( 391x375 , 253kb)


31/07/2008

A Quarta Viagem de Sinbad O Marinheiro


As delícias da vida de Bagdad não me fizeram esquecer as viagens; e minha alma perdida não se detinha nos sofrimentos e perigos pelos quais havia passado nessas viagens, mais apenas nos belos descobrimentos e nas horas felizes. No fim, não consegui mais resistir às suas induções. Vendi minha casa e demais propriedades, comprei mercadorias e fui a Basra. Lá embarquei num grande navio em companhia de alguns dos mais conhecidos mercadores da cidade. Passamos de mar em mar e de ilha em ilha, vendendo e comprando com grandes lucros quando, um dia, estando em pleno oceano, ouvimos o capitão gritar de repente: "Lançai a âncora! Estamos perdidos!" Um temporal violento agitou o mar em volta de nós, batendo no navio e desmantelando-o. Fomos todos arrastados pelas ondas, inclusive o próprio capitão e os marinheiros. Pela graça de Alá, consegui agarrar-me, com alguns outros, a uma tábua do barco e, após esforços desesperados, fomos jogados na praia de uma ilha, mais mortos que vivos. Exaustos, passamos a noite deitados sobre a areia. Pela manhã, conseguimos levantar-nos e avançar para o interior. Lá avistamos uma habitação no meio de um bosque, e vimos uma multidão de pretos nus saírem daquela casa e, sem dizer uma palavra, cercar-nos e conduzir-nos a um salão onde um rei estava sentado num trono. O rei mandou-nos sentar e fez-nos servir uma variedade de carnes desconhecidas para nós. O aspecto dos pratos não me apeteceu, e abstive-me de comer enquanto meus companheiros,esfomeados, devoravam as iguarias. Mais ainda, os negros começaram a esfregar nossos corpos com uma pomada cujo efeito, ao que descobri, era dilatar o corpo e aumentar o apetite. Consegui desviar-me habilmente e evitar a pomada. Mas meus companheiros deixaram-se esfregar e ficavam cada vez mais gordos; e quanto mais gordos ficavam, mais comida engoliam. Logo depois, descobri o objectivo que movia esses negros. Eles se alimentam de carne humana crua e usam a pomada para tornar suas vítimas mais gordas e mais suculentas. Seu rei, um ogro, um Ghul, prefere carne grelhada e devora um prisioneiro por dia. Assim, ao recusar as carnes e desviar-me da massagem, tinha praticamente salvo minha vida sem saber. Pois a fome e o medo deixaram-me a sombra do que era: pele e ossos. Vendo-me assim, os nativos desprezaram-me, julgando que era impróprio para suas refeições. Quanto a meus companheiros, à medida que seu peso aumentava, sua inteligência diminuía. Num determinado ponto, tornavam-se bestiais, verdadeiros animais de matadouro. Todos os dias, um guarda os levava a pastar no prado. Aproveitei o pouco caso que se fazia de mim para fugir um dia da casa onde morávamos. Errei pela ilha durante seis dias e seis noites, escondendo-me na grama ao menor sinal de perigo e me alimentando de raízes e folhas verdes. Na manhã do sétimo dia, cheguei à outra extremidade da ilha. Lá vi homens brancos, vestidos como nós, ocupados a colher grãos de pimenta nas árvores. Rodearam-me, e falaram comigo na minha língua, o árabe. Contei-lhes a minha história. Ficaram espantados de que eu tivesse podido salvar-me dos devoradores de carne humana. Deram-me de comer e beber; depois, levaram-me a seu rei, que residia numa ilha vizinha. Nessa ilha, densamente povoada, vi numerosos cavaleiros montados em esplêndidos cavalos, porém sem sela nem estribos. Descrevi esses objectos de conforto ao rei. Disse-me que nunca ouvira falar neles. Propus fazer uma sela para que ele a experimentasse. Aceitou, e quando experimentou a sela, ficou tão satisfeito que me cobriu de presentes e honrarias. O vizir e todos os dignitários do rei também quiseram selas. Com os presentes recebidos, tornei-me o homem mais rico da cidade. Para me conservar perto dele, o rei casou-me com uma rapariga de alta linhagem, rica e bela. Ao mesmo tempo, presenteou-me com um palácio inteiramente mobiliado e com escravos dos dois sexos e tudo mais. Vivi lá em perfeito conforto, embora sonhasse secretamente em voltar um dia para Bagdad. Quando, porém, um acontecimento está predeterminado pelo destino, ninguém pode desviá-lo. Nossos projectos e nossa vontade são jogos infantis diante dos decretos da fatalidade. Um dia, a esposa de meu vizinho morreu. E descobri com horror que, naquela ilha, uma tradição imperiosa determinava que, em caso da morte de um cônjuge, o sobrevivente fosse sepultado vivo com o defunto. Apavorado, visitei o rei para saber se, eventualmente, o costume se aplicaria a mim, já que eu era um estrangeiro. "Sem dúvida, respondeu o rei. A lei se aplica a todos, mesmo ao rei." Passei a viver na infelicidade, apesar de verificar todos os dias que minha mulher gozava.de perfeita saúde. Considerava que ser enterrado vivo não era menos horrível que ser devorado por canibais. E, de repente, um dia, aconteceu o que devia acontecer. Inesperadamente, minha mulher adoeceu e faleceu. Vi me diante do inevitável, quando o rei me visitou e disse-me que eu era tão estimado e querido que ele próprio e toda a corte assistiriam a meu enterro. De fato, andaram ao meu lado quando chefiei a procissão fúnebre atrás do ataúde que continha o corpo de minha mulher, coberto de jóias e ornamentos. Na hora do sepultamento, procurei comover o coração do rei, chorando e repetindo: "Eu sou um estrangeiro e não é justo que seja submetido a vossas leis." Ninguém se importou com minhas súplicas e argumentos. Passaram as cordas por baixo de meus braços e amarraram às minhas costas o jarro de água e os sete pães que tradicionalmente são o último presente dos parentes e amigos ao cônjuge que vão enterrar vivo. Baixaram-me à sepultura com o ataúde de minha mulher, fecharam a entrada e foram embora. A pestilência do subterrâneo obrigou-me a tapar o nariz, mas aproveitei um resto de luz para inspeccionar aquele jazigo repleto de cadáveres antigos e recentes. Embora lamentasse minha sorte e me censurasse por ter empreendido essa viagem e me ter casado numa terra exótica, estava decidido a não me deixar morrer passivamente. Sentindo sede e fome, aproveitei com parcimónia as pequenas provisões que tinha, pensando no futuro. Vivi assim vários dias, habituando-me gradativamente ao cheiro nauseabundo daquela caverna cheia de ossadas. Chegou um dia em que não tinha mais nem água nem pão. Recitei as preces e encomendei minha alma a Alá quando a tampa do buraco foi removida e vi descer o ataúde de um homem morto e uma mulher viva, provida da jarra de água e dos sete pães. Esperei que tivessem fechado o buraco e, armado de um grande osso, aproximei-me silenciosamente da mulher, dei-lhe três golpes mortais a apoderei-me da sua provisão. Quando essa nova provisão estava esgotada, o destino mandou uma mulher morta e um marido vivo. Matei o homem e fiquei com a água e os pães. E vivi assim por muito tempo. Certo dia, acordei com um ruído estranho. Peguei num osso e segui uma sombra que se movia. De repente, vi algo que me pareceu um raio de luz, por onde a sombra escapou. Sem crer no que via, dei-me conta de que estava diante de um buraco cavado por animais selvagens, atraídos pelos cadáveres lá acumulados. Segui as pegadas desses animais e achei-me de súbito ao ar livre, sob o firmamento. Caí de joelhos e agradeci a generosidade do Altíssimo. Examinei o terreno e achei-me ao pé de uma montanha à beira-mar, uma montanha tão escarpada que não tinha comunicação com a cidade. Decidi esperar ali alguma outra oportunidade enviada por Alá. Entrava pelo buraco na caverna para matar os novos hóspedes e apoderar-me de suas provisões. Breve, com a expectativa da salvação, apoderei-me também das jóias, diamantes, braceletes, colares, pérolas, rubis, adornos de ouro e prata que os mortos levavam para a outra vida. Acumulei assim uma fortuna incalculável. Certa manhã, vi passar um navio muito perto do monte. Ergui-me às pressas e pus-me a fazer gestos largos, a correr na praia e soltar brados e gritos. A tripulação do navio acabou por ver meus sinais e enviou um barco em meu socorro.
Levaram-me com minha bagagem. A bordo, o capitão perguntou-me: "Quem és tu e como conseguiste alcançar aquele monte? Desde que navego por estas paragens, nunca avistei lá se;não animais ferozes e aves de rapina. Jamais um ser humano." Contei-lhe minha história. E ele aceitou levar-me de volta a meu país. Navegamos sem novidade durante dias e dias de ilha em ilha e de mar em mar. Eu ia recordando minhas aventuras e perguntando a mim mesmo se eram fatos ou sonhos. Enfim, pelo poder de Alá Todo Poderoso, chegamos a Basra e, dias depois, a Bagdad. Minha família e meus amigos festejaram meu regresso. E eu, carregado de tesouros, cumulei a todos com presentes, sem esquecer os pobres, as viúvas e os órfãos.
E jurei nunca mais desafiar o mar.





30/07/2008

Lenda do tambor africano


Dizem na Guiné que a primeira viagem à Lua foi feita pelo Macaquinho de nariz branco. Segundo dizem, certo dia, os macaquinhos de nariz branco resolveram fazer uma viagem à Lua a fim de trazê-la para a Terra. Após tanto tentar subir, sem nenhum sucesso, um deles, dizem que o menor, teve a ideia de subirem uns por cima dos outros, até que um deles conseguiu chegar à Lua. Porém, a pilha de macacos desmoronou e todos caíram, menos o menor, que ficou pendurado na Lua. Esta lhe deu a mão e o ajudou a subir. A Lua gostou tanto dele que lhe ofereceu, como regalo, um tamborinho. O macaquinho foi ficando por lá, até que começou a sentir saudades de casa e resolveu pedir à Lua que o deixasse voltar. A lua o amarrou ao tamborinho para descê-lo pela corda, pedindo a ele que não tocasse antes de chegar à Terra e, assim que chegasse, tocasse bem forte para que ela cortasse o fio. O Macaquinho foi descendo feliz da vida, mas na metade do caminho, não resistiu e tocou o tamborinho. Ao ouvir o som do tambor a Lua pensou que o Macaquinho houvesse chegado à Terra e cortou a corda. O Macaquinho caiu e, antes de morrer, ainda pode dizer a uma moça que o encontrou, que aquilo que ele tinha era um tamborinho, que deveria ser entregue aos homens do seu país. A moça foi logo contar a todos sobre o ocorrido. Vieram pessoas de todo o país e, naquela terra africana, ouviam-se os primeiros sons de tambor.


Lenda da Guiné-Bissau



O testamento da águia

Há muitos anos atrás, uma águia majestosa morava sozinha no cume de uma alta montanha. Um dia sentiu que a hora de sua morte aproximava-se. Com um possante grito chamou pelos filhos, que moravam mais abaixo. Quando viu todos reunidos, olhou para eles, um a um, e disse-lhes:
- Cuidei de vocês e criei-os de maneira a que pudessem olhar directamente para o Sol. Deixei morrer de fome seus irmão que não suportavam enfrentar o Sol. Por esse motivo, vocês merecem voar mais alto que todos os outros pássaros. Qualquer um que deseje preservar sua vida não atacará os ninhos de vocês. Todos os animais temerão e vocês jamais farão mal aos que os respeitarem. Deixem-nos comer os restos de suas presas.
Agora estou prestes a deixá-los. Porém não morrerei aqui em meu ninho. Voarei para bem alto, até onde minhas asas conseguirem me levar. Irei em direcção ao Sol a fim de me despedir. Os fogosos raios do Sol queimarão minhas velhas penas. Cairei em direcção à terra e finalmente para dentro d'água.
Porém milagrosamente surgirei novamente da água, rejuvenescida e pronta a iniciar nova existência. É essa a sina das águias, é nosso destino.
A essas palavras a águia levantou voo. Majestosa e solenemente voou em torno da montanha onde estavam seus filhos. Depois, subitamente, subiu em direcção ao Sol que queimaria sua velhas asas cansadas.







