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20/07/2012

A última vontade do rei Hibbam



Naquele tempo, em Mokala, reinava o poderoso Hibban, um dos mais vaidosos monarcas que têm vivido em todos os tempos. Sua preocupação única era imitar os imperadores célebres e os vultos notáveis da História.
Ouvira ele contar que os soberanos mais famosos do mundo pronunciaram sempre, antes de morrer, palavras que se tornaram célebres. E não poderia ele, também glorificar a sua morte pronunciando uma frase notável, digna de figurar nos anais da História, uma frase fulgurante que ficasse perpetuada, através dos séculos, pela Fama e pela Glória?
Mas qual seria? Que deveria ele dizer aos súditos mokalenses no derradeiro momento de sua vida? Um conselho? Uma imprecação? Um pensamento famoso?
Na dúvida - e como não lhe ocorresse uma idéia aproveitável - mandou o rei Hibban chamar o seu talentoso secretário Salin Sady, homem de sua inteira confiança, e contou-lhe, pedindo-lhe absoluto segredo, o grande desejo de sua vaidade doentia.
Depois de meditar algum tempo, o digno secretátio respondeu:
- Conheço um verso de Masuk, o celébre poeta kurdo, que é magistral! Se pronunciar esse verso em dialeto kurdo, fará uma coisa original, nunca vista. Ademais, o verso a que me refiro, exprime um desejo nobre, um pensamento genial, digno de um verdadeiro rei.
- É exatamente um verso emocionante que mais me agrada e que melhor poderá servir ao rei de Mokalla. Mas qual é, afinal, o verso do grande Mazuk? Quero decora-lo.
E o inteligente Salin Sady ensinou ao bom monarca o verso magistral de Mazuk, o maior dos poetas do Afeganistão:
'Naib aq vast y harde nosteby katib.'
Cuja tradução (declarou Sady) seria: 'Esquecei meus erros, pois só errei com a intenção de acertar'.
Guardou o rei Hibban de memória o verso. Um dia sentindo-se muito doente, mandou chamar seus conselheiros, vizires, cadis e todos os grandes dignitários do reino e pronunciou sua última vontade, bem alto, devagar e solene para que todos ouvissem. E tão violenta comoção daquele momento, que o vaidoso rei morreu.
A cena impressionou profundamente a todos os presentes.
- Mas o que tinha dito o Rei Hibban? - perguntavam uns aos outros, pois ninguém conhecia o complicado dialeto kurdo.
Dez escribas registraram palavra por palavra, traduzida depois pelos doutores mais ilustres de Mokala. A tradução caiu como uma bomba no meio da nobreza.
Puderam rodos verificar, com assombro, que o poderoso rei, senhor de Mokala, havia dito, apenas o seguinte: 'Deixo tudo o que tenho para o meu bom secretário!

