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28/11/2011

Sorte para o pintassilgo



Era uma vez um velho lenhador. Andara a vida inteira a percorrer a floresta e, agora que as forças já lhe faltavam para empunhar o machado, passava os dias, tristemente, à porta do seu casebre.
Entre as lembranças mais antigas que lhe preenchiam a memória, recordava-se de uma história que o tinha encantado, na infância. Nela se contava que havia, na floresta, anõezinhos tão pequenos que nem um palmo mediriam. Os anões ou gnomos, tanto faz, guardavam, num esconderijo, pedras de ouro puro, acumuladas, ao longo de séculos pelo trabalho incansável de várias gerações de mineiros anõezinhos.
O lenhador, que conhecia a floresta de lés a lés, nunca vira um gnomo nem, a bem dizer, acreditava que a história correspondesse à verdade.
- Invenções para entreter meninos. E velhos... - dizia ele de si para si, com um sorriso desencantado.
Mas não é que, um dia, descobriu mesmo um gnomo?
Um gnomo a dormir, de boca aberta, junto à raiz de um pinheiro da floresta, era uma descoberta fantástica.
O lenhador agarrou-o pela cintura como quem agarra um gafanhoto e gritou-lhe:
- Afinal, sempre é verdade. Agora, só falta saber o segredo do tesouro dos gnomos...
O homenzinho, preso entre o polegar e o indicador do homenzarrão, debatia-se e protestava que nunca tinha ouvido falar em tal tesouro.
- Se não me dizes, onde o esconderam, aperto-te a barriga, que nem tempo tens para dizer ?Chega" - ameaçou o lenhador.
E era bem capaz... A possibilidade imprevista de vir a ficar rico, riquíssimo, quase o enlouquecia.
- Diz-me onde está o tesouro ou esborracho-te - insistiu o lenhador.
O gnomo, não tendo outra alternativa, acabou por apontar uma árvore, confessando que, debaixo da raiz da árvore, numa loca, estava, agasalhado entre musgos, o maior tesouro do mundo.
- Já vamos saber se é como contas - disse o lenhador.
Mas entardecia. Era Inverno, estação do ano em que, como se sabe, a noite cai cedo e depressa. O lenhador, contrariado por ter de guardar para o dia seguinte o que queria resolver naquele dia, fez uma cruz a canivete, no tronco da árvore indicada, e disse:
- Amanhã voltamos cá e, pelo seguro, tu hoje à noite vais ficar hospedado em minha casa.
Maneira de dizer... Hospedado no casebre, isto é, prisioneiro na gaiola, donde despejou um pintassilgo. Sorte para o pintassilgo.
O lenhador, nessa noite, dormiu mal. Quanto ao gnomo, nunca saberemos se dormiu bem ou não, visto que, na manhã seguinte, o lenhador deu com a gaiola vazia.
- Mas o tesouro há-de estar onde ele apontou - animou-se o lenhador.
De enxadão ao ombro, avançou para a floresta.
- Cá está a árvore que eu marquei - exclamou.
Efectivamente, a árvore tinha uma cruz, no tronco, riscada a canivete. Mas outras árvores perto e outras longe tinham uma cruz igual. Não havia uma única árvore da imensa floresta que não exibisse uma cruz, em cheio, no dorso do tronco.
Os gnomos, pela calada da noite, tinham trabalhado bem.
O lenhador, a sentir-se ainda mais velho e ainda mais cansado, deixou o enxadão encostado a uma das árvores, e voltou para casa, de cabeça baixa. Nada ganhara e até o pintassilgo da gaiola ele tinha perdido...

António Torrado


24/11/2011

O rato caseiro e o rústico



Convida, uma vez, ratinho
Mui galante e cortesão,
Certo arganaz montesinho
A sobras dum perdigão.

Em guedelhudo tapete
Luz o esplêndido talher.
São dois, mas valem por sete.
Que apetite! que roer!

Foi folgança regalada;
Nada inveja um tal festim.
Senão quando, na malhada,
Pilha-os súbito motim.

Passos à porta da sala...
Param os nossos heróis.
E o terror, que pronto os cala,
Lança em pronta fuga os dois.

Foi-se a bulha. Muito à mansa
Vêm-se chegando outra vez.
«Dêmos remate à folgança –
Diz o da corte ao montês.

– Nada. Mas vem tu comigo
Jantar amanhã; bem sei
Que lá me não gabo, amigo,
Desta vidinha de rei.

Mas ninguém me turba em meio
Do jantar; sobra o lazer.
E adeus. Figas ao prazer
Que pode aguar um recreio.»