29/07/2008

Lenda de São Silvestre


Há muitos, muitos anos existia no oceano Atlântico uma ilha fabulosa, a Atlântida, e nela vivia a civilização mais maravilhosa de sempre. Os seus habitantes, que Platão dizia descenderem dos amores do deus Poseidon com a mortal Clito, tornaram-se tão arrogantes que tiveram um dia a pretensão de conquistar todo o mundo, ousando mesmo o seu rei desafiar os céus. Foi então que ouviu a voz do Deus verdadeiro dizer-lhe que nada poderia contra o poder divino. Mas o teimoso rei voltou a desafiá-lo e decidiu conquistar Atenas, mas, durante a batalha o rei da Atlântida ouviu a voz de Deus dizer-lhe que a vitória seria de Atenas para castigar a sua arrogância e ingratidão. À derrota seguiram-se terríveis tempestades, terramotos e inundações que engoliram a bela Atlântida para todo o sempre. Passaram-se muitas centenas de anos até que um dia a Virgem Maria se debruçava dos céus sobre o oceano, sentada numa nuvem quando São Silvestre lhe veio falar. Aquela era a última noite do ano e São Silvestre achava que deveria significar algo de diferente para os homens, ou seja, marcar uma fronteira entre o passado e o futuro, dando-lhes a possibilidade de se arrependerem dos seus erros e de terem esperança numa vida melhor. Nossa Senhora achou muito boa ideia e então confiou-lhe qual a razão porque estava a observar o mar com uma certa tristeza: lembrava-se da bela Atlântida que tinha sido afundada por Deus por causa dos erros e pecados dos seus habitantes. Enquanto falava, Nossa Senhora deixava cair lágrimas de tristeza e misericórdia porque a humanidade, apesar do castigo, não se tinha emendado. Emocionado, São Silvestre reparou que não eram apenas lágrimas que caíam dos olhos da Senhora, eram também pérolas autênticas que caiam dos Seus olhos. Foi então que uma dessas lágrimas foi cair no local onde a extraordinária Atlântida tinha existido, nascendo a ilha da Madeira que ficou conhecida como a Pérola do Atlântico. Dizem os antigos que durante muito tempo, na noite de S. Silvestre quando batiam as doze badaladas surgia nos céus uma visão de luz e cores fantásticas que deixava nos ares um perfume estonteante. Com o passar dos anos essa visão desapareceu, mas o povo manteve-a nas famosas festas de fim de ano com um maravilhoso fogo de artifício a celebrar a Noite de S. Silvestre.

Lendas da Madeira


27/07/2008

Rainha e cativa

– «À guerra, à guerra, moirinhos,
Quero uma cristã cativa!
Uns vão pelo mar abaixo,
Outros pela terra acima:
Tragam-ma cristã cativa,
Que é para a nossa rainha.»

Uns vão pelo mar abaixo,
Outros pela terra acima:
Os que foram mar abaixo,
Não encontraram cativa;
Os que foram terra acima:
Tiveram melhor atina,
Deram com o conde Flores
Que vinha de romaria:
Vinha lá de Santiago,
Santiago de Galiza;
Mataram o conde Flores,
A condessa vai cativa.
Mal que o soube a rainha,
Ao caminho lhe saia:

– «Venha embora a minha escrava,
Boa seja a sua vinda!
Aqui lhe entrego estas chaves
Da despensa e da cozinha;
Que me não fio de moiras
Não me dêem feitiçaria.
– «Aceito as chaves, senhora,
Por grande desdita minha.
Ontem condessa jurada,
Hoje moça de cozinha!»

A rainha está pejada,
A escrava também o vinha:
Quis a boa ou má fortuna
Que ambas parissem num dia.
Filho varão teve a escrava,
E uma filha a rainha;
Mas as perras das comadres,
Para ganharem alvíssaras.
Deram à rainha o filho,
À escrava deram a filha.

– «Filha minha da minha alma,
Com que te baptizaria?
As lágrimas de meus olhos
Te sirvam de água bendita.
Chamar-te-ei Branca Rosa,
Branca-flor de Alexandria,
Que assim se chamava dantes
Uma irmã que eu tinha:
Cativaram-na os moiros
Dia de Páscoa florida,
Andando apanhando rosas
Num rosal que meu pai tinha.»

Estas lástimas choradas
Veis-la rainha que ouvia,
E coas lágrimas nos olhos
Muito depressa acudia:
– «Criadas, minhas criadas,
Regalem-me esta cativa;
Que se eu não fora de cama,
Eu é que a serviria».

Mal se levanta a rainha
Vai-se ter com a cativa:
– «Como estás, ó minha escrava,
Como está a tua filha?»
– «A filha boa, senhora,
Eu como mulher parida. »
– «Se estiveras em tua terra,
Que nome lhe chamarias?»
– «Chamara-lhe Branca Rosa,
Branca-flor de Alexandria;
Que assim se chamava dantes
Uma irmã que eu tinha:
Cativaram-na os moiros
Dia de Páscoa florida,
Andando apanhando rosas
Num rosal que meu pai tinha.»

– «Se vira lá tua irmã,
Se tu a conhecerias?»
– «Assim eu a vira nua
Da cintura para cima;
Debaixo do peito esquerdo
Um sinal preto ela tinha.»

– «Ai triste de mim, coitada,
Al triste de mim mofina!»
Mandei buscar uma escrava,
Trazem uma irmã minha!»

Não são passados três dias,
Morre a filha da rainha:
Chorava a condessa Flores
Como quem por sua a tinha;
Porém mais chorava a mãe,
Que o coração lho dizia.
Deram à língua as criadas,
Soube-se o que sucedia:
A mãe, co filho nos braços,
Cuidou morrer de alegria.
Não são passadas três horas,
Uma à outra se dizia:
– «Quem se vira em Portugal,
Terra que Deus bendizia!»

Juntaram muita riqueza
De oiro e de pedraria;
Uma noite abençoada
Fugiram da moiraria.
Foram ter à sua terra,
Terra de Santa Maria;
Meteram-se num mosteiro,
Ambas professam num dia.


Romanceiro, Almeida Garrett


THE LADY AND THE UNICORN TAPESTRY WAll HANGING - A MON SEUL DESIR (One Of The Famous Medieval Tapestries)


24/07/2008

O ganso de ouro

File:Simpleton finds The Golden Goose - Project Gutenberg eText 15661.jpg

Era uma vez um homem que tinha três filhos. Todo mundo chamava o mais moço de João Bobo, e ria e zombava dele o tempo todo. Um dia, o mais velho resolveu ir à floresta cortar lenha. Antes de sair, a mãe deu a ele um bolo gostoso e uma garrafa de vinho, para matar a fome e a sede. Quando estava no meio do mato, ele encontrou um homenzinho cinzento, que deu bom-dia e disse:
— Estou com tanta fome, e com tanta sede... Por favor, me dê um pedaço desse bolo que você tem no bolso e um pouco do seu vinho.
O filho esperto respondeu:
— Se eu lhe der meu bolo e meu vinho, não vai sobrar nada para mim. Me deixe em paz.
E deixou o homenzinho parado ali.
Em seguida, começou a cortar uma árvore, mas num instante errou o alvo, acertou o braço com uma machadada e teve que ir para casa fazer curativo. Tudo por artes do homenzinho cinzento.
Depois, o segundo filho também foi para a floresta fazer lenha, e a mãe também lhe deu bolo e vinho, igualzinho a como tinha sido com o mais velho. E ele também encontrou o homenzinho cinzento, que pediu um pedaço de bolo e um pouco de vinho. Mas o segundo filho também quis ser esperto e respondeu:
— Se eu der para você, não sobra para mim. Me deixe em paz.
E deixou o homenzinho ali parado.
Não precisou esperar muito pelo castigo. Logo nas primeiras machadadas que deu numa árvore, cortou-se na perna e teve que ser carregado para casa.
Aí João Bobo pediu:
— Papai, deixe eu ir fazer lenha...
O pai respondeu:
— Seus irmãos bem que tentaram e não conseguiram. É melhor você deixar isso pra lá... Afinal, você não entende nada de cortar lenha.
Mas João Bobo pediu e implorou até que o pai acabou dizendo:
— Muito bem, vá em frente. Se você se machucar, talvez aprenda a lição.
A mãe deu a ele um bolo feito de água e cinzas, e uma garrafa de cerveja choca. Quando ele chegou à floresta, também encontrou o homenzinho cinzento que lhe disse:
— Estou com tanta fome, e com tanta sede... Por favor, me dê um pedaço de bolo e um pouco de vinho.
João Bobo respondeu:
— Eu só tenho bolo de cinzas e uma cerveja choca. Se você não se incomodar, sente aqui comigo e coma e beba à vontade.
Eles se sentaram, mas quando João Bobo pegou o bolo de cinzas, viu que ele tinha virado um bolo finíssimo e muito gostoso, e que a cerveja choca agora era um vinho delicioso. Comeram e beberam e, quando acabaram, o homenzinho disse:
— Como você tem bom coração e divide alegremente com os outros o que tem, vou lhe dar sorte. Está vendo aquela árvore velha lá adiante? Se você a derrubar, vai encontrar uma coisa no meio das raizes.
E foi embora.
João Bobo derrubou a árvore. Quando ela caiu, havia no meio das raizes um ganso com penas de ouro puro. Ele pegou o ganso no colo e foi passar a noite numa hospedaria.
O hospedeiro tinha três filhas que, assim que viram o ganso de ouro, ficaram curiosíssimas para saber mais coisas de um animal tão estranho. Todas cobiçavam as penas de ouro, e a mais velha pensou: na certa eu vou conseguir arrancar uma para mim.
Quando João Bobo foi dormir, ela agarrou a asa do ganso, mas ficou com o dedo e a mão presos, sem conseguir soltar. Pouco depois, chegou a segunda irmã e também só pensou em arrancar uma pena de ouro, mas, assim que tocou sua irmã, ficou presa também. Finalmente, chegou a terceira, com o mesmo objetivo. As outras duas gritaram:
— Fique longe daqui, pelo amor de Deus! Longe daqui!
Mas ela não entendia por que tinha que ficar longe dali, pensando: por que não devo ir aonde elas estão?
Correu até elas, tocou a irmã e ficou bem presa. Acabaram tendo todas que passar a noite com o ganso.
Na manhã seguinte, João Bobo pegou o ganso no colo e foi-se embora. Nem reparou nas três moças que estavam penduradas nele, e lá se foram elas correndo atrás dele, ora para a esquerda, ora para a direita, por qualquer caminho que ele cismasse de seguir. Quando passaram correndo por uma estradinha no campo, cruzaram com o padre. Ao ver a tal procissão, ele disse:
— Que horror, garotas! Vocês deviam ter vergonha! Por que vocês estão perseguindo esse rapaz? Acham que isso é bonito?
Dizendo isso, agarrou a mão da mais nova e tentou puxá-la, mas, no momento em que fez isso, também ficou preso e teve que sair correndo junto com os outros. Daí a pouco, encontraram o sacristão. Quando viu o padre correndo atrás das três moças, gritou espantadíssimo:
— Ei, reverendo, aonde é que o senhor está indo com tanta pressa? Não se esqueça: temos um batizado hoje!
Correu atrás dele, agarrou-o pela manga e ficou preso também.
Enquanto os cinco seguiam apressados pela estrada, encontraram dois camponeses que vinham dos campos com suas enxadas. O padre pediu ajuda, mas assim que eles encostaram no sacristão também ficaram presos, e a esta altura já eram sete pessoas correndo atrás de João Bobo e de seu ganso.
— Bem mais tarde, chegaram a uma cidade onde havia um rei cuja filha era tão séria que ninguém conseguia fazê-la rir. Por isso, o rei tinha decretado que o primeiro homem que conseguisse fazer a princesa rir casaria com ela. Quando João Bobo ouviu isso, foi até a presença do rei — com seu ganso e todo o cortejo. Na hora em que a princesa viu aquelas sete pessoas correndo enfileiradas, teve um ataque de riso tão forte que parecia que nunca mais ia parar de dar gargalhadas. Então João Bobo disse que tinha o direito de casar com ela, mas o rei não queria um genro como ele e começou a fazer todo tipo de objeção. Até que acabou dizendo que, para casar com sua filha, João Bobo ia ter que trazer um homem que fosse capaz de beber uma adega inteirinha cheia de vinho.
João Bobo pensou, pensou, e achou que talvez o homenzinho cinzento da floresta pudesse dar alguma ajuda, por isso foi até lá. No lugar onde tinha cortado a árvore, viu um sujeito com um ar muito infeliz, sentado no chão. Quando João Bobo perguntou a ele por que estava tão triste, o homem respondeu:
— Estou com uma sede tão grande que nada faz passar. Acabei de beber um barril inteiro de vinho, mas isso é só uma gotinha para o que eu preciso.
— Eu posso te ajudar — disse João Bobo. — É só vir comigo e se fartar...
Foi com ele até a adega do rei, e o homem começou seu trabalho nos grandes tonéis. Bebeu, bebeu, até ficar com as bochechas doendo, mas antes do dia acabar tinha secado a adega inteira.
Mais uma vez, João Bobo foi reclamar seu direito, mas o rei relutava tanto em deixar que um idiota conhecido como João Bobo casasse com sua filha que acabou pensando em outra condição: agora queria um homem que fosse capaz de comer uma montanha inteira de pão.
João Bobo nem precisou pensar muito. Foi até a floresta e, no mesmo lugar, encontrou um homem que estava apertando o cinto em volta da barriga, fazendo a cara mais infeliz do mundo.
— Acabo de comer um forno cheio de pão — disse o homem —, mas, para uma fome como a minha, isso não dá nem para a saída. Minha barriga continua vazia como sempre e, se eu não a apertasse muito, a fome ia acabar me matando.
João Bobo gostou de ouvir isso.
— Venha comigo — disse. — Você vai comer até dizer chega.
E levou o homem para o pátio do castelo do rei.
Tinham trazido toda a farinha de trigo que existia no reino todo e tinham feito uma imensa montanha de pão. Mas o homem da floresta subiu na montanha até o alto e começou a comer, e antes do dia acabar o pão todo já tinha sumido.
Pela terceira vez, João Bobo reclamou o cumprimento da promessa, mas o rei ainda pensou em outra condição. Agora, ele queria um navio que fosse capaz de velejar tanto na terra como na água.
— Mas assim que me trouxer o navio, terá minha filha — garantiu.
João Bobo foi direto à floresta, onde encontrou o homenzinho cinzento a quem tinha dado seu bolo.
— Bebi e comi por você — disse ele — e também vou lhe dar seu navio. Tudo isso porque você foi bom para mim.
E deu a ele o navio que velejava na terra e na água. Quando o rei viu isso, não pôde mais continuar negando a mão de sua filha, e o casamento foi celebrado. Mais tarde, quando o rei morreu, João Bobo herdou o reino e viveu feliz com a mulher por muitos e muitos anos.