16/07/2012

O pequeno Édipo

O HOMEM tamborilou os dedos no balcão. Pediu, com uma voz cinzenta:
- Uma cerveja.
Pediu como quem pede ao ar. Isto é, sem dar inteira conta nem da mulher de preto, sentado no banquinho, nem do miúdo, jogando guêime.
A mulher abriu uma média. O homem ignorou aquela, e apalpou as garrafas no fundo da caixa térmica. O rapazito suspendeu o jogo, e olhou-o com cara de poucos amigos.
- Vá brincar lá dentro – berrou a mulher, indicando a saída que dava para o resto da casa. Por sinal a única porta da barraca.
O balcão-janela dava para a rua, e estava, assim, o cliente, único àquela hora, de costas para a rua. Decidiu-se pela cerveja que a mulher lhe estendia. Afinal, estava tudo gelado por igual, e a quente, e a sede, tanta, que ele virou o primeiro copo num instante.
- Que tal? – perguntou a mulher, tentando animá-lo.
Ia já no mar alto da vida. Navegação difícil, pelos vistos. Emanava dela uma discreta tenacidade, a dor sem queixume, a arte de sobreviver. Não há remo mais lesto que o coração feminino.
- Que tal, é boa?
O homem tinha a língua presa. O humor azedo, ao fim de um dia de trabalho, é coisa normal. Ainda bem; por estes anos, de repente, Deus trocou-nos cogumelos por barraca. Entre o “chapa” e a casa, uma pausa para relaxar.
À terceira média, soltou, mesmo a língua, dizendo:
- Boa.
A mulher parou de acender a vela, e encarou-o. Melhor, encararam-se. À luz tremelicante do fósforo, ela surgiu da roupa da viuvez. Era como acender a própria beleza.
O menino estava à porta, espiando aquele momento mágico. A mulher virou-se para o garoto. Pela primeira vez, conheceu nele a cólera.
- Suca daqui! – ordenou a viúva.
Mas o puto voltaria sempre: mãe o meu guêime, mãe: tem um rato dentro da pasta; mãe um refresco; estou com fome, mãe…
- Dá-lhe um pacote de “Maria” – disse o cara. E acrescentou, peremptório: – na minha conta.
Mas isso, se é que ele não sabia, não o compraria. Quando muito, o seu momentâneo sumiço.
À quinta média, o cliente tinha já, não só a língua mas também o espírito solto, um verdadeiro poeta. Mudou-se para o canto do balcão onde à luz da vela, a mulher escolhia folhas de couve para o jantar. Como se o bafo da cevada fosse o suco da própria poesia, cochichou:
- Boa como a própria dona?
Nisso o menino reentrava. Não gostou daquela súbita intimidade. O peito cheio de ar, incapaz de falar, fixou o cliente com olhos de cobra.
- Xixi cama! – berrou o homem.
O puto deu um passo em frente. E descarregou os pulmões:
- Rua-rua-rua!
Pegando num vasilhame, avançou para o balcão. Estava em causa não propriamente o lugar do seu pai, mas o seu próprio. Qual pequeno Édipo, avançou pois, disposto a morrer. Eterno é o labirinto dos afectos, e por isso, estória sem desfecho, esta.

Conto de Moçambique

15/07/2012

A eira onde asbruxas se vão esfregar


Sempre ouvi dizer aos mais antigos que na Eira do Monte, que pertence a Paradela mas fica entre dois caminhos, ali à saída de Sendim, é onde as bruxas se vão esfregar.
Uma ocasião, um homem disse assim p’ra outro, amigo dele:
— Olha que a tua mulher também é bruxa!
E ele:
— Ai não, não é! Da minha mulher não se consta isso!
Mas, pelo sim pelo não, a partir daí o homem pôs-se mais atento aos hábitos dela. E numa certa noite, ficou acordado, mas fazendo que dormia, e ouviu-a levantar-se da cama e dizer:

- Eu te benzo, belbezu,
Com as fraldas do meu cu.
Enquanto eu não vier,
Não acordes tu!

Ela então lá foi à vida dela, juntar-se com as outras e esfregar-se na tal laje. Quando veio, o homem estava à espera e viu que trazia o rabo todo queimado de tanto se esfregar.
P’ró outro dia, ao encontrar o amigo, diz-lhe então:

—Agora sim, já estou fiado,
Que ela traz o cu todo queimado.


PARAFITA, Alexandre, Património Imaterial do Douro - Narrações Orais
(contos, lendas, mitos)



08/07/2012

Última Profecia de São João Baptista



Na Lenda, todas as suposições são aceitáveis, principalmente quando a voz simples do povo as imortaliza. Assim, diz-se que Vila Velha de Ródão — vila muito antiga — surgiu de Rhodium, remotíssima cidade romana. E diz-se ainda que foi nesta vila que Herodes Antipas encontrou a morte. Ora, Herodes Antipas foi quem consentiu na degolação de S. João Baptista. E as vozes simples do bom povo de Vila Velha contam assim a história que a imortalizou.