Tradução de José de Sousa Monteiro

17/11/2011

Viva o Natério



Lá na aldeia todos sabiam que ele era ladrão, mas tinham-lhe medo.
Diziam que ele assaltava viajantes, noite alta. Também contavam de assaltos a casas dos povoados próximos, estivessem lá moradores ou não. E era cruel, rancoroso, arrebatado, perverso. Um tojo, um cardo de malvadez.
A gente pacífica da aldeia não descortinava maneira de ver-se livre do malfeitor. No tempo em que esta história aconteceu, não havia polícia senão nas cidades maiores. Os caminhos para lá chegar eram demorados e pouco seguros.
Por isso, sem autoridades que lhes valessem, os aldeãos viviam em perpétuo terror.
Até que, um dia, o Natério, um dez-réis de gente, mas muito vivaço e destemido, resolveu dar a volta à história. Naquele estado de pavor geral é que as coisas não podiam continuar.
Antes de o ladrão ir ter à casa onde se acoitava, costumava passar por perto de um poço da aldeia. Quando lhe adivinhavam a sombra, as mulheres que vinham buscar água fugiam e até bilhas e celhas deixavam na borda.
Desta vez, o malfeitor encontrou um rapaz, que chorava baba e ranho, à beira do poço. Era o Natério.
Não que se impressionasse com as lágrimas, mas por curiosidade, o ladrão perguntou qual a razão da choradeira.
- Trazia uma pesada taça de prata, que a minha mãe tinha areado, a mando do senhor padre...
- Era pesada a taça, disseste tu? - interessou-se o maganão, de olhos a luzir.
O rapaz fez que sim e continuou o seu relato:
- Debrucei-me para o poço, à caça de uma lagartixa, e a taça caiu-me lá dentro. Uma desgraça! O que é que eu vou dizer à minha mãe? E ao senhor prior?
Como se temesse as respostas, o rapaz voltou ao berreiro.
- Deixa estar que eles escusam de saber - disse o ladrão, escarranchado no bordo do poço. - Eu trago-te a taça, não tarda.
Enfiou pelo poço abaixo, que era fundo e estava menos de meio.
- Não encontro a taça - dizia ele.
A voz ecoava na abóbada do poço. Era assustadora.
- Procure o senhor do seu lado direito, que ela caiu mais para esse lado.
O ladrão, que se segurava por uma corda presa à cintura, desceu mais um tanto, agarrado às paredes do poço. Valente era ele.
- Ainda não achei - dizia.
- Mas achámo-lo nós - gritou-lhe de cima o Natério.
Dos pinhais ao redor romperam mulheres e homens, à chamada do rapaz. Agarraram todos uma enorme pedra e puseram-na a tapar a boca do poço. O bandido gritou, mas de nada lhe valeu.
Já outros da aldeia tinham ido à cidade chamar a guarda. Dias depois, foi removida a pedra e o ladrão saiu a praguejar da armadilha que lhe tinham pregado. Chegando ao cimo, calou-se. Tinha guarda de honra à espera, uma fieira de canos de espingarda apontada para ele.
Os guardas levaram-no e nunca mais se soube do brutamontes.
O poço ganhou nome. Passou a ser conhecido pelo poço do Natério. E se, um dia, andarem por terras monfortinhas, a caminho de Castelo Branco, talvez ainda haja quem saiba dizer onde fica.


António Torrado


16/11/2011

As cabras montanhesas e o cabreiro



Levou um cabreiro a pastar a suas cabras e de pronto viu que as acompanhavam unas cabras montanhesas. Legada a noite, levou todas a sua gruta.
Na manhã seguinte caiu uma forte tormente e não podendo levá-las, cuidou lá mesmo. Porém, enquanto dava a suas próprias cabras um punhado de forragem, às montanhesas servia muito mais, com o propósito de ficar com elas. Terminou por fim o mau tempo, e sairam todas ao campo, porém as cabras montanhesas escaparam para a montanha. Acusou-as o pastor de ingratas, por abandoná-lo depois de tê-las atendido tão bem, mas elas lhe responderam:
- Maior razão para desconfiar de ti, porque se a nós recém chegadas nos tratou melhor que a tuas velhas e leais escravas, significa isto que se logo vierem outras cabras, tu nos depreciaria por elas.

Nunca confíes em quem pretende tua nova amizade a ponto de abandonar a que já tinha.