File:Simpleton takes The Golden Goose to the inn - Project Gutenberg eText 15661.jpg


21/07/2008

A Terceira Viagem de Sinbad O Marinheiro


Pouco a pouco fui invadido pelo enfado diante da monótona ociosidade em que vivia em Bagdad. Minha alma ansiava pela movimentação e as novidades das viagens e pelo lucro do comércio. A ambição é a mãe de todas as desgraças. Mas só o aprendemos ao custo elevado da experiência. Comprei uma grande quantidade de mercadorias de valor, levei-as até Basra e embarquei no primeiro navio, com muitos outros de meus amigos e colegas. Passamos de porto em porto, vendendo e comprando com lucros elevados. Um dia, quando navegávamos em pleno oceano, vimos nosso capitão, que estava perscrutando o horizonte, bater de repente no rosto, arrancar os pêlos da barba, rasgar a farda e gritar: "Ventos adversos desviaram-nos de nossa rota e estão-nos empurrando para um mar sinistro e uma ilha de onde ninguém jamais voltou com vida. Estamos irremediavelmente perdidos." Enquanto o capitão falava, vimos nosso navio ser invadido por um exército de seres estranhos, mais numerosos que uma praga de gafanhotos. Eram hirsutos, como macacos, porém mais feios, com faces pretas, olhos amarelados e corpos de anões. Suas caretas e gritos aterrorizaram-nos. Parecia que estavam amaldiçoando e ameaçando-nos, mas falavam uma língua que não conhecíamos. Enquanto permanecíamos imobilizados pelo medo, eles tomaram posse do leme e escalaram os mastros. Desfraldaram as velas, cortando as cordas com os dentes. Dirigido por eles e empurrado pelo ventos, nosso navio encalhou na praia. Os macacos apanharam-nos então um por um e nos depositaram em terra firme. Deixando-nos lá, voltaram ao navio, que conseguiram repor a flutuar, e desapareceram com ele.
Abandonados e desamparados, avançamos para o interior da ilha onde descobrimos fontes de água doce e árvores frutíferas. Pelo menos, pensamos, poderemos nos manter vivos por algum tempo.
Em seguida, percebemos entre as árvores uma grande construção que parecia abandonada. Fomos até ela e entramos. O interior era composto de uma sala imensa onde os únicos móveis eram utensílios de cozinha estranhos e espetos de assar carne de comprimento incomum. O chão estava coberto de ossos, uns já secos, outros ainda frescos. Um cheiro nauseabundo invadiu-nos as narinas. Mas como estávamos exaustos, deixamo-nos cair por cima dos ossos e dormimos.Mal o sol se tinha posto, quando um barulho parecido com um trovão nos acordou, e vimos a figura de um gigante descer através do tecto. Era mais alto que uma palmeira e mais feio que todos os macacos juntos. Seus olhos vermelhos brilhavam como dois tições ardentes. Tinha dentes longos e pontudos como os de um javali; a boca tinha as dimensões de uma abertura de poço; as orelhas desciam até os ombros como as de um elefante; e as unhas eram recurvas como garras de leão. Trememos de terror, depois ficamos paralisados. O gigante sentou-se num banco e pôs-se a nos examinar um a um em silêncio. Depois, veio até mim, agarrou-me pela pele da nuca e apalpou-me todo como um açougueiro examina um carneiro. Não me achando a seu gosto, emagrecido como estava pelas viagens e o cansaço, atirou-me ao chão e apanhou meu vizinho, avaliando-o como fizera comigo e acabando por rejeita-lo também. Procedeu assim com todos até chegar ao capitão, que era gordo e carnudo e mais alto que qualquer um de nós. Tomou-o entre os dedos, deitou-o no chão e com um só movimento do pé quebrou-lhe o pescoço, fendeu-o em dois da boca ao ânus, enfiou cada parte num dos espetos enormes que estavam lá, acendeu o forno e pôs-se a virar e revirar o corpo do capitão até que ficou satisfatoriamente assado. Retirou-o então do fogo e dividiu-o em pedaços como se faz com uma galinha e devorou-o num fechar e abrir dos olhos. Depois, chupou os ossos e atirou-os ao chão. Satisfeito, estirou-se num banco e, breve, estava roncando como um búfalo. Dormiu até o levantar do sol e, então, foi embora como tinha vindo, deixando-nos meio mortos de ansiedade. Saímos daquele edifício e vagueamos pela ilha em busca de alguma gruta ou outro esconderijo. Mas nada conseguimos, pois a ilha era plana e árida. Ao cair da noite, pensamos que o menor dos males ainda era retornar à morada do gigante. Mal havíamos entrado, quando o gigante preto anunciou sua chegada com um barulho que parecia um trovão. Da mesma forma que na noite anterior, escolheu um de nós, assou-o e devorou-o. E roncou de novo como um animal até de manhã. Assim que foi embora deliberamos afogar-nos no mar antes de sermos devorados daquela maneira horrível. Mas, objectaram alguns: "Por que não tentar matar o monstro em vez de nos matarmos a nós mesmos?" Acrescentei: "E por que não construir uma jangada com os paus de que a praia está cheia para fugir desta ilha assim que o tivermos matado? Iremos para outra ilha onde a clemência de Alá talvez nos envie um navio que nos transporte de volta a nosso país. Se naufragarmos e perecermos, nossa morte será um martírio que contará a nosso favor no Último Dia." Todos concordaram. Construímos a jangada, colocamos nela frutos e ervas comestíveis e voltamos à morada do monstro. E assistimos mais uma vez à morte bárbara de um de nossos companheiros. Mas assim que o monstro adormeceu e começou a roncar, apanhamos dois dos enormes espetos de ferro, aquecemo-los no fogo até que se tornaram rubros e, apanhando-os pelo lado frio, enfia-mo-los com força nos olhos do gigante. Emitiu um grito pavoroso e, levantando-se, procurou localizar-nos e pegar-nos com as mãos estendidas, mas conseguimos facilmente nos desviar e evitá-lo.
desesperado, dirigiu-se para a porta às apalpadelas e saiu, dando berros de dor. Persuadidos de que o ogro morreria de seus ferimentos, corremos com alegria até a praia e embarcamos na jangada rumo ao alto mar, quando o vimos correndo em nossa direcção, guiado por uma mulher de sua espécie e ainda mais horrorosa que ele. Não podendo nos atingir, puseram-se a apedrejar-nos. Muitas pedras acertaram, e todos meus companheiros, menos dois, foram afogados. Nós, os três sobreviventes, conseguimos remar para fora do seu alcance. No alto mar, os ventos jogaram-se contra nós durante dois dias e duas noites e, depois, empurraram-nos para uma ilha. Lá encontramos frutas que nos permitiram continuar a sobreviver e, à noite, trepamos numa árvore e dormimos. Quando abrimos os olhos pela manhã, a primeira coisa que vimos foi uma cobra enorme, tão grossa quanto o tronco da árvore onde estávamos. Aproximou-se de nós com olhos flamejantes e uma boca aberta do tamanho de um forno. Abocanhou um de meus companheiros e engoliu-o. Ouvimos os ossos do infeliz estalar no ventre da serpente. Depois, satisfeita, desceu da árvore e foi embora. Gememos: "Por Alá, cada nova modalidade de morrer é mais detestável que a anterior. Não há salvação senão em Alá." Embora meio tontos de medo, descemos da árvore e, percorrendo a ilha, conseguimos água doce e frutas para nos manter vivos. E encontramos uma árvore tão alta que parecia fora do alcance de qualquer réptil. Ao cair da noite trepamos até o cume e procuramos dormir. Mas de repente, ouvimos um silvo monstruoso e o ruído de ramos quebrados. Antes que pudéssemos esboçar um movimento, a cobra tinha apanhado meu companheiro que estava sentado um pouco abaixo de mim. Ouvi outra vez o sinistro estalar de ossos quebrados. Fiquei imóvel no alto da árvore até de manhã, e só então tive a coragem de descer. Pensei em me jogar no mar e acabar com uma vida exposta e todo momento a perigos tão medonhos. Mas o espírito humano é soberbo. Resolvi, antes, me defender contra a cobra, elevando tábuas em volta de mim como um refúgio e fixando-as no chão. À noite, a cobra voltou e fez mil tentativas de chegar até mim através das tábuas; mas não o conseguiu. Pela manhã fui à praia e, sem crer nos meus olhos, avistei ao longe um navio com todas as velas desfraldadas. Ao vê-lo, desatei a gesticular e gritar, feito louco. Desenrolei o pano de meu turbante, amarrei-o a um galho de árvore, ergui-o tanto quanto pude e pus-me a agitá-lo, pedindo socorro. O destino quis que meu desespero não passasse despercebido. O navio virou de bordo e dirigiu-se para minha ilha, e breve o capitão e seus homens me recolheram. Deram-me roupa para cobrir a nudez e comida, que engoli com voracidade. E bebi água com um alívio que nunca conhecera na vida. Pouco a pouco, meu coração acalmou-se, e o repouso invadiu meu corpo como um bálsamo. Satisfiz então a curiosidade de todos, contando minha história. Fizemos uma excelente viagem até a ilha de Salahita, onde lançamos a âncora. Os mercadores desembarcaram para cuidar de seus negócios. Fui o único a permanecer a bordo, não tendo mercadorias para vender ou trocar. O capitão aproximou-se de mim e disse: "És pobre e estrangeiro e acabas de passar por grandes provações. Por isso, ajudar-te-ei a recompor a tua vida, esperando que me agradeças, invocando sobre mim as bênçãos de Alá. Fica sabendo que, anos atrás, havia connosco um viajante que esquecemos numa ilha. Nunca mais tivemos notícias dele, e não sabemos se está vivo ou morto. Suas mercadorias continuam guardadas connosco. Minha intenção é entregá-las a ti. Vende-as, fica com uma comissão e entrega-me o preço apurado para que o encaminhe à família do infeliz, em Bagdad." Agradeci ao capitão, e ele chamou um ajudante e mandou-o retirar do depósito as mercadorias guardadas sob o nome de Sinbad o Marinheiro. Gritei com espanto: "Mas eu sou Sinbad o Marinheiro!" Então, fixando o capitão, reconheci-o como o homem que me tinha esquecido quando dormi naquela ilha no começo de minha segunda viagem. Tremendo de emoção, perguntei-lhe: "Não me reconheces?" E lembrei-lhe as peripécias daquela viagem. Enquanto falava, um dos mercadores, voltando para o navio, olhou-me atentamente e me reconheceu. O capitão acabou por se lembrar também de mim. Tomou-me nos braços como se fosse um irmão e felicitou-me por estar ainda vivo. Depois, mandou entregar-me as minhas mercadorias, que vendi com um lucro enorme. Deixamos a ilha de Salahita e atravessamos mares desconhecidos, onde vi tantos prodígios que enumerá-los todos seria impossível. Vi, por exemplo, um peixe que parecia uma vaca e outro que parecia um asno.
Finalmente, chegamos a Basra com a permissão de Alá, e naveguei pelo rio até Bagdad. Fui à minha rua e à minha casa, onde senti a felicidade de estar rodeado por parentes e amigos. Distribuí presentes a todos e ajudei os órfãos e as viúvas, pois voltava desta viagem bem mais rico do que da viagem anterior.