Quando o tetrarca Herodes e a sua corte desfilavam em caravana a caminho de Maqueronte, passaram junto do rio Jordão, onde João Baptista pregava a chegada do Messias. Dizia ele:
— Fazei penitência porque está perto o Reino dos Céus, tal como está escrito no livro do profeta Isaías. Ouvir-se-á a voz daquele que clama no deserto. E os caminhos tortuosos serão endireitados, e todos os homens verão o Salvador enviado por Deus!
Estas palavras produziram um efeito prodigioso na multidão que o escutava. Uma grande efervescência fez mover toda aquela massa de gente. Uns pediam «penitência». Outros «baptismo». De súbito ouviu-se outro ruído desusado naquele local. Pela estrada que descia de Jericó apareceram soldados montados em corcéis de cor. Eram os homens de Herodes, que precediam a caravana régia, abrindo caminho.
As patas dos cavalos entraram no rio revolvendo as transparentes águas. O semblante de João Baptista entristeceu. Ergueu a sua alta estatura e olhou-os bem de frente. Os homens não conseguiram sustentar o seu olhar.
Por último, surgiu um magnífico camelo branco, ricamente ornamentado. Sobre ele, uma sumptuosa tenda mal encobria duas figuras de mulher: Herodias — a mulher que Herodes Antipas roubara a seu irmão Filipe — e Salomé, a filha de Filipe e Herodias. Logo atrás, noutro camelo, seguia o tetrarca Herodes Antipas.
Vendo-os, João falou com voz sonora:
— Tetrarca Herodes! Pára e escuta! As patas dos teus cavalos enlamearam as puras águas do Jordão, as quais purificam os corpos e as almas daqueles que esperam O que virá depois de mim. E agora és tu que vens macular com a tua presença este lugar santificado por aqueles sobre o qual desceu o Espírito Santo!
Estupefacto do que via e ouvia, Herodes fez sinal para que a caravana parasse. Exclamou:
— Com que direito me falas assim?
João Baptista não respondeu directamente à pergunta. Olhou Herodias e voltou a interrogar o rei da Judeia.
— Quem é essa mulher que passeia com tantas honras sob as vistas das doze tribos de Israel? Responde, se tens valor para isso!
O rei enrubesceu e gritou:
— Cala-te e deixa-me passar!
Mas João Baptista, inflexível, continuou com serenidade, em voz bem audível:
— Eu responderei por ti! Essa mulher é a de teu irmão. Portanto, ambos são adúlteros. Ouve bem, Herodes Antipas: não é lícito viveres com a mulher de teu irmão Filipe!
De rubro que estava, Herodes empalideceu. Mordeu os lábios e, não encontrando palavras que o justificassem, gritou para os seus homens:
— Vamos, a caminho! Quero sair do meio desta multidão silenciosa e deste homem que fala de mais!
O cortejo começou a movimentar-se. E quando o camelo branco passava junto de João Baptista, uma das mulheres, faustosamente vestida, abriu o cortinado de damasco e mostrou-se na sua opulenta beleza. Olhou aquele que havia ousado irritar Herodes e falou-lhe:
— João Baptista... Como vês, sei o teu nome. Olha bem para o meu rosto e não esqueças as feições de Herodias, a esposa do tetrarca Herodes, pois brevemente nos tornaremos a encontrar!
E fechando o cortinado de cor viva, fez desaparecer a sua imagem.
O cortejo continuou passando. O povo começou a agitar-se, a apertar o cerco em redor de João Baptista. Mas este já não falou mais sobre o rei da Judeia.
Mal se encontrou com Herodes, Herodias mostrou-se ofendida:
— Tens de mandar prender esse homem! Insultou-te e insultou-me!
Herodes ficou silencioso. Herodias insistiu:
— Porque temes João Baptista? Que tem ele que te meta medo?
Herodes baixou a cabeça. E explicou:
— Sabes... ele tem consigo a multidão dos anónimos, é certo, mas que muito podem, quando se juntam. Além disso... os tempos vão maus...
Ela interrompeu-o, furiosa:
— E abandonas-me, assim, nas mãos de um homem do povo? Na língua de um homem do povo?
Herodes tentou acalmá-la:
— A hora é de prudência e não de vingança. Esperemos melhor ocasião.
Herodias mostrou-se revoltada:
— Como podes falar assim!
As lágrimas chegaram-lhe aos olhos. Pediu, usando da influência que exercia sobre o rei:
— Manda-o prender! Quero-o em Maqueronte e agrilhoado. Prende-o, se ainda represento algo para ti!
Herodes deixou-se vencer. Pegou-lhe numa das mãos, como a acariciá-la:
— Não te atormentes. Será feita a tua vontade!

