingará, e a dignidade de governante das duas terras será de novo seu.
Fui-me quando o poderoso Rá descendia de sua gloria para o lado ocidental, e o manto da noite começava a tingir de escuridão o céu. Comigo viajavam sete escorpiões, e seus nomes eram: Tefen e Befen, Mestet e Mestetef, Petet, Tetet e Matet.Atras de mim, vinham Tefen e Befen. Mestet e Mestetef vigiavam meus lados. A minha frente iam Petet, Tetet e Metet, vigiando e protegendo o caminho para que nada pudesse atrasar minha viagem. Eu lhes ordenei em voz alta minhas palavras, e meus comandos atravessaram o vento e eles ouviram: "Não reconheçam a nenhum da terra negra, não saúdem a nenhum das terras vermelhas, não atentem a nenhuma criatura, seja nobre, seja plebéia, mantenham-se com vossas mentes no caminho a ser percorrido."
Então vaguei, defendida pelos escorpiões, pela terra do Egito. E assim, chegamos a Per-Sui, onde se venera Sobek, o deus crocodilo, e a cidade das Deusas Gêmeas, ali, onde começam os pântanos do Delta do Nilo, onde abundam papiros e os pantaneiros vivem e caçam.
Quando chegamos perto das casas onde vivem os pantaneiros passamos próximos a uma mansão, onde vivia uma abastada mulher, de nome Usert. Ela se achava na porta, e desde muito longe me viu cansada, dolorida e de bom grado eu teria me refeito em sua casa, mas, quando fui falar-lhe, ela fechou a porta, com medo de meus guardiões.
Continuei por meu caminho e encontrei abrigo junto a uma mulher do povo, que me concedeu hospitalidade. Porém, Mestet e Mestetef, Petet, Tetet e Matet e Befen estavam em grande consternação, devido ao tratamento da rica mulher. E uniram seu veneno sob o ferrão de Tefen, que se tornou sete vezes mais poderoso. Tefen regressou a casa da rica mulher, Usert, e se esgueirou para dentro. Uma vez lá, com sua picada poderosa ferroou o filhinho de Usert, e um fogo estranho se deflagrou. Não havia água para combatê-lo, e foi o céu que enviou a água, num grande prodígio, pois a estação chuvosa ainda estava longe.
A mulher de nome Usert, que nos havia negado abrigo, chorava, e seu coração estava triste, por que não sabia se seu filhinho seria encontrado com vida ou não. Ela estava vagando pelo povoado, chorando, mas ninguém a acudiu em seu desespero. E o som de suas lamentações chegou a mim, e meu corações se compadeceu da dor dela. Assim, resolvi trazer dos mortos seu menino, livre de toda a culpa, e juntas fomos ao local onde jazia seu filho amado. Eu disse a mulher:
- Venha, venha mim! Observa a minha boca que dá a vida, que tem o poder de destruir as criaturas vis, com os dizeres de algumas palavras, que por meu pai me foi dado a conhecer. Sou Sua filha amada, sangue de Seu sangue!
E eu, Ísis, a senhora da magia, cuja voz faz com que se retorne da morte disse em voz alta as Palavras de Poder, as palavras que pode ouvir ainda que na morte, e pus minha mãos sobre o corpo do garotinho a quem devia devolver a vida. Frio e imóvel estava seu corpo, devido ao sete vezes poderoso veneno de Tefen. Então pronunciei um sortilégio mágico contra o veneno do Escorpião Tefen:
- Oh, veneno de Tefen, sai desse corpo, e volte a terra!
- Veneno de Befen, não avances, volte a terra!
- Por que eu sou Ísis, a Grande Maga, Senhora dos Sortilégios. Pratico a Alta Magia, e me escutem vos, todos os répteis!
- Caia, veneno de Mestet!
- Decline, veneno de Mestetef!
- Não circule, veneno de Petet e Tetet!
- Não se aproximes das partes vitais, veneno de Matet!
Agora vem o sortilégio contra o veneno, oferecido por Geb à Ísis:
- Não clame aos das terras vermelhas, aponta teu olhar para as nobres senhoras que estão em suas casas até que cheguemos aos lugares onde nos proteger em Jeb, a terra de Buto. O menino viverá, o veneno vai minguar. Como Hórus se fez forte pela intervenção de sua mãe, o que foi ferido se fará forte também.
Então o menino se recuperou, e o fogo provocado na casa foi totalmente extinto, e o céu estava satisfeito com as palavras de Ísis, a Grande Maga. Usert me trouxe algumas jóias e riquezas e os levou a casa da mulher humilde, como recompensa por haver aberto a porta para mim, quando eu, cansada e dolorida pedi pouso, para refazer-me das fadigas.
E agora os homens das suas terras fazem massa de farinha de trigo e sal, depositando-a sobre as feridas infringidas pelo ferrão do escorpião, e logo recitam as Palavras de Poder que eu recitei sobre o filho de Usert quando o sete vezes poderoso veneno de Tefen estava em seu corpo, por que eu sou Ísis, a Grande Maga, Senhora dos Sortilégios.