Sinbad1



20/07/2008

O Mordomo Infiel


Havia certo homem rico que tinha um mordomo; e este foi acusado perante ele de dissipar os seus bens.
E ele, chamando-o, disse-lhe: Que é isso que ouço de ti? Prestas conta da tua mordomia, porque já não podereis ser mais meu mordomo.
E o mordomo disse consigo: Que farei, pois que o meu senhor me tira a mordomia? Trabalhar na terra não posso, também de mendigar tenho vergonha, eu sei o que farei, para que quando for desapossado da mordomia me recebam em suas casas.
E, chamando a si cada um dos devedores ao seu senhor, disse ao primeiro: Quanto deves ao meu senhor?
E ele respondeu: Cem medidas de azeite. E disse-lhe: Toma a tua conta e, assentando-te já, escreva cinqüenta.
Disse depois a outro: E tú quanto deves? E ele respondeu: Cem alqueires de trigo. E disse-lhe: Toma a tua conta e escreve oitenta.
E louvou aquele senhor o injusto mordomo por haver procedido prudentemente, porque os filhos deste mundo são mais prudentes na sua geração do que os filhos da luz.
E eu vos digo: granjeai amigos com as riquezas da injustiça, para que, quando estas faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos.
Quem é fiel ao mínimo também é fiel ao muito; quem é injusto ao mínimo também é injusto no muito.
Pois, se nas riquezas injustas não fostes fiéis, quem vos confiará as verdadeiras?
E, se no alheio não fostes fiéis, quem vos dará o que é vosso?
Nenhum servo pode servir a dois senhores, porque ou há de aborrecer a um e amar ao outro, ou há de chegar a um e desprezar ao outro: Não podeis servir a Deus e a Mamom.


Parábolas de Jesus
Evangelho de Lucas cap. 16 vers. 1-13




18/07/2008

O moleiro, o filho e o burro


Sendo a invenção das artes
Direito de morgado,
Foi na vetusta Grécia
O apólogo inventado.

Não se lhe pode a messe
De modo tal ceifar,
Que aos pósteros não reste
Muito que respigar.

Na terra fabulosa
Há regiões desertas,
Onde os poetas fazem
Contínuas descobertas.

Um caso ouvi, que mostra
Engenho de invenção;
Dele a Racan fizera
Malherbe a narração.

Esses rivais de Horácio,
De sua lira herdeiros,
Discípulos de Apolo
E mestres verdadeiros.

A sós, sem testemunhas.
Num sítio se encontraram,
E assim idéias penas,
Um de outro confiaram.


RACAN

"Ó vós, que tantos marcos
Passastes da existência,
Que tendes deste mundo
Tão longa experiência:

Dizei-me que carreira
Eu devo preferir:
Desejo seriamente
Pensar no meu porvir.

Sou vosso conhecido;
Sabeis quem são meus pais,
Se tenho algum talento,
Juízo e cabedais.

Convém que na província
Morada eu vá fixar?
Cargo exercer na corte,
Ou na milícia entrar?

Mescla de amargo e doce
Tem quanto o mundo encerra;
Há no himeneu seus sustos,
Seu júbilo há na guerra.

Se o gosto meu seguisse
Soubera o que escolher.
Mas devo à corte, ao povo
E aos meus satisfazer".


MALHERBE

"Querer que de seus atos
O mundo se contente?!
Antes de responder-vos
Ouvi-me atentamente:

Li algures que um velho moleiro
E seu filho — taludo muchacho —
Certo dia na feira vizinha
Tinham ido vender um seu macho.

Por poupá-lo e por ele bom preço
Alcançar — eis o meio que empregam:
Reunindo-lhe as patas, o ligam,
E num pau, como a lustre, o carregam.

O primeiro que os viu na passagem,
Irrompeu em tremenda risota:
"Oh! Meu Deus! Que visíveis pascácios!
Que basbaques! Que gente idiota!

Onde vai este par de galhetas
Pôr em cena tão parvo entremez?
Nesse grupo o que chamam de burro
Não parece o mais burro dos três".

O Moleiro, que ouvira a chacota,
Conhecendo-se réu de sandice,
Fez que o bruto, liberto das cordas,
Por seus cascos jornada seguisse.

Nosso burro, a quem mais aprazia
Viajar daquela outra maneira,
Ornejou séria queixa a seu dono,
Que foi surdo à asinal choradeira.

Sobe o moço ao costado do macho,
E o moleiro no encalço lhes vai;
Eis um grupo de três mercadores
De repente, ao encontro lhes sai.

Um dos tais, a esbofar-se, gritava
"Isto é carro adiante de bois!
Pois o moço é que vai repimpado.
Indo à pata o mais velho dos dois!

Tens lacaio de barbas de neve!
Eia, desce, rapaz, sem demora!
Deixa o velho montar na alimária;
É servir-lhe de pajem agora".

— Meus senhores, eu vou contentar-vos —
(Dá-se pressa em dizer o velhote).
Desce o filho e cavalga o burrico,
Que despeja o caminho, de trote.

Encontraram parado na estrada
De três moças ulhento farrancho;
Uma diz: "A criança a estrompar-se.
E o barbaças montado, tão ancho!

Bamboleia-se e faz-se bonito,
A pimpar, qual um bispo, o patola!
Quem assim à galhofa se presta
Tem decerto pancada na bola".


MOLEIRO

"Raparigas, deixai-vos de asneiras;
Eu já velho, a chibar de bonito!
Ide embora; não devo aturar-vos.
Nem vos quero servir de palito".

De dar troco a dichotes já farto,
Põe o velho o rapaz à garupa;
Mas debalde; que a pouca distância,
Nova troça com ele se ocupa.


TROÇA

"Esta gente perdeu o miolo!
Pobre burro! Tem sobra de lastro!
Se o perseguem de espora e azorrague,
Dão-lhe cabo do frágil canastro.

Vão causar a este velho servente
Com tal carga mortal pulmoeira.
Dentro em pouco ele estica os jarretes;
Só a pele lhe vendem na feira".


MOLEIRO

"Pretender contentar toda a gente
E decerto chapada toleima;
Mas tentemos o extremo recurso;
Se falhar, não persisto na teima".

Descem ambos. Qual bispo em viagem
Grave marcha o burrico adiante;
Eis, de lado: "Ó que cena gaiata!
(Zombeteiro lhes grita um tunante);

Pois então anda o burro a seu gosto
E o moleiro, pedestre, a escoltá-lo?
Qual se deve cansar? Burro, ou dono?
É melhor nuns bentinhos guardá-lo.

Quem antes rustir os sapatos
E o brutinho poupar. Nicolau,
(Diz a copla) se vai ver Joana,
É montado em seu velho quartau.
Ó que trio de brutos sendeiros!"


MOLEIRO

"Razão tendes, sou burro; estou vendo;
Mas foi bom; pois, de agora em diante,
Só por mim dirigir-me pretendo.

Quer a gente me louve, ou censure,
Quer de minhas ações nada diga,
Hei de sempre entregá-la ao desprezo,
Sem que nunca afligir-me consiga".

Quanto a vós, o Racan, convencei-vos:
Quer sigais as fileiras de Marte,
Quer do príncipe entreis ao serviço.
Quer do Amor arvoreis o estandarte;

Ide, vinde, ou caseis na província;
Alto emprego ou governo ocupeis;
Hão de sempre cortar-vos na pele
Sem que a boca do mundo tapeis.


Barão de Paranapiacaba (Trad.)

14/07/2008

Bela-menina

Era uma vez um homem; vivia numa cidade e trazia navegações no mar, e depois foi ele e deu em decadência por se lhe perderem as navegações. Ele teve o seu pesar e não podia viver com aquela decência com que vivia no povoado e tinha umas terrinhas na aldeia e disse para a mulher e para as filhas: «Não temos remédio senão irmos para as nossas terrinhas; se vivemos com menos decência que até aqui, somos pregoados dos nossos inimigos.»
A mulher e uma filha aceitaram, mas as outras duas filhas começaram a chorar muito. E depois foram. A que tinha ido de sua vontade era a mais nova e chamava-se Bela-Menina; cantava muito e era a que cozinhava e ia buscar erva para o gado, de pés descalços; as outras metiam-se no quarto e não faziam senão chorar. Quando o pai ia para alguma parte, as mais velhas sempre pediam que lhes trouxesse alguma coisa e a mais nova não lhe pedia nada. Vai nisto, veio-lhe uma carta de um amigo dizendo que as navegações que vinham aí, que tiveram notícia e que fosse vê-las.