Fábulas de Esopo

15/11/2011

Hera, rainha do Olimpo



Hera era a filha mais nova de Cronos (Saturno) e Réia (Cibele). Assim como o irmão Zeus, foi poupada de ser devorada pelo pai, através de um ardil da mãe, que a entregaria recém nascida aos cuidados de Tétis e das Horas.
Quando Zeus derrotou Cronos, após uma guerra sangrenta de dez anos, tornando-se o senhor dos deuses, procurou pela irmã. Fascinado por sua beleza, encantou-se por ela, declarando-lhe uma paixão arrebatadora. Mas Hera declinou diante da paixão do irmão, preferindo manter-se casta. Inconsolável, Zeus transformou-se em um cuco, surgindo na frente da amada como um pássaro triste e quase morto pelo frio. Compadecida, Hera, pegou a ave, aquecendo-a no calor do seio. Tão logo se viu junto ao corpo da deusa, Zeus, entorpecido pelo desejo, tomou-a para si, violando-a.
Diante da vergonha e humilhação sofrida, Hera exigiu que o irmão reparasse o ultraje. Apaixonado e decidido a encontrar uma companheira, o senhor dos deuses tomou a irmã como esposa, em uma pomposa cerimônia no Olimpo, assistida por todos os deuses. Hera tornava-se, ao lado do marido, a rainha de todos os deuses do Olimpo.
Reza a lenda, que após a grandiosa festa de matrimônio, Hera e Zeus partiram para um longo período de núpcias que duraria trezentos anos. Após regressar das núpcias, a deusa foi até Náuplia, banhando-se na fonte de Cánatos, sendo ali, restituída a sua virgindade.

12/11/2011

A Lamparina



Uma lamparina cheia de óleo gabava-se de ter um brilho superior ao do Sol. Um assobio, uma rajada de vento e ela apagou-se. Acenderam-na de novo e lhe disseram:
- Ilumina e cala-te. O brilho dos astros não conhece o eclipse.

Moral da Estória:
Que o brilho de uma vida gloriosa não te encha de orgulho. Nada do que adquirimos nos pertence de verdade.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

A Formiga e a Mosca

Entre a Mosca e a Formiga, houve grande altercação sobre pontos de honra. Dizia a Mosca:
- Eu sou nobre, vivo livre, ando por onde quero, como viandas preciosas, e assento-me à mesa com o rei, e dou beijos nas mais formosas damas. Tu mal-aventurada, sempre andas trabalhando.
Respondeu a Formiga:
- Tu és douda ociosa. Se pousas uma vez em prato de bom manjar, mil vezes comes sujidades e imundícias, aborrecida de todos; se te pões no rosto das damas ou à mesa com o rei, não é por sua vontade, senão porque tu és enfadonha e importuna.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

10/11/2011

A virtude da paciência

Um mandarim foi nomeado para o seu primeiro posto oficial. Ele recebeu a visita de um amigo, que vinha se despedir dele.
- Seja paciente, recomendou o amigo, se fores paciente, não vais ter nenhuma dificuldade no novo posto.
O mandarim disse que iria se lembrar do conselho.
Seu amigo repetiu a recomendação mais três vezes e a cada vez o mandarim dizia que iria se lembrar. Mas quando o mesmo conselho foi repetido pela quarta vez, ele irritou-se:
-Acha que eu sou um imbecil? É a quarta vez que me repete a mesma coisa!
-Estás vendo o quanto é difícil ter paciência? Bastou em dar o mesmo conselho duas vezes a mais e já ficaste com raiva.



09/11/2011

Na’aum, o “Hamza”




O sábio Na'aum fora cognominado "Hamza" pois, diante de qualquer sucesso da vida ele afirmava com inabalável confiança: "Isso também (Hamza) foi para melhor!"

Nos últimos anos de sua vida, Na'aum ficou completamente cego; suas mãos tornaram-se paralíticas; em consequência da lepra perdeu os pés e seu corpo cobriu-se de feridas. Jazia estirado no fundo do cubículo imundo de uma casa em ruínas, com as pernas mergulhadas em uma bacia d'água, para que as formigas não o atacassem. Os discípulos iam visitá-lo e voltavam impressionados com o sofrimento do sábio. Certa vez um deles não se conteve e interrogou o enfermo:
- Se sois um homem tão justo, por que vos atormentam tantos males?
- Meu filho – retorquiu o paciente – o único culpado sou eu.
E ante o incalculável espanto daqueles que o rodeavam, narrou o seguinte:
- Certa vez, ao chegar à casa de meus sogros, com três burros carregados, um de provisões, outro com água e o terceiro de frutos raros, encontrei andrajoso mendigo que implorou: "Patrão, daí-me alguma coisa para comer." Sem apiedar-me da triste situação em que se achava o infeliz, respondi desabridamente: "Espera que eu descarregue os burros!!!" Mas, antes que eu finalizasse a árdua tarefa, o homem, vencido pela fome, morreu. O crime por mim praticado revestira-se da maior perversidade, e, olhando para o corpo inanimado do mendicante, proferi, num ímpeto de remorso: "Percam a vista os meus olhos que não souberam ver e medir a tua miséria; fiquem paralíticas estas minhas mãos que não souberam levar a tempo o auxílio pedido; que sejam cortados os pés que não me conduziram pela estrada da caridade". E disse mais ainda: "Cubra-me a lepra o corpo todo".
Um dos discípulos deplorou com sincero pesar:
- É bem triste, para nós, vermos agora nosso bom mestre nesse estado!
Acudiu Na'aum, assumindo um ar de séria profundidade:
- Triste de mim, se vós não me pudésseis ver assim!


Lenda árabe