Contos e Lendas da Mitologia Egípcia



05/01/2011

A fonte do saquê




Há muitos e muitos anos, no tempo em que a imperatriz Gensho reinava no Japão, morava em Mino, atual Gifu, um lavrador de poucos recursos. Apesar de ser um rapaz muito trabalhador, o que produzia em sua horta não era o suficiente para o sustento dele e de seu velho pai.
O pai também sempre foi pobre e, na idade avançada, pouco podia fazer para ajudar o filho na roça. O filho tratava o pai com carinho, sabia quanto ele tinha se sacrificado pela família. Sempre sonhava com uma maneira de dar algum conforto ao seu pai nos últimos anos de sua vida. O velho gostava muito de saquê (vinho de arroz), porém quase nunca sobrava dinheiro para o moço comprar-lhe uma garrafa.
Certa ocasião, após terminar seus trabalhos na horta de verduras, o rapaz subiu a montanha para cortar lenha. Como fazia de tempos em tempos, levaria a lenha para vender na cidade e conseguir algum dinheiro para comprar saquê para seu velho pai. Seu prazer era ver a cara de felicidade quando seu pai sorvia apetitosamente os goles de saquê.
O moço encheu o carregador de lenhas, colocou-o nas costas e começou a descer a montanha em direção à cidade. Mas, como havia colocado muita lenha nas costas, veio cambaleando, devido ao grande peso, e acabou escorregando. Rolou morro abaixo até o fundo de um vale, onde ficou desmaiado durante horas.
Mais tarde, despertou todo dolorido e com muita sede. Nisso prestou atenção, pois ouvia o barulho de uma queda d’água. Saiu em direção ao som e encontrou uma pequena fonte entre rochas e folhagens. Fazendo das mãos uma concha, bebeu a água da fonte e teve uma grande surpresa. Não era água e sim saquê!
Não acreditando no que estava acontecendo, tornou a beber. Realmente era saquê!
Imediatamente, o moço lembrou de seu pai e de quanta alegria ele teria saboreando aquele saquê. Então, encheu de saquê a cabaça, que sempre carregava na cintura para levar água ao seu trabalho.
Quando chegou em casa, seu velho pai estava preocupado com a demora.
– Aconteceu alguma coisa para você demorar tanto a voltar?
– É difícil de acreditar no que houve. Beba um pouco desse líquido enquanto eu conto o que aconteceu.
O pai experimentou o líquido da cabaça e comentou, feliz:
– Esse não é o saquê que você costuma comprar para mim. É muito mais gostoso!
Então, o filho revelou o acontecido no vale em seus mínimos detalhes. O pai, surpreso pela narrativa, comentou:
– Isso é uma graça divina. O deus do saquê agraciou você por ser um bom e dedicado filho. Vamos fazer a oferenda de uma taça de saquê no santuário e rezar a ele em agradecimento.
A partir desse dia, todas as tardes, quando o moço terminava seu trabalho na lavoura, ia buscar saquê na fonte. Voltava com a cabaça cheia para casa e fazia a alegria de seu pai, que o esperava ansiosamente. Assim, pai e filho viveram por muitos anos em perfeita harmonia.
A notícia daquele insólito acontecimento espalhou-se por todo o Japão e chegou aos ouvidos da imperatriz Gensho, que reinou de 715 a 724. Ela resolveu ir pessoalmente conhecer a fonte milagrosa de saquê. Ao experimentar a água da fonte, percebeu que se tratava simplesmente de água e nada mais. Conhecedora da história, ela entendeu que o milagre ocorria somente com aqueles pai e filho. Como o filho era dedicadíssimo ao pai, o deus do saquê fazia com que o pai sentisse o gosto de um delicioso saquê, sempre que bebia aquela água. Então, a imperatriz determinou que fosse construído um jardim em torno da fonte e a batizou com o nome de Yorô, que significa “tratar bem de idosos”.
Assim, a imperatriz deu vários presentes ao moço, por tratar o pai com muito carinho. Desde então, nasceu o costume ainda vigente de a Casa Imperial Japonesa premiar as pessoas que tratam os idosos com respeito e carinho. E a Cachoeira Yorô é, ainda hoje, um ponto turístico muito visitado no Japão.


Lenda do Japão



03/01/2011

É bom não ter cabeça


No tempo de Han Wuti (140-87 A. C.), Chia Yung de Ts'angwu servia como magistrado em Yüchang. Um dia saiu para dar combate a bandidos. Foi ferido e teve a cabeça decepada. Mesmo assim, o corpo montou a cavalo e voltou ao campo. Os soldados, e o povo que ali estava, ficaram admirados e Yung falou pelo peito - "Fui derrotado pelos bandidos e eles me cortaram a cabeça. Digam-me francamente se é melhor ter cabeça ou ficar sem cabeça ?" Os homens lamentaram-no e disseram - "É melhor ter cabeça." E Yung replicou - "Não penso assim. Andar sem cabeça também é bom."

(Do "Luyichi", século IX)

02/01/2011

Adão e Eva

by_Crodesigner

No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia havia trevas sobre a face do abismo e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Disse Deus haja luz e houve luz. E houve dia e noite o primeiro dia. E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas e fez separação entre águas e águas. E chamou Deus afirma mento Céus. E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi. E chamou Deus à porção seca Terra; e assim foi o segundo dia, e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom. E disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi, o terceiro dia. E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos. E foi a tarde e a manhã, o dia quarto. E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus. E Deus criou as grandes baleias, e todo o réptil de alma vivente que as águas abundantemente produziram conforme as suas espécies; e toda a ave de asas conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom. E foi a tarde e a manhã, o dia quinto. E disse Deus: Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie; gado, e répteis e feras da terra conforme a sua espécie; e assim foi. E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criaram. E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto. E assim os céus e aterra e todo o seu exército foi acabado. E Deus descansou e foi o sétimo dia. Como Deus é maravilhoso criou tudo para sua Glória.