O homem caminhou mais um criado saber das tais navegações; quando saiu, disseram as suas filhas mais velhas que, se as navegações fossem as dele, lhes levasse algumas coisas que lhe declararam. E ele disse à mais nova: «Ora todas me pedem que lhes traga alguma coisa. Só tu não me pedes nada?» «Vou pedir-lhe também uma coisa; onde o meu pai vir o mais belo jardim, traga-me a mais bela flor que lá houver.» O pai foi e chegou a uma cidade e reconheceu que as navegações não eram dele e foi-se embora com a bolsa vazia. Chegou a um monte e anoiteceu-lhe; ele viu uma luz e dirigiu-se para ela a ver se encontrava quem o acolhesse. Chegou lá e viu uma casa grande e estropeou à porta; não lhe falaram; tornou a estropear; não lhe falaram. E disse ao moço: «Vai aí pelo portal de baixo ver se vês alguém.» O moço foi e voltou: «Veio lá muitas luzes dentro e cavalos a comer e penso para lhe botar; mas não veio ninguém.»
Então o homem mandou meter o cavalo na cavalariça e entraram na cozinha. Acharam lá que comer e, como a fome não era pequena, foram comendo muito. E nisto aí vem por essa casa adiante uma coisa fazendo um grande ruído, assim como umas cadeias que vinham a rastos pela casa adiante e depois chegou ao pé deles um bicho de rastos e disse-lhes: «Boas-noites.» Eles puseram-se a pé com medo e disseram-lhe: «Nós viemos aqui por não acharmos abrigo nem que comer noutra parte; mas não vimos fazer mal a ninguém.» «Deixai-vos estar e comei.» Demorou-se um pouco o bicho e disse-lhes: «Ora ide-vos deitar que eu também vou para o meu curral.» E começou-se a arrastar pela cozinha e foi. Ao outro dia o homem foi ao jardim, que era o mais belo que tinha visto, e disse: «Já que não posso levar nada para as minhas filhas mais velhas, quero ao menos levar a flor para a Bela-Menina...» Estava a cortar a flor e nisto o bicho salta-lhe: «Ah, ladrão! Depois de eu te acolher em minha casa, tu vens-me colher o meu sustento, que eu não me sustento senão em rosas.» E ele disse: «Eu fiz mal, fiz; mas eu tenho lá uma filha que me pediu que lhe levasse a mais bela flor que eu visse na viagem, e não podendo levar nada às outras filhas, queria ao menos levar a flor; mas se a quereis ela aí fica.» «Não, levai-a e se me trouxerdes cá essa filha, ficais ricos.» O homem caminhou e chegou a casa muito apaixonado por não trazer nada às outras filhas e não achar as navegações e pegou na flor e deu-a à Bela-Menina.
A filha, assim que viu a flor, disse: «Oh, que bela flor! Onde a achou, meu pai?» O pai contou-lhe o que vira e a filha disse: «Ó meu pai, eu quero ir ver.» «Olha que o bicho fala e disse também que te queria ver.» «Pois vamos.» E foram. A filha, assim que viu o tal bicho, disse: «Ó pai, eu quero cá ficar com este bicho, que ele é muito bonito.» O pai teve a sua pena, mas deixou-a. Passado algum tempo, ela disse: «Ó meu bichinho, tu não me deixas ir ver os meus pais?» E ele disse-lhe: «Não, tu não vais lá por ora; teu pai vem cá.» O pai veio e disse ao bicho: «Eu queria levar a rapariga.» «Não me leves daqui a rapariga, senão eu morro e tu vai ali àquela porta e abre-a e leva dali a riqueza que tu quiseres e casa as tuas filhas.» O homem que mais quis?
Um dia o bicho disse à Bela-Menina: «A tua irmã mais velha lá vem de se receber; tu queres vê-la?» «Quero.» «Vai ali e abre aquela porta.» Ela foi e viu a irmã com o noivo e os pais. «Agora deixa-me ir ver o meu cunhado.» «Eu deixava, deixava; mas tu não tornas.» «Torno; dá-me só três dias que eu em um dia e meio chego lá e torno cá noutro dia e meio.» «Se não vieres nestes três dias, quando voltares achas-me morto.» Ela foi; no fim dos três dias ela veio, mas tardou mais um pouquito que os três dias; ela foi ao jardim e viu-o deitado como morto. Chegou ao pé dele, «Ai meu bichinho!» E começou a chorar. Ele caiu e ela disse: «Coitadinho, está morto; vou dar-lhe um beijinho.» E deu-lhe um beijo, mas o bicho fez-se um belo rapaz. Era um príncipe encantado que ali estava e que casou com ela.


Recolha de Adolfo Coelho


A criança, o anjo e a flor





Quando uma criança morre, vem um Anjo do Céu, toma-a nos braços, e desdobrando as asas imaculadas, voa por cima dos sítios que ela amou durante a sua pequenina existência; de quando em quando desce o Anjo a colher flores, que leva a Deus, para que desabrochem no Paraíso mais belas ainda do que tinham sido na Terra. Deus aceita as flores, escolhe uma delas, toca-a nos lábios, e a flor escolhida, adquirindo voz imediatamente, começa a cantar os coros maviosos dos bem-aventurados.
Ora escutai o que disse o Anjo a uma criança morta, que levava nos braços. Pairou primeiro com ela sobre a casa da sua meninice e ao depois sobre um jardim balsâmico, estrelado de flores.
– Qual é a flor que desejas cultivar no Paraíso? interrogou o Anjo.
Havia nesse jardim uma roseira, que fora desempenada, vigorosa, magnífica; mas quebraram-lhe o pé, e todos os ramos, cheios de botõezinhos, lindíssimos, vergavam estiolados para o chão.
– Infeliz roseira! disse a criança ao Anjo;, vamos nós buscá-la, a ver se pode florir no Paraíso.
O Anjo obedeceu e beijou a criança. Colheram muitas flores, boninas humildes e violetas silvestres.
Acabara a colheita e não voavam ainda para Deus. Já era de noite e pairavam por cima de uma grande cidade. Atravessaram uma das ruas mais estreitas, cheia de cacos de louça, de vidros partidos, de farrapos, de toda a casta de imundície. Entre esses escombros distinguiu o Anjo uni vaso de flores com a terra dispersa no chão, onde se viam as longas raízes de uma flor dos campos, meio estiolada; lançaram-na para ali, como coisa morta.
– Merece a pena erguê-la, disse o Anjo; levemo-la, e pelo caminho, voando, te contarei a história desta flor. Lá ao fundo, lá ao fundo, naquela rua estreita e tortuosa, morava um pequerrucho, uma criança miserável e doente. Quando se sentia melhor, o mais que podia era passear de muletas ao longo do seu pequenino quarto. Nalguns dias de Verão, os raios do Sol visitavam-lhe a alcova, durante meia hora. Então o menino sentado à janela, aquecido ao sol, imaginava-se vagueando pelos campos: não conhecia dos bosques, da fresca verdura da Primavera, senão o ramo de faia, que urna vez o filho do vizinho tinha colhido para ele. Suspendia por cima da cabeça o ramo verdejante, e, supondo-se abrigado do sol debaixo das árvores, sonhava, enlevado com o doce canto doe passarinhos. Um dia, o pequeno do vizinho trouxe-lhe flores, e por acaso entre elas havia uma com raízes; plantou-a num vaso e pô-lo à varanda. A flor plantada por mão inocente cresceu, cresceu, e todos os anos desabrochava em novas flores. Era o seu jardinzinho, o seu único tesouro neste mundo; regava-o, cultivava-o, adorava-o; fazia-lhe haurir os raios do Sol até ao último. Com ele sonhava todas as noites, e, quando se sentiu morrer, foi para ele que se voltou.
Faz hoje um ano que esse menino habita o Paraíso; a sua idolatrada flor, esquecida à janela desde Então, murchou, estiolou-se e lançaram-na à rua finalmente. É esta que nós aqui levamos. Quase seca, é o tesouro do nosso ramalhete. Deu mais prazer e alegria do que todos os canteiros do jardim de um príncipe.
– Como sabes tu isso? perguntou a criança, que o Anjo levava para o Céu.
– Sei-o, respondeu o Anjo, porque era eu o pequenino doente que andava em muletas; como não havia de eu reconhecer a minha flor bem-amada!
A criança abriu os olhos e viu a radiosa figura do Anjo quando entravam no Céu, onde tudo era alegria e felicidade. Deus pegou nas flores, levou-as ao coração, mas a que ele beijou foi a florinha silvestre, desprezada e murcha. E a flor, por milagre adquirindo voz, pôs-se a cantar com as almas que rodeiam o Criador, umas junto dele, outras ao longe, formando círculos que vão aumentando sucessivamente, multiplicando-se até ao infinito, num com inextinguível e deslumbrador.


13/07/2008

Lenda do Vai-te com o Diabo

A Lenda do Vai-te com o Diabo faz parte da tradição oral da ilha Graciosa, arquipélago dos Açores, e refecte os medos e as crenças de um povo supersticioso e ainda muito ligado ao misticismo e ocultismo.

Reza esta lenda que uma mulher de poucas posses que vivia na localidade do Guadalupe, ia casar uma filha dentro de poucos dias.
Ultimavam-se os preparativos, cozinhava-se o pão, faziam-se os doces, assavam-se as carnes, preparavam-se as coisas para um casamento feito em casa à moda antiga, como era normal nesses tempos.
Com todos estes afazeres a pobre mulher já tinha gasto mais dinheiro do que as suas parcas posses lhe permitiam. Tendo faltado um ingrediente importante para a boda, a filha foi junto da mãe pedir-lhe mais dinheiro para o ir comprar. Já farta de tantos gastos, meio chateada, meio furiosa, a mãe virou-se para a filha e vociferou : "Vai-te com o diabo, rapariga, que me levas tudo o que tenho!"
Era um desabafo e ninguém prestou atenção a estas palavras. No entanto e como a rapariga nunca mais voltava , começaram a achar estanho e puseram-se à procura dela.Mas não a encontraram nem nas imediações nem nos caminhos que ela deveria ter percorrido.
Os vizinhos da vila do Guadalupe foram alertados e imediatamente todos se puseram à procura dela por todos os lados da vila, de casa em casa, no porto, nos chafarizes, em casa do noivo que também participava na busca, nos moinhos, palheiros, em todos os locais possíveis.
Depois da vila, expandiram as buscas para as pastagens e para a serra onde, junto do lugar denominado Caldeirinha, encontraram aquilo que poderiam ser os primeiros vestígios. Com o ojectivo de encontrarem a rapariga, desceram rapidamente a perigosa vereda.
Na descida encontraram as galochas da rapariga em cima de uma rocha, fazendo com que todas as dúvidas se dissipassem.
Se ela não estava ali, pelo menos devia estar por perto. E se não estava em local visível, só podia estar dentro da Caldeirinha. Foram então à vila buscar cordas suficientemente fortes para aguentarem o peso das pessoas, e atando-as à volta da cintura o noivo desceu à procura da sua amada.
Estavam todos ansiosos pois muitos acreditavam que a caldeira poderia ser uma das entradas do Inferno. Cheio de medo, aos poucos o noivo foi descendo pela abertura estreita da caldeira, um buraco negro e medonho.
Foi lá no fundo que encontrou a rapariga, a tremer de medo e com um ar apático. Amarrou-a às cordas que levara consigo e os dois foram puxados pelas pessoas que lá em cima ansiosos os observavam
Tinham-na encontrado, estava viva e saudável, e podiam assim retomar o casamento. Quando perguntaram à rapariga o que se tinha passado e como tinha ido ali parar, ela pura e simplesmente não sabia responder . Foi então que a mãe se recordou da blasfémia que tinha dito ao mandá-la para o diabo. O mesmo que, acreditam os povos, anda sempre à procura de almas para levar para o Inferno, e que logo a levou consigo, escondendo-a nos fundos da Caldeirinha


09/07/2008

Dona Ausenda





À porta de Dona Ausenda
Está uma erva fadada;
Mulher que ponha a mão nela
Logo se sente pejada.
Foi pôr-lhe a mão Dona Ausenda
Em má hora desgraçada:
Assim que pôs a mão nela,
Logo se sentiu pejada
Vinha seu pai para a mesa,
Veio ela muito apressada
Para lhe dar água às mãos,
Como filha bem criada.
Pôs-lhe ele os olhos direitos,
Ela fez-se mui corada.
– «Que é isso, Dona Ausenda?
Voto a Deus que estás pejada.»
– «Não diga tal, senhor pai,
É da saia mal talhada;
Que eu nunca tive amores
Nem homem me deve nada».

Mandou chamar os dois xastres
Que tinham mais nomeada:
– «Vejam-me esta saia, mestres;
Aonde está ela errada?»
Olharam um para o outro:
– «Esta saia não tem nada;
O erro que ela tem
É a menina estar pejada.»
– «Confessa-te Dona Ausenda,
Que amanhã serás queimada.»
– «Ai triste da minha vida,
Ai triste de mim coitada!
Sem nunca ter tido amores,
Vou a morrer desonrada!»

Foram chamar o ermitão
Da ponte da Aliviada;
Era um fradinho velho
Que o encontraram na estrada.
Mal o frade chega à porta,
Deitou-se à erva fadada
Cortou-a pela raiz,
Na manga a leva guardada,
– «Ajoelhai, Dona Ausenda,
Que a vossa hora é chegada:
Confessai vosso pecado
A Deus e à Virgem sagrada.»
– «Padre, eu nunca tive amores,
Nem homem me deve nada;
Más artes são do demónio
Ver-me eu donzela – e pejada!»
– «Há quanto tempo, senhora,
Vos sentis embaraçada?»
– «Os nove meses faz hoje
Que ali naquela ramada
Na noite de São João
Adormeci descuidada;
Sentia o cheiro das flores
E da erva rociada,
Sentia-me eu tão ditosa,
Tão feliz e regalada,
Que o despertar me deu pena
Quando veio a madrugada.
– «Tomai agora esta erva,
Que é uma erva fadada:
Com a bênção que lhe eu deito
Ficará erva sagrada.»
– «Ai! este cheiro meu padre,
É o que eu senti na ramada.»
Não disse mais Dona Ausenda,
Do sono ficou tomada.
Virtude tinha aquela erva,
Outra virtude fadada:
Mulher pejada que a toque
Logo fica despejada.
Ali, sem mais dor nem pena,
Em boa hora abençoada,
Pare uma linda criança
Bem nascida e bem medrada.
Meteu-a o frade na manga,
Foi-se sem dizer mais nada.