Perante o pasmo e a repulsa da multidão que o seguia, João Baptista foi preso. E tal como Herodias pedira, puseram-lhe grilhetas nos pés. Ficou junto do palácio de Herodes. Dali ouvia o vaivém dos que serviam o rei. E numa tardinha, quando o Sol se dispunha a descer para o seu ocaso, Herodias desceu também até ao pátio. Caminhou devagar. Lentamente. Olhos postos na prisão de João Baptista, que se via para lá das grades, como animal feroz, guardado à vista. O perfume forte, favorito de Herodias, despertou o encarcerado. O guarda perfilou-se. Mas ela ordenou que este se retirasse, pois queria falar a sós com o preso. O guarda obedeceu. Frente a frente, João e Herodias fitaram-se. Ela sorriu e falou num tom de voz arrastado envolvente:
— Reconheces o meu rosto?
João respondeu sereno:
— Sim. É o de uma mulher adúltera.
Ela mostrou-se provocante.
— Mas já me olhaste bem? Dizem que sou linda!
Sempre no mesmo tom de voz, sem alteração mas incisivo, João Baptista tornou:
— Só vejo as tuas acções, que te tornam medonha!
Ela não pareceu ficar irritada. Aproximara-se mais. Olhava-o intensamente.
— A tua figura subjuga quantos te vêem! Tens um olhar de rei, enquanto Herodes estremece de medo ao menor ruído suspeito! Se tu quisesses... sairias dessa prisão...
— E em troca, que me pedes?
— Que deixes de te ocupar desse povo miserável e sejas o encanto dos meus olhos... da minha boca... dos meus braços...
Duro, ele cortou-lhe a frase:
— Vai-te, mulher sem vergonha, que vives ilicitamente com o teu cunhado! Vai-te e deixa-me em paz!
Herodias mordeu os lábios. Estava pálida, nervosa, como uma criança a quem acabam de tirar das mãos um brinquedo. Avisou:
— Se me for... e te deixar aqui... será a morte que te deixo!
João Baptista retorquiu:
— A morte, por vezes, é a vida! A minha missão está terminada.
E olhando um ponto vago no espaço, a sua voz tornou-se quase doce:
— Ele chegou. Portanto, será Cristo que terá de crescer, enquanto eu, João, desaparecerei!
Herodias sentiu desejo de lhe voltar as costas. Mas aquela voz, agora com um acento doce, despertou-a de novo. E tentou ainda:
— João, pensa bem! Será essa a tua última vontade? Assim desprezas a riqueza e o amor de Herodias?...
Agarrou-se às grades. Tentou-o mais:
— Desejo-te, João Baptista! Vê bem. Desejo-te, e tu renegas-me!
João enfureceu-se.
— Vai-te, mulher sem vergonha!
Herodias largou as grades. Embora ferida no seu amor próprio, não o demonstrou. Sorriu.
— Vou-me embora, sim! Mas voltarei ainda... Porém... acredita, já não terá remédio!
João não respondeu. Herodias olhou-o uma vez mais. Tinha uma expressão estranha no rosto. Os olhos brilhavam intensamente. Arremessou-lhe um beijo de despedida, dizendo:
— Recebe o beijo que te envia nos dedos a mulher de Herodes. Com ele vai, também, a minha promessa de vingança. E Herodias, quando promete... nunca falta!
Afastou-se, desta vez um pouco mais ligeira. João Baptista ficou só. Só com os seus pensamentos.

Um ano passou. Herodias parecia ter esquecido João Baptista, que continuava preso na cerca do palácio. Mas ela não era mulher para olvidar uma afronta dessa natureza. Formou um plano. Um plano diabólico. A ocultas, contratou bailarinas egípcias, gregas e romanas, as quais tinham por missão ensinar a sua arte a Salomé, sua filha e de Filipe Herodes, que tinha nesse tempo dezoito anos. Quando ela já estava bem instruída na arte de dançar, Herodias preparou um grande festim para os anos de Herodes Antipas. E falou, a sós, com Salomé.
— Minha filha! Agora danças ainda melhor do que elas. Irás deslumbrar a corte. Despir-te-ás como essas dançarinas, e o teu corpo belíssimo fará brilhar de cobiça os olhos dos homens que te contemplarem!
Salomé hesitou:
— Mas pensas que Herodes irá gostar?...
Herodias interrompeu-a:
— Oh, decerto!
E insistiu:
— Dança, Salomé! Dança para Herodes, enquanto eu lhe darei de beber os melhores vinhos de todo o reino!
— E para quê?
— Para que ele se torne generoso para contigo e te dê o que lhe pedires.
— E que hei-de eu pedir? Já tenho tanto!
Herodias aproximou-se mais da filha e segredou-lhe quase:
— Pedir-lhe-ás a cabeça de João Baptista!
Salomé recuou:
— A cabeça... de João Baptista?... Mas... ele não quererá!
— Não te preocupes com isso. Dança bem, que o resto é comigo!
E num arrebatamento:
—Ah! Esta será a tua noite de glória, e a minha noite de vingança!...