Já desperta Dona Ausenda,
Já se sente aliviada;
De tudo quanto passou
Apenas está lembrada:
Um mau sonho lhe parece
Que a deixou perturbada.
Chamou por suas donzelas,
Chamou por sua criada,
Vestiu suas galas mais ricas,
Sua saia mais bem talhada,
Foi-se encontrar com seu pai
Que estava na alpendurada
Vendo armar a fogueira
Em que a queria queimada:
– «Senhor pai, aqui me tendes
Já disposta e confessada;
Agora a vossa vontade
Seja em mim executada.»
O pai que a mira e remira
Tão esbelta e bem pregada,
O seu corpo tão gentil,
Sua saia tão bem talhada:
– «Que feitiço era este, filha,
Com que estavas embruxada?
Como se desfez o encanto,
Que te vejo tão mudada?»
– «Fosse ele poder de encanto,
Ou condão de erva fadada,
Quebrou-o aquele fradinho
Da ponte da Aliviada.»
– «Metade de quanto eu tenho,
Ametade bem contada,
A esse bom ermitão
Desta hora lhe fica dada.»
Palavras não eram ditas
O ermitão que chegava:
– «Aceito a oferta, bom conde,
Se a metade é bem contada,
Se entra nela Dona Ausenda,
E ma dais por desposada.»
Riram-se todos do frade;
Ele sem dizer mais nada,
Despe o hábito e o capuz,
Ergue a cabeça curvada;
Ficou um gentil mancebo,
Senhor de capa e de espada
Era o conde Dom Ramiro,
Que dali perto morava.
Em boa hora Dona Ausenda
Pôs a mão na erva fadada!

Romanceiro, Almeida Garrett

04/07/2008

Donzela que vai à guerra

- «Já se apregoam as guerras
Entre a França e Aragão:
Ai de mim que já sou velho,
Não nas posso brigar, não!
De sete filhas que tenho
Sem nenhuma ser barão!...»
Responde a filha mais velha
Com toda a resolução:
- «Venham armas e cavalo
Que eu serei filho barão.»
- «Tendes los olhos mui vivos
Filha, conhecer-vos-ão.»
- «Quando passar pela armada
Porei os olhos no chão.»
- «Tendes los ombros mui altos
Filha, conhecer-vos-ão.»
- «Venham armas bem pesadas,
Os ombros abaterão.»
- «Tende-los peitos mui altos
Filha, conhecer-vos-ão.»
- «Venha gibão apertado,
Os peitos encolherão.»
- «Tende’-las mãos pequeninas
Filha conhecer-vos-ão.»
«Venham já guantes de ferro,
E compridas ficarão.»
- «Tende’-los pés delicados,
Filha, conhecer-vos-ão.»
- «Calçarei botas e esporas,
Nunca delas sairão.»
- «Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.»
- «Convidai-o vós, meu filho,
Para ir convosco ao pomar.
Que se ele mulher for,
À maçã se há-de pegar.
A donzela por discreta,
O camoês foi apanhar.
- «Oh que belos camoeses
Para um homem cheirar!
Lindas maças para damas
Quem lhas poderá levar!)
- «Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.»
- «Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco jantar;
Que, se ele mulher for
No estrado se há-de encruzar.
A donzela, por discreta,
Nos altos se foi sentar.
- «Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.»
- «Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco feirar;
Que, se ele mulher for,
Às fitas se há-de pagar.»
A donzela, por discreta,
Uma adaga foi comprar58.
- «Oh que bela adaga esta
Para com homens brigar!
Lindas fitas para damas:
Quem lhas poderá levar!»
- «Senhor pai, senhora mãe,
Grande dor de coração;
Que os olhos do conde Daros
São de mulher, de homem não.»
- «Convidai-o vós, meu filho,
Para convosco nadar;
Que, se ele mulher for,
O convite há-de escusar.»
A donzela, por discreta,
Começou-se a desnudar...
Traz-lhe o seu pajé uma carta,
Pôs-se a ler, pôs-se a chorar:
- «Novas me chegaram agora,
Novas de grande pesar:
De que minha mãe é morta,
Meu pai se está a finar.
Os sinos da minha terra
Os estou a ouvir dobrar;
E duas irmãs que eu tenho,
Daqui as oiço chorar.»
- «Monta, monta, cavaleiro!
Se me quer acompanhar.»
Chegavam a uns altos paços,
Foram-me logo apear.
- «Senhor pai, trago-lhe um genro,
Se o quiser aceitar;
Foi meu capitão na guerra,
De amores me quis contar...
Se ainda me quer agora,
Com meu pai há-de falar.»

Sete anos andei na guerra
E fiz de filho barão.
Ninguém me conheceu nunca
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra coisa não.

Romanceiro, Almeida Garrett




Como se fosse um sonho

PERTO de Gudenaa, ao lado da floresta de Silkerborg, se eleva, parecido com uma grande vaga, um cume arredondado chamado Aasen, sob o qual, hoje ainda, se encontra uma pequena casa de camponeses, rodeada por algumas terras de lavoura. Entre as plantações de centeio e cevada espalhadas, brilha a areia.
Já se passaram muitos anos após os acontecimentos que vamos narrar. As pessoas que habitavam então a pequena morada exploravam as suas terras e mantinham, além delas, duas ovelhas, um porco e dois bois.
Logo, como eles sabiam contentar-se com o pouco que tinham, viviam muito bem. Poderiam até mesmo possuir alguns cavalos, mas diziam como os outros campônios:
– O cavalo come a si mesmo. Ele emagrece à medida que come.
Jaques, no verão cultivava seu pequeno campo, e, no inverno, confeccionava tamancos com mão hábil e diligente.
Não lhe faltava nem mesmo um auxílio: tinha com ele um homem que entendia perfeitamente da fabricação de tamancos. Estes eram tão sólidos quanto leves e de bom gosto. Fabricavam tamancos e colheres de pau; isso representava dinheiro e não se podia dizer que Jaques fosse um homem pobre.
O pequeno Ib, um garoto de sete anos, filho único da casa, sentado perto deles, via-os trabalhar. As vezes cortava um pedaço de madeira e assim ocupava seus dedos. Um dia, cortou dois pedaços que se pareciam com dois pequenos tamancos. Era, dizia ele, para dar à pequena Cristina.
Esta era a filha de um barqueiro. Era tão delicada e encantadora, como uma criança de boa família. Ninguém suporia que ela vinha de uma casa de turfa da charneca de Seis. Era lá que morava seu pai, um viúvo que tirava a sua subsistência cortando madeira na floresta de Silkerborg.
Muitas vezes, quando ele se dirigia de barco até Randers, a pequena Cristina ia até a casa de Jaques Ib e a pequena Cristina se entendiam às maravilhas.
Corriam e brincavam, subindo nas árvores e nos montes.
Um dia arriscaram-se a ir até o alto do cume arredondado e penetraram um pouco na floresta. Ali encontraram um ovo de pernalta; foi um acontecimento muito importante.
Ib jamais estivera na charneca de Seis; nunca atravessara os lagos que levam a Gudenaa. Mas isso ia acontecer finalmente. Ele fora convidado pelo barqueiro, e à noite, na véspera, acompanhara-o até sua casa.
Pela manhã, bem cedinho, as duas crianças estavam sentadas no barco, sobre um grande pedaço de lenha, comendo pão e framboesas. O barqueiro e seu rapaz avançavam a remo, a corrente facilitando seu trabalho, e eles atravessavam os lagos que pareciam fechados por todos os lados por árvores e arbustos. Mas sempre eles encontravam uma passagem.
No entanto, as velhas árvores se debruçavam até eles, com seus galhos estendidos, como se quisessem mostrar seus braços nus e ossudos. Velho troncos, solidamente presos ao solo por suas raízes, pareciam ilhas no meio do lago. Os nenúfares balançavam-se sobre a água. Foi uma viagem maravilhosa. Finalmente, resolveram pescar. A água borbulhava perto do barco. Que espetáculo para Ib e Cristina!
Antigamente, não havia ali nem fábrica nem cidade, mas o velho dique, que não exigia nada dos homens.
O barulho da água caindo dos açudes, os gritos dos patos selvagens, eram os únicos indícios de vida dentro do silêncio e da natureza.
Depois de descarregar a madeira, o pai de Cristina comprou um grande pacote de enguias e uma vasilha de leite. Foi tudo colocado na parte traseira do barco.
Para voltar, era preciso subir a corrente. Mas o vento era favorável; ele inflava as velas e eles avançavam tão bem, como se fossem puxados por cavalos.
Durante a travessia da floresta, quando já estavam a curta distância de casa, o pai de Cristina e o companheiro desceram do barco, recomendando às crianças que ficassem quietas e ajuizadas. Elas ficaram, mas por pouco tempo: quiseram olhar dentro da cesta que continha as enguias e a vasilha do leite e levantá-la no ar, mas quando o fizeram, deixaram-na cair dentro da água. E a corrente a levou. Foi espantoso.
Ib, muito angustiado, pulou em terra e correu um pouco. A seguir Cristina o alcançou.
– Leve-me com você – gritou ela.
E eles entraram na floresta. Dentro em breve o barco e o rio desapareceram de suas vistas. Correram mais um pouco e Cristina caiu. A menina começou a chorar.
Ib a levantou.
– Venha – disse ele. – Nossa casa fica logo ali.
Infelizmente, ela não estava lá. Os dois caminharam e caminharam sobre as folhas secas e os galhos caídos, que estalavam aos seus pés. Subitamente, ouviram um poderoso apelo. Pararam e aguçaram os ouvidos: uma águia começara a gritar terrivelmente.
Ficaram mortos de medo; mas à frente deles, no bosque, havia a maior quantidade de aves jamais vista.
Era muito tentador para que eles não parassem. Havia ovos e frutos, e eles ficaram, comeram e mancharam-se com o suco das frutas a boca e as bochechas de azul. Novamente ouviu-se um grito.
– Vamos levar uma surra por causa daquela vasilha de leite – disse Cristina.
– Vamos para minha casa – disse Ib. Deve ficar aqui no bosque.
Caminharam; chegaram a uma estrada ondulante; mas esta não os levava à sua casa. A noite caiu e eles sentiram medo. O silêncio extraordinário em volta deles só era quebrado pelos gritos assustadores dos grandes pássaros e pelo canto de outros que eram desconhecidos para eles.
Afinal eles se perderam num bosquezinho, Cristina começou a chorar e Ib também; e depois que choraram um instante, deitaram-se no meio das folhas e adormeceram.
O sol já estava alto no céu quando eles despertaram.
Estavam com frio. Mas lá no alto, sobre a colina, onde o sol parecia tão brilhante através das árvores. “É eles poderiam aquecer-se”, pensou Ib. E de lá, sem dúvida, veriam também a casa de seus pais.
Mas eles se encontravam muito longe, do outro lado da floresta. A muito custo subiram a colina e chegaram a uma cascata, que ficava sobre um lago claro e transparente. Ali nadavam peixes, sob os raios do sol. Pertinho dali descobriram um lugar cheio de nozes.
Colheram-nas, quebraram-nas e comeram-nas.
Eles não estavam senão no início de sua surpresa e temor. De uma moita surgiu uma grande e velha mulher, de pele crestada e cabelos de um negro brilhante.
O branco de seus olhos brilhava. Levava um feixe de lenha nas costas e um bastão nodoso na mão. Era uma cigana.
As crianças não entenderam imediatamente o que ela dizia. A mulher tirou do bolso três grandes nozes.
Dentro de cada uma delas, – contou ela, estavam escondidas as coisas mais esplêndidas: eram nozes mágicas.
Ib examinou a mulher: parecia muito simpática. Eis por que, criando coragem, ele pediu-lhe as nozes. Ela as entregou e tratou de colher mais avelãs a fim de encher seus bolsos.
Ib e Cristina ficaram olhando para as três grandes nozes abrindo os seus grandes olhos.
– Aqui se encontra uma carruagem puxada por cavalos? – perguntou ele.
– Encontra-se mesmo uma carruagem de ouro com cavalos dourados – respondeu a mulher.
– Então dê-me a noz! – pediu a pequena Cristina.
Ib entregou-lhe a noz, que a mulher amarrou no lenço da menina.
– E nessa aqui? – perguntou Ib. – Há um lenço tão lindo quanto o de Cristina?
– Há dois lenços – respondeu a mulher – além de belos trajes, meias e um chapéu.
– Então eu a quero também – disse Cristina.
Então Ib lhe deu a segunda noz. A terceira era pequena e negra.
– Essa você pode guardar – disse Cristina. – Ademais, ela também é bonita.
– E que contém ela? – interrogou Ib.
– O que há de melhor para você – respondeu a cigana.
Ib segurou bem a sua noz. A mulher prometeu-lhe colocá-los no caminho para sua casa. Puseram-se a caminho, mas justamente na direcção oposta àquela que eles desejavam. Mas nem por sombras eles desconfiavam de que a cigana pretendia raptá-los.
No meio do bosque, lá onde existem vários atalhos, os dois se encontraram com o guarda-florestal, que Ib conhecia. Graças a ele, Ib e a pequena Cristina puderam voltar para a casa, onde havia grande ansiedade por causa deles. Perdoaram-lhes, embora eles merecessem ser surrados, primeiramente porque haviam derramado a vasilha de leite na água e depois porque haviam fugido.
Cristina voltou para a casa dela, na charneca e Ib ficou na sua pequena casa da floresta. A primeira coisa que ele fez, ao chegar a noite, foi apanhar a noz que continha .aquilo que era melhor para ele.. Colocou-a entre a porta e a parede e fechou a porta. A noz quebrou. Não continha uma semente; estava cheia de uma espécie de fumo picado.
“Eu devia ter desconfiado”, pensou Ib. “Como é que dentro de uma pequena noz poderia haver o que há de melhor? Cristina também não vai retirar das suas nem belos trajes nem uma carruagem de ouro”.
O inverno chegou, depois o ano novo.
Muitos anos se passaram. Ib seguia as aulas de catecismo e o padre morava longe dali. Nessa época, o barqueiro foi um dia à casa dos pais de Ib e contou-lhes que a pequena Cristina já estava na época de trabalhar.
“Era” – dizia ele – “uma verdadeira felicidade para ele que ela fosse parar em tão boas mãos e que fosse servir tão boa gente. Devia partir para a região de Herning, para a casa de ricos hoteleiros. Ajudaria a dona da casa e, se correspondesse à expectativa, ficariam com ela”.
Ib e Cristina se despediram um do outro. Passavam por noivos junto aos seus pais. No momento da partida, ela mostrou-lhe que possuía ainda as duas nozes que ele lhe dera quando os dois se perderam na floresta. Contou-lhe que guardava os pedaços num cofre.
Após a confirmação, Ib permaneceu na casa de sua mãe. Ele era hábil tamanqueiro e no verão explorava suas terras com grande lucro. Ademais, ela não tinha senão a ele: o pai de Ib tinha morrido.
Não se ouvia falar de Cristina senão raramente, geralmente por intermédio de um postilhão ou de um vendedor ambulante de enguias. A moça estava muito bem na casa dos hoteleiros.
Quando foi confirmada, escreveu ao seu pai e enviou saudações para Ib e para a mãe deste. Falava em sua carta de um presente de seis blusas novas e de um belo vestido que ganhara de seus patrões. Em suma, eram boas notícias.
Na primavera seguinte, bateram um belo dia na porta de Ib e sua mãe, e o barqueiro entrou com Cristina.
Esta viera de visita por um dia. Aparecera uma companhia para a viagem com uns vizinhos e ela aproveitara a ocasião.
Estava linda, graciosa e elegante como uma senhorita e usava belos vestidos, muito bem feitos e que lhe assentavam às mil maravilhas. Apareceu em grande toillete, enquanto que Ib usava suas roupas de trabalho.
A alegria e a surpresa tiraram-lhe a fala. Deu-lhe a mão e manteve-a bem apertada, com a maior felicidade irradiando-se de seus olhos, mas sem poder mover os lábios. A pequena Cristina foi mais activa; conversou com muita animação e deu um beijo na boca de Ib.
– Você me reconhece? – perguntou ela.
Quando ficaram a sós, ele ainda segurava a mão da moça e só pôde balbuciar:
–Você se transformou numa linda dama e aconteceu que eu aparecesse com a roupa suja. Quantas vezes pensei em você e no tempo passado!
De braços dados eles subiram o cume, para os lados de Gudenaa, até os limites da charneca de Seis. Ib não dizia nada.
Mas quando se separaram, pareceu-lhe claramente que era preciso que ela se tornasse sua esposa. Desde crianças que todos os chamavam de noivos. Somente eles nunca tinham trocado idéias a respeito.
Não puderam ficar várias horas juntos, pois ela precisava voltar ao local de onde viera, a fim de tomar o caminho de volta, de manhã cedinho.
Ib e o pai dela a acompanharam. Fazia um lindo luar. Quando soou a hora da separação, Ib não pôde largar a mão dela. Seus olhares significavam claramente os seus desejos mais íntimos. E ele exprimia em poucas palavras o que cada um sentia de seu ser:
– Sim, ultimamente você tem levado uma vida um tanto luxuosa, mas se quiser viver comigo, como minha esposa, na casa de minha mãe, um dia poderemos ser marido e mulher ... E. claro que ainda podemos esperar um pouco.
– Sim, Ib, veremos isso mais tarde – disse ela.
Ib apertou-lhe a mão e beijou-a na boca.
– Confio em você, Ib – disse Cristina e gosto de você. Mas deixe-me pensar.
Separaram-se. Ib contou ao barqueiro a sua conversa com Cristina e este achou que tudo se passara como ele esperara. Mais tarde foi até a casa de Ib e os dois dormiram na mesma cama. E não se falou mais em noivado.
Um ano se passou. Ib e Cristina trocaram duas cartas que terminavam com “Fiel até a morte”. Um dia, o barqueiro entrou na casa de Ib. Trazia-lhe as saudações de Cristina.
Parecia-lhe penoso exprimir aquilo que tinha a dizer; o principal é que Cristina estava bem; mesmo, ela era uma linda moça, estimada e considerada.
O filho do hoteleiro viera vê-lo, à sua casa. Tinha um emprego muito importante em Copenhague numa grande casa de comércio.
Cristina agradava-lhe, e seus pais não se opunham.
Somente Cristina achava que Ib ainda pensava nela e, portanto, estava disposta a renunciar à sua felicidade.
No primeiro instante Ib não pronunciou uma só palavra, mas ficou de uma palidez mortal. Depois disse:
– Não é preciso que Cristina renuncie à sua felicidade.
– Escreva-lhe dizendo-lhe qual o seu ponto-de-vista – disse o barqueiro.
Ib escreveu. Mas não conseguia dizer o que queria. Finalmente, ao amanhecer, estava com uma carta pronta para a pequena Cristina.
“Eu li a carta que você escreveu ao seu pai; vejo que está satisfeita e que ainda poderá estar mais. Interrogue seu próprio coração, Cristina, e pense bem neste que a espera. Não tenho muito o que lhe oferecer.
Não pense em mim, no que me acontecerá, mas somente no seu próprio interesse. Você não está ligada a mim por nenhuma promessa.
Querida Cristina, desejo-lhe todas as felicidades do mundo e serei feliz também ao vê-la feliz. Deus saberá consolar-me. Seu melhor amigo para sempre: Ib”.
Esta carta foi enviada e Cristina a recebeu.
O dia de Sant-Martin foi celebrado na igreja do povoado de Sis e em Copenhague, onde residia seu noivo.
Cristina foi com sua futura sogra, porque, por causa de seus inúmeros negócios, o rapaz não podia fazer a longa viagem.
Cristina devia encontrar-se com seu pai no lugarejo de Funder, por onde passaria, e que não ficava muito longe de Seis. Foi ali que eles se despediram. Pronunciaram algumas palavras, mas Ib não disse nada.
Ele estava muito quieto, dizia sua velha mãe. Sim, Ib reflectia e voltava ao passado; e foi assim que começou a pensar nas três nozes que recebera quando criança. da cigana, das quais dera duas a Cristina.
Eram nozes mágicas, que deviam dar a Cristina uma carruagem de ouro puxada por cavalos dourados e os mais belos trajes. Sim, sim, isto estava acontecendo.
Lá em Copenhague, na linda cidade real, ela iria compartilhar de um destino magnífico. Para ela o desejo se realizava! Para Ib, não havia mais do que a noz cheia de pó e de terra. “O melhor para você”, dissera a cigana. Pois bem, isso também se realizava.
O melhor para ele eram o pó e a terra. Actualmente ele compreendia o que a cigana quisera dizer: o melhor para ele era ficar dentro da terra negra, numa fria tumba.
Mais alguns anos se passaram – não muitos, mas que pareceram muito longos a Ib.
Os velhos hoteleiros morreram, com pouco intervalo um do outro. Os filhos herdaram toda a fortuna. Sim, agora Cristina podia rodar numa carruagem de ouro e usar belos vestidos.
Nos dois anos que se seguiram, o pai não recebeu nem uma carta de Cristina. E quando recebeu uma, tinham-se acabado a riqueza e a alegria. Pobre Cristina! Nem ela nem seu marido puderam fugir às circunstâncias.
A riqueza não lhes trouxera nem felicidade e desaparecera como viera.
As árvores floriram. As flores murcharam. A neve caiu no inverno sobre a terra de Seis e sobre a colina ao pé da qual Ib levava a sua vida tranquila. O sol da primavera apareceu. Ib cultivava seu campo.
Certa vez, a um solavanco do arado, ele viu que o mesmo batera numa pedra. Um objecto esquisito veio à superfície, parecido com um pedaço de madeira negra.
Quando Ib o apanhou, percebeu que ele era de metal.
O local em que o arado batera brilhava estranhamente.
Havia um pesado e grande bracelete de ouro da época pagã.
Ib acabava de descobrir os ornamentos preciosos de um túmulo antigo. Mostrou sua descoberta ao padre, o qual avaliou-a num grande preço. Então ele se dirigiu ao conselheiro do distrito, que o enviou a Copenhague e deu a Ib o conselho de que levasse ele mesmo o precioso achado.
– Você encontrou na terra o que havia de melhor – disse o conselheiro.
“De melhor!’, pensou 1b. “O que havia de melhor para mim e dentro da terra! Então a cigana tinha razão, se isso é o melhor”.
Partiu para a capital com o barco postal. Para ele, que nunca saíra de Gudenaa, era como se fosse uma viagem para além do Oceano. E chegou a Copenhague.
Pagaram-lhe o preço do ouro encontrado. Era uma grande quantia. A seguir, Ib, que viera das florestas do povoado de Seis, resolveu passear pelas ruas de Copenhague.
Exactamente na noite em que ele ia partir para Aarhus, Ib perdeu-se, tomou uma direcção totalmente oposta àquela que desejava, e, passando pela ponte de Roudino, chegou até o porto de Christian, ao lado da porta do Oeste. Tomara nota da direcção do Oeste, mas enganara-se bastante. Não havia viva alma nas ruas.
Finalmente, uma menina saiu de uma casa miserável.
Ele perguntou-lhe o caminho.
A pequena sobressaltou-se, fitou-o e as lágrimas vieram- lhe aos olhos. Então ele quis saber o que a criança tinha. E ela lhe disse algo que ele não entendeu.
Mas assim que se encontraram sob uma lâmpada e que a luz bateu no rosto da menina, Ib ficou emocionadíssimo, pois pareceu-lhe estar na frente da pequena Cristina, em carne e osso, aquela de quem ele se lembrava da época em que eram crianças.
Seguiu a menina até a pobre morada, subiu por uma escada estreita e chegou a uma pequena mansarda situada imediatamente sob o teto. Um ar pesado enchia o ambiente, que não era iluminado por nenhuma claridade.
Ouviu uns suspiros e uma respiração penosa que vinha de um canto. Acendeu um fósforo. Era a mãe da criança que jazia num catre.
–Posso ajudá-la em alguma coisa? – perguntou Ib. – Encontrei a menina na rua, mas eu mesmo sou estranho na cidade. A senhora não tem uma vizinha ou alguém a quem eu possa chamar? Dizendo essas palavras, ele levantou-lhe a cabeça.
Era a Cristina da terra de Seis.
Havia anos que seu nome não era pronunciado na Jutlândia. A tranquilidade de Ib fora totalmente perturbada; os rumores que corriam a respeito dela não eram nada bons. A fortuna que seu marido herdara dos pais tornara-o orgulhoso e leviano. Abandonara a sua situação estável e viajara durante seis meses no estrangeiro.
Depois voltara e contraria muitas dívidas. A situação foi indo de mal a pior. Todos os seus alegres comensais declararam que isso era justo, pois ele agira verdadeiramente como louco. E certa manhã, seu cadáver foi encontrado no fosso do castelo.
Após sua morte, Cristina só contava consigo mesma.
Seu filho mais novo, nascido ainda no tempo da abundância, não sobrevivera e já estava no túmulo.
E agora Cristina estava no ponto de, agonizante, abandonar-se num quarto miserável, tão miserável, que ela, acostumada ao luxo, não conseguia mais suportar.
Era a sua filha mais velha, igualmente uma pequena Cristina, que sofria fome como ela e acabava de levar-lhe Ib.
– Tenho medo de que em breve a morte me separe de minha pobre filha – suspirou ela. – Que vai ser da menina?
Não pôde dizer mais nada.
Ib acendeu outro fósforo e encontrou um pedaço de vela para iluminar o aposento.
Olhava para a menina e lembrava-se de Cristina na idade dela. Ele podia, pelo amor de Cristina, fazer um bem àquela criança que lhe era estranha. A moribunda o fitou. Seus olhos se tornaram cada vez maiores.
Tê-lo-ia reconhecido? Ninguém podia saber. Ele não a ouviu dizer mais nada.
Estava-se na floresta de Gudenaa, perto da terra de Seis. O ar estava cinzento e as flores murchas. O vento oeste soprava, espalhando as folhas secas pelo chão; a grande casa estava agora habitada por estranhos.
Mas ao pé da colina, à sombra das altas árvores, a casa pequena estava clara e alegre. Na sala, com o fogo aceso na lareira, havia o sol que brilhava em dois olhos de criança. A vida sorria na morada onde a pequena Cristina fizera a sua entrada.
Estava sentada nos joelhos de Ib. Este fazia o papel de pai e de mãe, todos dois desaparecidos, como se tudo fosse um sonho, para a criança e para o adulto.
Em sua casa, limpa e confortável, Ib estava à vontade.
A mãe da menina repousava no cemitério dos pobres, em Copenhague, a cidade real.
Ib tinha dinheiro – diziam todos – o ouro encontrado na terra, e tinha também a pequena Cristina.