O festim começou. Ardiam luzes por todos os cantos. Vinhos e iguarias raras eram servidos a todos os numerosos e alegres convivas. Os ânimos já estavam excitados. E a surpresa chegou. Salomé, bonita e provocante, começou a dançar. Aos poucos, as suas vestes iam caindo. E ela dançava sempre melhor, embriagada com o seu próprio êxito. Herodes, cheio do bom vinho que Herodias mandara servir sem cessar, olhava boquiaberto e com luxúria a revelação que para ele consistia a jovem Salomé. Da assistência alguém gritou:
— Dá-lhe um prémio! Ela merece um prémio!
Levado pelo entusiasmo, Herodes perguntou a Salomé:
— Que pedes?
Ela hesitou. Ele riu.
— Vamos! Dar-te-ei o que me pedires, Salomé, nem que seja metade do meu reino!
A jovem pareceu confusa. Olhou Herodias, que a fitava intensamente. O rei voltou a perguntar.
— Que desejas, Salomé? Porque olhas para tua mãe? Escolhe livremente! Que me pedes?
Solenemente, a jovem respondeu:
— A cabeça de João Baptista!
Um silêncio seguiu-se a esta resposta tão solicitada. Depois levantou-se um murmúrio, que o rei interrompeu:
— Queres... a cabeça de João Baptista? Vê bem... Não quererás outra prenda mais valiosa?
A jovem calou-se. Mas Herodias falou por ela:
— Salomé escolheu! Deves cumprir a tua promessa! Dá-lhe a cabeça de João Baptista!
Estupefacto, Herodes aquiesceu:
— Pois seja!
E acrescentou, soturno:
— Como são estranhas, as mulheres!...
Fez-se um ligeiro burburinho. A dança havia terminado. Aproveitando a confusão, Herodias desceu ao pátio com o verdugo. Voltou a encarar o prisioneiro. Então levou as mãos ao rosto, e afastou-se sem pronunciar palavra. Ficaram sós, o verdugo e o preso. O carrasco segurava na mão direita a arma com a qual havia de cortar a cabeça àquele que tantas vezes ouvira falar de um outro reino melhor do que esse em que viviam. Havia tristeza no seu semblante. Mas a voz doce de João Baptista ergueu-se uma vez mais:
— És executor em nome da justiça, embora ela esteja entregue em mãos indignas. Cumpre, pois, o teu dever! Cumpre-o sem remorsos! Antes, porém, deixa-me olhar uma vez mais o lado da Galileia. Assim está escrito: Despede, Senhor, o Teu servo em paz, segundo a Tua palavra!
Respirou fundo. Olhou por instantes, em silêncio, o céu azul-escuro. Depois voltou-se para o verdugo, no mesmo ar sereno.
— Estou pronto. Entrega, ó homem que vens a mandato de outro homem, a minha cabeça! A hora de Cristo chegou. Eu devo desaparecer!
O verdugo olhou a arma de execução. Depois olhou João Baptista e informou-o:
— Herodes não queria... Mas acabou por ceder... Eu cumpro as ordens do rei da Judeia...
— Assim estava escrito. Outro homem virá que a Herodes tirará a vida, e longe desta terra, onde hoje todos lhe obedecem!

E conta a tradição que a cabeça de João Baptista foi posta numa enorme bandeja e oferecida a Salomé. E diz ainda que, mais tarde, a vida de Herodes Antipas complicou-se, obrigando-o a fugir para Espanha, onde passou por Tarragona e Mérida. Depois foi assassinado numa povoação lusitana chamada Rhódio. E a crença popular assegura ser Rhódio a antiquíssima Vila Velha de Ródão, epílogo duma tragédia vivida há quase dois mil anos...


Recolha de Gentil Marques