Hans Christian Andersen






03/07/2008

As Viagens de Sinbad O Marinheiro


Embora talvez não tivesse saído de sua casa, ou nem sequer existisse, Sinbad o Marinheiro é o mais célebre dos viajantes - é mais celebre que Cabral, Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, Vasco da Gama, mais que os descobridores dos pólos e os escaladores do Himalaia. Suas viagens nas Mil e uma noites fazem a delícia de crianças e adultos. Ele mesmo as conta. Começa assim: "Deveis saber que meu pai era um grande mercador. Dava generosamente aos necessitados e, quando morreu, legou-me uma fortuna considerável em espécie, terras e aldeias. "Comecei logo a gastar com imoderação, pensando que meus bens eram inesgotáveis, até que, um dia, acordei um homem pobre. Lembrei-me então das palavras sábias de meu pai: `O túmulo é mais confortável que a pobreza.' "Preferindo a aventura à mendicância, como diz o provérbio , vendi o pouco que me restava, conseguindo juntar assim 3 mil dracmas, comprei com esta soma mercadorias variadas, entrei num navio com outros mercadores e fui de terra em terra e de ilha em ilha, vendendo e comprando, tentando assim recuperar minha fortuna." Não sabia Sinbad o Marinheiro o que o esperava ao iniciar essa aventura. Fez ao todo sete viagens, cada uma delas mais cheia de episódios extraordinários que as outras. As duas viagens mais repletas de maravilhas são a terceira e a quarta, que damos adiante na íntegra. Mas há também acontecimentos que desatam a imaginação em três outras. Ei-los: "Um dia," conta Sinbad em sua primeira viagem, "após navegarmos semanas sem avistar terra, chegamos a uma ilha verdejante que. parecia o Jardim do Éden. O capitão mandou lançar a âncora e deixou-nos desembarcar. "Fomos todos à terra, levando mantimentos e utensílios de cozinha. Alguns acenderam fogo e começaram a preparar com ida e lavar roupa. Outros satisfaziam-se, como eu próprio, em passear naquele paraíso terrestre. "Estávamos assim absorvidos em nossas tarefas e prazeres quando, de repente, a ilha estremeceu com tamanha violência que fomos jogados ao chão. Enquanto permanecíamos deitados, tontos de espanto, vimos o capitão chamar-nos com gestos desesperados e voz angustiante: `Salvai-vos, passageiros! Largai tudo e vinde depressa a bordo! Isto não é uma ilha. É uma baleia gigante! Vive neste mar há gerações, e as árvores desceram na areia do mar amontoada no seu lombo. Vós a despertastes com vossas fogueiras. Agora está se movendo. Fugi antes que ela mergulhe no mar e vos afogue. Apressai-vos! O navio está se afastando!' "Os passageiros abandonaram roupa, mantimentos e utensílios e correram para o navio. Alguns o alcançaram. Outros ficaram em cima da baleia e morreram quando ela mergulhou no mar. "Eu tinha ficado em cima da baleia; mas Alá me socorreu pondo a meu alcance uma tábua de salvação. Agarrando-me a ela, e fazendo esforços extenuantes com pés e braços, cheguei a uma pequena ilha vizinha..." Na segunda viagem, o navio que levava Sinbad ancorou numa ilha. O clima e o tempo eram tão agradáveis que Sinbad dormiu debaixo de uma árvore. "Quando acordei, não vi nenhum dos meus companheiros e descobri que o navio tinha ido embora sem que ninguém notasse minha ausência. "Dando-me conta de que meus lamentos de nada adiantariam, trepei numa árvore para evitar encontros fatais com algum animal feroz ou algum inimigo. Olhando em todas as direcções, avistei ao longe algo redondo, enorme e branco. Desci e fui até lá, e vi que se tratava de uma cúpula desmedida. Andei em volta dela, mas não encontrei nenhuma porta de entrada."Enquanto reflectia no que poderia fazer para penetrar e me refugiar nela, notei que o dia se transformava rapidamente em noite escura. Supus que fosse uma nuvem espessa a obscurecer o sol, embora achasse o fenómeno impossível em pleno verão. Ergui, pois, a cabeça para verificar e vi uma ave de tamanho e asas colossais que ocultava o sol. "Não conseguia acreditar no que via até que me lembrei de que viajantes e marujos me haviam falado de um pássaro de dimensões terrificantes chamado abutre que vivia numa ilha distante e era capaz de levantar um elefante. Concluí que aquela ave era o abutre e que a cúpula branca e lisa nada mais era que um de seus ovos. "Fiquei certo de minhas conclusões quando vi a ave descer a terra e cobrir o ovo para chocá-lo. Nesta posição, ela deixou as duas patas pendentes de cada lado do ovo, e adormeceu. "Vista de perto, cada uma das patas parecia maior que o tronco de uma velha árvore. Veio-me então a ideia da salvação. Desfiz o tecido que envolvia meu turbante, torci-o numa corda sólida que enrolei em volta da cintura e amarrei numa das unhas da ave. Pois, pensei, este abutre acabará por voar, e depois pousará em algum lugar mais próximo dos homens que esta ilha isolada. Levantar-me-á com ele e me depositará onde pousar." Foi assim que Sinbad o Marinheiro se salvou mais uma vez. Um dia, Sinbad decidiu não mais viajar. "Devo contar-vos, meus amigos, que após voltar da sexta viagem, afastei da mente toda ideia de enfrentar outra vez o desconhecido e quis, antes, gozar preguiçosamente a vida. Mas meu destino me perseguiu. O califa arun Ar-Rachid quis que eu levasse uma carta sua e presentes ao rei de Sarandib. Vi-me, pois, obrigado a partir. Embarquei em Basra. “O vento favoreceu-nos e, após dois meses, chegamos em Sarandib”.
Entreguei a carta e os presentes do califa e, desculpando-me junto ao rei por não poder demorar em sua Terra, reembarquei num navio que vinha para Basra. "O vento continuou a favorecer-nos por algum tempo; mas, um dia, quando estávamos a uma semana da ilha de Sin, irrompeu um vendaval terrível. E uma chuva torrencial nos inundou. O capitão subiu ao alto do mastro, de onde examinou o horizonte. Quando desceu, estava lívido. Puxou a barba, bateu com os punhos no rosto e disse em tom de desespero: `A corrente nos desviou de nossa rota, atirando-nos aos confins dos mares do mundo. Chorai e dizei adeus à vida. Estamos todos perdidos.' "Tirou então um livro escondido no peito e folheou-o atentamente; depois, virando-se para nós, declarou: `Meu livro mágico confirma meus piores temores. A terra que vedes ao longe é a Região dos Reis, onde nosso senhor Soleiman Ibn Daud está sepultado.
Monstros marinhos pululam nessas costas, e o mar está cheio de peixes gigantes que podem engolir de uma vez um navio inteiro. Agora sabeis o pior. Adeus!' "Ficamos gelados pelo medo e o horror. De repente, o navio foi levantado e depois depositado entre as ondas, enquanto um bramido mais terrível que o trovão chegava do mar. Os ventos e as ondas remoinhavam a nosso redor, e vimos um monstro marinho do tamanho de uma montanha avançar para nós, seguido por outro monstro ainda maior e por um terceiro monstro igual aos dois primeiros juntos. "Este último, abrindo uma goela do tamanho de um vale entre duas colinas, tragou três quartos de nossa embarcação, com tudo que ela continha. Tive apenas tempo de recuar até o alto do convés e saltar às águas antes que o monstro engolisse todo o navio e sumisse nas profundezas do mar, com seus dois companheiros." Mas uma vez, superando os perigos graças a sua sorte e engenhosidade, Sinbad voltou para Bagdad, são, salvo e rico. Entre outras curiosidades que contou, disse que havia escalado uma montanha tão alta que chegou a ouvir os anjos cantarem louvores ao Senhor dos Mundos. Desta vez, era mesmo a última viagem. Viveu na felicidade em Bagdad até que foi visitado por aquela que interrompe as alegrias, quebra as amizades, destrói os palácios e edifica os túmulos: a amarga morte. Gloria Àquele que vive para sempre!






A gata metamorfoseada em mulher


A uma gata que tinha, um tal pascácio
Com paixão adorava.
Era tão meiga, delicada e bela!
E tão doce miava!

Doido, mais doido que os que estão no hospício,
O nosso namorado,
Com preces, choro, encantos, sortilégios,
Logrou dobrar o fado.

Numa bela manhã nossa gatinha
Em mulher se mudou;
E o seu adorador, no mesmo dia,
Por esposa a tomou.

Doido de amor, qual fora de amizade,
O hipocôndrico esposo
julga a mulher — das perfeições da Terra
Santo ideal formoso.

Enche-a de adulações, cobre-se de mimos;
E nem longes sequer
Lhe vê de gata; ilude-se, julgando-a
Toda e em tudo mulher.

Uns ratinhos, porém, roendo a esteira,
Vieram perturbá-los.
Presto a moça levanta-se do leito;
Mas não pôde apanhá-los.

Tornam os ratos a arranhar a esteira;
E a noiva, de gatinhas,
Agarra, desta vez, os tais murganhos
Com dentes e mãozinhas.

Em forma de mulher os pobres ratos
Não na podem fugir,
É deles sorte à gata transformada
De incentivo servir.

Este caso o poder da natureza
Nos demonstra de sobra;
Passado certo tempo o vaso embebe,
O pano toma a dobra.

Em vão do sestro e propensão que a levam
Quereis desavezá-la;
Por mais que trabalheis, zomba de tudo;
Não podeis reformá-la.

Nem à força de rilha, ou de forcados,
Mudará de feição;
Nem lograreis o impulso dominar-lhe,
Empunhando um bastão.

Fechai-lhe a porta, como se expelísseis
Figadal inimigo;
Há de voltar a rápido galope
Ou forçar o postigo.

Barão de Paranapiacaba (Trad.)